“A criação humana se chama invenção e compreende a idéia de encontrar, porque se Deus é onipotente e infinito, tudo já está feito ou previsto na criação, inclusive a obra do homem, e este pode apenas encontrar algo que já está latente ou ignorado no desenho criado”. Giulio Carlo Argan (2)
Mal começara a década de 1990 e um concurso de forte apelo nacional, o do Pavilhão Brasileiro para a Exposição Universal de Sevilha, a ser realizada em 1992, lançava aos arquitetos brasileiros uma pergunta que, ao que parece, deveria ser finalmente respondida: “ainda poderíamos acreditar num projeto nacional”? O cenário era, certamente, o mais propício: a história mostrava que, nas duas versões anteriores da feira – Bruxelas em 1958 e Osaka em 1970 –, o pavilhão do país havia sido bem recebido pela crítica, destacando-se a primeira colocação para Sérgio Bernardes em 1958, prêmio outorgado pelo Conselho da Exposição. Na mesma linha de raciocínio, poderíamos também incluir o Pavilhão Brasileiro na Feira de Nova Iorque de 1939, desenhado por Lucio Costa e Oscar Niemeyer, que, embora controverso quanto à sua representatividade naquele evento, destacou-se, a partir de então, como um dos carros-chefe do projeto moderno brasileiro.
Não era uma tarefa fácil de ser continuada, sobretudo porque em Sevilha já não acreditávamos tanto nas certezas e, qualquer que fosse o resultado do concurso, sabíamos de antemão que a legitimidade do vencedor seria posta em xeque. Venceu um projeto conservador, no sentido de querer manter a tradição, desenhado por uma jovem equipe de arquitetos que se destacaria ao longo da década seguinte (3). Abriu-se o debate que, desde o início da década de 1980, já ocupava precariamente o espaço de algumas escolas e das revistas especializadas:
- Qual a necessidade do novo para o país?
- O que chamaríamos de novo, se acreditávamos na eternidade do moderno como novo?
- Por que aderir à novidade?
No debate público que se sucedeu ao resultado do concurso, promovido no Museu de Arte de São Paulo – MASP com a participação de membros do júri, seu presidente, o arquiteto paulista Paulo Mendes da Rocha, ensaiou uma resposta a essas questões, expondo o posicionamento do júri com dois croquis. Desenhou o corte dos dois trabalhos que julgava mais representativos da condição brasileira: além do vencedor, o projeto do arquiteto mineiro Paulo Laender, aliás seu preferido (4), que apresentava duas cascas – de formatos diferentes – sobre o solo. Se essa era uma versão possível da brasilidade, já tínhamos ao menos um ponto de partida para continuar a discussão e o que vinha acontecendo antes disso e veio a acontecer depois pôde ganhar um ar de maturidade na alimentação do imaginário da geração que estava se constituindo.
O concurso de Sevilha viria aumentar a vazão de um debate ainda represado sobre o saldo de nossa herança moderna. Estávamos ainda tão próximos desse passado e de seus personagens, todos atuantes, que a possibilidade de uma crítica mais amadurecida ao projeto enfrentaria um adversário ainda em boa guarda. Mas aos olhos de hoje está claro que tudo o que não deveria ter sido feito era encararmo-nos uns aos outros como adversários.
O embate, ao que parece, representou um dos epílogos desse mal-estar. Aos poucos o mercado começou a fazer a sua parte, isto é, passou a incorporar a nova avalanche de imagens geradas por uma mídia cada vez mais feroz e reduziu tudo a um novo vocabulário. As novas gerações que surgiam, também aos poucos, começavam a tomar pé, com um pouco mais de segurança, nesse novo presente, mas também naquele passado que, comodamente, ia se transformando em história. De outra forma, ao findar o embate necessário, já passava a ser possível repensar criticamente a continuidade.
O tema central da pesquisa foi a compreensão do período de transição entre a cena moderna brasileira e a condição contemporânea a partir dos anos de 1990, que localizamos nos anos de influência da década de 1970. Se quiséssemos uma expressão para defini-lo, talvez a escolha fosse pelo impasse inventivo que se atribui à esta produção, opinião que foi sendo construída por uma bibliografia ainda germinal sobre o tema, provavelmente pela proximidade histórica, mas que, de modo quase canônico, foi-se formando ao longo destas décadas; uma espécie de julgamento, cujo maior argumento era o posicionamento desta geração logo após a fundação de Brasília (5).
Assumo como premissa que esses anos foram subestimados por uma circunstancia histórica e que muitos percursos do maior interesse precisaram de um tempo para poderem se revelar. São questões que aos poucos vão assumindo o lugar que lhe estaria reservado há algumas décadas atrás e que poderiam ter sido melhor conduzidas se houvessem conquistado um espaço maior. Como estratégia aceito a aura que envolveu a produção brasileira no período heróico – 40/60 – para poder pensar sua seqüência. Parto, aliás, de uma construção teórica de nossa modernidade, aquela propugnada por Lucio Costa, para quem existiria um diferencial na produção dos arquitetos modernos brasileiros, face à comunidade moderna internacional – sobretudo Oscar Niemeyer. Inventada ou não a modernidade brasileira em arquitetura teve uma explicação oficial e como as obras produzidas ao longo destas décadas eram, em sua maioria, de qualidade inquestionável, sedimentou-se aquilo que decidimos chamar neste trabalho de uma grande aventura.
A vontade de continuar essa aventura nos anos posteriores à Brasília, foi uma das hipótese que nos colocamos para o trabalho e o que encontramos foi a necessidade de construção de um novo problema teórico (6) com a mudança de contexto gerada não apenas pela simples alavanca do tempo, mas também pelas novas condições socioculturais que advieram no Brasil e no estrangeiro. Construía-se nos nossos arquitetos uma atitude de dependência de seu pesado passado e das condições sócio-políticos atuais e uma resistência a estes dois pais, para preservar o sentido de continuidade daquele projeto e o poder da inventividade , que, no limite, é o que daria sentido à aventura.
Os anos sobre os quais nos concentramos sofreram o impacto de seu maneirismo, e durante muito tempo, a partir já daquele momento, teve-se a impressão que nada de novo poderia ser inventado e que a profecia já havia sido cumprida. Afinal, quando se olhava para trás e via-se Brasília era esta a impressão que se tinha daquela missão . Então só nos restava uma pergunta: o que fazer daqui para frente? A percepção da existência de um novo dilema – dependência e resistência – foi a chave para entender o desejo de manutenção da capacidade inventiva e, em última instância, da própria idéia de inovação no período; os caminhos que fomos, aos poucos, construindo revelavam-se versões deste dilema dentro de cada caráter produtivo particular.
A hipótese sugerida é que, contrariando uma certa postura consensual sobre a perda de fôlego desta produção, os percursos trilhados no período propunham-se como resposta a questões, e deveria haver um modo de defini-los em relação à sua herança. De modo complementar, propomos que esses percursos identificados na arquitetura do Brasil nos anos de 1970 instituam-se como figuras da invenção brasileira, num novo contexto da dependência e da resistência. Esse novo dilema – dependência e resistência – seria a solução brasileira para o problema da criação e invenção, no período ou, de outro modo, a resposta possível a um passado definido pela aventura de grandes criadores e a um presente imobilizado pelo regime político. Com essas trajetórias, que descreveremos ao final, pretendemos, ainda, que se complete a idéia de que esse tenha sido um momento de transição.
O território dos anos de 1970
“Os modernos da década de 70 não podiam se permitir a aniquilação do passado e do presente com o intuito de criar um mundo novo ex nihilo; eles tiveram de chegar a um acordo com o mundo que tinham e trabalhar a partir daí”.
Marshal Berman (7)
O período de transição de nossa matriz moderna começa, provavelmente, em meados da década de 1960, coincidindo com o advento da ditadura militar, e se esgota – para a área da arquitetura – no início de 1980, quando surge o primeiro confronto com o renovado debate internacional, já em curso desde a década anterior. A arquitetura desse período representou para o Brasil a maturação do nosso projeto moderno, que em versões distintas, vinha moldando nossa cultura arquitetônica desde a década de 1940. Operava os signos de nossa modernidade com familiaridade e dava cabo das crescentes demandas propostas pela versão desenvolvimentista dos governos militares. Esses anos mostrariam, ainda, um primeiro descompasso do debate brasileiro diante do cenário internacional, depois de quase três décadas de alinhamento e mesmo de liderança em alguns setores. Num quadro sintético poderíamos descrever o período a partir de três condicionantes centrais:
1. No campo profissional, a maturação de nosso projeto moderno, atestada por um saber fazer acumulado em quase três décadas de intensa produção e reconhecido pela numerosa bibliografia internacional.
2. Um cenário internacional em mutação, direcionado para uma postura revisionista do movimento moderno internacional.
3. Um quadro institucional de exceção, apoiado sobre a ditadura militar.
Entender esses anos no Brasil é trabalhar inicialmente com a dicotomia entre uma produção que parecia resignar-se com as questões que lhe haviam sido atribuídas e um cenário externo que não mais a exaltava na medida de sua auto-afirmação. Mas foram anos também muito mais complexos do que as primeiras críticas – consensuais – puderam formular. No plano internacional, por exemplo, após quase um século de predomínio das questões modernas – se as tomarmos a partir de suas primeiras formulações no século XIX – pela primeira vez se registra um corpo teórico organizado como alternativa ao pensamento (8) e é nesta década que se define os rumos que a arquitetura tomará daí em diante. No Brasil carregávamos uma herança particular, que confundia discurso e obra como se fossem uma coisa só. Como descreve Otília Arantes, referindo-se à empresa intelectual de Lucio Costa:
"de qualquer modo, durante os momentos decisivos da formação da arquitetura moderna no Brasil, o Dr. Lucio (Costa) demonstrou que prancheta e escrita podiam e deviam convergir num mesmo ideal de vida e estilo – favorecido sem dúvida por um instante raro da vida nacional em que pela carga do "risco" e pela exigência de construção literária de um argumento circulava uma energia social inédita" (9).
Importa-nos entender como essas condicionantes atuaram na constituição de nossa produção no período e como puderam vincular as questões determinantes de nosso ideário de projeto – como a invenção – ao novo dilema: dependência e resistência. Dependência de um Estado que construía maciçamente e resistência a esse Estado que nos roubara as questões essenciais. Dependência de uma aventura que havia se proposto a reinventar o país e resistência por não dispormos mais das mesmas questões de sua construção. Claramente o debate internacional é o que menos influía em todo o processo. O impasse inventivo que estamos buscando situar ia assumindo, assim, uma outra forma. Começa a esboçar-se a versão de tratar-se apenas de uma outra condição dessa invenção.
O dilema, no entanto, não sobrevive sem seu contraponto e a resistência ao projeto também passou a ser uma via natural para os arquitetos, que, formados sob a idéia da contínua invenção (10), tinham necessidade de buscar algo para além das idéias já estabelecidas pelos projetos originais. Assim, podemos esquematizar o dilema profissional fundamental para a compreensão do período:
- dependência do projeto oficial para sua massificação e sedimentação numa linguagem;
- resistência para prosseguir a aventura da invenção, que continuava a permear os criadores.
Essa necessidade incessante da invenção, e não a invenção em si mesma, seria o fator preponderante da continuidade da aventura da arquitetura brasileira exposta como hipótese geral da tese. O depoimento de um dos protagonistas daquela aventura, Marcelo Roberto dava o tom da herança: "Inventar é o nosso destino atual. Segundo Malraux, será ainda por muito tempo: somente no próximo século serão criados os novos deuses. Dessa forma, não adianta impaciência, enervamento, fabricações de miragens. Continuemos inventando"... (11)
Isolamento
A internacionalidade de nosso projeto moderno, levada ao limite com o projeto de Brasília, sofreria uma brusca interrupção, como atestam nossas pesquisas. Vários fatores podem estar associados ao fato e o principal, ao menos num primeiro momento, pode ter sido o golpe militar. Mas sabemos que esse fator não foi o único. O descompasso que aos poucos iria se estabelecendo entre a produção brasileira e o debate que já predominava internacionalmente viria, pouco a pouco, isolar-nos ainda mais do que já estávamos. Como os acertos internos eram imensos, não parecia que esse isolamento fosse um problema que nos incomodava (12), embora houvéssemos feito o contrário em nossa aventura moderna, que esteve apoiada por um potente aparato institucional de divulgação internacional.
A primeira especulação ligada ao fato seria a de que a arquitetura moderna brasileira havia cumprido sua função essencial de nos inventar. Não teríamos então por que mudar. Qualquer realinhamento poderia representar a perda daquilo que fora essencial em nossa constituição, fosse a capacidade inventiva, o poder de criação ou, em última análise, a própria matriz moderna. O maneirismo daí decorrente – agora estético – por seu avanço técnico transformara-se na linguagem oficial do período (13). Foi a época das grandes obras de infra-estrutura: barragens, aeroportos, estações rodoviárias, sedes de empresas estatais etc. Reforça-se a idéia da dependência, do capital estatal e da linguagem oficial.
Os percursos de projeto que se abriram, sobretudo na década de 1970, enfrentavam seus fantasmas: a ditadura e o projeto fundador no limite entre o servilismo e a desobediência. Talvez por isso, por vezes são invisíveis. Não podem ser totalmente independentes, seja do momento político, do passado arquitetônico ou da tradição inventiva. Por isso fala-se pouco dos arquitetos, as revistas não lhes dão mais o mesmo espaço e, embora construam como nunca haviam feito, ainda não conquistaram a autonomia sobre o projeto que os fundou. A título de comparação, ressaltamos que entre os anos de 1947 e 1964 foram publicadas dez edições especiais nos grandes periódicos internacionais sobre a arquitetura brasileira, além de uma publicação ininterrupta, a cada ano, de projetos isolados. A partir de 1970 foram quatro, computando-se a edição especial sobre Oscar Niemeyer de L'Architecture d'Aujourd´hui, de 1974, e o balanço da mesma revista em 1987, quando o editor, como bom europeu, reclamava da esperança perdida. Não estávamos mais na época das revoluções. Como bons filhos, o que deveríamos fazer era esperar e crescer.
A difícil tarefa da arquitetura diante das demais manifestações culturais e artísticas era justamente ter colocado o problema da identidade como um qualificador. O que não acontecera necessariamente nas demais áreas. No mínimo, esse era um drama genérico das elites dos países colonizados. Sobretudo aqueles que, como o nosso, nasceram de uma extensão do Ocidente. A esse propósito, Paulo Emílio, em outro contexto, ao buscar explicar o que nos diferenciava de outros países colonizados que já tinham uma cultura sedimentada, como a Índia, especialmente , propôs uma fórmula precisa: "Não somos europeus nem americanos do norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é. A penosa construção de nós mesmos se desenvolve da dialética rarefeita entre o não ser e o ser o outro" (14).
O que estamos querendo demonstrar é que a idéia de modernidade em arquitetura no Brasil assumia uma peculiaridade em relação às demais manifestações culturais e artísticas, e embora possa, por vezes, aproximar-se dos demais discursos – como a postura messiânica –, sua resultante estética e mesmo prática não encontrava paralelo. Basicamente um ponto a diferenciava: a arquitetura moderna brasileira partira de uma visão internacional. Seu mergulho para dentro era um movimento ao contrário. A questão agora era como continuar modernos num cenário que se movimentava em outra direção?
Ao que parece adiamos um pouco a pergunta, e quando ela foi formulada nos restava pouca coisa a fazer, além de correr atrás para recuperar o caminho distante. Éramos, provavelmente, a mais avançada das fronteiras modernas, mas não nos havíamos preparado para sua expansão. Talvez fosse porque essa arquitetura representava muito mais do que um movimento estético ou um avanço cultural. Era a própria síntese do país que estava em jogo, ao menos o país que decidimos divulgar, e sua superação poderia representar a abolição dos ideais que, nesse momento, já poderiam ser apenas uma grande imagem de si mesmo.
Aqui esboçamos uma das hipóteses deste trabalho: embora apartada do debate internacional originado nos anos de 1950 e 60, que propugnava, em tese, a revisão dos postulados modernos, a produção brasileira a partir dos anos de 1970 fez de sua visão amaneirada do moderno um retorno à linguagem sem discurso; ao contrário do panfleto europeu e americano, creditou a permanência do projeto à sua continuidade figurativa e o que foi pensado num primeiro momento como estrutural passou a ser, sem assumi-lo, lingüístico.
É certo, também, que não poderíamos abrir mão facilmente do movimento moderno e nos engajarmos em idéias novas que ainda não nos estimulavam a acatá-las. Mas não deveríamos fazer o que ensaiamos fazer: negarmo-nos a discuti-las, como se sua discussão fosse nos macular. Nessa negação parece que todos perdemos um pouco, ao menos num primeiro momento, e a geração que se formava muito próxima de seus mestres teve que esperar o surgimento de outras para poder se manifestar. Na ausência do debate, a mídia fez seu papel e o que poderia ter sido um novo recomeço transformou-se num atropelo. Décadas depois, com um certo afastamento, estamos procurando os estilhaços para poder tudo remontar.
A arquitetura da dependência e da resistência
“Um estágio fundamental na superação da dependência é a capacidade de produzir obras de primeira ordem, influenciadas, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais anteriores. Isto significa o estabelecimento de uma causalidade interna, que torna inclusive mais fecundos os empréstimos tomados de outras culturas”.
Antônio Candido (15)
Ao chegar a década de 1970, a arquitetura brasileira estava consumada e o arquiteto brasileiro, protagonista dessa aventura, já demarcara definitivamente seu lugar no seio da cultura do país. Podia-se falar num modo de desenhar, numa forma de se colocar diante do mundo, numa postura social e política etc. As várias versões modernas que desenvolvemos criaram uma espécie de saber fazer que delimitava fronteiras muito precisas entre o que deveria ou não ser arquitetura. O padrão ainda era a potencialidade do concreto armado, seja na concepção dos espaços, na abstração das formas, seja na explicitação de sua construção. O que talvez não pudéssemos era usar o termo racionalidade, pois trabalhávamos com estruturas sofisticadas, mas sempre numa lógica executiva de quase artesanato. Essa era nossa tradição: uma versão bastante pragmática da construção e do próprio pensamento arquitetônico.
Os caminhos que mostraremos a seguir – retirados do corpus identificado na pesquisa – visam construir modalidades de leitura que esclareçam as heranças, quando visíveis, e o contato com o novo presente, que, por se querer atual, já indicava em alguns casos o caminho do futuro. Nesses grupos, há muitos que são tributários do dilema central, criação e invenção, como os ligados à expressão. Outros buscariam manter o caráter pela recomposição da imagem moderna ou pela defesa da auto-suficiência técnica, que localizamos no problema da figura. Um terceiro grupo buscou enfrentar a questão da transição pela superação da linguagem, que relacionamos com os arquitetos que se inclinaram para a postura revisionista internacional já em curso na década de 1970.
Finalmente, embora não tratados neste texto, houve os que tentaram resistir a todas as tentações, apontando suas contradições intrínsecas como subproduto da idéia de poder, intelectual e político, numa atitude compreensível para a época. Nessa linha resistente incluiríamos os que penderam para a cidade, pela candência do problema como nova problemática estruturada a partir dos anos de 1960, mas também por considerarem a arquitetura como questão menor em face do drama das aglomerações urbanas. Concluindo, deixamos em aberto a possibilidade de sobreposições desses vários percursos, que se não forem feitas por este trabalho ficam à espera da complementação do leitor.
Moderno como expressão
Um primeiro grupo de trabalhos que destacamos no período foi o que buscou – de formas distintas – a perpetuação dos códigos modernos através da expressão. Entendemos por isso a atitude representada no cenário internacional entre finais da década de 50 e início de 70 de buscar a sobrevida do movimento pela extensão de suas modalidades mais significativas. Estas modalidades poderiam estar expressas na abstração das formas, na vontade da estrutura ou mesmo na indefinição do espaço. Foi o que buscou fazer uma geração que ainda se sentia amparada por seus valores e crenças e que se sentia segura em poder perpetuar os seus códigos. Mas como o moderno também é o novo, seria preciso ao mesmo tempo gerar uma ultrapassagem de sua última parada que, defendemos , precisou da expressão.
Este último moderno, ao menos a versão que se fez antes da voga revisionista, carregava o estigma da continuidade e sua necessidade de atualização forçava a que esta continuidade fosse acrescida de algo a mais. Isto explicava o drama conceitual que vivia esta geração entre a idéia de um produto racional e técnico que os formara e a necessidade de sua superação. Arthur Drexler chegou a referir-se a alguns produtos desta fase como parecendo produzidos por equipes distintas em um concurso onde não haviam vencedores (16), tal a complexidade de formatos e estruturas que se sobrepunham para explicitar a última possibilidade do novo. Nem todos, é claro. Os Metabolistas, no Japão e a própria versão brasileira destes anos 60 eram exemplos precisos de um projeto que poderia atingir uma maturidade.
Das versões que destacaríamos no cenário internacional, a Exposição de Montreal de 1967, apresentava um resumo das preocupações dessa arquitetura moderna do pós-guerra, que atingira nesses anos seu limite conceitual. O trabalho que se transformou num quase sinônimo da feira, o complexo Habitat, do jovem arquiteto Moshe Safdie, era o retrato mais acabado do que defendemos. De uma idéia original muito mais ampla que a versão que acabou sendo construída, coube ao arquiteto encaixar 158 cápsulas pré-fabricadas, cuja complexidade estava na impossibilidade de distribuição simétrica das cargas. Habitat era a própria expressão de um processo de assemblage, cujo resultado era a imediata formalização desse processo. Contemporâneo desse trabalho no Brasil, podemos citar a experiência do Conjunto habitacional Zezinho Magalhães, de autoria de Vilanova Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Fábio Penteado, que demonstrava preocupações semelhantes com relação a uma arquitetura de componentes, embora fosse uma versão menos especulativa, voltada para uma industria possível. No Zezinho Magalhães buscou-se a pré-fabricação de todos os elementos de infra-estrutura e superestrutura. Habitat partia para outro processo industrial. A do componente fechado. Uma industria que aqui não podíamos desenvolver.
Paralelamente desenvolvia-se uma outra linha expressiva, de fundo estrutural que viria a privilegiar a idéia de Centro Estrutural , o core, instrumento catalizador da estrutura portante dos edifícios e também de seu corpo de serviços. O conceito do core, que contava entre os principais protagonistas, o arquiteto japonês Kenzo Tange e o norte americano Kevin Roche, fabricava a ruptura definitiva com a idéia de superfície de origem clássica, que ainda sobrevivia nas arquiteturas das vanguardas modernas, valorizando a expressão da estrutura. Le Corbusier, por exemplo, tinha superfície e as trabalhava de modo clássico. Essa modalidade de expressão representava um certo avanço sobre uma questão moderna, mesmo que através da imagem e sua internacionalização também chegou ao Brasil.
A questão brasileira era mais complexa nestes anos. Quando o Movimento Moderno iniciava sua última fase antes da voga revisionista, nós aqui estávamos abrindo fronteiras dentro do movimento, o que acontece com a construção de Brasília e com o surgimento do grupo paulista capitaneado por Artigas. Mantínhamos uma defasagem, que nas nossas contas viria a ser até estratégica, pois havíamos tido um tempo menor para amadurecermos as questões. Quando chegam os anos de 1970 tudo acontece de modo simultâneo, a continuidade de nosso moderno oficial e a interpretação paulista, mas também a última versão do moderno internacional. Ao lado do debate revisionista, que trataremos em outro segmento, estas versões do moderno já apresentavam munição suficiente para ter continuidade e uma das correntes mais visíveis da produção brasileira foi a da busca pela expressão. Era só escolher a filiação. Certamente a Arquitetura Moderna Brasileira da linha de Oscar Niemeyer, explorando superfícies e valorizando a estrutura, faria seguidores embora não um escola, papel que caberia à linha de Artigas. Mas em qualquer destas versões poderíamos reconhecer na vontade da expressão, a expectativa da invenção. A linha internacional também era visível e praticamente se tornou dominante nos anos 70, sobretudo pela explosão das torres comerciais.
A arquitetura que se pretendeu expressiva pelo peso, ou a massa, valorizava outros componentes, normalmente sua estrutura principal e buscava se comunicar através da grande volumetria de composição. Os dois casos que consideramos exemplares desta corrente, identificados com um repertório vinculado à linguagem internacional: são os projetos para o edifício sede da Petrobrás no Rio de Janeiro, de 1968, de autoria do grupo de arquitetos do Paraná, composto por Roberto Gandolfi, José Sanchotene e Luiz Forte Neto, entre outros, e o projeto para o edifício sede da IBM em São Paulo, de 1972, de autoria do escritório Croce, Aflalo e Gasperini. Numa outra linha expressiva, que entendemos autônoma do debate internacional e, de alguma forma, conectada à seqüência brasileira, estaria o projeto para o Centro Cultural São Paulo, dos arquitetos Eurico Prado Lopes e Luis Benedito Telles, que representaria também uma idéia complexa de espacialidade moderna: flexibilidade e continuidade urbana, questões que estiveram presentes na transição do debate internacional desde os anos 60 e fundariam o ideário da próxima década.
Esses trabalhos abrem um circuito inventivo de frente ampla de diferentes orientações expressivas. Umas buscam a validação do debate internacional, outras a recuperação da lição de casa. Nos dois casos o dilema dependência e resistência ao projeto moderno brasileiro estava explícita. Outros personagens, seguramente, comporiam uma extensa lista que não caberia nesta síntese. Podemos citar o trabalho de Fabio Penteado, com sua disposição para as grandes massas, Pedro Paulo Saraiva, com a valorização da estrutura portante em importantes obras, além do próprio SESC Pompéia de Lina Bo Bardi entre tantos outros. A idéia de expressão, seria, em última instancia, a necessidade de formalização dos elementos estruturadores da arquitetura, moderna em nosso caso, para que ela pudesse perpetuar seus códigos. era uma maneira de continuar. A invenção seria, mais uma vez, revelação.
Figura e estrutura. Poética e linguagem na seqüência paulista
Fiz um projeto que foi escolhido e acabei viajando ao Japão para construí-lo. Mais uma vez, tratava-se de uma estrutura interessante, que pretendia fosse uma visão poética do ideário formal brasileiro, a questão da ocupação dos espaços a partir da experiência brasileira.
Paulo Mendes da Rocha (17)
Se tivéssemos que apontar uma marca que resumisse as aspirações do projeto moderno brasileiro nos anos de 1970 é provável que a escolha recaísse sobre a valorização do sistema portante como definidor de uma idéia de arquitetura. Mais do que uma ação eminentemente técnica, essa marca viria representar a sedimentação de uma atitude de projeto que encerrou o ciclo do primeiro moderno brasileiro, com Brasília e o “recentramento” de Niemeyer – também com Reidy no MAM do Rio de Janeiro –, e teve reflexo direto na produção dos arquitetos de São Paulo, sendo o motor do trabalho que Artigas passa a desenvolver.
O aparecimento de um movimento estruturado em São Paulo, na esteira do projeto de Artigas, ao mesmo tempo que se mostrava como um contraponto à versão inicial e definitiva da arquitetura desenvolvida pelos arquitetos do Rio de Janeiro, era também sua afirmação, pois partia de suas conquistas não apenas espaciais, mas também socioculturais. Após todo o conjunto de realizações modernas desde os anos de 1940, maciçamente financiadas pelo Estado, a arquitetura moderna adquirira uma credibilidade institucional e mesmo política, que avalizava seu desdobramento em outras fronteiras. São Paulo, uma fronteira econômica e cultural importante do país, ainda não desfrutava o mesmo prestígio do Rio de Janeiro, mesmo nessa fase de mudança da capital, e o trabalho renovador dos arquitetos apresentava-se diluído em algumas iniciativas locais, já com o trabalho cambiante de Artigas, e uma expressiva participação de arquitetos estrangeiros, aqui radicados.
A consolidação interna do projeto moderno brasileiro parece se concretizar com a "solidariedade paulista", que assume o projeto e gera suas deflexões, simplificando-o e adequando-o a um novo discurso. Em depoimento à revista Arquitetura e Urbanismo, Abrahão Sanovics fazia um relato esclarecedor dessa herança: "A arquitetura feita em São Paulo é um desenho que pega essa experiência carioca e a desenvolve dentro das características regionais daqui. Ela procura seus aspectos programáticos, uma linguagem própria" (18).
Sanovics localiza o edifício-marco dessa passagem, a Escola de Itanhaém, de Artigas, que – argumenta – foi o primeiro momento de inversão dos pressupostos quase rurais que definiam os projetos públicos do IPESP (Instituto de Previdência do Estado de São Paulo), órgão responsável pelas construções na administração de Carvalho Pinto. Seguimos com o arquiteto em sua avaliação do projeto: "A planta livre, as estruturas independentes, o grande vão. Uma semente? Como protótipo de arquitetura que acontece nessa época é, sem dúvida, um modelo (19). Ele (Artigas) começa enfim a mudar a linguagem. Sob alguns aspectos contém influência de Reidy” (20).
Mais do que um fato restrito aos arquitetos paulistas, embora predominante no número de seguidores, a imagem que percorre esses anos da afirmação dos postulados corbusierianos, entendidos em sua simplificação, acaba por se difundir como uma idéia de forma possível e talvez de tecnologia desejável para o país. Os exemplos vão ultrapassar as fronteiras do Estado e da própria escola de Artigas, que se basearia na contenção formal dos pressupostos que definiram a arquitetura produzida no Rio de Janeiro. Essa imagem familiar, no entanto, modelada por um discurso ideológico diferente daquele precursor, podia lhe servir como uma espécie de continuidade.
A existência de uma escola paulista, como veio a ser caracterizada essa produção influenciada por Artigas, era uma questão controversa, sobretudo por desconsiderar o veio importante de produção moderna existente em São Paulo no período. Seria admissível a aceitação desse rótulo, se faziam parte do grupo, conforme já foi mencionado, autores de origem estrangeira como Rino Levi, Lina Bo Bardi, Giancarlo Palanti, Franz Heep, Lukjan Körngold, para citar só alguns?
No número da revista Arquitetura e Urbanismo dedicado à Escola Paulista, o arquiteto e professor Julio Katinsky faria grandes reparos ao termo, identificando-o como uma "perigosa montagem ideológica": "A arquitetura moderna brasileira tinha autores e teses definidas. E a tal ‘arquitetura paulista’, onde está, quem são seus autores, quem traduziu seu ideário?” (21). Na seqüência, após traçar o itinerário histórico da formação da arquitetura em São Paulo no século XX, Katinsky procura localizar Vilanova Artigas como um episódio importante – fundamental até – desse processo, pela "rara coerência entre o arquiteto e o professor", mas não o único de um vasto percurso, a ponto de transformá-lo em seu sinônimo.
Rótulos à parte, é evidente que a obra e o discurso de Artigas fariam seguidores e constituiriam uma escola, independente de seu tamanho e repercussão, que, sabemos, não foram pequenos. Por mais que os críticos procurassem desmontar sua construção como uma ideologia (o que, afinal, não deixava de ser verdadeiro), inicialmente difundia-se no grupo de arquitetos ligados a ele e aos poucos se estendia a boa parte de uma geração uma maneira de proceder com o projeto, que, embora por vezes pudesse parecer retórica, deixava compromissos estéticos irreversíveis. A idéia da caixa suspensa por quatro ou mais apoios, numa simplificação da problemática corbusieriana e mesmo carioca, como vimos; a expressão da matéria como forma de revelar o seu (difícil) processo de construção; a ênfase na interioridade e o embate com o meio representado pela forma pura, embora fossem procedimentos sustentados por um discurso, eram facilmente assimiláveis como modelo e geravam uma continuidade, muitas vezes, acrítica.
Ao chegarmos aos anos de 1970, o "projeto paulista" com base em Artigas já havia cumprido parte de suas expectativas, sobretudo por ter colocado a questão da luta por uma soberania cultural e produtiva nacional, bandeira facilmente defensável naqueles tempos de repressão política e defesa anti-imperialista. A redução elementar que propôs Artigas acenava para um projeto cuja síntese estaria nos elementos definidores da estrutura. Essa era sua essencialidade ou seu limite. Nesse sentido, a arquitetura poderia se completar com pouco, mas, perigosamente, poderia também sobrecarregar sua carga expressiva pela importância que atribuía a esses elementos na configuração do espaço.
A seqüência paulista seria a sedimentação desse projeto, tomando-o, por vezes, como modelo, por outras como tipo, mas em qualquer dos procedimentos buscava pensá-lo como uma figura a ser perseguida. É possível, e levantamos a questão como uma das hipóteses deste trabalho, que o grande impasse da produção alinhada com o projeto de Artigas, nos anos de 1970, tenha se dado por buscarem a continuidade de um problema produtivo (construção) pela sua resultante (forma), ou seja, por trocarem os meios pelos fins, sem assumir a tendência para a figuração como um problema interno da seqüência do projeto (como estava ocorrendo à mesma época no debate internacional), acabando por amaneirá-lo, transformando-o numa retórica.
A superação da linguagem
A superação do discurso moderno no Brasil, em finais dos anos de 1970 e início de 1980, viria pelo embate anunciado e pela expectativa represada de fazer um balanço de nosso passado, ou do eterno presente, que, se por um lado mantinha a continuidade com qualidade em seus personagens mais significativos, como Oscar Niemeyer, Lina Bo Bardi ou Paulo Mendes da Rocha, por outro enfrentava o desgaste e o conflito na maior parte de seus seguidores. O que se evidenciava era que a revisão viria com outra geração e em novas fronteiras, que não haviam se formado diretamente naquele projeto, até porque a realidade da formação do arquiteto brasileiro mudava radicalmente com a proliferação de novas escolas de arquitetura e uma mídia cada vez mais agressiva inundando nosso universo profissional com uma avalanche de imagens.
A evolução do debate internacional no período conseguiu, a duras penas, alguma inserção no Brasil nos primeiros anos de sua formulação. As questões revisionistas, sobretudo as fundadas sobre o historicismo, faziam pouco ou nenhum sentido em nosso universo de formação, fartamente moldado pela experiência moderna, e a vontade de superação, já inerente à nova geração que surgia, ficava em busca de novas pistas em que se apoiar. O Pós-Modernismo fora um caminho quase natural, já que se tratava de um movimento sem caráter definido, sendo antes uma rede de ações antimodernas que se somavam por conveniência. Se esse era seu ponto forte, era também sua maior debilidade, pois, na prática, poucos protagonistas do movimento, mesmo internacionalmente, aceitavam a filiação, justamente por sua coerência ser menos propositiva do que denunciatória. O próprio livro de Charles Jencks, em seu pluralismo quase messiânico, ajudava no desconforto.
Podemos ensaiar uma explicação para o relativo sucesso que o movimento dito pós-moderno atingiu no Brasil, a partir de meados da década de 1980, mais por um sentimento de mudança, movido pela onda do tempo e pela vontade de recuperação de uma inventividade em crise com o desgaste do maneirismo moderno, do que pelas condições materiais e críticas de nosso estágio naqueles anos. Espallargas Gimenes, em artigo de 1984, propôs uma explicação ao calor da época:
“Dando sinais de cansaço, o mito da capacidade criadora inesgotável do arquiteto brasileiro, onde, acabaremos concordando todos, se refugiava nossa indigência, cede lugar novamente a uma apropriação até descarada das novidades européias, que, sem texto, receita ou representação, vão sendo lançadas no circuito interno de consumo, com boas chances de conquistar um significado positivo, dada a inércia da crítica [...] que não consegue sugerir parâmetros para balizar a produção” (22).
O que embalava as correntes revisionistas no Brasil era a idéia de um pluralismo possível, uma defesa contra as amarras que, julgava-se, haviam sido estipuladas pelo movimento moderno brasileiro, sobretudo em sua versão mais dogmática, a paulista. Ao menos era esse o discurso ensaiado por aqueles que se colocavam como protagonistas do novo momento. A pretensa liberdade encontrada a partir do surgimento das novas questões e dos novos protagonistas das vanguardas internacionais também se difundia em forma de discurso como um novo axioma. Era necessário construir um novo discurso, encontrar novas âncoras, mesmo que elas fossem uma história que não fizesse sentido para nós.
Cabe neste momento esclarecer que, embora o movimento moderno fosse hegemônico no Brasil, oficial até, por assim dizer, sempre houve defecções, sobretudo em manifestações regionais, como nos estados do Norte e Nordeste, e mesmo no Rio Grande do Sul. Nos ciclos de depoimentos sobre a arquitetura brasileira, realizados no Rio de Janeiro e em São Paulo, em 1978 e 1979, respectivamente, algumas manifestações caminharam nesse sentido, indicando buscas que, mesmo naquele momento, se mantinham independentes do debate internacional. Como no depoimento em que o sempre combativo arquiteto Joaquim Guedes reclamava da marginalidade:
“Por outro lado, existe uma obra importante que vem crescendo no Brasil, mas que tem toda a característica de obra marginal. É obra marginal, quase obra maldita, dado a excessiva importância do peso histórico-oficial que tem a chamada grande arquitetura-oficial-brasileira-moderna. Como este é o caminho, o resto é marginal. A gente encontra experiências no Ceará, que são legítimas, feitas de dentro para fora, para o lugar, por gente de lá. E a gente vai encontrar o mesmo esboço com Vital e Borsoi em Recife, e, sobretudo, na Bahia com Assis Reis” (23).
O que começa a mudar no período não é, como vimos, a existência de caminhos alternativos, que sempre existiram, mas a forma de dar-lhes valor, ou de reconhecê-los em sua relação com a idéia oficial. Os protestos, que começavam a surgir timidamente em artigos esparsos e com as dificuldades naturais de argumentação (24), eram sintomas da necessidade da revisão e, na impossibilidade do represamento do debate, cada corrente, por assim dizer, buscava construir sua versão para a herança, mesmo que fosse para negá-la.
Não se poderia facilmente entender uma arquitetura que se atrelava ao mercado pelas mudanças na ordem de demanda da economia e produzia com dificuldade as obras de exceção. Mas por aqui, dentro da visão possível de um cotidiano que só poderia ser julgado mais tarde pela história (história que ainda nem estamos em condições plenas de contar), continuávamos com o compromisso da capacidade inventiva, só que num tablado de referências em que não nos sentíamos mais tão modernos, ou tão nacionalmente modernos.
Escritórios menos comerciais como o célebre Kenzo Tange & Associates, também alterariam sua linguagem, onde as grandes estruturas expressivas que o definiam até a década de 60 começavam a ser envolvidas por um novo desenho da superfície. A arquitetura recuperava a idéia da camada que a separava do público, como nas cartilhas renascentistas italianas e o design – tomado como expressão da forma – retomava um espaço que havia sido suprimido pelas especulações estruturais modernas. Arriscaríamos falar na volta do plano, sendo mais preciso, da fachada, num novo cenário onde a estrutura também deveria comandar. A conversão de Tange foi talvez a mais visível e a mais didática, por assim dizer, para nosso argumento. É só compararmos dois de seus projetos mais clássicos: O Yamanashi, construído em Shizuoka em 1961 e o edifício Grand Ecran que projeta para Paris em 1987, concluído em 1990. Mas não fora o único, embora pelo passado moderno, seja o mais importante.
No Brasil, de modo semelhante pudemos assistir essa conversão em alguns escritórios importantes, normalmente aqueles já vinculados a arquitetura corporativa, como: o já citado Croce, Aflalo e Gasperini; o escritório Botti & Rubin, que abandonaria sua linguagem moderna de grande expressão dos anos 60 (25) ou Gerônimo Bonilha Esteves, que no projeto que realiza para o conjunto CECAP em 1973 (26), já contenha indícios desta revisão. A relação é imensa, mas citaríamos mais dois casos: os escritórios Konigsberger & Vannuchi de São Paulo e Luis Paulo Conde do Rio de Janeiro, que comparecem com dois edifícios exemplares desta revisão: o edifício de Higienópolis em São Paulo do primeiro e o conjunto CENTAP do Bradesco do segundo, no Rio de Janeiro.
Abria-se de modo um tanto deslocado um veio que encontraria um terreno profícuo nessa década, aglutinando uma geração que ansiava por rever sua herança e embateu-se com um projeto que se sedimentara até o limite de sua calcificação. Não havia ainda a reticência da história, tinha-se que continuar e mudar. Desculpa-se assim os atos intempestivos, os manifestos com pouco fundamento e a sobrevalorização de experiências ainda seminais. Valia tudo para mostrar que os tempos haviam mudado. Não havia exatamente, mas começava.
Um pouco de novo, um pouco de tudo
“Vamos enfrentar a questão. No momento em que a forma moderna perdeu seu caráter cognitivo, os estilos convencionais e a visualidade urbana são as imagens que restam à arquitetura. Inventar formas em um universo transpassado pela informação instantânea, perdeu o significado” (27).
Comentando o trabalho de Robert Venturi em texto de 1986, a crítica Sophia Telles, procurava relativizar a importância desse manifesto que chegava às novas gerações como uma verdade provisória e pouco contestada. Havia um ânimo em relação aos novos textos, esse em especial e o de Aldo Rossi, e o novo público ávido por encontrar seus álibis sentia-se a salvo com os novos manifestos. Poucos se dispunham a assumir a empreitada de se autodenominarem pós-modernos, mas os conceitos que o movimento iria produzir passaram a ser utilizados aqui como se fossem familiares: recuperação da memória, retorno à história, transitoriedade, valorização do cotidiano etc
O debate mais volumoso precisou de uns poucos anos para aparecer, por volta de meados da década seguinte, e, quando chega, encontra um corpo profissional pouco preparado para recebê-lo, tanto entre os que o apoiavam como entre os que o rejeitavam. Afinal, não havia mais a unidade que comandara as ações modernas. Ou se era dependente ou resistente. Eduardo Subirats, crítico espanhol que lecionara em São Paulo no período, reforçava essa tese em entrevista à revista Arquitetura e Urbanismo, apontando que "no Brasil existia mais um estado de espírito do que uma produção, que apenas começava a aparecer de forma desarticulada" (28).
O ensaio mais elaborado entre todos os que se aventuraram nesse primeiro embate coube ao já citado Pós-Modernismo, Arquitetura e Tropicália, de Luis Espallargas Gimenes, publicado no mesmo ano de 1984, na revista Projeto. Espallargas não lamenta o atropelo com que as novas questões chegavam; acredita que a discussão no Brasil, embora tardia em relação ao debate internacional, chegou na hora possível de ser processada, pois, segundo argumenta "nosso interesse começa quando acabam os incidentes, quando o Pós-Modernismo ganha ‘textura teórica’, estabilidade e aparência plástica uniformizada". E conclui afirmando que "chegamos em boa hora, o que aconteceu antes não nos é fundamental" (29).
De concreto havia a sensação generalizada de que finalmente ocorrera algo de significativo diante do que deveríamos nos posicionar. Estivéssemos de um lado ou de outro. Mas talvez por isso mesmo, por termos que escolher um lado, não estávamos isentos para poder fazer a revisão como poderia ou deveria ser feita. Ou se combatia o moderno, como um passado que já não tinha mais com o que contribuir, ou se combatia a novidade, que, por não ter uma face precisa, reduzia todas as ações num único rótulo renegado. Um maniqueísmo pueril, que o tempo se encarregaria de consertar.
Quando chega o concurso para a escolha do Pavilhão Brasileiro para a Feira Internacional de Sevilha, já iniciando 1990, sentíamos ainda o vigor do embate gerado naquele momento, prova de que a questão não havia sido regrada. A vitória de um projeto dependente do ideário paulista – o grande vão, a caixa suspensa, o interior explodido – acenderia uma polêmica pública sobre essa herança, que provavelmente não teria havido se o resultado premiasse qualquer um dos demais concorrentes.
Sevilha, como dissemos, estabeleceria o fim do mal-estar, porém não sem deixar rastros visíveis até hoje. Com esse concurso nós nos dávamos conta, quase uma década depois, que a arquitetura produzida no período, e referimo-nos à transição entre as duas décadas, sofreria com a imprecisão dos conceitos. Não conseguia se postar criticamente diante do moderno, pela evidente falta de distanciamento histórico e só poderia se colocar diante do novo debate internacional comentando suas imagens, já que não tínhamos partido dos mesmos problemas. Algumas pistas estavam sendo insinuadas, mas talvez também elas precisassem de um tempo para amadurecer, ou simplesmente serem aceitas para compor um tablado que admitisse a inevitável diversidade anunciada.
Se observarmos o desdobramento da produção brasileira a partir dos anos de 1990, e em especial a partir do início desta década, verificaremos que as duas partes contribuíram para o espólio, mais a moderna, certamente, como também se passou no plano internacional. É importante, ao mesmo tempo, observar o movimento do mercado – mais participativo no saldo do trabalho dos arquitetos a partir dos anos de 1980, devido, entre outros fatores, à diminuição dos grandes investimentos estatais –, que assume as imagens de um certo pós-modernismo difuso e lhe dá sobrevida, sobretudo nas construções comerciais.
De posse da história, sentimo-nos mais à vontade para entender o que se passou nesses anos, e até minimizar os excessos de quem se viu forçado a se posicionar. Diríamos que a arquitetura brasileira na década de 1970 não podia observar a história, pois ela ainda era seu próprio presente, só podendo, portanto, continuar ou se desviar. Reconhecemos que tudo que se disse sobre o período de fato aconteceu. Não se fabricou uma fábula. Houve o desgaste do moderno; a continuidade acrítica das modalidades espaciais sacralizadas; o ranço de um nacionalismo ainda renitente; e uma vontade de superação sem raiz cultural. Mas não foi isso que procuramos mostrar. Se tivemos algum êxito, podemos afirmar que houve também a sedimentação de uma cultura técnica de grande sofisticação; o amadurecimento de um projeto de origem notável; e uma renovação com tópicos também locais. Em síntese: houve uma reconstrução da invenção.
notas
1
Artigo baseado na Tese de Doutoramento intitulada: A transição do Moderno. Arquitetura Brasileira na década de 1970. Apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP em 2004, publicado originalmente em Arquiteses 1: tempo, cidade e arquitetura. São Paulo, Annablume/FUPAM, 2007.
2
ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo, Ática, 2001, p. 17.
3
A equipe era composta por Ângelo Bucci, Álvaro Puntoni; Edgar Dente, José Oswaldo Vilella e Pedro Puntoni.
4
Paulo Mendes da Rocha, entrevista ao autor.
5
Um dos raros ensaios sobre a produção do período pós-Brasília, escritos no período, de autoria do jovem professor da FAUUSP Luís Carlos Daher, dava o seguinte tom: “Há quase um consenso entre os estudiosos: os últimos vinte anos (o artigo é de 1980) não assistiram a qualquer transformação fundamental na linguagem da arquitetura brasileira moderna. Se o espaço é o elemento lingüístico fundamental desta arquitetura, é certo que assistimos nesse período a intervenções mais ou menos brilhantes, mas nenhuma que não estivesse em germe no período de 1940-1960, quando a arquitetura brasileira ganhou prestígio mundial". DAHER, Luís Carlos. “O espaço arquitetônico brasileiro nos últimos 20 anos e a formação profissional”. Projeto, n. 42, jan. 1982, p. 99-100.
6
Essa formulação teórica foi proposta pelo filósofo francês Bernard Cier, numa série de encontros em 2002.
7
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo, Cia. das Letras, 2001, p. 315.
8
Referimo-nos aos textos fundadores: de Aldo Rossi, Robert Venturi, Peter Eisenman e Jane Jacobs.
9
ARANTES, Otília. “Lucio Costa e a boa causa da arquitetura”. ARANTES, Otília Beatriz Fiori e Arantes Paulo Eduardo. O sentido da formação. Três estudos sobre Antonio Candido, Gilda Mello e Souza e Lucio Costa. São Paulo, Paz e Terra, p. 116.
10
Lucio Costa em entrevista à revista Pampulha reafirmava o caráter que, entendia, acabou por definir a formação do arquiteto brasileiro após a experiência moderna: "Se é bonito, pronto é arquitetura. Se me agrada é bonito. Mas isso leva a soluções cenográficas, o mais antiarquitetônicas possível. Na mão de um arquiteto qualificado, naturalmente ele faria bem, mas essas levas de arquitetos, cada um pretendendo ‘eu acho bonito’, estão destruindo completamente o que era honesto: uma arquitetura vinculada a um sistema construtivo,.[...] Porque realmente os arquitetos são estimulados para serem gênios, para inventar. Então, o sujeito fica inventando demais, o próprio Oscar foi culpado disso”. COSTA, Lucio. “Entrevista”. Pampulha, n. 01, 1979, p. 19.
11
Depoimento de Marcelo Roberto. Publicado no Correio da Manhã, 12 out. 1955 e republicado em Arquitetura, n. 28, out. 1964, e em Arte em Revista, n. 4, 1980, p. 39.
12
Essa questão foi exposta na entrevista que Sérgio Ferro concedeu a Marlene Acayaba na revista Projeto, em 1986. Dizia o arquiteto sobre uma possível influência dos Smithson na produção dos arquitetos paulistas: "Neste momento chegava uma etapa em que por vaidade achávamos que já tínhamos um caminho próprio. Assim nos interessava muito mais aprofundar esse caminho que ir buscar fontes ou contatos fora. Dessa forma os livros eram lidos, mas não marcavam". FERRO, Sérgio. “Reflexões sobre o brutalismo caboclo. Entrevista”. Projeto, n. 86, abr. 1986, p. 70. Do mesmo autor, ver FERRO, Sérgio. “Arquitetura Nova” (1968). In: Arte em Revista, n. 4, 1980.
13
Ver a esse respeito em SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900-1990. São Paulo, EDUSP, 1998.
14
SALES GOMES, Paulo Emílio. Cinema, trajetória no subdesenvolvimento. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980, p. 77.
15
CÂNDIDO, Antônio. “Literatura e subdesenvolvimento”. Argumento, n. 1. São Paulo, out. 1973, p. 17.
16
DREXLER, Arthur. Transformaciones en la arquitectura moderna. Barcelona, Gustavo Gili, 1982, p. 17.
17
ROCHA, Paulo Mendes da. Depoimento. Arquitetura e Urbanismo, n. 18, 1989, p. 80.
18
SANOVICS, Abrahão. “Depoimento”. Arquitetura e Urbanismo, n. 17, 1989, p. 56.
19
Grifo nosso.
20
SANOVICS, Abrahão. Op. cit., p. 56.
21
KATINSKY, Julio. “Arquitetura paulista: uma perigosa montagem ideológica”. Arquitetura e Urbanismo, n. 17, maio 1980, p. 70.
22
GIMENES ESPALLARGAS, Luis. “Pós-Modernismo, arquitetura e tropicália”. Projeto, n. 65, jul. 1984, p. 90.
23
GUEDES, Joaquim. Depoimento. In: GUIMARÃES, Ceça et alii, Arquitetura brasileira após Brasília, vol.3, p. 213.
24
O espaço destinado pelas revistas existentes na época ao tema da revisão começa a se ampliar significativamente no início da década de 1980. Destacaríamos como referência três artigos, um de cada uma delas: GIMENES ESPALLARGAS, Luis. “Pós-Modernismo, Arquitetura e Tropicália” (op. cit); MANDOLFO, Eduardo. “Arquitetura pós-moderna e hibernação tropical”. Módulo, n. 83, nov. 1984, p. 36-41; PADOVANO, Bruno R. A Arquitetura Brasileira em busca de Novos Caminhos. Arquitetura e Urbanismo n. 4, fev. 1986, p. 79-83.
25
O escritório Botti & Rubin de São Paulo, liderado pelos arquitetos Alberto Botti e Marc Rubin, respondeu por alguns edifícios notáveis de linhagem moderna, sobretudo residenciais, na década de 60. A ênfase na pesquisa sobre vedações e superfícies mereceu, inclusive, uma matéria especial sobre o tema na revista Acrópole.
26
Trabalho foi publicado na revista Process n. 17, 1980, dedicada à arquitetura brasileira.
27
TELLES, Sophia S. “Frágil cotidiano”. Arquitetura e Urbanismo, n. 4, fev. 1986, p. 37.
28
SUBIRATS, Eduardo. Apud SABAG, Haifa. “Revisão e autocrítica”. Arquitetura e Urbanismo, n. 4, fev. 1986, p. 24.
29
GIMENES ESPALLARGAS, Luis. Op. cit., p. 89.
sobre o autor
Francisco Spadoni, arquiteto, professor doutor da FAUUSP e FAU Mackenzie.