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architexts ISSN 1809-6298


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Leia o artigo de Gladys Neves da Silva sobre a collage na arquitetura, que, apesar de estar em vários momentos presente no procedimento, no ato criativo, no projeto e na construção, não é muito evidente e valorizada


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SILVA, Gladys Neves da. Collages arquitetônicas. Arquitextos, São Paulo, ano 09, n. 102.07, Vitruvius, nov. 2008 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/09.102/98>.

As imagens de arquitetura muitas vezes se vêem envoltas nas tensões do processo moderno, sobretudo quando derivam de alguns fenômenos como a desintegração da figura e da forma, reunidas no complexo espaço tridimensional que é a cidade. Cidade esta que não pode ser mais representada como algo visível e ordenado, mas fragmentado como uma montagem social. Muitas vezes esse processo de desconstrução se torna invisível, muito embora, para um olhar mais atento, seja facilmente visível e identificável, como acontece com as collages. De fato, a collage, principalmente na arquitetura, não é muito evidente e valorizada, apesar de estar em vários momentos presente no procedimento, no ato criativo, no projeto e na construção, mesmo que muitos arquitetos não se dêem conta dessa atitude. O princípio da collage vem constantemente atravessando e/ou influenciando a produção arquitetônica, constituindo-se como um objeto e um recurso fundamental da própria arquitetura. Entretanto, segundo Fuão (Barcelona,1992), ironicamente a collage foi, durante muito tempo, reduzida a uma espécie “marginalizada”, onde todos se utilizavam desse procedimento mas poucos se atreviam a comentá-lo (2).

A collage é muitas vezes encarada como um simples brinquedo com tesoura e cola, como fazem as crianças. Mas, para Matisse e todos aqueles que fazem collages, o lúdico vira um ofício, quase um vício de “brincar com as tesouras enquanto na realidade se trata de uma vida de trabalho”(3).

Nos dias de hoje, a collage está presente não só no campo da arquitetura e das artes, mas no cinema, na publicidade, no teatro, no vídeo, em instalações, inclusive no menu do Windows, onde aparecem os dois ícones principais: a tesoura e a cola. Apesar da resistência da arquitetura em reconhecer a collage como elemento constitutivo do processo de criação, não podemos negá-la como imanente ao processo de criação de um projeto.

Na arquitetura, no projeto e na obra construída, se observarmos mais detalhadamente, veremos peças “coladas”, “acomodadas”, sem percebermos nisso uma collage. Essas “contaminações” tão frequentes aproximam os espaços construídos dos espaços imaginados, o que também acentua a collage como um procedimento e uma contribuição para a arquitetura.

O final do século XIX preparou todo o alicerce para sustentar os movimentos que iriam eclodir no século XX, como as vanguardas artísticas e o movimento da arquitetura moderna. Nesse cenário a collage aparece como um das principais protagonistas, pois a história da collage coincide com a história da arte e da arquitetura moderna.

O vínculo entre collage, arquitetura e cidade se destaca ao longo do século passado através de diferentes movimentos artísticos, como Cubismo, Dadaísmo, Surrealismo, Construtivismo, Pop Art, e de nomes significativos como Picasso, Lissitsky, Rodchenko, Max Ernst, Mies Van Der Rohe, Richard Hamilton, Archigram, Lina Bo Bardi, Richard Meier, Nils-Ole Lund e outros.

O termo collage foi criado por Max Ernst em 1918, diferenciando-se da simples colagem e resistindo até hoje, por neologismo, com várias outras denominações, como fotomontagem, montagem, photocollage, assemblage, rollage etc. Entre tantos conceitos e definições, o próprio Ernst mais uma vez nos responde: “Não é a cola que faz a collage...  Que é collage? O milagre da transfiguração total dos seres e objetos com ou sem modificação de seu aspecto físico ou anatômico”(4). 

A palavra collage engloba vários conceitos em função da sua trajetória nos movimentos artísticos, das suas formas de expressão e dos seus aspectos semióticos e lingüísticos. O conceito mais difundido é dado pelas enciclopédias: collage é o procedimento que fixa uma série de papéis e outros objetos sobre uma superfície. Ou então, a técnica de composição que consiste na utilização de recortes ou fragmentos de material impresso, papéis pintados etc, superpostos ou colocados lado a lado no suporte pictórico.

Etimologicamente, a palavra collage é um derivado do verbo francês coller, que significa colar, pegar, aderir. Para Jacques e Philippe Dubois (Paris,1978), a técnica da collage consiste em destacar, recortar um certo número de obras, mensagens já existentes, e reintegrá-las numa nova criação. Como reforça Fuão (Barcelona,1992), o autor de uma collage toma imagens já prefabricadas, algo parecido a discursos já pronunciados ou cartas já escritas, e as utiliza como materiais para expressar-se. As vanguardas artísticas do início do século, como o Cubismo, o Dadaísmo e o Surrealismo, usam a collage de várias maneiras: os cubistas, como um instrumento de representação; os dadaístas, como uma arma para a destruição da arte, e os surrealistas, como um meio de provocar “os mais desconcertantes efeitos psicológicos”. Para os cubistas, a expressão papiers collés consistia na aplicação de papéis impressos nas superfícies das pinturas, principalmente nas obras de Braque e Picasso. Entretanto, para os dadaístas (reivindicados por Hausmann e Hannah Hoch), a expressão foi substituída por Fotomontagem, que era um novo procedimento contrário aos papiers collés dos cubistas. Segundo Frizot, “a palavra montagem nasceu da cultura industrial: montagem de turbinas, de máquinas”. Reforçando esse conceito, ele cita Hannah Hoch: “Nosso único objetivo era integrar os objetos do mundo das máquinas e da indústria no mundo das artes”(5).

Uma das maiores contribuições para esclarecer e desvendar a confusão fonética entre colagem e collage veio de Sergio Lima. Os conceitos de collage e colagem têm uma profunda distinção para Lima: Collage é um termo criado por Max Ernst para indicar um processo de linguagem poética que se utiliza de imagens já existentes e, em geral, já impressas. Enquanto que colagem é um termo genérico e serve para designar todo e qualquer trabalho que resulte da aplicação de material colado num plano (6).

Para Fuão, a maioria das investigações sobre collages, com raras exceções, sempre procura explicá-las sob as leis da semiótica e da lingüística.  Normalmente elas são expostas a partir das ingênuas oposições de recortar-colar, destacar-justapor, isto é, de acordo com uma sintaxe. Fuão rompe com esse paradigma, na sua tese “Arquitectura como collage” (Barcelona,1992), ao valorizar a collage arquitetônica, ao revelar a poética do projeto arquitetônico a partir da articulação de resíduos impressos de arquitetura e ao estimular a prática da Collage como forma de reagrupar a realidade fragmentada, mostrando que existem outros meios de conceber o projeto arquitetônico e não somente o tradicional pensamento construído no interior da câmara escura(7).

Dentro dessa perspectiva, selecionamos a seguir uma análise de algumas obras que ilustram aspectos conceituais da collage, extraídos de diferentes autores, como Fernando Fuão, Simón Fiz, Sergio Lima e outros. O fio condutor dessa trajetória será a representação arquitetônica na collage, daí o título deste ensaio: Collages Arquitetônicas.

Conforme Wescher (8), a collage se introduziu na Rússia com muita rapidez e foi muito praticada. Muitas ilustrações, cartazes e catálogos refletiam simultaneamente uma grande simpatia pelo mundo tecnológico e uma socialização da arte. As guerras favoreceram a produção literária e artística, principalmente na Rússia, onde seus expoentes Maiakovsky e Lissitzky, respectivamente, transformam o processo revolucionário em processo político e estético. Eleazar Lissitzky (1880-1941), além de arquiteto e artista, foi ilustrador gráfico. Através dele surgiu um conceito de arte sem antecedentes e, como ele mesmo diz: “Na Rússia, um novo movimento, nascido em 1908, uniu desde o primeiro dia pintores e poetas e não se publica mais nenhum livro de poemas sem a colaboração de um pintor”(9). Mesmo assim, o tempo e a política não deram o devido destaque ao seu papel embrionário nas artes e na arquitetura do século XX. A collage The Runners, 1926 (fig.01), além de antecipar a “rollage” de Jiri Kollar, nos remete a uma cena cinematográfica. A imagem sépia, fragmentada e repetida de uma cidade noturna americana tipo “Las Vegas”, é vista como um imenso outdoor de movimento, este que vemos nas esquinas das grandes cidades, formado por lâminas verticais e acionadas mecanicamente. Runners é uma collage onde as fotos de dois corredores foram transfiguradas, a partir de um efeito ótico de “desfilamento” da imagem, criando assim um efeito de movimento, como se o próprio Lissitzky se lançasse no túnel do tempo (pois sua collage tem uma linguagem muito próxima à do filme “Blade Runner” de Ridley Scot). Nessa collage, Lissitzky faz surgir um efeito “runners” ao criar um afastamento entre as lâminas, um intervalo correspondente a feixes de luzes, de néon, de luminosos, onde tudo se confunde numa perfeita harmonia de composição. Percebe-se a presença dos negativos superpostos na duplicidade das imagens de cidades e na duplicidade dos luminosos “Central Theatre”.  Encontramos vários títulos para essa mesma obra: Runner, The runner, Runner in the city. E o que nos surpreende aqui é encontrar um Lissitzky menos construtivista, quem sabe já dando alguns sinais oníricos do surrealismo que se aproximava. Lissitzky foi um visionário utópico que mostra, com “Runners”, seu interesse pela ficção e pelas tentativas cinematográficas.

O Dadaísmo foi um movimento de revolta contra a arte e a favor da “arte da máquina”. Nesse cenário, o casal dadaísta berlinense Hannah Hoch (1889-1978) e Raoul Hausmann (1886-1971) reivindicam para si a invenção da fotomontagem, no verão de 1918. Para Roters, Hannah é a genuína artista das colagens e fotomontagens, é a principal responsável pela introdução dessa arte no século XX, pois utilizou e explorou a collage desde que a conheceu (10). A exaltação dadaísta do mundo americano está presente na collage de Hannah Hoch intitulada New York, 1922 (fig.02), principalmente por incorporar toda a relação com a cidade existente e a cidade imaginária, assim como a chegada dos arranha-céus na Europa. Daí a homenagem com o título New York, onde, através de uma composição figura-fundo, distinguimos uma grande cidade vista do alto, recortada por verdadeiras janelas onde se avistam os arranha-céus, proporcionando uma dupla sensação de profundidade e gigantismo. A repetição de turbinas é utilizada como artifício para nos conduzir à entrada central do prédio, reforçando o aspecto compositivo da acumulação que, segundo Fuão, pode ser compreendida como a repetição sistemática de elementos idênticos. Nesse trabalho, Hannah quis realmente exaltar a cidade moderna e o mundo da máquina.

O excesso das metrópoles também é concentrado nas collages de Paul Citroen (1896-1983), que teve uma direção própria apesar do seu contato com os dadaístas de Berlim. Suas grandes cidades foram experimentadas nas collages e inspiradas pelo fotógrafo Blumenfeld.

Este novo ícone - o skyline - vai seduzir e conduzir a arte americana, na segunda década do século.  As “visões do futuro”, como denominou Dawn Ades, eram feitas com recortes de fotografias e cartões postais colados lado a lado, justapostos sem nenhum espaço em branco. Para Simon Fiz (11), nesses ambientes é possível rastrear contaminações onde o homem metropolitano se vê forçado a enfrentar-se com uma acumulação de estímulos que dificilmente podem ser refletidos através de meios artísticos mais tradicionais. As collages de Paul Citroen exaltam as cidades modernas, assim como fez Marinetti no seu “Manifesto Futurista” (1909): “cantaremos as grandes multidões excitadas pelo trabalho, pelo prazer e pelo tumulto!” Na collage Metropolis, 1923 (fig.03), observamos vários elementos compositivos, tais como a acumulação, o empilhamento de edifícios, as mudanças repentinas de escalas, as pontes, os túneis, as torres, tudo isso concentrado em 50 centímetros quadrados, numa sensação de alvoroço e de pânico. Cada quadrado concentra “obsessivamente” uma vista com sua própria perspectiva. Poderíamos resumir tudo num só elemento da retórica, segundo Fuão (Barcelona 1992): acumulação ou encontros fortuitos e intencionais de diversas figuras arquitetônicas, compostas de muitos fragmentos de fotografias recortadas. E, ainda, “a acumulação como mosaico”. Nessa profusão de fragmentos de figuras que formam o todo, parecem transbordar os limites que as divisas tentam impor. A palavra que melhor define a retórica dos encontros no mosaico não é o contato, mas o efeito profundo e penetrante da incrustação (12). Essa obra de Citroen inspirou Fritz Lang no filme do mesmo título, “Metrópolis”. A percepção visionária de cidades e metrópoles, observada nas collages de Citroen, encontra-se também nas obras de Hollein, Podsadecki, Ruttmann e Pietro Bardi, cuja justaposição de elementos resulta em paisagens alucinatórias, estimulando a utilização de fotomontagens como expressão de propaganda política e sátira social.

No final dos anos 60 ressurge o interesse, entre artistas e arquitetos, pelas fotomontagens e collages, principalmente como técnica de representação gráfica já utilizada nos anos 20 e 30. Nessa época surge o grupo inglês de jovens arquitetos chamado Archigram (1961-1974), com uma abundância de produção gráfica e um otimismo tecnológico.

Walking City, 1964 (fig.04), de Ron Herron, e Instant City, 1968 (fig.05), de Peter Cook, são alguns dos tantos projetos “quase inconstrutíveis” do Archigram, pois são verdadeiras ficções. Sobre esses projetos, Doxiadis considera:“...Um exemplo característico dessas confusões mentais é dado por um grupo de arquitetos-planejadores que pretendem seriamente que devemos viver em imensos edifícios inumanos onde a construção é mais importante que o espaço, o contentor que o conteúdo, a carcaça que o homem, as linhas de  transportes que os valores humanos”(13).  Walking City é um projeto de ficção-científica, em que a imagem do ”veículo com patas gigantes, aplastando casas”, converteu-se na maior divulgação e popularidade do grupo, principalmente por estar entre uma proposição fantástica e um modo de representação eminentemente técnica. Essa collage foi publicada no magazine Archigram 5, em 1964. Segundo Cabral, existe uma megaestrutura trouvée nessa obra, que é o conjunto de plataformas anti-aéreas da segunda guerra localizadas no estuário do Tâmisa.(14).  Ron Herron foi um dos que mais utilizou as collages nas suas apresentações de projetos. Segundo ele, a collage é o meio legítimo que pressupõe a interação entre coisas que já existem (um lugar previamente existente, elementos de catálogo, imagens de segunda mão) e as que se supõe poderem ser manipuladas para suscitar uma leitura distinta.  As collages do grupo Archigram refletiam as aspirações tecnológicas, culturais e ecológicas, sendo na maioria das vezes, além de uma técnica, um procedimento de projeto. Segundo Banham, “os membros do Archigram eram uma espécie de aficcionados da composição ad hoc, extraindo fragmentos, peças disponíveis e noções afins das mais diversas fontes, entre arquitetônicas, artísticas e correntes, muitas vezes com certa irreverência para com a origem desses empréstimos”(15).

A arquitetura e a arte, desde a vanguarda dos anos 20, se relacionam com uma realidade cada vez mais fragmentada, descontínua e descentralizada. Nesse contexto, a collage passa a ser um mecanismo muito utilizável. Esse discurso da fragmentação, para Montaner (16), consolidou-se na teoria arquitetônica de Colin Rowe, no livro Collage City (1978). A preocupação com essa abstração formal na arquitetura propiciou vários estudos por parte de arquitetos como Daniel Libeskind, Peter Eisenman, Hedjuk, Michael Graves, Miralles, MVrDV e outros. Muitos já utilizam o mecanismo da collage, articulando fragmentos, fundindo abstração e figuração num único projeto. A arquitetura contemporânea baseou-se na trajetória e na articulação dessas estratégias de fragmentos. Na cultura do fragmento e da collage, conforme Montaner, tudo se desmembra, se descola e se fragmenta para ser mais consumível, manipulável e montável: cada elemento perde a sua identidade, suas raízes e suas qualidades críticas em função da lógica do consumo total (17). O inconformismo que motivou as antigas vanguardas transforma-se em conformismo do consumo nos dias de hoje. E nada mais emblemático do que o referente intemporal da Torre de Babel, como símbolo da dispersão, da sobreposição do tempo e de um consumismo ávido de impressões e espetáculo.

Na Torre de Babel de Nils-Ole Lund, 1970 (fig. 06), convivem velhas e novas construções, sagradas, seculares e extravagantes. Para ele, sua Torre de Babel é a própria “Collage City!”(18). A Torre de Babel é emblemática tanto da arquitetura quanto da collage. Desde suas primeiras representações já se concentravam, de forma apocalíptica, os princípios da collage e suas preocupações contemporâneas. Assim como no Palácio Ideal de Ferdinand Cheval (França, fins do século XIX), na Torre de Babel encontramos cada fragmento, cada símbolo como fonte de originalidade e fantasia, cuja palavra-chave é a acumulação de tempo, de línguas, de costumes, de operários e de sonhos. Por isso a Torre de Babel torna-se um fator emblemático, por invocar visões “fantásticas”, rompendo com a linha do tempo. Para Nils, o princípio da collage representa a maior técnica artística do século XX, através da qual é possível misturar o mundo imaginário com o mundo construído. Ele utiliza nas suas collages uma técnica muito particular através de rasgaduras feitas manualmente, deixando por isso rastros e seqüelas bem evidentes. Suas collages são verdadeiras telas de pintura; só um olhar atento ou um “efeito zoom” para distinguir a quantidade de papéis rasgados e colados. Assim como as collages de Moholy-Nagy parecem coladas delicadamente com pincéis, as de Lund parecem pintadas com papéis. Além disso, possuem uma dose de surrealismo, muitas vezes apocalíptica, como observamos na obra Dreaming of cities where often clouds, 1990. (fig.07)

A chegada da fotografia propiciou uma nova linguagem artística e profissional capaz de mudar o que vemos. A cumplicidade da arquitetura com a fotografia tem mostrado uma eficácia surpreendente na construção da realidade. A fotografia é o elemento de representação mais compreensível por todo o mundo, desde a sua descoberta tornou-se a mais constante presença na arquitetura e na collage. Para Fuão, as fotografias são literalmente artefatos, e por isso suscetíveis de serem manipulados. Conhecemos a arquitetura por imagens técnicas, projetadas em paredes das salas de aula ou impressas nas páginas de revistas e livros (19).

Toda a criação plástica do projeto se presta muitas vezes à ilusão das construções de papel que a fotografia imortaliza. Segundo Rosa Olivares, a arquitetura já é, por si, um subgênero fotográfico, onde os fotógrafos, além de registrarem os edifícios construídos, as ruas de Tóquio, as avenidas de Barcelona, as cidades industriais, os mercados, a miséria e a guerra de uma forma jornalística, também criam e recriam muitas vezes arquiteturas fictícias que parecem impossíveis, são construções “de papel” imortalizadas pela fotografia (20). Para Albertazzi, a fotografia constitui o meio em que se materializa o fato de “dar a ver” ao espectador, e nesse procedimento está toda a curiosidade técnica com a poética da abstração (21). O diálogo da arquitetura com outras artes sempre se mostra principalmente quando a arquitetura é vista atrás das lentes de fotógrafos, nascendo de fragmentos da realidade existente uma arquitetura inexistente. A collage é a própria arquitetura de papel, como concepção projetual, que se vale da fotografia e apropria-se da mesma ambigüidade dos adjetivos da arquitetura fictícia, ora a ”tarefa construtiva da imaginação, ora a mentira intencional”. Conforme Olivares, os fotógrafos contemporâneos transladam para o papel emulsionado ou digitalizado os medos, as fobias, a ansiedade e a beleza da nossa época, fazendo da arquitetura o expoente simbólico de um momento histórico (22). Essas arquiteturas fictícias, verdadeiras no papel, são feitas de pedaços de papel impressos, rasgados, montados, e que constroem outras arquiteturas. Na série Aglomerato/1997 (fig. 08 e 09), Giacomo Costa, fotógrafo natural de Florença, apresenta uma acumulação de sonhos, idealizações, medos e enigmas. Para Fuão, acumulação é o substantivo que define a sociedade de consumo e a adoração à matéria. Acumulam-se sonhos, horas e desejos, assim como Ferdinand Cheval acumulou fragmentos para a construção do seu palácio ideal. A acumulação pode ser entendida também como uma reunião de objetos, figuras, imagens que, dispostas aparentemente de forma aleatória, resultam numa nova imagem (23), como é o caso de Islamic Project, 1996 (fig. 10) do AES Group: grupo de arquitetos de Moscou.

Com essas descrições não esgotamos o panorama das collages arquitetônicas, que é bastante extenso, porém estamos certos de que a criação da collage como um conceito artístico atravessou o século XX até os nossos dias. A collage transformou-se em novas técnicas, novos procedimentos e novas denominações, resistindo ao longo do tempo com toda a diversidade que o mundo contemporâneo impõe. Talvez nenhum outro procedimento tenha conseguido acolher tantos gêneros, dispersos na pintura, na arquitetura, na música, na literatura e no cinema. Ao aproximar-se o final do século XX, as collages passaram a ser fortemente utilizadas pelos veículos de propaganda e publicidade. Saem das mãos de artistas plásticos e arquitetos e são “coladas” nas lentes dos fotógrafos. Tudo permanece, a beleza plástica, o inesperado, o inusitado, o surpreendente, enfim, tudo volta a ser surreal, mas com “ares” de multimídia. As imagens são manipuladas não mais por mãos, tesoura e cola, mas pelo mouse e o monitor de um computador. 

Também nessa geração, mais uma vez, a collage se transforma diante do consumo, da ecologia, do lixo, e agrega mais uma propriedade: a reciclagem, onde o desperdício e o desprezível muitas vezes se convertem em verdadeiras obras de arte.

Depois de tantas incertezas e desconfianças sobre o papel do discurso da collage no processo criativo do desenho de arquitetura, pode-se dizer que ela se torna, no século XX, um importante dispositivo técnico na produção arquitetônica, propiciando não apenas a compreensão intelectual das “realidades imaginadas”, mas também servindo como forma de expressão de uma linguagem gráfica. Sua eficácia na alegoria das metáforas e na descontextualização enriquecem a representação do projeto, tornando-se um instrumento poético no ofício do arquiteto, como aconteceu na apresentação de Lina Bo Bardi para o MASP com a collage Belvedere do MASP, 1957 (fig 11). Essa composição entre o trabalho pictórico do artista e o desenho de projeto do arquiteto é o que permite visualizar a familiaridade entre os processos de representação artística e de produção arquitetônica. A temporalidade da collage pode estar no percurso dos objets trouvés com a sobreposição do tempo, assim como a espacialidade da collage pode se situar justamente na confluência do espaço receptível à cola e o receptível ao manuseio das figuras: o limite está no próprio encontro ou na própria colisão. Portanto, conforme Fuão (Barcelona, 1992), para acabar com a collage basta voltar a haver distância entre as figuras.

E assim, segundo a metáfora de Dubois, “tudo é collage”, se entende com mais clareza a frase de Nils-Ole Lund, versão modificada de uma conhecida imagem de Shakespeare: “All the world’s a collage”(24). 

O texto de Ítalo Calvino concentra o vasto mundo das collages na poética das cidades “não tão invisíveis”, mas perfeitamente visíveis, quando Marco Polo responde para Kubai sobre a cidade perfeita: “... Às vezes, basta-me uma partícula que se abre no meio de uma paisagem incongruente, um aflorar de luzes na neblina, o diálogo de dois passantes que se encontram no vaivém, para pensar que, partindo dali, construirei pedaço por pedaço a cidade perfeita, feita de fragmentos misturados com o resto, de instantes separados por intervalos, de sinais que alguém envia e não sabe quem capta”. (25)

notas

1
Este artigo foi extraído da Dissertação de Mestrado de Gladys Neves da Silva: Arquitetura & collage – um catálogo de obras relevantes do século XX - Orientador: Fernando Freitas Fuão – PROPAR, 2005. Selecionado no I Seminário Arte e Cidade, UFBA, Salvador, Bahia 2006.

2
FUÃO, Fernando Freitas. Arquitectura como collage, Barcelona, 1992 – p.03.

3
NERET, Gilles. Henri Matisse- Recortes – Editora Taschen, 1998.

4
SPIES, Werner. Max Ernst, the invention of the surrealist universe, New York, 1991 – p.19.

5
ADES, Dawn. Fotomontaje, Casa Editorial Bosch,  Barcelona, 1977 - p. 08.

6
LIMA, Sergio C.F. Collage em nova superfície, Editora Parma, São Paulo, 1984.

7
FUÃO, Fernando Freitas. Arquitectura como collage, Barcelona, 1992 – p. 06.

8
WESCHER, Herta. A historia del collage – Barcelona, 1974 – p. 67.

9
LEWIS, David. La ciudad: problemas de diseño y estructura – Barcelona ,1968- p.255.

10
CATÁLOGO Colagens Hannah Hoch 1898-1978- IFA –Germany, 1995 – p.67.

11
FIZ, Simon. Contaminações Figurativas, Madrid, 1986 – p.10.

12
FUÃO, Fernando Freitas. Arquitectura como Collage , Barcelona- 1992 – p. 152.

13
CABRAL, Claudia Piantá Costa. Grupo Archigram, 1961-1974 – Uma fábula da Técnica - Barcelona-2001 - p. 199.

14
Idem. Ibidem. p. 203.

15
Idem. Ibidem. p. 272.

16
MONTANER, Josep. As formas do século XX – Barcelona, 2002 - p. 192.

17
Idem. Ibidem. p. 198.

18
LUND, Nils-Ole. CollageArchitecture –Berlin 1990 p.17.

19
FUÃO, Fernando Freitas. Arquitectura como collage, Barcelona, 1992 – p.04.

20
EXIT, imagen y cultura – N° 6 – Madrid –2002 – p.09.

21
Idem. Ibidem. p. 50.

22
Idem. Ibidem. p. 09.

23
FUÃO, Fernando Freitas. Arquitectura como collage, Barcelona, 1992 - p.150.

24
LUND, Nils-Ole. CollageArchitecture –Berlin 1990 – p.17.

25
CALVINO, Ítalo. Cidades Invisíveis – Companhia das Letras – São Paulo, 1990 p. 149.

sobre o autor

Gladys Neves da Silva, arquiteta FAU/UFRGS, 1974; mestre em Teoria, História e Crítica da Arquitetura/PROPAR UFRGS, 2005; Professora-Substituta da FAU/UFSC, 2007/2008.

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