Este artigo dá continuidade a um outro, de igual título, publicado num número anterior desta revista – completando a análise ali iniciada.
É propósito dos dois artigos chamar a atenção para a peculiaridade do traçado do núcleo inicial da capital paraibana, que faz dele uma das mais interessantes experiências do urbanismo português no Brasil quinhentista e seiscentista.
Os dois artigos são o resultado de um esforço nosso para entender (a) por que o núcleo primitivo da capital paraibana foi implantado no local onde ele se encontra, (b) qual terá sido o traçado inicial dele e (c) quais as razões que levaram à adoção desse traçado.
No artigo anterior, apresentamos informações e reflexões que estabeleceram um embasamento para a construção das respostas a essas indagações. Sintetizemos abaixo os pontos principais nele expostos.
O que motivou a criação de uma cidade no estuário do rio Paraíba foi, de um lado, o desejo, da Coroa portuguesa, de explorar economicamente a área (sobretudo através da produção de açúcar), que continha vastas várzeas de grande fertilidade, e, do outro, a necessidade de afastar dele os franceses que o adentravam para se abastecer de pau-brasil.
As tentativas de fundar tal cidade iniciaram-se em 1574, mas fracassaram ao longo de onze anos, em razão da feroz resistência oposta pelos índios potiguares. Só depois de selarem uma aliança com os índios tabajaras, em 1585, é que os portugueses se capacitaram a, com eles, se impor aos potiguares e assim puderam, sob o comando do ouvidor-geral Martim Leitão, dar início à empreitada de criar a almejada povoação.
O estuário do rio Paraíba tem configuração peculiar e tamanho considerável, sua largura excedendo 5 km em certos trechos (Fig. 1). Na sua margem direita estende-se uma longa restinga, que o separa do mar e termina, ao sul, num platô amplo, cujos pontos mais altos atingem cotas pouco superiores a 50 m e que estava coberto por uma mata em 1585.
Há indícios de que houve uma recomendação régia no sentido de que a cidade fosse erguida na margem direita do estuário, para facilitar a ligação terrestre entre ela e Olinda. Mas eram bem poucos os trechos dessa margem adequados à implantação da povoação. Só três deles podiam abrigar um ancoradouro – pois os demais estavam cobertos de manguezais –, e dois desses situavam-se na restinga, onde não havia boa água de beber (Fig. 1). Logo apenas o outro trecho, contíguo ao pé do referido platô, era favorável em termos dos critérios porto e água potável.
Características relevantes do sítio localizado junto a esse trecho (Fig. 2), capazes de influenciar o traçado da cidade, foram apontadas no artigo anterior. A partir do rio, o terreno inclinava-se irregularmente ao longo de uns 700 m até formar um patamar compreendido entre as cotas 45 e 50, que era um local propício à edificação de uma povoação e terminava numa encosta que caía em direção a uma lagoa situada na cota 30. Um talvegue delineava um caminho natural de declividade aceitável (definido na Fig. 2 pelos pontos B, C, D e E) que possibilitava a subida até tal patamar para quem viesse do rio. Havia na área mostrada na Fig. 2 fontes de boa água potável (pontos J, L e M), bem como calcário e madeira para construção em abundância.
Outro ponto importante do artigo anterior foram nossas conjecturas sobre os modelos urbanísticos que podem ter orientado a definição do traçado da cidade da Parahyba. Concluímos que eles foram: (a) o bairro quadriculado de Salvador que envolve o Terreiro de Jesus, (b) o núcleo inicial de Olinda, de traça irregular, acomodada à topografia, e (c) as prescrições da legislação urbanística espanhola.
Ademais, demos, no artigo, uma noção do tamanho da cidade que se pretendia criar no estuário do rio Paraíba: seis hectares eram suficientes para ela, pois neles poderiam ser alojados 700 moradores, população que normalmente ela só iria atingir meio século após sua fundação.
Dito isto, passemos à análise reservada ao presente artigo, que enfocará o período que se seguiu ao último evento histórico aludido no artigo anterior: a saída de Olinda, em outubro de 1585, da expedição, chefiada por Martim Leitão, que iria implantar a cidade da Parahyba.
Localização e traçado da cabeça da Paraíba
Chegando ao estuário do rio Paraíba no final de outubro de 1585, Martim Leitão tratou logo de escolher o sítio onde seria implantada a povoação, para, sem demora, dar início à construção dos primeiros edifícios dela.
Ele pediu a alguns auxiliares seus, entre os quais Manuel Fernandes, o mestre das obras do rei, que percorressem os arredores para identificar lugares apropriados à implantação da cidade. Ele ouviu as opiniões deles, mas preferiu conhecer os sítios por eles selecionados e outras áreas do platô antes de tomar uma decisão sobre a localização do assentamento.
“No outro dia o ouvidor geral, ouvindo missa antes de sair o sol, que caminhando nestas jor-nadas, [...] foi logo a pé ver alguns sítios, e à tarde, a cavalo, até o ribeirão de Jaguaripe, para o cabo Branco, e outras partes, com o que se recolheu à noite, enfadado” (2).
Cansado e inseguro, ele deixou a decisão para o dia seguinte. Segundo o jesuíta que o acom-panhava, autor de um relato que só seria publicado no século XIX (republicado em 1983 com o título História da Conquista da Parahyba), ele necessitou de iluminação divina para chegar a uma conclusão – e esta foi que a cidade deveria ser erguida no local indicado por um círculo vermelho na Fig. 1, que corresponde à área que na Fig. 2 se estende do ponto F a pouco além do ponto H.
Uma eventual iluminação divina pode ter-lhe proporcionado o equilíbrio necessário para a sua tomada de decisão, mas é inegável que foram considerações racionais que o levaram a preferir a localização escolhida. A verdade é que esta respondia muito bem às exigências principais da futura povoação.
O sítio continha área suficiente para abrigar o assentamento: dez hectares de terreno plano ou muito pouco inclinado, dentro de um retângulo com 250 metros por 400, o que era muito mais do que os seis hectares dos quais ele precisava. Nele poder-se-ia acomodar tanto uma cidade quadriculada com 200 metros por 300, quanto uma cidade axial, com 150 metros por 400.
Dentre os locais situados no topo de uma elevação e nas proximidades de um lugar adequado para um ancoradouro, ele era um dos mais apropriados para a construção da povoação – e a opção de Martim Leitão foi por tal tipo de sítio. Essa preferência era compreensível, por refletir uma tradição urbanística portuguesa, que no Brasil havia sido seguida nos seus dois principais núcleos urbanos, Salvador e Olinda; ela justificava-se por razões de defesa, pela boa ventilação e drenagem das cidades em acrópole, pelas vistas panorâmicas que destas se podia ter e pelo forte efeito visual que elas causavam quando vistas de baixo.
O sítio escolhido era a porção do topo do platô mais próxima do ancoradouro (distando dele cerca de 700 metros em linha reta) e os seus pontos mais elevados estavam entre os mais altos que o platô apresentava no seu trecho voltado para o estuário. Por isso, dele se poderia ter uma visão não só do ancoradouro, mas também da várzea do rio Paraíba, ao longe – área propícia à localização dos engenhos de açúcar. Pelos mesmos motivos, ele parecia ser o trecho mais alto do platô para quem o olhasse do porto e imediações (embora não o fosse), o que significava que nele uma cidade pareceria mais elevada e imponente, para o mesmo observador, do que uma assente em qualquer outra elevação do platô.
Além disso, ele se estendia, na direção sul, até a extremidade do caminho natural ligando o alto do platô ao ancoradouro (indicado na Fig. 2 pela linha que une os pontos E, D, C e B e continua com destino ao ponto A), o que iria encurtar o percurso entre este e a futura povoação. Assim, no que se refere à utilização de tal caminho – a mais óbvia ligação entre o porto e o alto do platô – o sítio selecionado estava otimamente posicionado.
Ele estava bem localizado também em relação às fontes de água potável: havia três em volta dele, duas a curta distância (pontos J e L) e a terceira um pouco mais distante (ponto M).
Uma vantagem adicional do sítio era a existência, nas proximidades dele, de uma jazida de cal e pedra calcária, o que facilitaria bastante os trabalhos de construção do assentamento (madeira existia fartamente por todo o platô, que estava coberto por uma mata).
Embora o local escolhido fosse bem apropriado, havia, vizinho a ele, a nordeste, um outro que, na nossa avaliação (feita com base na mesma ótica urbanística adotada por Martim Leitão), era ainda mais adequado: a área, de cotas superiores a 47 metros, situada em torno do ponto I da Fig. 2. Ela era mais ampla, mais alta e mais ventilada e dela podia-se ver todo o estuário do rio Paraíba, a restinga e também o mar, o que era uma vantagem expressiva no que concerne à defesa da cidade e ao deleite visual. Entretanto, ela distava quase 500 metros do início da ladeira que descia do platô em direção ao ancoradouro pelo caminho natural atrás referido, o que era uma desvantagem significativa, que, na certa, levou Martim Leitão a descartá-la.
Escolhida a localização da povoação, Martim Leitão deve ter, nos dias seguintes, definido a estruturação básica do assentamento. Os historiadores não fazem menção a isso, mas estimamos que tenha sido assim que as coisas se passaram.
O que a História conta é que durante a maior parte do período compreendido entre quatro de novembro de 1585 e vinte de janeiro de 1586, Martim Leitão e seus homens se empenharam, com afinco, em construir, junto ao porto, um forte, uma casa para o capitão e um armazém, cujas obras foram dirigidas pelo alemão Cristóvão Lins e o mestre das obras do rei: Manuel Fernandes (durante vários dias Leitão esteve ausente, à frente de uma expedição, combatendo os índios inimigos). Mas certamente sobrou-lhe tempo, nesse período, para conhecer melhor o sítio escolhido e conceber um arruamento compatível com este e com suas pretensões urbanísticas.
No mencionado dia vinte, ele retornou a Olinda, para retomar seus encargos de ouvidor-geral do Brasil, deixando, na certa, com seu fiel auxiliar João Ramalho, a quem nomeou comandante do forte e governante da povoação, o plano de arruamento desta e a missão de implantá-lo.
Portanto, foi só a partir de 1586 que as ruas da cidade da Parahyba (provavelmente já então batizada de cidade de Nossa Senhora das Neves) começaram a ser abertas (3). Nos princípios daquele ano, o sítio onde ela seria erguida ainda estava coberto pela mata, de acordo com o testemunho de Ambrósio Brandão, um integrante da expedição que conquistou o estuário do Paraíba: “no mesmo ano [1586], me alembra haver visto o sítio onde está situada a cidade, agora cheia de casas de pedra e cal e tantos templos, coberto de matos.” (4) Segundo ele ainda, foi em 1586 que a Paraíba começou a ser povoada, “por poucos e pobres moradores”. (5)
Entretanto, no final daquele ano a povoação já existia, pois o jesuíta que redigiu a História da Conquista da Parahyba escreveu que no último mês dele uma nova expedição encabeçada por Martim Leitão “chegou à nossa povoação do Parahyba”. (6)
Somos da opinião de que a estrutura básica do arruamento da cidade foi implantada por João Ramalho no decorrer de 1586. Ela compunha-se de duas ruas, retas e paralelas, orientadas mais ou menos na direção norte-sul (Fig. 3), o que significa que Martim Leitão optou por um traçado que mesclava a solução de Olinda, axial e orgânica, com a regra renascentista, seguida em Salvador e incluída nas Leyes de Indias, segundo a qual as ruas deviam ser retas e paralelas.
Uma das ruas, a principal, que tomaria o nome de rua Direita e é hoje a rua Duque de Caxias, foi disposta de modo que se iniciasse no ponto F da Fig. 2 (um ponto-chave do relevo, como vimos no artigo anterior) e, seguindo no rumo norte, passasse pelo meio do sítio a ser ocupado pela povoação – o que a predestinava a ser o eixo central desta. Ela ficou quase plana em 85% de sua extensão. A partir do referido ponto, ela prolongava-se em direção ao sul, mantendo o mesmo alinhamento e subindo a suave encosta que naquele ponto se iniciava, até alcançar uma aldeia dos tabajaras, um assentamento de grande importância para a nova cidade, pelo seu papel de reservatório de mão-de-obra e de guerreiros para defendê-la contra ataques dos índios hostis (os potiguares). Nos primeiros tempos da colonização era essencial que as povoações portuguesas tivessem uma aldeia de índios amigos a curta distância (7), por essas duas razões. Não sabemos se a referida aldeia tabajara já estava ali assentada ou foi para lá deslocada, a mando de Martim Leitão, para dar suporte à cidade da Parahyba (8). O que nos parece certo é que ele, sensatamente, tratou de ligar tal aldeia à nova cidade, e fez isso prolongando até aquela a via principal desta. Em outras palavras, ele deu à povoação um eixo estruturador longo e retilíneo, com cerca de 600 metros de extensão, que se estendia da extremidade norte dela ao assentamento indígena, passando pelo mencionado ponto-chave F (9).
É interessante observar que Martim Leitão, em obediência ao urbanismo renascentista, fez questão que esse eixo fosse reto, evitando soluções equivalentes em termos funcionais, como seguir a linha da cumeada (Fig. 4), que era a solução mais natural, ou utilizar dois segmentos retilíneos acompanhando de perto essa linha e encontrando-se, em ângulo bem aberto, no referido ponto F (Fig. 5).
À parte do eixo que atravessava a povoação, a rua Direita, foi dada uma largura de cerca de doze metros, que era bem superior à de quase todas as ruas de Salvador. Essa largura relativamente generosa aproximava-se daquela das ruas das cidades coloniais hispano-americanas e refletia um claro desejo de modernidade.
No extremo sul do eixo os jesuítas ergueram, pouco depois da abertura dele, uma capela, dedicada a São Gonçalo, para prestar serviços à aldeia tabajara vizinha. Quando os franciscanos chegaram à Paraíba em 1589, o governo doou-lhes, para a construção do seu convento, o terreno situado acima do extremo norte do eixo, o que eliminou a possibilidade de este ser estendido, no rumo nordeste, até a área, propícia à urbanização, situada em torno do ponto I da Fig. 2 (não convinha prolongá-lo na direção que ele seguia, pois tal o levaria a descer uma encosta íngreme).
A outra rua da estrutura viária básica adotada por Martim Leitão – que seria bem cedo batizada com o nome de Nova (10) e é hoje a avenida General Osório – corria paralelamente à rua Direita a uma distância de pouco mais de 70 metros (Fig. 3). Como ela foi lançada não para acomodar-se da melhor maneira à topografia, mas para ficar paralela à outra, ela não acompanhava a linha do topo da encosta e por isso apresentava um bom trecho moderadamente enladeirado (o resto dela era quase plano).
Na direção sul ela ia até o início do caminho natural que descia para o ancoradouro (que foi logo convertido num caminho de fato), ponto onde ela se detinha, por ter adiante um declive de forte inclinação. Na direção norte, ela morria num largo que foi deixado à beira da encosta, num dos trechos da mais alta porção do sítio escolhido para a implantação da povoação (11).
A criação desse largo repetia a solução de Salvador, que tinha, numa de suas partes mais ele-vadas, uma praça situada à beira de uma encosta e desprovida de edificações no seu lado poente – da qual se podia ver, a oeste, o porto e uma ampla paisagem. Como aconteceu em Salvador (Fig. 6), nesse largo seria edificada a casa da Câmara, mas, diferentemente do que lá teve lugar, nele foi erguida também a igreja matriz da cidade. Ele era um elemento-chave da planta de Martim Leitão, sendo provável que este tenha determinado que a igreja fosse erguida no lado norte dele (o que a faria se destacar no perfil da cidade, visto dos terrenos baixos a oeste desta), com a frontaria perpendicular ao eixo da rua Nova – o que tornaria tal frontaria um ponto focal para os que nessa rua transitassem (12). Note-se que se o largo evocava Salvador no que se refere à sua localização, em termos de função ele se assemelhava ao largo da Câmara de Olinda e à plaza mayor hispano-americana, que abrigava tanto a igreja principal quanto os prédios administrativos da cidade (13).
A rua Nova era menos extensa que a Direita, não chegando a 300 metros, mas tinha uma largura excepcional para a época: mais de 20 metros. Essa largura incomum pode ter sido inspirada por aquela da rua de Salvador que ligava o Terreiro de Jesus ao convento franciscano, caso esta realmente existisse na primeira metade dos anos 1580.
Completavam o arruamento inicial duas ou três travessas conectando as duas ruas mencionadas.
Uma (a atual rua Peregrino de Carvalho, antes denominada rua da Misericórdia) era o prolonga-mento (traçado perpendicularmente a tais ruas) do caminho proveniente do ancoradouro. Embora ela tivesse apenas pouco mais de 70 metros de comprimento, sua largura era de mais ou menos 14 metros, o que era excessivo para uma travessa, mas justificava-se por razões estéticas. É que na extremidade leste dela, no lado oriental da rua Direita, seria construída, antes de 1595, a igreja da Misericórdia, decretando o seu término (Fig. 8) e compondo um pano de fundo para ela (14).
Tal igreja foi ali colocada para que sua frontaria constituísse o ponto focal para quem chegasse à cidade subindo o caminho principal proveniente do porto – em obediência à mesma técnica urbanística de valorização da perspectiva de um edifício que ditou a localização da igreja matriz, que seria muito usada mais tarde no urbanismo barroco europeu. Assim, quem chegasse à junção dessa travessa com a rua Nova, depois de subir o referido caminho, veria logo dois dos principais edifícios da povoação: a leste e a menos de 100 metros, a igreja da Misericórdia, e ao norte e a uns 350 metros, a igreja matriz. Repetia-se na cidade da Parahyba a mesma situação verificada em Olinda: nas duas povoações esses dois edifícios situavam-se nos extremos de um eixo importante. Na última, tal eixo era uma rua encurvada, a Nova (Fig. 7), enquanto que na primeira ele compunha-se de dois segmentos retilíneos ortogonais (Fig. 8): a rua Nova e a travessa em foco.
A cerca de 250 metros desta foi lançada outra travessa, perpendicular às ruas Nova e Direita e ligando esta ao largo da igreja matriz (Fig. 3). Ela tinha oito metros de largura e é hoje a rua Conselheiro Henriques. Quando os carmelitas se fixaram na cidade, no início do Seiscentos, eles construíram seu convento no fim do prolongamento desta travessa na direção leste.
Para nós, não há dúvida de que as duas ruas e as duas travessas atrás mencionadas faziam parte do plano inicial da cidade e foram logo abertas, ainda em 1586. É provável que uma terceira travessa (indicada em linha tracejada na Fig. 3), disposta entre as duas outras, paralelamente a elas, para encurtar os percursos entre as ruas Nova e Direita, fizesse parte desse plano, mas as informações disponíveis não nos permitem deduzir quando ela foi implantada (o certo é que ela já existia em 1640). Sua largura limitava-se a seis metros e ela é hoje a rua Braz Florentino.
Uma terceira rua, paralela às outras duas e situada a leste delas (rua da Cadeia, na Fig. 3), podia estar prevista no plano inicial, mas na certa só foi aberta alguns anos depois, a uns 60 metros da rua Direita. Ela já existia na época da dominação batava, como mostra a cartografia holandesa (Fig. 9) e é hoje a rua Visconde de Pelotas. Talvez ela já estivesse aberta em 1610, ano em que foi construída a casa da Câmara, cuja fachada posterior ficou alinhada com ela.
Um argumento em favor da tese de que esta via estava incluída no plano de Martim Leitão é o fato de ela ter sido traçada paralelamente às ruas Nova e Direita – enquanto que as duas ruas que foram abertas imediatamente a leste dela entre 1640 e 1855 (as atuais ruas Treze de Maio e Diogo Velho) não obedeciam ao mesmo paralelismo e nem sequer retas eram (Fig. 10). Pode-se alegar também, em defesa da tese, que, tendo tido a preocupação de passar a rua Direita praticamente no meio da área mais ou menos plana do sítio escolhido, Martim Leitão dificilmente deixaria de projetar a rua em questão, pois ela é que permitiria ocupar integralmente a porção de terreno quase plano localizada a leste da rua Direita.
Também devia fazer parte do plano, sem ter sido aberto nos primeiros anos da povoação, o prolongamento, até essa terceira rua, da travessa ligando a rua Direita ao largo da matriz. O mesmo pode ser dito em relação à travessa que uniria essas duas ruas passando ao lado do terreno destinado à igreja da Misericórdia (Fig. 3).
A Fig. 9, que reproduz um mapa holandês, mostra o arruamento que a cidade apresentava por volta de 1640, boa parte do qual coincide com o plano delineado por Martim Leitão (15).
As vias desse plano tinham extensão suficiente para fazer frente ao crescimento da povoação durante muitas décadas. Em 1601, quando esta tinha somente uns 100 moradores (16), a ocupação delas mostrava-se ainda fortemente esparsa. Em 1639, mais de 50 anos depois de terem sido implantadas, e quando a população da cidade já chegara a 700 habitantes, elas ainda continham muitos terrenos desocupadas, como informa um relato holandês (17). Na verdade, apenas a rua Nova e a rua Direita e seu prolongamento tinham capacidade de abrigar cerca de 190 prédios – total nelas existente em 1889 (18) –, que podiam alojar comodamente uns 1.000 habitantes.
Conclusão
Tivesse ela duas ou três ruas longitudinais, a cidade planejada por Martim Leitão era um assentamento de estrutura axial, como o era o núcleo inicial de Olinda, sua provável fonte de inspiração em relação a este atributo. Suas vias transversais não eram ruas que cruzavam-se com as longitudinais de modo a formar uma quadrícula, como as de Salvador e as da maioria das cidades hispano-americanas: quase todas eram curtas travessas que interligavam apenas duas ruas. Mas sua estrutura axial não era orgânica ou topográfica, à maneira medieval, como o era a da capital pernambucana: ela tinha uma geometria regular, como a de Salvador e conforme prescreviam as Leyes de Indias. Suas ruas eram retas e paralelas – as duas principais sendo, ademais, relativamente largas. E suas travessas também exibiam a marca da modernidade, sendo perpendiculares às ruas e tendo largura bem superior àquelas de travessas medievais.
Mesmo sem ter sido condicionado pelo relevo, o traçado das ruas – determinado pelo propósito de fazê-las retas e paralelas – ajustava-se bem ao relevo, respeitando as restrições deste, e aproveitava potencialidades do sítio.
Graças à boa concepção do plano da povoação, a rua Direita manteve a condição de eixo viário principal do centro da cidade durante sete décadas após o advento do automóvel e nem ela nem a rua Nova precisaram ser alargadas para se adequarem a esse novo meio de transporte, ao contrário do que aconteceu com várias vias centrais da capital paraibana entre 1915 e 1945. Foi também graças ao mesmo fator que as ruas Nova e Visconde de Pelotas puderam ser integradas, nos anos 1970, ao atual anel viário interno da área central, que foi então implantado.
Salvador e Olinda foram fontes de inspiração para o plano inicial da cidade da Parahyba também no que se refere a dois outros aspectos. Foi a primeira que sugeriu a criação do largo que deveria abrigar a igreja matriz e a casa da Câmara. Já a segunda serviu de modelo para a localização dessa igreja e da igreja da Misericórdia nos extremos de um importante eixo de circulação.
Uma maneira bem sintética de julgar o plano que estivemos discutindo é dizer que, conciliando habilmente a tradição com a modernidade, ele era sensato, lógico e possuidor de qualidades estéticas, além de ter sido uma experiência inovadora e ímpar, detentora de um lugar de relevo no urbanismo luso-brasileiro dos séculos XVI e XVII.
notas
1
Este trabalho é uma versão modificada de parte de um artigo publicado, em meio digital, nos Anais do IXSHCU (São Paulo, 2006).
2
História da Conquista da Parahyba, Campina Grande, 1983, p. 66.
3
Foi só em 1588 que a cidade recebeu o nome de Filipéia, que lhe foi dado por Frutuoso Barbosa, para exprimir sua gratidão ao rei espanhol, por este ter-lhe entregado o comando da capitania da Paraíba.
4
BRANDÃO, Ambrósio Fernandes, Diálogos das grandezas do Brasil, 2ª ed., Recife, 1966, p. 20.
5
Idem.
6
História da Conquista da Parahyba, p. 82.
7
O jesuíta que escreveu a História da Conquista da Parahyba chamou a atenção para esse aspecto com muita propriedade. Ele disse: ”o verdadeiro sangue, e substância de se povoar, e sustentar o Brasil, é com o mesmo gentio da terra, ganhado por amizade, que sem ele não nos valeremos nunca contra os outros, e mais na capitania da Parahyba, situada entre os potiguares, que é o mor, e mais guerreiro, e prático gentio do Brasil [...]; pelo que aquela capitania depende hoje, e consiste na conservação daquele nosso gentio, que ao redor dela assentou, e vive, que em falta é muito doméstico aos brancos, e o ajuda muito em tudo, fazendo-lhes suas casas e mantimentos, e finalmente servindo-os como cativos.” Ibidem, p. 99-100.
8
Irineu Pinto escreveu que essa aldeia já estava ali estabelecida, mas não apresentou evidências disso. Em: Datas e notas para a história da Paraíba, João Pessoa, 1977, p. 20-21.
9
O primeiro autor a afirmar que a rua Direita foi o eixo de referência para o traçado da povoação da Parahyba foi José Luiz Mota Menezes, em Algumas notas a respeito da evolução urbana de João Pessoa (Recife, 1985). Porém, ele achava que num primeiro momento só existiam tal rua e o largo da igreja matriz. Para os demais autores, em geral, a outra rua que mencionamos, a Nova, teria antecedido a rua Direita – opinião que não resiste a uma análise urbanística da implantação da cidade.
10
Documentos existentes atestam que ela tinha essa denominação já em 1588.
11
Mais tarde, talvez ainda no século XVI, foi aberto um atalho enladeirado (muito inclinado, e por isso impraticável para o transporte de cargas) ligando esse largo a um ponto baixo (na cota 13) do referido caminho. Esse atalho (ver letra D na Fig. 9) encurtava bastante o trajeto de pedestres entre o largo e o porto, e é hoje a penosa ladeira da Borborema.
12
Esse posicionamento da igreja matriz foi inspirado, na certa, em Olinda, onde ele era assemelhado. Em Salvador não havia o mesmo tipo de valorização do frontispício da Sé (o equivalente local da igreja matriz), pois nenhuma rua terminava diante dele.
13
Por volta de 1610, tirou-se a Câmara do largo, talvez devido à incompatibilidade entre o seu pelourinho, onde as punições físicas eram aplicadas, e a prática religiosa. Assim, o largo tornou-se uma espécie de adro ampliado da igreja matriz.
14
A igreja da Misericórdia já existia em 1595. Isto está dito no auto da primeira visitação do Santo Ofício à Paraíba, datado de janeiro daquele ano: “aos oito dias do dito mês de janeiro se fez uma solene procissão da igreja da Misericórdia até a dita igreja matriz”. Em: SEIXAS, Wilson Nóbrega, Santa Casa da Misericórdia da Paraíba – 385 Anos, João Pessoa, 1987, p. 28. Note-se que a largura incomum da travessa foi na certa ditada pelo frontispício da igreja, pois não só ela é quase igual à extensão do corpo principal dele (correspondente à nave) como esse corpo está localizado mais ou menos entre os prolongamentos dos dois alinhamentos da travessa. O que se buscava com tal coincidência era garantir que tal corpo principal pudesse ser visto integralmente por quem circulasse na travessa e permitir que parte desta pudesse exercer o papel de adro da igreja.
15
Embora o arruamento esteja, no geral, bem representado no mapa, este não retrata corretamente a localização da praça onde se instalou, em 1610, a casa da Câmara, que se situava no ponto indicado pela letra A, e não onde ela foi colocada, abaixo e à direita de tal ponto. Não cremos que essa praça fizesse parte do plano inicial da cidade; ela deve ter sido criada para ser o largo do pelourinho e da Câmara, quando no citado ano esta foi transferida para as imediações da rua Direita. Duas outras adições a tal plano foram, no nosso entender, as travessas B e C. A primeira deve ter surgido com a construção do convento franciscano, iniciada em 1589; a segunda, com a abertura da terceira rua longitudinal, a da Cadeia. Note-se que essas travessas tinham eixos diferentes (paralelos).
16
Segundo um documento daquele ano citado em PINTO, Irineu, Op. Cit., p. 33.
17
HERCKMANS, Elias, Descrição Geral da Capitania da Paraíba, João Pessoa, 1982, p. 14.
18
Segundo levantamento efetuado por Vicente Gomes Jardim, publicado na imprensa local, em 1889, sob o título “Monographia da Cidade da Parahyba do Norte”, e depois no periódico paraibano Revista do IHGP (vol. 2, 1910, p. 85-111; vol. 3, 1911, p. 83-111).
sobre os autores
Alberto Sousa é arquiteto, doutor e professor da Universidade Federal da Paraíba, em João Pessoa. É autor de vários livros, o mais recente dos quais intitula-se A variante portuguesa do classicismo imperial brasileiro (Editora Universitária-UFPB, 2007).
Helena de Cássia Nogueira é arquiteta, mestra e professora do CEFET e do IESP, em João Pessoa.