A cenografia é uma manifestação espacial que se encontra no meio do caminho entre a arquitetura e a arte. O fazer cenográfico trabalha com operadores da prática artística que muito tem a contribuir para a produção, compreensão e crítica do espaço gerado pela prática arquitetural, assim como para a sua análise.
Percebe-se claramente que uma das formas possíveis de buscar uma melhor compreensão da linguagem da encenação teatral contemporânea é através dos processos de concepção do espaço onde ocorre a relação cena/público. As propostas mais notáveis do Teatro do século XX até hoje buscam formas inovadoras de concepção espacial, repensando ou abolindo cânones e tradições, instaurando novos processos.
Se existia, nos primórdios do século XX, uma estrutura que poderia ser considerada tradicional, esta era o palco italiano. Esta é oriunda do século XVI e, já no século XVII, o palco italiano era encarado como uma realização plena, necessitando de alguns ajustes técnicos, mas que já era quase tida como perfeita. Parecia, para o teatro feito no Ocidente, uma estrutura inerente à própria idéia de teatro. Apesar de outras formas de apresentação coexistirem com ele, representava uma posição hegemônica no teatro da época. Entretanto esta estrutura já não conseguia mais atender as novas demandas que emergiam na época. É da discussão acerca da utilização ou não do palco italiano e sua estrutura que surgem novas propostas para a cenografia contemporânea e, de um ponto de vista mais abrangente, para a própria arquitetura teatral de nossos dias.
É inegável a extrema praticidade e funcionalidade do palco italiano. Destacam-se, ainda, o conforto proporcionado aos espectadores, a boa visibilidade e acústica. Os aperfeiçoamentos técnicos que sofreu incrementaram-no ainda mais. Sua estrutura possibilitava inúmeras transformações cênicas que a ação exigia bem como efeitos ilusórios mais convincentes. Representava, no final do século XIX, a melhor estrutura que se prestava ao teatro então produzido. Graças a seus recursos várias concepções puderam ser formuladas, experimentadas e desenvolvidas.
O edifício teatral construído segundo uma estrutura à italiana representava uma hierarquia social. Certas impossibilidades técnicas surgidas, em alguns casos, não eram reparadas para que a desigualdade gerada na qualidade de certos assentos pudesse ratificar a posição hierárquica dos indivíduos na sociedade. A hierarquia preconizada através desta estrutura é questionada por alguns encenadores, que propõem uma democratização do teatro, sugerindo modificações estruturais no intuito de minimizar tais diferenças que já não condiziam com as concepções acerca do Teatro defendidas por eles. Novas possibilidades são pensadas e experimentadas.
A relação estática e, predominantemente, frontal entre espectador e espetáculo também se constitui outro ponto de discussão acerca da estrutura à italiana uma vez que o homem do século XX está condicionado de maneira bem diversa daquele que vivia a época do nascimento do palco italiano. O espectador, para aqueles que buscam uma outra estrutura para o teatro, estático e passivo diante do palco tende a ser absorvido mais facilmente pelo espetáculo, chegando a perder a consciência de que é um espectador. Busca-se um espetáculo mais dinâmico, mais próximo do público e que possa, constantemente, mudar os pontos de vista, eliminando a estaticidade do espectador e sua relação unilateral com o espetáculo. Roubine (1) resume bem todo o conjunto de questionamentos acerca da estrutura preconizada pelo palco italiano:
“Os partidários da democratização do teatro opõem-se à desigualdade perpetuada pela organização da sala. Os que sonham com uma nova estética do palco contestam a posição que ela impõe ao espectador: uma relação com o espetáculo fundamentalmente estática, na medida em que ele fica sentado num mesmo lugar do início ao fim da representação, condenado a uma percepção que se faz num ângulo e a uma distancia invariáveis; e basicamente passiva, uma vez que em momento algum o espectador pode intervir no desenrolar do espetáculo. O palco fechado, em outras palavras, tornou-se uma caixinha de mágicas. O espectador foi condicionado por mais de três séculos de tradição ilusionista, que o habituaram a confundir esse tipo de espetáculo com a encarnação de uma essência do teatro.”
A criação de uma nova maneira de conceber o espetáculo, mais adequada às demandas de seu tempo, passava pelas mudanças na relação entre espectador e espetáculo, já que o palco italiano poderia ser considerado o “cubo branco” do Teatro, ou mesmo poderia ser considerado o equivalente à moldura na pintura.
Enfim, no início do século XX vem à tona uma série de contestações sobre o palco italiano e várias propostas de superação desta estrutura. No entanto, toda essa “revolução” espacial permanece mais no discurso que, efetivamente, na prática, e o palco italiano ainda é plenamente usado e melhorado. Contudo, é digno de destaque que três séculos depois de seu surgimento, o palco italiano deixava de ser encarado como estrutura inerente à própria idéia de teatro, sendo este mais um passo no caminho evolutivo da espacialidade teatral. Deixa de ser um cânone e sua evolução, ou mesmo superação é natural, uma vez que a linguagem da encenação teatral deve estar em dia com as demandas do indivíduo de sua época.
A complexidade do mundo real atinge níveis inimagináveis, os avanços científicos e tecnológicos mudam consideravelmente as formas de compreender o mundo. As noções de espaço, tempo e presença alteram-se e os conceitos de real e ficcional confundem-se. Diante desta realidade a arte, no intuito de atender as novas demandas, caracteriza-se pela diversidade e pela interdisciplinaridade. Para ter o fôlego necessário para incorporar os novos conceitos insurgentes, o Teatro deve ter o distanciamento crítico necessário da tradição. A abertura criada pela ampliação do lugar teatral é um caminho frutífero para tal realização, partindo-se deste ponto em diante rumo aos limites que esta maneira de abordagem da espacialização pode apresentar.
“Em relação à localização, fisicalização do espaço-tempo da encenação, podemos nomear uma cena do deslocamento – o teatro do enviroment – apropriação do espaço urbano, dos contextos cotidianos, a partir do efeito da espetacularidade do mundo e do espalhamento da artisticidade enquanto olhar estetizante”. (2)
Nesse sentido, a linguagem da encenação teatral contemporânea torna-se extremamente diversificada e complexa. Não existe uma regra fixa que estabeleça as características do espetáculo e a diversidade é a tônica do teatro contemporâneo. Desta forma, o conceito de cenário dilui-se, expandindo-se em possibilidades e, em certos casos, deixa de ter uma definição clara. O universo de possibilidades e de lugares para a apresentação de um espetáculo teatral é quase infinito nos dias atuais, faz-se necessário um conceito que se adeqüe melhor a esta realidade. Mantovani (1989) em sua obra Cenografia define o conceito de lugar teatral. O lugar teatral é onde se estabelece a relação cena/público, que não se limita somente ao edifício teatro, mas a qualquer lugar onde se possa estabelecer esta relação. “O lugar teatral é composto pelo lugar do espectador e pelo lugar cênico – onde atua o ator e acontece a cena” (3). O conceito de lugar teatral introduz uma associação, em certa medida, orgânica entre a cenografia e a arquitetura teatral tornando-os indissociáveis, uma vez que são manifestações de questões do homem no espaço. A cenografia é concebida e definida tendo como um dos seus pontos de partida a arquitetura na qual está inserida. Pode-se afirmar, também, que a arquitetura teatral é definida a partir das concepções espaciais próprias da cenografia. Constata-se, então, que a idéia de lugar teatral, por ser mais abrangente, é mais adequada e extremamente útil tanto para o entendimento da produção da cenografia contemporânea, quanto para o estudo da cenografia através dos tempos. Desta forma, amplia-se o horizonte de análise à medida que não se busca apenas o décor do espaço, mas o espaço em si.
Somente na segunda metade do século XX as experimentações práticas ganham fôlego e alguns grupos obtêm sucesso nesta empreitada rumo a uma nova forma de espacialização do espetáculo. Um dos melhores e mais ilustrativos exemplares no que concerne a esta nova maneira de se estabelecer a relação entre cena/público, bem como de configurar a espaço cênico e a arquitetura teatral, é a produção do grupo de teatro paulista Teatro da Vertigem (4). Este se constitui um dos grandes expoentes do teatro brasileiro contemporâneo. Surgiu na década de noventa com propostas alternativas ao teatro comercial. Possui em seu currículo quatro montagens – Paraíso Perdido (1992), O Livro de Jó (1995), Apocalipse 1,11 (2000), que compõem a Trilogia Bíblica e, a mais recentes, BR-3 (2005/2006).Com uma linguagem inconfundível, a produção do Vertigem conquistou, rapidamente, o respeito da crítica e do público. Uma de suas principais características é o fato de apresentar-se em espaços ditos “alternativos” tais como uma igreja, um hospital e um presídio. O termo alternativo está principalmente ligado ao fato do lugar teatral não se estabelecer em um edifício cuja designação teatro é apriorística, seja em uma estrutura à italliana ou não, como o Galpão Cine Horto ou a Cartoucherie de Vincennes, sede do Theatre du Soleil. O Teatro da Vertigem busca um espaço que dialogue com o eixo conceitual proposto pelo diretor e trabalhado com o grupo, tirando partido de sua carga semântica, que deve apresentar fisicamente o conceito da proposta. A escrita cênica não é apenas um adjunto, um ponto de apoio, não se limita a um dado visual, é verbo, é conceito.
Em geral caracteriza-se a cenografia do Vertigem como sendo de locação, conceito este extraído do Cinema. Contudo, a idéia mais adequada para a compreensão do que é o lugar teatral proposto pelo grupo paulista é a de enviroment. Um conceito extremamente contemporâneo e que é uma das ancoras da linguagem Work in Progress.
“(...) a organização espacial por territórios literais e imaginários substitui a organização tradicional – de narrativas temporais e causalidades. Opera-se, dessa forma, o paradigma contemporâneo de substituir o tempo pelo espaço como dimensão encadeadora.
Com privilégio da sincronia, em detrimento da tradição diacrônica, há o deslocamento da organização logotemporal para a construção mitológica, espacial”. (5)
A constituição do lugar teatral no trabalho do Vertigem não se baseia em recriar espaços, como no Cinema, mas, sim, em aproveitar os já existentes, mantendo sua carga semântica e, ao mesmo tempo, transformando-os. O espaço é “vestido” com as referências de domínio público no intuito de se revelar as relações entre a peça e o espaço, ampliando, consideravelmente, o lugar onde se estabelece a relação cena/público.
A primeira montagem do Vertigem – Paraíso Perdido (1992) – tem como fio condutor principal o poema homônimo de John Milton. A peça fala de Deus, de queda, do sentimento de perda do Paraíso, constitui-se em uma espécie de relato, de (re)vivência do mito da queda e do sentimento de nostalgia de um outro tempo, de harmonias mais plenas. Em Paraíso Perdido, O Vertigem busca oferecer um momento, fundado em uma temporalidade outra, em que o espectador vivencie uma experiência concreta, material, de reencantamento com o mundo, qualquer que seja seu grau de fé; além disso, a peça fala sobre a religação com o sagrado - um tempo mítico, e simultaneamente mundano é trabalhado pela encenação. A inscrição do homem no profano e sua consciência do sagrado são, permanentemente, apresentadas durante o percurso de um dos personagens, o Anjo Caído, apontando para a idéia de que a consciência da queda é o caminho para a própria redenção.
Para conseguir traduzir todos os conceitos no espaço, para que certo efeito de maravilhamento do público fosse provocado, a montagem foi realizada em um templo, uma igreja. Esta escolha é bem sucedida, pois se retoma a idéia de percurso teatral e religioso, conduzindo o público, por meio dos olhos do Anjo, a experimentar a descoberta de um momento magicamente único, que é condensado no templo religioso tanto pelo peso de sua idade física quanto por sua memória cultural, por aquilo que representa para a própria idéia de existência do homem.
Desta forma, o público não estabelece uma relação estática em relação à cena, pelo contrário, percorre os inúmeros caminhos definidos pela geografia da peça, definindo um ponto de vista particular e consolidando uma experiência única de diálogo com a cena. O público torna-se um elemento ativo e presente no espetáculo.
O templo nunca deixa de ser templo, a igreja nunca deixa de ser igreja, porém durante a encenação, amplia-se em significado e, por vezes, ressemantiza-se o próprio edifício. Em Paraíso Perdido, a carga semântica do espaço é expandida de forma literal, enfática; o templo, que é essencialmente, um caminho, torna-se, em alguns momentos o próprio objetivo, o destino.
O lugar teatral expande-se, configurando a cena híbrida, onde o espaço cênico torna-se o espaço arquitetônico e vice-versa. A separação entre a cena e o público reduz-se a um limite tênue, quase inexistente e o próprio edifício torna-se cenário. A construção mitológico-espacial do lugar teatral é organizada por um amálgama de territórios literais e imaginários, substituindo as narrativas temporais e as causalidades.
O Vertigem, com Paraíso Perdido, rompe com toda estrutura de palco tradicional e ocupa espaços poligonais, de possíveis ações simultâneas, retirando o ponto focal da seqüência e narrativa única e provoca a possibilidade de recepções múltiplas, de interpretações particulares. A peça, a obra, deixa de ser algo para uma observação distante (e não distanciada) para tornar-se um espaço a ser adentrado e experimentado de modo pleno, fisicamente.
A segunda montagem realizada pelo Teatro da Vertigem é a adaptação do texto bíblico O Livro de Jó (1995). A peça segue a trajetória da vida de Jó, um homem abastado, temente a Deus, que se torna vítima da provação divina, que lhe tira os filhos, a riqueza e contraria uma terrível doença. Mesmo assim, Jó segue errante pela Terra em busca de uma explicação, mas firme em sua fé. Discute-se, principalmente, a dor do existir e a fé e questiona-se a bondade divina e a submissão humana. Acompanhar o triste padecimento da vida de Jó é inscrever-se no que há de mais incisivo no debate entre o sagrado e o profano, entre o efêmero e o eterno.
Em O Livro de Jó, o Vertigem trabalha com um texto mais elaborado e o grupo já se encontra mais amadurecido no que tange aos seus questionamentos e propostas. Para que a metáfora que se pretendia construir, da grande moléstia humana, pudesse ser representada (ou apresentada) de forma mais enfática, utilizou-se como lugar cênico um hospital. Este é um dos melhores lugares para que se tenha e se reforce a idéia de finitude humana. O espaço não é utilizado como um cenário vazio, muito pelo contrário, é explorado em seus mais variados e infinitesimais recantos, buscando sempre evidenciar as memórias, acentuando os significados que carregam o hospital. A utilização e manipulação de equipamentos próprios do lugar como objetos de cena, como micro-cenografias contribui para o enriquecimento dos signos que fragmentam o espaço cênico e estabelecem as múltiplas possibilidades de experimentação da cena pelo público.
O público expectador acompanha Jó em seu caminho seguindo uma trajetória ascensional, que marca claramente as etapas do amadurecimento do homem no seu existir no mundo, principalmente no penoso existir de Jó. Não existe um olhar interlocutor entre a cena e público, aquela acontece no aqui e agora da cena híbrida e esta consciência de proximidade com o drama abala os sentidos. Tudo vai (ou pretende ir) direto ao fundo da alma, sem nenhum artifício para alentar e sedar os sentidos e a inteligência. O espectador é colocado diante da obra em um ponto onde não existe uma possibilidade de contemplação, a experimentação estimulada é de tal proporção que restam poucas opções – ou aceitar e entregar-se ou rejeitá-la integralmente. A idéia é que ninguém saia ileso emocionalmente de O Livro de Jó.
Nesta segunda empreitada, O Vertigem acentua a ampliação do lugar teatral, o espaço cênico e o arquitetônico fundem-se de sobremaneira e a montagem consegue estabelecer ainda mais fragmentos que permitem as múltiplas leituras e experimentações do público. Isto se dá, principalmente, pela proximidade física entre a cena e o público e pela materialização de uma espécie de campo mítico no espaço cênico do hospital. Estabelece-se uma temporalidade própria dentro do espaço arquitetônico em que o vivenciar passa a responder a estímulos outros, bastante distintos do cotidiano, mas que, uma vez experimentados, possuem uma grande reverberação. Em O Livro de Jó fica clara que a intenção do Vertigem, ao buscar espaços “alternativos” - como, neste caso, um hospital e, em Paraíso Perdido, uma igreja - para o seu teatro, não é a realização de uma pesquisa arquitetônica ou mesmo de certa estética espacial. O que norteia o trabalho de expansão do lugar teatral, de configuração de uma cena híbrida é a pesquisa de novas formas de interferência na percepção do espectador, de recepção do público, de concepção de um teatro que seja capaz de dialogar com as novas demandas do mundo contemporâneo.
A terceira montagem do Vertigem, que completa a chamada trilogia bíblica, é intitulada Apocalipse 1,11. O texto inspira-se no profético último livro da Bíblia escrito por João – O Apocalipse – que descreve, com linguagem hermética, grandiloqüente e repleta de simbologias o final dos tempos.
A montagem do Vertigem não tira partido desta linguagem utilizada na Bíblia, pelo contrário, traz para o que há de mais real, mais cotidiano, o contexto da cena. Torna-se uma clara demonstração de que a realidade atual nada tem de divino e maravilhoso como é colocado pela mídia de massa. As revelações do Apocalipse são contadas a um João que pouco tem a ver com o evangelista bíblico. Este mais se assemelha a um retirante que chega, praticamente sem passado nem futuro, na selva de pedra que constitui a metrópole, a Babilônia moderna.
O uso do espaço cênico, que já se tornou uma marca registrada do grupo, é novamente um elemento essencial para a montagem. Apocalipse 1,11 acontece em um presídio, o lugar da punição, da culpa. É o lugar que se determinou para confinar o mal, portanto o melhor espaço para examinar as vísceras da sociedade, para evidenciar e comparar como o que está dentro é semelhante ao que está fora, na epiderme, no mais superficial. O presídio é real, concreto e por isso é frio, literal e direto ao emitir sua mensagem. Certamente é uma metáfora, bem adequada, da Babilônia moderna e do fim dos tempos.
A utilização do espaço arquitetônico do presídio como espaço cênico é feita em vários níveis, o que possibilita usos diferenciados e inesperados do lugar teatral. O público desloca-se por este inextrincável labirinto em espaços completamente distintos onde experimenta as mais variadas sensações. A primeira cena acontece com o público ainda fora da cadeia; em seguida, ao entrar ele se amontoa para presenciar a anunciação do fim dos tempos pelo Anjo. Em outra seqüência, o espectador é levado a uma grande boate – a New Jerusalém – onde acontece um grande espetáculo de horrores cujo conteúdo é repleto de referencias a programas de TV, recheado de violência e crimes de todas as espécies. Em outra seqüência, o público se vê em um apertado corredor escuro onde testemunha uma chacina perante seus olhos. Estas rápidas descrições evidenciam um dos vários níveis da utilização do espaço arquitetônico pela encenação. A trama arquitetônica do presídio cria diferentes dimensões e escalas do espaço que, da forma como são combinadas no percurso da apresentação, evocam sensações diferentes, pontos de vista e posicionamentos inusitados do público, criando uma sensação vertiginosa ao experimentar os impulsos de compressão e dilatação do espaço, de proximidade e distanciamento da cena. Em Apocalipse 1,11, fica claro o limite que é colocado na separação entre cena e público e, ao mesmo tempo, é evidente que a sua relação não é mais a mesma durante todo o espetáculo.
Outra forma de utilização do espaço arquitetônico diz respeito ao ambiente em que acontece a cena. O presídio carrega uma carga semântica enorme por si só, seja na degradação física do edifício, no seu odor, na própria forma de propagação do som, na presença das grades e, principalmente, na memória que o edifício evoca e emana. Esta simbologia extremamente complexa e impactante, combinada à forma e conteúdo da encenação, afetam a recepção do espectador. A experiência do público ao vivenciar a cena é singular dentro do presídio.
Ao reduzir a distância entre a cena e o público, o nível de entropia da relação amplia-se, o campo de possibilidades de intervenção expande-se e investir neste processo configura-se como um risco, contudo, calculado. Risco por que trabalha com conceitos próximos aos da Teoria do Caos, onde o aleatório e o imprevisível aparecem, são variáveis presentes, onde a ordem é outra e a previsibilidade da resultante produzida (ou provocada) pela relação entre a cena e o espectador é indeterminada. A relação direta que era estabelecida entre a cena e o público espectador desaparece, a intensidade da relação deriva para o ponto de vista de cada indivíduo.
Este tipo de relação, de recepção linear era (e ainda é) percebida em uma encenação segundo um sistema tradicional, seja espacialmente ou dramaticamente, o espectador é colocado à margem da cena, tornando-se um observador que está separado dos atores pelo que se convencionou nomear de quarta parede. Em termos concretos, a quarta parede ergue-se na boca de cena e enclausura os acontecimentos no palco, assim os atores ignoram o público e este assume uma posição “analítica e independente”, distanciando-o do fluxo físico da ação que acontece no palco.
O deslocamento da cena do edifício-teatro para os espaços “alternativos”, poligonais, que criam novas variáveis nas formas clássicas de representação, que fundam outras formas de configuração e revelação dos signos, e que alteram as maneiras com que a recepção desloca, dialoga e compreende a obra, tem gênese, certamente, nas experimentações das artes plásticas como experiência concreta, realizada. Pode-se identificar, também, na história da arquitetura, que alguns dos conceitos do movimento moderno pressupunham uma apropriação do espaço público para a ocupação do espaço artístico. Isso é encarado como um outro mote ao deslocamento para espaços não-convencionais à objetivação artística. Apesar de boa parte dos aspectos teóricos serem percebidos nos encenadores teatrais nos primórdios do século XX, a concretização e materialização destes conceitos só acontecerá no Teatro mais à frente. Sua contaminação nas outras áreas dá-se mais rapidamente, o que, de certa forma, contribuiu muito para o amadurecimento destes quando realmente eclodem na prática teatral.
A forma com que o Vertigem estabelece a passagem do processo de criação para o produto, para a apresentação ao público, elemento externo até este determinado instante, busca subverter a ordem convencional, estabelecendo uma ambigüidade entre o contexto ficcional e o da vida, entre o espaço arquitetônico e o espaço cênico/artístico que lança o público em uma situação para além da vivência comum. É como se a quarta parede (derrubada em Brecht) se reerguesse englobando também o público. Uma vez inserido no contexto, no espaço de atuação e encenação, o espectador co-participa da peça, dialoga com o processo com uma intensidade diferenciada, estabelecendo um novo espaço, onde sua consciência é ampliada e sua experimentação aproxima-se dos seus limites. A relação que se estabelece está, consideravelmente, ligada ao despertar do indivíduo e não à sua hipnose.
Nesta cena híbrida, onde a entropia é elevada e onde o todo já não pode ser percebido em totalidade, mas, sim, como um conjunto de fragmentos, o público espectador torna-se livre de um reconhecimento, de um sentimento de empatia e identificação com a cena para que, com isso, tenha liberdade para desfrutar com bem lhe convier da combinação dos textos e subtextos para a leitura do seu todo. O efeito de distanciamento de Brecht é usado quase às avessas, pois é ele o dispositivo que inseminará o público no espaço cênico, no lugar teatral rico de possibilidades novas. A percepção tem de ampliar-se e, ao mesmo tempo, tem de se tornar capaz de visualizar os pequenos detalhes, pois, na cena híbrida, neste caso a do Vertigem, cada um pode vir a ser um elemento de ampliação do entendimento da cena, bem como de sua experimentação.
Walter Benjamin, em seu clássico texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (6), apresenta duas formas de percepção da obra de arte – a recepção tátil e a recepção ótica – cujos fundamentos estão relacionados às idéias de distração e recolhimento. Quem se recolhe diante de uma obra de arte estabelece uma relação tão íntima que, praticamente, dissolve-se e adentra a obra. Esta intimidade baseia-se em uma componente ligada à contemplação que, por sua vez, possui um fundamento ótico. Por outro lado, na distração a obra de arte mergulha no observador que a envolve, molda-a e a absorve. Nesse sentido, a obra é percebida de uma forma mais geral e, em parte, dispersa; a relação entre o observador e a obra acontece muito mais pelo que Benjamin classificou por hábito que, necessariamente pela atenção. A recepção passa menos pela componente predominantemente ótica e abrange um campo mais sinestésico, que é categorizado como tátil. Esta via de mão dupla entre distração e recolhimento, entre tátil e ótico constitui-se um operador interessante para a análise dos modos pelos quais é concebido o espaço das representações teatrais.
Ao adentrar o universo proposto pelo Vertigem, o diálogo entre o tátil e o ótico estabelece-se durante todo o tempo. Um diálogo que por vezes é conflituoso e, em inúmeros momentos, é harmonioso, equilibrado. Apesar de o pressuposto inicial ser de recolhimento, de adentrar a obra, o lócus estabelecido, ou seja, o espaço “não-convencional” de uso público e, nesse sentido, carregado de certo hábito e significado, mergulha para dentro do espectador. Desta forma, a experimentação abrange todos os sentidos, é sinestésica, instaurando um diálogo permanente que modifica o papel tanto da obra quanto do espectador.
A forma com que se estabelece a relação entre a cena e o público, na produção do Teatro da Vertigem, é diferenciada e pode ser considerada como de vanguarda, entretanto seria um equívoco considerá-la limite. Ela se insere em um contexto onde suas propostas podem ser verificadas com maior intensidade. Revela claramente as suas influências e a sua trajetória dentro de um processo de investigação de formas inovadoras, e mais adaptadas à realidade, do teatro contemporâneo. O trabalho do Vertigem encontra-se na linha de interseção de várias correntes das artes visuais – dentre elas os happenings, site specific, enviroment art – tomando delas o que julga útil e moldando uma linguagem própria para a sua esfera artística em particular – o Teatro.
A linguagem da encenação teatral do Vertigem não é naturalista e não recorre aos recursos do ilusionismo, comuns ao universo do palco, principalmente do “italiano”. A forma com que se configura o lugar teatral modifica as maneiras com que o público ser relaciona com a cena possibilitando inovações no que concerne à recepção do espetáculo. Ao aproximar-se da cena, percorrendo diferentes caminhos durante a peça, adentrando ambientes diversos, a posição do público deixa de ser estática e meramente contemplativa, de observação passiva. Observação esta que proporcionaria uma leitura linear e que pressuporia uma mensagem tão direta quanto. O público está diante de uma cena de campo expandido, onde os deslocamentos físico e logotemporal são portas de entrada, pontos de vista de sentidos diversos. A cena híbrida do Vertigem, que reúne em uma mesma superestrutura simultaneamente o espaço arquitetônico, o espaço cênico e o espaço artístico, superpõe várias camadas de sentido, criando leituras subliminares que ampliam seu próprio sentido, tornando-a mais flexível e livre para o seu vivenciar. Para que isso ocorra é fundamental que a transposição da estrutura tradicional para o espaço não convencional realize-se de forma orgânica e completa. Esta certamente é uma das razões do êxito do Vertigem, já que ao buscar um outro espaço arquitetônico não se aplicou, nele, uma forma tradicional de espaço cênico assim como uma montagem em moldes corriqueiramente usuais. Investigou-se uma forma outra de encenação em todos os aspectos, que pudesse ser coerente com a proposta do grupo e o resultado final do processo é uma cena onde a idéia e a experiência encontram-se em equilíbrio dinâmico. A percepção espacial combinada a um estímulo sinestésico fragmentado produzido pela cena não só configuram este novo lugar teatral, como estabelecem esta nova forma de diálogo entre a cena e o público – a cena híbrida.
notas
1
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 86-87.
2
COHEN, Renato.Work in Progress na cena contemporânea: criação, encenação e recepção. São Paulo, Perspectiva, 2004, p. 101.
3
MANTOVANI, Anna. Cenografia.São Paulo, ed. Ática, 1989, p. 7.
4
É importante ressaltar que, em muitos momentos do texto, quando se refere ao Vertigem, lê-se Marcos Pedroso, o cenógrafo do grupo durante as montagens das peças que configuram a Trilogia Bíblica, responsável pela concepção espacial. Porém optou-se por usar o nome do grupo por se tratar de um coletivo construtor das montagens, apesar de existirem papéis bem definidos. O produto final consegue ser coeso de tal forma que a organicidade impede compartimentações.
5
COHEN, Renato. Op.Cit., p. 26.
6
“A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: BENJAMIN, Walter. Magia, Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Trad. Sérgio Paulo Rouanet. 7ª ed. São Paulo, Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas; v.1).
bibliografia complementar
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. 2ª ed. São Paulo, Martins Fontes, 1999. 173p.
CARLSON, Marvin. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. Tradução Gilson César Cardoso de Souza São Paulo, Fundação Editora da UNESP, 1997.
KRAUSS, Rosalind, E. Caminhos da escultura moderna. Trad. Júlio Fischer. São Paulo, Martins Fontes, 1998. 365p.
NESTROVSKI, Arthur Rosenblat. Teatro da vertigem: trilogia bíblica. São Paulo, Publifolha, 2002. 356 p.
sobre o autor
Cristiano Cezarino Rodrigues, cenógrafo, arquiteto e designer formado pela Escola de Arquitetura da UFMG, onde atualmente é mestrando. Desenvolve trabalhos na área de cenografia, design de eventos e arquiteturas efêmeras