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A obra do arquiteto Fernando Távora é testemunho de uma idéia de valorização do patrimônio cultural que atribui um novo valor criativo ao espaço construído, coexiste com a idéia de proteção e manifesta-se na continuidade da História, pela regeneração da vida, através do pensamento crítico e da obra.
Em 1947, Fernando Távora com apenas 24 anos de idade, redige "O Problema da Casa Portuguesa", onde afirma que, "Tudo há que refazer, começando pelo princípio. (...) o estudo da arquitetura portuguesa não está feito (…). A casa popular fornecer-nos-á grandes lições quando devidamente estudada, pois ela é a mais funcional e a menos fantasiosa (…). Ao contrário de uma via mais internacional ou modernizada ou arquitetura de caprichos estilísticos".
João Leal, 2000, (2) num estudo em que analisa uma diversidade de reflexões não específicas da antropologia em torno da identidade portuguesa, sustenta que a invenção da saudade como tema estruturante do caráter nacional ensaiada na literatura por Teixeira de Pascoais, entre 1910 e 1920, iria constituir a fonte de motivação de grupos de trabalho que iniciaram estudos sistematizados de caráter etnográfico desenvolvidos durante a década de 50 do século XX - um dos quais, formado por arquitetos onde se encontrava também Fernando Távora - no momento em que depois de realizarem diversas viagens pelas diversas regiões de Portugal convergem no "Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa" (fig.2), publicado em 1961, pelo então Sindicato Nacional dos Arquitetos.
Este trabalho condensa um momento histórico fulcral de crítica fundamentada ao modelo formal unitário da "casa portuguesa" ao revelar os valores perenes da arquitetura popular e a multiplicidade das expressões da arquitetura nas diversas regiões do país. A iniciativa permitiu romper com o chamado "português suave" e revelou uma arquitetura profundamente humana, enraizada na terra e fortemente ligada às condições naturais e locais. A experiência iria estimular o debate crítico em trono da arquitetura moderna durante as décadas de 60 e 70 do século XX. Segundo B. Ferrão (1991), a iniciativa esteve vinculada a "... uma adequação regionalizada do movimento moderno que garanta a indispensável continuidade e enraizamento da nova projetação portuguesa, numa significativa sintonia com teses entretanto no CIAM/Hoddeson (fig.3), acerca de uma arquitetura moderna sensível a valores e formas locais". (3)
Fernando Távora acreditava desde "O Problema da Casa Portuguesa", que a inventariação, sistematização e estudo da arquitetura popular portuguesa definiria a base de um novo sistema ético que reconhece o valor do conhecimento como método de uma pedagogia disciplinar que pudesse fundamentar o exercício da arquitetura. A Quinta da Conceição, (1956/1960) (fig.4) e a Casa de Férias de Ofir, (1957/1958), dois trabalhos realizados no período do Inquérito, não esgotaram o debate em torno da arquitetura popular e apresentaram uma releitura dos valores da modernidade e da tradição, ao colocarem o homem e a arquitetura na continuidade da História.
A partir do conhecimento profundo da cultura erudita e popular, da motivação que sistematicamente procurava na História, na sua interpretação da contemporaneidade e com base na compreensão da especificidade de cada problema que enfrentava, foi obtendo uma extraordinária capacidade para reorganizar o lugar através da obra.
Fernando Távora respeitava os valores de John Ruskin: "A arquitetura é como a espiritualidade do lugar", (4) mas também reconhece que a incúria e o desleixo não são eticamente aceitáveis e a arquitetura pode ser uma reserva moral da memória coletiva. Quando intervém na ruína, questiona-se em que medida deve ser ela transformada. Em algumas obras, Fernando Távora confronta-se com a ausência da ruína ou de parte significativa dela, Quinta da Conceição, em Matosinhos, ou então é confrontado com vestígios da ruína que não informam sobre a totalidade do corpo que constituía a obra antes do estado de ruína, Casa dos 24, no Porto, (fig.5) evita apaixonadamente a queda da obra no estado de ruína, Casa da Rua Nova, em Guimarães, (fig.6) ou então conforta a obra quando esta necessita de cuidados, Casa da Covilhã, em Guimarães.
Mas ao contrário do amor platônico de John Ruskin perante a arquitetura, Fernando Távora prefere tocar-lhe com as próprias mãos, se necessário: "... mas só comecei a conhecê-la melhor quando, juntos iniciamos o romance da sua - e nossa - transformação. Havia que tocar-lhe e tocar-lhe foi um ato de amor, longo amor, longo e lento, persistente e cauteloso, com dúvidas e certezas, foi um processo sinuoso e flexível e não um projeto de estirador, foi um método de um homem apaixonado e não de frio tecnocrata, foi um desenho de gesto mais do que um desenho no papel". (5)
Em Guimarães, entre 1973 e 1976, quando intervém na Casa da Covilhã realiza uma obra intimista onde os valores espirituais da paisagem e da arquitetura emergem como o lugar transcendente da memória. Logo após a Revolução de 1974, desenvolveu a adaptação a Pousada, o Convento Santa Maria da Costa, (1975 /1984), obra que rejeita a ruptura e assume os valores de continuidade da História. Os estudos arqueológicos efetuados permitiram-lhe registrar a evolução do Convento ao longo do tempo (Fig. 7). Tais pressupostos constituem razão e fundamento do próprio projeto da Pousada. Uma experiência modelo interdisciplinar onde a concepção arquitetônica é orientada pela informação histórica e pelos dados da investigação arqueológica.
Nos finais da década de 70, cresceu a conscientização da necessidade do alargamento da noção de patrimônio aos conjuntos históricos, já explícita na Carta de Veneza, (1964), até então ainda limitada aos monumentos, noção que mais tarde passou a englobar a paisagem natural e rural e os jardins históricos, Carta de Florença, (1881). Em 1980, Fernando Távora concebeu o Plano Geral de Urbanização de Guimarães. A ampliação do conceito de patrimônio cultural é expressa e valorizada numa perspectiva crítica alargada de preservação e transformação da cidade contemporânea, que tem por objetivo a estrutura e o desenvolvimento da civitas - a cidade de todos os cidadãos e a definição do seu quadro futuro." (...) o Plano deverá transformar-se em obra de alguns em obra de todos e para todos, através, embora, de um processo certamente não isento de lutas e contradições". (6)
Após a criação do GTL de Guimarães em 1981, e a partir da estreita colaboração entre o arquiteto Fernando Távora e a arquiteta Alexandra Gesta, que é destacada para dirigir e definir o seu programa de atuação, sedimenta-se a estratégia de reabilitação do Centro Histórico de Guimarães. Procura-se um modelo exemplar a seguir pela fixação da população residente, o exercício disciplinar dirigido a um propósito cívico e político de regeneração de vida urbana.
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Desde o período medieval que a posição descentrada do conjunto da Sé Catedral do Porto relativamente ao recinto exterior da muralha e a sua monumentalidade, proporcionava uma grande proximidade com duas das quatro portas medievais localizadas no lado Norte da muralha primitiva ou sueva: a Porta de Vandoma, no enfiamento da atual Rua Chã, e a porta de São Sebastião, contígua à antiga Casa da Câmara, também conhecida por Casa da Rolançom ou "Casa dos 24".
Entre estas duas portas, ao longo de um troço exterior de muralha com cerca de 30 m, existia um espaço aberto isento de casario e em plataformas desniveladas vencidas por duas longas e íngremes escadas que ligavam a Rua de Escura com o lado Norte da Igreja da Sé. Ao longo do tempo esta zona foi-se afirmando como a mais importante na estrutura urbana do burgo medieval à cota elevada (fig.8). A Casa dos 24 encontrava-se implantada na extremidade poente deste espaço, em sobreposição com a antiga muralha sueva.
Nesta estrutura a monumentalidade da Catedral foi-se afirmando em duas escalas: a escala urbana ou simbólica do domínio da paisagem e a escala de proximidade, tectônica e representativa. A coexistência monumental do espaço simbólico e de representação irá animar todas as iniciativas posteriores urbanísticas que se irão desenvolver em trono da Sé Catedral do Porto.
A partir de finais do séc. XIX, com a industrialização acelerada que se verificou na cidade do Porto, esta dualidade é confrontada com a travessia à cota elevada do Rio Douro proporcionada pela construção do tabuleiro superior da ponte de D. Luís, que estabelece uma nova ligação Norte/Sul, a qual, no século XX, iria fraturar em definitivo o tecido urbano a Nascente e a Norte da Sé Catedral que, desde a muralha primitiva, que se havia expandido nas direções impostas pelo rio, sobretudo para Norte. (fig.9)
Por outro lado, o ímpeto industrial que emergia do séc. XIX, responsável pela transformação acelerada da cidade e a substituição dos seus valores morais e culturais, iria gerar o despertar do Culto dos Monumentos no “Núcleo do Porto” (um grupo de intelectuais onde se encontrava, Joaquim de Vasconcelos, José Marques de Abreu, Alfredo de Magalhães, Baltazar de Castro, José Vilaça, entre outros) que exaltavam a afirmação da identidade nacional e o valor histórico dos monumentos. Em conjunto desenvolveram diversas iniciativas que vão desde a sistematização à divulgação e sensibilização pública para a causa da salvaguarda e proteção dos monumentos. Estas iniciativas iriam sustentar as ações iniciais da Direção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN) segundo a política de intervenção nos monumentos do Estado Novo, e em particular as desencadeadas na Igreja e claustros da Sé que, conduziram à reabilitação estilística do conjunto monumental. (fig.10)
O “Núcleo do Porto” conhecedor das idéias de Viollet-le-Duc, partilhava o valor da identidade nacional e a salvação do "estado adulterado" dos edifícios, contudo, divergiam no que respeita à valorização dos estilos; enquanto Viollet-le-Duc interpretava o Gótico como o estilo da expressão da identidade francesa, o “Núcleo do Porto”, preferia a pureza do estilo Românico que, devia ser revelada para enaltecer os valores heróicos ligados à fundação da nacionalidade portuguesa.
O desenvolvimento destas idéias irá enaltecer o valor simbólico da Sé Catedral do Porto. A partir de 1929, desencadearam-se diversas operações de restauro no monumento e claustros adjacentes da responsabilidade da DGEMN. Num processo urbanístico paralelo a Câmara Municipal do Porto promove diversos estudos que iriam garantir uma "acrópole" desimpedida e visitável para as Comemorações do Duplo Centenário, (fig.11,12 e 13).
Depois dos vários estudos que procuravam estabelecer uma nova ligação monumental e funcional entre a "acrópole" da Sé e a Avenida dos Aliados (onde estava programada a instalação da nova Câmara Municipal) na segunda metade do século XX, iriam ser desenvolvidas algumas propostas mais orientadas para a resolução do sistema viário e da grande clareira, entretanto aberta, que expõe as fraturas que resultaram da abertura da Avenida D. Afonso Henriques, vulgarmente conhecida como Avenida da Ponte. Aliás, esta questão da toponímia evidencia também os dois lados da mesma moeda: o propósito de monumentalização da Sé Catedral associada à identidade nacional e as intenções funcionalistas relacionadas com a ligação entre Vila Nova de Gaia e o Porto através do tabuleiro superior da ponte de D. Luís.
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Os antigos Paços do Concelho da cidade do Porto, desde o período medieval até finais do século XVIII, estiveram instalados na Casa da Rolaçom, ou Paço da Rolaçom, também conhecida por Casa dos 24, designação com origem popular que se deve ao fato de aí se reunirem os vinte e quatro representantes dos vários mesteres (ofícios) da cidade.
O edifício apresentava uma forma de torreão, com paredes construídas em granito que atingiam "100 palmos de altura" (cerca de 22m), guarnecidos com ameias, segundo descrição que consta num documento antigo. A estrutura encontrava-se implantada somente a sete metros de distância da Sé Catedral como que desafiando o poder episcopal, na base da Muralha Primitiva, junto à Porta de S. Sebastião, num patamar intermédio entre a Rua de S. Sebastião e o Terreiro da Sé, (fig.14).
As funções eram de representação do senado ou assembléia da Câmara e primeira sede do poder municipal. Aqui se realizavam as reuniões ordinárias mas, como o espaço era exíguo, "...as grandes assembléias ou reuniões plenárias tinham de ser efetuadas em recinto mais amplo, suficientemente vasto para receber todos os «homens-bons, vizinhos e demais comunidade da Cidade...» E por aquela época, a Crasta ou Alpendre do convento dominicano devia ser o recinto mais indicado para esse fim, como se pode concluir dessa descrição que Frei Luís de Sousa, na sua História de S. Domingos nos deixou desse sítio." (7)
A Casa possuía vários sobrados contendo no seu interior elementos artísticos de grande qualidade. A sala onde reunia o senado, situada no piso mais elevado, evidenciava um teto forrado a ouro. Para além das funções de reunião do senado e arquivo municipal, serviu posteriormente de cadeia e asilo para prostitutas e sem abrigo.
Em meados do século XVI, as sessões camarárias mudaram-se para as Rua das Flores, em virtude da precariedade em que se encontrava o edifício. Em 1784, estava num estado de degradação extrema que ameaçava ruir. Neste período os Paços do Conselho instalaram-se inicialmente no colégio de S. Lourenço ou dos «Grilos» para 11 anos depois se mudarem para a Casa Pia na rua Augusto Rosa. Em 1875, já em estado de abandono, o edifício seria completamente destruído por um incêndio, restando só algumas paredes. Foi só a 21 de Agosto de 1819, um ano antes da Revolução de Liberal de 1820, que os Paços do Concelho conseguiram mudar para um prédio construído para o efeito, na antiga Praça das Hortas, atual Praça da Liberdade, onde permaneceram até 1916. Depois de vários séculos em mudanças sucessivas de lugar, a Câmara Municipal do Porto iria ser instalada no novo edifício da Avenida dos Aliados, cujas obras se iniciaram em 1920.
Em 1940, a Câmara Municipal do Porto encontrava-se instalada provisoriamente desde 1915 no edifício do Paço Episcopal. O novo edifício ainda não estava concluído. Das panorâmicas abertas evidencia-se uma outra verticalidade no perfil da paisagem que remete a percepção visual da cidade para uma nova escala urbana onde as relações entre os poderes episcopal e municipal se distanciariam.
Durante todo este longo período, apesar das mudanças sucessivas de instalações, documentos históricos importantes existentes em arquivo seriam "milagrosamente" preservados. A memória da Casa da Rolaçom encontrava-se praticamente perdida.
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Na segunda metade da década de 90 do século XX, o Dr. Fernando Gomes, no seu primeiro mandato como presidente da Câmara Municipal do Porto, encomendou a Fernando Távora, Alcino Soutinho e Álvaro Siza três projetos públicos para a zona histórica do Porto. Ao arquiteto Fernando Távora coube a tarefa de desenhar um edifício para a Antiga Casa da Rolaçom ou Casa dos 24, um "presente envenenado” sem programa concreto, uma indefinição muito pouco usual colocada à partida cujo propósito merecerá estudo mais atento noutro contexto. No entanto, Fernando Távora enfrentou desde logo o desafio e sentiu um grande entusiasmo pelo projeto. Em Setembro de 1996 tinha concluído o anteprojeto, no qual apresentou uma solução que iria desenvolver no projeto de execução.
Contudo essa formulação ofereceu a Fernando Távora um grau de liberdade que lhe permitiu concentrar-se na relação da arquitetura com o lugar e enfrentar os efeitos e as dificuldades que permanecem do processo de demolições que decorreram nas áreas envolventes da Sé Catedral, entre as décadas de 30 a 50 do século XX, no âmbito das comemorações do Duplo Centenário. Esta problemática está presente do projeto da Casa dos 24, e constitui uma das questões centrais que a abordagem metodológica procura resolver. Fernando Távora conhece a fundo as circunstâncias que determinam a abertura da Avenida da Ponte e a abertura do Terreiro da Sé. Aliás o próprio Fernando Távora na década de 50, iria desenvolver um estudo urbanístico para a Avenida da Ponte, onde procurava minimizar os efeitos negativos produzidos no tecido urbano, (fig.17 e 18).
Ao contrário de Guimarães, o Porto no final do século XX, não tem uma estratégia consistente para o seu desenvolvimento sustentável e as ações desenvolvidas pelo CRUARB no Centro Histórico, não têm dinâmica suficiente para evitar a degradação ambiental e social da Sé.
No final do seu percurso profissional Fernando Távora envolveu-se sobretudo em obras de restauro e reabilitação. No Porto, para além da Casa dos 24, tem a oportunidade de desenvolver mais dois importantes projetos de edifícios públicos. Entre 1988 e 2001, realiza o projeto de Reestruturação e Ampliação do Museu Soares dos Reis e entre 1996 e 2003 desenvolve o projeto de restauro do Palácio do Freixo
No projeto da Casa dos 24, Fernando Távora valoriza a integridade da cidade histórica. Pensa a regeneração urbana como sinal de confiança perante os vazios que resultam das dinâmicas de transformação da cidade. Reconhecem-se os valores de G. Giovannoni: "Unidade espiritual capaz de gerar a capacidade de síntese; o valor da tradição sem o qual como diz Nietzsche, «mesmo o artista mais dotado não irá além de experiências estéreis»". (8)
O “novo” edifício da Casa dos 24 não se constitui como um fim em si mesmo. O objetivo não consiste em efetuar um restauro da ruína, mas evitar o vazio, enquanto estado de ruína do centro histórico do Porto.
Mais do que afirmar uma obra, Fernando Távora parece estar interessado em implementar uma metodologia de preparação dos instrumentos de um processo de restauração urbana, capaz de sensibilizar Álvaro Siza quando este propõe, em 2001, o Projeto de Requalificação da Avenida D. Afonso Henriques (fig.19), implantado sobre parte do vazio da Avenida da Ponte que resulta das demolições efetuadas na década de 50 do século XX, que se seguiram às Comemorações do Duplo Centenário. Não uma restauração urbana que busca as formas originais perdidas, mas uma (re)organização do espaço que pretende minimizar as ausências e fixar o essencial.
Álvaro Siza, (2000) referindo-se ao seu Projeto de Requalificação da Avenida D. Afonso Henriques diz que "... É outro o entendimento atual sobre a relação entre monumento e tecido urbano. Não é já o tempo das demolições para "libertar" um monumento, atraiçoando quase sempre o seu caráter e esvaziando de sentido o espaço urbano. O progressivo conhecimento das intervenções efetuadas nos centros históricos das cidades européias foi consolidando a consciência da relação de complementaridade entre monumento e tecido urbano e entre testemunhos de diferentes épocas, como condição essencial de preservação." (9)
A abordagem projetual inicial da Casa dos 24 centra-se na consciência da cidade total, na evolução histórica do sítio e na reinterpretação crítica do contexto. Os primeiros croquis de Fernando Távora evidenciam a tentativa de uma reconstituição de elementos preponderantes desaparecidos da envolvente urbana da Sé Catedral. Para além de fazer reemergir o volume da Casa dos 24, Fernando Távora propõe mais dois volumes que condensam um momento de estrangulamento espacial que evoca a antiga Porta de Vandoma, acentuando a incidência diagonal do acesso em rampa da aproximação à galilé da Sé. A organização dos vários elementos revela um sistema hierarquizado de relações que propõe um reordenamento das várias escalas, (fig.20 e 21).
Em 1995, o que existia eram as "feridas" do processo de demolições e uma ruína com uma configuração irregular, paredes de pedra cuja maioria media 1,10m de espessura, uma com cerca de 0,70m, e outra com 0,40m de largura. O espaço interior correspondia ao vazio gerado pelas duas linhas diagonais unidas por um ângulo de 90º, que se intrometiam no espaço do Terreiro, (fig. 22) uma "cunha" que se aproximava sete metros de uma das torres da Sé, composta por duas paredes/muralha com cerca de 10 metros de altura. Estruturalmente comportavam -se como contrafortes que garantiam a estabilidade dos terrenos à cota elevada.
Foram efetuadas prospecções arqueológicas que não concluíram sobre a configuração exata da planta original da Casa dos 24. Perante essa incerteza, Fernando Távora opta pela planta quadrada, em certa medida por possuir um caráter mais abstrato e corresponder às tipologias das torres medievais. No desenho do quadrado suprime uma parede cujo lugar é ocupado por um pano de vidro a toda a altura do edifício. O resultado deste processo evidencia uma planta em "U", que se ajusta ao corpo da ruína, (Fig. 23).
Fernando Távora não tem qualquer propósito inicial de efetuar uma reconstituição dos antigos Paços do Concelho, até porque não existem elementos seguros que possam informar sobre a configuração exata desse edifício. Metodologicamente afasta-se do perigo de uma reabilitação arbitrária, preferindo procurar o significado da intervenção na história do local e na memória da Casa dos 24. À semelhança da metodologia adotada na Quinta da Conceição, encontra o significado da intervenção numa idéia de Memorial - neste caso da Cidade e do Poder Municipal - que pudesse reunir no mesmo espaço elementos que a História dispersou: Vimara Peres, a estátua de O Porto, um brasão dos antigos Paços do Concelho, e documentos importantes da história da cidade.
A reinvenção da Casa da Torre do arquiteto Rogério de Azevedo, no quadro do descongestionamento proposto no plano do Arranjo Urbanístico da Zona da Sé e dos Paços do Concelho, da autoria do arquiteto Arménio Losa, 1939, (Fig.12) é como um estigma do qual Fernando Távora se quer afastar. A Casa da Torre é um "...exemplo claro da facilidade com que as ruínas são reinventadas e manipuladas para servir o presente, mantendo a verossimilhança do "histórico" característica que é marca distintiva do Terreiro da Sé". (10)
Fernando Távora rejeita a "A simulação do processo criativo original, refundindo o velho e novo numa nova unidade e numa nova forma que não permite mais distinguir fisicamente os dois momentos, do que resulta um falso histórico eticamente inaceitável.", (11) preferindo pelo contrário, um edifício construído inequivocamente no tempo atual mas que se orienta pela história e evoca o edifício desaparecido: 100 palmos de altura e uma sala do senado com teto em ouro, é a informação segura e suficiente que constitui a ligação entre presente e passado.
Fernando Távora opta por manter a ruína e sobre esta sobrepõe uma estrutura nova em betão armado cuja largura praticamente coincide com a largura das paredes existentes (Fig. 24). Os pavimentos em madeira, são apoiados em perfis de aço corten que vencem os vãos, o suporte da caixilharia é igualmente em aço corten, (Fig. 25). A solução estrutural, calculada pelo engenheiro Sobreira (GOP), prevê o controlo das deformações motivadas pelas ações horizontais. Uma viga (horizontal) de betão fortemente armado e reforçado no interior com perfis metálicos recebe todas as cargas do novo edifício; esta viga não descarrega nas paredes existentes, mas transmite diretamente o peso da nova estrutura ao solo através de micro-estacas que atravessam as paredes de pedra existentes de grande espessura mas sem capacidade de carga para o novo edifício. De modo a se reduzirem as deformações da estrutura vertical quando solicitada por ações horizontais, foi efetuado o reforço da rigidez das paredes com contrafortes verticais e horizontais e feita a transformação da grelha da cobertura numa placa rígida de aço e betão de modo a solicitar entre si as deformações dos panos Norte e Sul.
As paredes em "U" forradas no interior e exterior a placagem de granito serrado e grampeado, idêntico na cor ao da Sé, erguem-se deixando sinais inequívocos da justaposição de um novo momento sobre os restos da alvenaria de pedra à fiada do muro de contenção existente. Os envidraçados desenhados com folgas para absorverem os ligeiros movimentos que a estrutura produz, não são pequenos vãos recortados na nova superfície opaca, mas assumem-se como grandes elementos preponderantes, transparentes e autônomos, (Fig. 26 e 01).
O edifício é um invólucro, simultaneamente sólido e transparente que deseja poder guardar e expor algumas preciosidades do Arquivo Documental do Porto. Propõe um caráter massivo, de proteção e resistência, que se expressa também através da rigidez encontrada nos contrafortes da Sé Catedral e revela uma grande ligeireza que se manifesta nos grandes panos de vidro situados em fachadas opostas. O envidraçado menor, no lado da entrada, revela a escala de proximidade, a galilé de Nicolau Nasoni e os contrafortes da Sé Catedral, (Fig. 26) e o envidraçado maior deixa ver várias seqüências de perspectivas que, desde o interior vão abrindo o campo de visão sobre a paisagem urbana.
Deste modo o "novo" emerge a partir das ruínas, e continua até ao limite que se lê no texto do documento antigo, (100 palmos de altura) que a galilé de Nicolau Nasoni em definitivo fixa. Com conhecimento profundo do contexto e da história do local, e com recurso a materiais que aceitam o envelhecimento (pedra cerrada, vidro, aço corten, latão, cobre e madeira), Fernando Távora acentua intencionalmente a ligação entre o plano elevado do Terreiro da Sé e a Rua de S. Sebastião a uma nível inferior. No exterior, encostada ao lado sul do edifício é construída uma escada que liga os dois níveis e enquadra a estátua de São Nepomuceno que se encontra no canto da galilé. No interior, Fernando Távora preferiu um espaço vertical unitário libertado pelos planos de vidro, rejeitando os pavimentos em betão que seccionariam o espaço e marcariam uma descontinuidade entre a ruína e o novo.
O edifício dispõe de duas portas que permitem a ligação entre a cota alta e a cota baixa. A porta principal localizada no plano elevado do Terreiro da Sé tem a expressão da porta de um cofre que guarda bens valiosos. No entanto não é completamente opaca permitindo ao cidadão comum, ver para o interior através de duas pequeníssimas janelas circulares, que permitem a visão penetrante da curiosidade popular.
A composição do edifício é clássica: eixo de simetria com duas escadas e sistema de proporcionalidade na concepção dos espaço que utiliza o palmo (22cm) como medida que no processo de desenho desvenda a matriz dos muros antigos, (parede: 5 palmos=1,10m; perímetro exterior: 50x50 palmos =11mx11m), disciplina a divisão do espaço interior e orienta a escala do projeto e as medidas na obra, que deixa na pedra os sinais das mãos que desenham e constroem. Perante todas as incógnitas prevalece o palmo como medida e escala que constrói o projeto e a obra, (Fig. 27).
Le Corbusier está presente, a grande mão que roda com o vento em Chandighar, e Viollet-le-Duc também: "Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo num estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento" (12). Na Casa dos 24, Fernando Távora preferiu assegurar que a memória, a essência e o significado do lugar pudessem perdurar no Tempo.
Agradecimentos
Arquiteto Carlos Martins, Arquiteta Alexandra Gesta, GTL de Guimarães e engenheiro Sobreira (GOP).
notas
1
Este texto corresponde a uma versão revista de um trabalho de investigação efetuado no âmbito de um mestrado em Reabilitação do Espaço Construído, Faculdade de Ciências e Tecnologias da Universidade de Coimbra, Portugal, 2007/2008.
2
LEAL, João. Etnografias Portuguesas (1870-1970), Cultura Popular e Identidade Nacional. Publicações Dom Quixote, Lisboa, 2000.
3
FERRÃO, Bernardo. In: Fernando Távora, Editorial Blau, Lisboa, 1993, p.26.
4
RUSKIN, John, Las Siete lámparas de la arquitectura. Tradução do Inglês por C. Burgos, Editorial Alta Fulla, Burgos, 1997.
5
TÁVORA, Fernando. Fernando Távora, Op. Cit., p.130.
6
TÁVORA, Fernando; BRÁS, R. e FERREIRA, A.. In: Fernando Távora, Op. Cit., p.121-124.
7
SILVA, Germano. “Da Casa da Rolaçom à Avenida dos Aliados passando pelo Paço do Bispo”, In: Revista Monumentos nº 14, DGEMN- Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Março 2001, Lisboa, p. 49.
8
GIOVANNONI, Gustavo. L`Urbanisme face aux villes anciennes. Tradução do italiano por C. Tandilhe, Editions du Seuil, Paris, 1969.
9
SIZA, Álvaro. Requalificação da Avenida da Avenida D. Afonso Henriques. Memória Descritiva, Dezembro de 2000.
10
COSTA, Alexandre A. e FIGUEIRA, J.. In: Revista Monumentos nº 14, DGEMN- Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Março 2001, Lisboa, p.78.
11
BRANDI, Cesari. Teoria do Restauro. Tradução e revisão técnica do italiano por C. Prats, J.D. Rodrigues, J. Aguiar & N. Proença da edição de 1977, Edições Orion, Amadora, 2006.
12
VIOLLET-LE-DUC. Le Dictionnaire d`architecture. Recolha e comentários por P. Boudon e P. Deshyes, Pierre Madraga, Bruxeles, 1987.
sobre o autor
Francisco Portugal e Gomes nasceu no Porto, Portugal, em 1963. Obtém a licenciatura em Arquitetura pela FAUP-Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto em 1989. Assistente convidado na FAUP, 1995/1997. Mestre convidado no Curso de Arquitetura e Urbanismo da ESG-Escola Superior Gallaécia 2005/2008, onde leciona a disciplina de Reabilitação ao 5º ano. Desenvolve a atividade de arquiteto em atelier próprio no Porto desde 2001.