Em 1993 é publicado um texto com o título “Arquitetura pequena” (1), ainda intuitivo em que não se escolhe os melhores exemplos, tampouco o melhor argumento. A primeira investigação sobre o uso de esquecidos critérios de julgamento e avaliação da arquitetura com premissa independente das consagradas pela catalogação oficial que controla e abaliza a opinião da maioria. Naquele momento, reconhece-se outra arquitetura respeitável de bom desenho e resultado, mas descartada segundo os critérios vigentes que avalizam o projeto. Só muito mais tarde é possível entender que essa diferença de avaliação corresponde a um interesse despertado pelo olhar – visualidade – e a uma definição mais rigorosa da acepção reservada à condição moderna.
Agora, entre os exemplos selecionados aleatoriamente pela atenção visual que despertam ainda há alguns em certa medida contaminados por esse teimoso preconceito que impregna, complica e insiste em confirmar a transcendência da produção do arquiteto segundo a perturbadora aura criativa e que, por esse motivo, acaba também por confundir, subestimar ou obviar o oportuno artefato moderno, sempre discreto e impassível.
Esta nova seleção expõe como anda acentuado o interesse por obras em que pese tanta reserva sobram atributos, mas que algum enigma faz com que passem despercebidos, sem seduzir os especialistas sempre às voltas com feitos espetaculares ou interpretações insuspeitas. Não deve se descartar que a razão desse desencontro, dessa hesitação, possa ser atribuída a uma percepção excêntrica e solitária, a uma atenção desentrosada da arquitetura mais conforme com o entendimento majoritário. Em todo caso, quer se sustentar o contrário: que essa apreensão, longe de ser isolada (2), é desencadeada com eloqüência moderna e inconformidade com eleições e critérios imprecisos e vulneráveis que sustentam a predileção e prestigio da arquitetura moderna brasileira (3).
Considera-se determinante encaminhar a pesquisa como fenômeno construtivo de interesse e aplicação no campo da arquitetura. Uma vez que, além de acrescentar informação e expor evidências que confirmem hipóteses, espera-se também da pesquisa que preencha a constante e urgente necessidade de ensaiar, estudar e aprender sistemas formais bem-sucedidos e comprovados, capazes de suprir ou apoiar as demandas contemporâneas de projeto.
Defende-se que a pesquisa deve propiciar a oportunidade de desenvolver a cognição visual, treinar o discernimento visual, para ampliar sua perspicácia frente a novas solicitações de projeto e ao necessário exercício de julgamento daquilo que se vê. É ideal que o juízo estético seja estabelecido pelo esforço de cada arquiteto que observa e não deixado a cargo do crítico que quase sempre opina a partir do conhecimento literário que reúne da arquitetura.
Diversos são os problemas na avaliação arquitetônica. Ocorre com freqüência na pesquisa de arquitetura o recurso à alegação informal, associativa, externa ou paralela como é o caso da notável pesquisa coordenada pela professora Maria Ruth Sampaio (4), em que o critério de apresentação refere-se ao levantamento histórico e documental de empreendimentos habitacionais, com breve apresentação ou descrição dos edifícios listados. A definição de habitação econômica, as relações do estado com os promotores e com as leis que regulamentam essas atividades, a história dos fatos urbanos, políticos e econômicos atuantes em cidades brasileiras dispersas esgotam e recompensam todo esforço dos pesquisadores. Tal critério – método – tem a vantagem da exaustão ao listar indistintamente o que possa ter sido construído em determinado período ou região, segundo variáveis estabelecidas, mas é ineficaz com respeito à narração dos atributos que essa arquitetura possa apresentar, mesmo porque, ao pressupor consenso não especifica o que se deve entender pela camaleônica expressão “arquitetura moderna”. Comum é que a crônica da arquitetura moderna pressuponha a autoria e algum movimento constante de superação e atualização da arquitetura moderna, tal presunção torna desnecessário ocupar-se com uma avaliação atenta ao artefato. Na mesma direção, o professor Nabil Bonduki (5), responsável por extensa pesquisa dedicada aos modelos, programas e empreendimentos habitacionais de interesse social em todo o país tampouco se ocupa com ajuizar o alcance estético de construções e por isso deixa em aberto o ponto de vista arquitetônico. Esses levantamentos originais têm importância inquisitiva, investigativa e histórica inegável, mas não constituem trabalhos voltados para o aperfeiçoamento da arquitetura. Podem tropeçar com autores competentes, como podem listar obras medíocres.
A idéia que se faz da arquitetura, longe de constituir juízo, apenas insinua concordância e aplaca divergências segundo impostura transformada num dos grandes entraves da arquitetura contemporânea brasileira. Pode se considerar que desde a década de 1960, auge da ideologização (6) do projeto e concomitante supressão do juízo estético moderno, até os dias de hoje a arquitetura brasileira enfrenta inconstância e se ressente de avaliação mais clara e fecunda. Tal condição – não importa se descuidada ou inevitável – também é responsável pela babel e pela escassez de resultados nas décadas recentes.
É o que acontece quando se mantém viva a crença que vê na contundência “brutalista” dos anos sessenta a evolução ou superação moderna e nela delira uma saída factível e promissora para a profissão, quando, ao contrário, deve entendê-la como alternativa insensata e encará-la como evasão ou retrocesso artístico: a inegável degradação e subterfúgio do artefato moderno. Ideologia que prolonga o impasse paulista. A confusão com critérios de avaliação não é apenas local, o fenômeno transtorna todo cenário internacional e pode ser compreendido quando considerados os imperativos a que se submete a produção de arquitetura. Na verdade, já faz tempo, a validação da arquitetura deixa de atender o juízo estético e resulta do prejuízo moral ou da conveniência publicitária e jornalística. Isso vem de longe se for aceito que grande parte da operação de Brasília emana da campanha promocional e política que precisa favorecer (7).
Também a arquitetura sensível à mudança social e que mitiga a vida dos segmentos desatendidos da população é aquela que recebe mais adesões e a que se torna mais fácil de elogiar. Por isso não é difícil entender porque a arquitetura de baixa renda tem constantes prerrogativas, mesmo quando o conjunto habitacional subverte a construção definitiva da cidade ou fica a dever um resultado formal e construtivo aceitável.
A sujeição ética da arquitetura pode ser vista como um dos grandes obstáculos à avaliação formal do artefato de arquitetura e serve também de fonte para o argumento que denuncia formalismo e alienação ao mesmo tempo em que omite preconceito e alheamento equivalentes aos alegados: seu próprio formalismo. Nas publicações, em nome da conscientização e segundo o discurso politizado, constata-se o critério publicitário – a necessidade de popularizar novidades e espetáculos: feitos desconhecidos e surpreendentes que apenas iludem, entorpecem e emocionam o homem comum. Exigências assombrosas impostas a um objeto dominado pelo heroísmo e autoria, mas aceitas como naturais e desejáveis na ação contemporânea e estimuladas há muito tempo no perfil do arquiteto brasileiro.
Edifícios selecionados
Os edifícios reunidos pela pesquisa provocam, num primeiro momento, a atenção do olhar porque expõem relações claras e possuem elementos desenhados segundo uma estrutura que acusa uma ordem categórica, também porque essa estrutura formal atua como pauta de um fechamento em painéis modulados e montados, ora com esquadrias de madeira, ora com esquadrias metálicas. Esses painéis constituem grandes caixilhos do tipo piso-teto que encerram quartos e salas muitas vezes com simples e eficazes mecanismos industrializados.
Neles, não comparecem decisões na fachada que sugiram associação aos estilos, figura, a priori ou modelo. Tem-se impressão que os elementos estão referidos ao arcabouço que constrói a forma abstrata e a forma material de maneira que, como no caso das grandes obras modernas, não se consegue separar a ação de formar da de construir, tampouco subordiná-las. Não há elementos desnecessários, nem arbitrariedade. Não há mediação entre as partes porque há precisão construtiva e as medidas justas correspondem a múltiplos, assim como os ambientes compartilham uma sucessão de quadriláteros regulares e íntegros a partir da laje que é seu retângulo maior, uma operação formal que os mais apressados identificam com a modulação. Critérios distributivos, sempre notáveis e sintéticos, que além de solucionar bem o problema funcional, explicitam escolhas definitivas de construção da forma. As obras escolhidas não provocam a atenção pelo exagero, discordância ou provocação, mas pela concisão, consistência e pertinência que, de imediato, o olhar detecta, e associa à estética moderna.
Os edifícios escolhidos, quase sempre apresentam manutenção insuficiente, mas coincidem com os concebidos segundo critérios estéticos modernos de conformação independentes da tradição clássica e da estética convencionada dos modelos de configuração e organização.
É possível considerar que essa arquitetura está concentrada num período determinado da história da construção da cidade de São Paulo. É previsível que essa arquitetura resulte de combinação particular de fenômenos e condições favoráveis e capazes de constituir uma hipótese consistente e afortunada de arquitetura, com atributos para conquistar o mercado com pertinência, clareza, eficiência e economia. A pujança produtiva de São Paulo e a conseqüente emergência de uma indústria de esquadrias baseada em réguas de madeira, o precoce e impressionante desenvolvimento de know-how construtivo e técnico para edifícios verticais em estruturas de concreto e o estágio mais elevado alcançado pelo desenvolvimento do projeto moderno que se aperfeiçoa e desenvolve segundo uma pauta visual e formal estritamente moderna que, com compreensível convicção, subestima o pretexto da inspiração e inventividade.
A arquitetura que desperta interesse está quase sempre nos bairros paulistanos formados na década de 1950 quando no mundo inteiro a arquitetura moderna constituída pelo esforço dos arquitetos empenhados no projeto moderno culmina depois de décadas de experimentação, tentativas e aprendizado. Uma arquitetura admirada por todos e responsável por conjuntos urbanos notáveis, mas que, no entanto, não é lembrada como exemplo, e ainda menos considerada como ponto de partida do projeto contemporâneo que, soberbo, arroga auto-suficiência sem mostrar resultado à altura.
Metodologia
Escolhidos segundo atributos reconhecidos visualmente, esses edifícios que se sobressaem pelas relações formais que explicitam e que dispensam o apelo expressivo, são procurados os processos legais em arquivo da PMSP (8). Invariavelmente o que se encontra são plantas, elevações e cortes definidos segundo critérios ordenadores escrupulosos e explícitos. As formas perimétricas são íntegras e os esquemas distributivos das unidades são concisos e ascendem a distribuição organizada e metódica do programa a uma condição estética irrecusável. É evidente que cumprem a exigência funcional e dimensional da unidade habitacional, mas surpreende como superam a simples organização da planta para apresentar uma resposta arquitetônica por intermédio de um processo de estruturação da forma universal e que coincide com a acuidade que o olhar detecta de imediato no artefato. Interessa ressaltar que esse processo é coletivo e que essa arquitetura não precisa de memoriais explicativos, interpretações nem de considerações conceituais para fazer entender com clareza as condições que ordenam e resumem.
Sobre o critério de implantação desses edifícios é possível fazer considerações no mesmo sentido. O posicionamento dos edifícios, muitos anos antes das teorias do “inclusivismo”, desmente a alegada incapacidade da ação moderna para relacionar o artefato na cidade existente (9). Atende a construção formal segundo o reconhecimento da estrutura da cidade e constituem experiências coletivas e visuais de ajuste, correção e construção dos espaços definidos entre objetos. A um maior gabarito corresponde o espontâneo recuo suplementar.
Estrutura e vedação: a esquadria Ideal
Entre os aforismos historiográficos mais difundidos da arquitetura moderna do século XX encontra-se o que afirma ser a nova estrutura dos edifícios seu feito inovador e determinante. Reproduzida ad nauseum em livros e aulas, a figura de Le Corbusier (1887-1965) com a perspectiva do protótipo da patente “dom-ino” de 1915 torna-se familiar para todos os alunos e é eficaz para ilustrar essa verdade. Improvável parece que um crítico explique que Le Corbusier vai precisar de mais dez anos para descobrir como transformar essa invenção construtiva num projeto com autêntico sentido moderno. Ao contrário da estrutura “dom-ino”, o Purismo de Amédée Ozenfant (1886-1966), a revista L’Esprit Nouveau (1920-1924) e a definitiva residência Cook de 1925 parecem dispor de menor importância para a história moderna do que determinismo material como sua principal causa.
A estrutura que recua e se descola da parede externa de fechamento, a possibilidade de compartimentar com independência – liberdade – da atribuição portante e a conseqüente e ininterrupta horizontalidade da fenêtre en longueur são os rasgos mais festejados dessa aparência que, quase sempre, acaba banalizada segundo a condição estilística e frívola da proposta estrutural. Em todo caso, parece que a estrutura se torna protagonista dessa arquitetura e por isso ninguém estranha quando os arquitetos, em sua homenagem e distinção, insistem num gênero de expressionismo estrutural análogo ao observado nas obras de engenheiros neogóticos do século XIX.
Le Corbusier com seu emblemático desenho enfatiza a incumbência do construtor de estruturas, ou a tarefa do engenheiro, e reforça a impressão de que o que aparece é a essência da arquitetura, aquilo que a metáfora torna fundamental, tal conjectura não é disparatada para os que rememoram a quantidade de construções desenhadas por arquitetos que como obras inacabadas, parecem ser interrompidas no instante em que constituem estrutura (10). Contudo, pode se temer o inverso, que seja arquitetura aquilo que está ausente na figura do arquiteto franco-suíço. Faz sentido a observação, pois a perspectiva ilustra uma patente estrutural de concreto e isso pode explicar o lapso de decisões arquitetônicas, naquele momento, após contato com a experiência de Auguste Perret (1874-1954) e assessoramento do engenheiro Max Du Bois, sabe como fazer a estrutura, mas ainda não está seguro de como acabá-la: preenchê-la e apresentá-la, basta como demonstração dessa desconfiança a fatal decepção dos que consultam os desenhos de casas em redents que exemplificam a utilização da estrutura (11).
Por causa desse desvio, deve passar despercebido o que a prática – a história da construção – transforma no grande tema da arquitetura moderna: a conseqüente possibilidade de industrializar, seriar e montar fechamentos leves de fachada, com equipamento e critérios modernos de construção. As técnicas de cladding cuja desatenção do meio construtivo brasileiro e de seus projetistas não recomenda sequer a definição de um termo técnico que expresse essa ação no país. Não se deve descartar que a crítica preconceituosa e contrária ao uso da cortina de vidro, uma solução típica em cladding, associada com certo preconceito – até aversão – do arquiteto com a produção industrial, tenha colaborado para o menoscabo desse destacado tema construtivo no meio brasileiro, para favorecer arquiteturas artesanais.
Alguns podem ficar horrorizados quando se sustenta que não corresponde à estrutura do edifício a etapa decisiva da arquitetura moderna, em todo caso, é necessário lembrar que não estão previstas a grandiloqüência nem a solenidade no conjunto das tarefas modernas. Dada sua característica dimensional, seu peso e tantas condicionantes e circunstâncias, a estrutura restringe o design e a intervenção industrial com suas concomitantes técnicas de montagem. Há limites intransponíveis para a pré-fabricação de estruturas, com exceção feita à técnica metálica de perfis amparada na soldagem de componentes (12).
Ao contrário, os fechamentos leves e modulados para edifícios, correspondem àquilo que melhor se adapta à industrialização, pré-fabricação e montagem no canteiro. Correspondem, portanto, às etapas construtivas que se destacam da construção convencional e arcaica e, por esse motivo, são a escolha mais coerente que o arquiteto pode dar ao projeto do edifício moderno.
O eixo deste argumento não é hipotético ou condicional, dos que imagina como as coisas devem ser. Na verdade, um número grande de arquitetos paulistanos na década de 1940 e 1950 entende com naturalidade e convicção o potencial dos fechamentos leves e vêem nessa organização do projeto a atitude moderna aderente e conforme que confirma a arquitetura como um feito baseado em pauta comum que todos podem entender. De um lado, a indústria de esquadrias de madeira – Collavini & Cia Ltda. Carpintaria Ideal – e, do outro lado, a notável interpretação da parte dos arquitetos corresponde a essa irreprimível e fecunda resposta coletiva e moderna em que formar e construir superpõem-se como ações congruentes.
Apesar do resultado extraordinário e conseqüente que esses painéis apresentam e prometem, não tarda, os mesmos arquitetos que os utilizam, voltam seu interesse para a estrutura exposta, inclinada, torcida e musculada (13), como quem reabilita o desenho “dom-ino” ou imita o arquiteto mais famoso, para extrair conclusões posteriores à Segunda Guerra Mundial que não estão previstas no texto original da arquitetura moderna. A causa pode ser encontrada na evidência de que arquitetura brasileira da década de 1950 atesta completo êxito e recepção favorável ao malabarismo e ao excesso figurativo que popularizam e difundem a acepção moderna aplanada e pretensiosa que culmina na cidade de Brasília. Não é difícil sustentar que após detectar a fortuna expressiva da arquitetura moderna brasileira, sua popularização (14) e a fama de seu precursor, a maioria dos arquitetos, sejam cariocas ou paulistas, se bandeia para essa modalidade (15), na busca de reconhecimento.
Nesses edifícios, antes da debandada, o resultado estético dos painéis segundo estruturas lineares que compõem as fachadas, como apontado antes, inclusive as plantas correspondem a um projeto de arquitetura elevado que representa o que de melhor a arquitetura paulistana tem para mostrar.
O tipo de esquadrias Ideal mais difundido é aquele que funciona com abertura do tipo “guilhotina” com folhas deslizantes e contrapesadas. Por esse motivo sua dimensão vertical coincide e está ajustada à medida piso-teto disponível entre as lajes dos edifícios de apartamentos em que se verifica seu maior índice de utilização. Essa característica do mecanismo com cabos de aço faz com que bandeira e peitoril das janelas façam parte do conjunto e sejam executados com venezianas ou com chapas de aglomerado de madeira e assim constituam painéis regulares ajustados com precisão entre vãos. Essa condição encerra vantagens formativas excepcionais para as fachadas dos edifícios, pois iludem a figura da janela e a conseqüente perfuração da parede e oferecem elementos fabricados como painéis que definem planos quadriláteros regulares completados com alvenarias íntegras e, quase sempre, constituem o terceiro elemento de um sistema construtivo definido pelas espessuras da estrutura vertical e horizontal, pelos planos de alvenaria revestidos com pastilhas e pelos próprios painéis de madeira pintada ou envernizada. Não é sempre que um conjunto construtivo alcança resultado estético e construtivo tão apropriado, raro é contar resultados negativos com a integração desses elementos.
O abandono das esquadrias Ideal, de solução industrializada para arquitetura, não retirou a importância dos desenhos de caixilharia entre os arquitetos. Continuaram a ser propostos desenhos engenhosos para os caixilhos, porém parece provável que se percam as vantagens ordenadoras para dar lugar a propostas mais intrincadas e certamente especiais e exclusivas. A caixilharia de folhas gigantescas da segunda residência Bittencourt, a caixilharia da FAUUSP ambas dos arquitetos Artigas e Cascaldi, além das folhas gravitacionais de Paulo Mendes da Rocha nas residências do Butantã e Pacaembu são os melhores exemplos (16).
O edifício de apartamentos
Uma parte importante dos exemplos selecionados corresponde a edifícios verticais. Um tema de arquitetura que os próprios arquitetos evitam por ser associados, de imediato, à produção comercial voltada para o lucro, sem qualquer atributo artístico e interesse arquitetônico. É evidente que existem péssimos edifícios e é certo que ao perder esse tipo de encargo para esquemas de projeto mais pragmáticos e menos exigentes, há grande quantidade de construções sem qualquer atributo. Por outro lado é notável o aumento da quantidade de edifícios desenhados por arquitetos reconhecidos que procuram diferenciar-se do lugar comum acabam por propor edificações pretensiosas, caras e, inclusive, ineficientes. Críticos e arquitetos simplificam o problema quando defendem que a banalidade da arquitetura comercial coincide com baixa estima estética (17) e constitui o principal problema a ser combatido com inventividade ou soluções plásticas excessivas, exageradas, quase sempre desentendidas com aspectos construtivos e materiais do projeto. É comum retornar a uma acepção estética comprometedora e precoce, de aparência pomposa e magnificente, para marcar a intervenção e destacar o profissional arquiteto.
Há preconceito por parte dos arquitetos com respeito ao tema dos edifícios de moradia verticais, talvez essa crítica se estenda para todos os tipos de edificação vertical invariavelmente interpretada como tipo do interesse do mercado imobiliário ou como programa comercial que não permite uma resposta isenta do arquiteto. Parecem raros os cursos de projeto das escolas de arquitetura dedicados a edifícios em altura que estudam e solucionam problemas específicos de estrutura, de transporte vertical, de segurança, de conforto e de fechamento e vedações. Dá a impressão que para os acadêmicos das escolas de arquitetura os edifícios verticais danificam com seus gabaritos as cidades e que seus projetos são providos por profissionais levianos ou mercantilistas.
Os edifícios relacionados e construídos entre as décadas de 1940 e 1950 expõem um panorama diverso. Um conjunto importante de arquitetos bem preparados, com muito sentido profissional e atitude anônima, é encarregado por promotores para atuar no mercado de projetos habitacionais. São arquitetos que aplicam uma noção de arquitetura moderna ponderada, mas potente, nova e conseqüente, com reconhecido e invejado êxito estético e prático. Anos em que bons arquitetos trabalham no mercado sem que isso implique em concessão ou aviltamento. Bairros paulistanos inteiros resultam desse tempo e causam admiração. Não é ingênuo considerar que o sucesso e a demanda de tantos arquitetos estejam relacionados com uma proposta de arquitetura apropriada, factível e respeitada por empreendedores e proprietários. É improvável que essa relevância coletiva e profissional dependa de sorte ou de outra circunstância que não seja essa experiência oportuna e desenvolvida, a mesma que coincide com o período em que a arquitetura moderna internacional alcança seu nível mais elevado. É impressionante também que tantos arquitetos reconheçam o valor artístico e superior dessa produção, ao mesmo tempo em que respondem com a moda ou o estilo para convencer clientes e tocar seus escritórios.
Epílogo
Repassar a lista dos edifícios algum tempo depois para fotografá-los, proporciona a chance de verificar a propriedade das escolhas e reconsiderá-las, já que a foto responde, por intermédio de uma seleção mais escrupulosa, a um ponto de vista e a um recorte capazes de explicitar atributos da forma e solvência construtiva. Fotografar exige ainda mais esforço visual. Por isso, alguns edifícios escolhidos vistos depois não resistem ao esclarecimento formal que a maior exigência visual impõe. Alguns edifícios são assim, encantam à primeira vista pelo jeito moderno das fachadas com estruturas livres e sem qualquer menção à simetria ou hierarquia clássica. No entanto vistos com cuidado, muitas vezes, deixam a dever e suas partes ameaçam explicitar descontinuidade e desproporção da concepção e construção do edifício. Por outro lado, há os que resistem sempre e se tornam mais e mais persuasivos. Esse é um esforço coletivo, ininterrupto e obrigatório numa cultura que tem a pretensão de produzir arquitetura sobresselente.
notas
Veja os desenhos dos projetos pesquisados
1
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. “Arquitetura pequena: quando simplicidade e correção substituem a genialidade”. Óculum, n. 3. Campinas, FAU PUC-Campinas, mar. 1993, p. 72-80. O ensaio chama a atenção para a impreterível espetaculosidade da arquitetura do final do milênio. Esse fenômeno direciona a ação dos arquitetos que passam a projetar com a obrigação de inventar, de provocar, até extasiar, não mais um observador, mas uma multidão tão desinformada e alienada que só quando chocada ou submetida ao exagero reage e admite estímulo. Esse fenômeno também propicia a escolha na história da arquitetura de um catálogo de exemplos que confirma essa ideologia e identifica resultados diferenciados, como defende, devem ser as obras dos arquitetos. Em conseqüência, o arquiteto despreza o artefato simples, econômico, eficiente e correto, pois não lhe cabe mais acreditar que a concepção concisa e discreta seja oportuna, ou portadora de atributos estéticos importantes, daí o pouco caso por essa arquitetura vista como “pequena”. Isso é favorecido porque a noção estética manejada é a mais convencional, empática e inacabada, pretende medir arquitetura moderna como se faz história da arquitetura do século XVIII ou XIX, segundo as dúvidas do gosto. Deve ser por esse motivo que a arquitetura da segunda metade do século XX retorna ao tema do estilo e reproduz equívocos análogos aos do antigo ecletismo artístico, com suas inúmeras “vertentes” acobertadas por essa insuspeita e comemorada “diversidade” do fim do século – fin de siècle – XX.
2
Ver as três compilações dos Documentos de arquitectura moderna en América Latina, 1950-1965, organizadas pela professora Teresa Rovira, da disciplina Proyectos Arquitectónicos “La forma moderna”, do curso de pós-graduação da ETSAB-UPC. Esse importante trabalho aproveita a demanda de alunos latino-americanos pelo curso do terceiro ciclo em Barcelona e a conseqüente emergência de teses sobre a arquitetura desses países para apresentar inesperada quantidade de destacada arquitetura moderna que está à margem dos livros oficiais de história ou não se encaixa nos critérios de avaliação dominantes. Também o professor Helio Piñón do mesmo grupo de pesquisa tem publicado diversos livros de arquitetos modernos latino-americanos desprezados em seus países.
3
BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1981. Corresponde ao modelo interpretativo mais celebrado, acatado e reproduzido para explicar a arquitetura moderna brasileira. Nele, o cenário carioca e o paulistano partilham méritos e originam “escolas” para acomodar a vasta e imprecisa noção moderna brasileira. A preferência pela empatia e por uma arquitetura espetaculosa e expressiva é explicita. Essa versão costura divergências locais com hipóteses artísticas originadas no ambiente crítico internacional para acomodar personagens muito diversos, além de afirmar uma hipótese progressiva para a condição moderna que inibe qualquer desconfiança quanto ao seu retrocesso ou afastamento dos princípios modernos fundamentais. Impressiona que essa emaranhada epopéia tenha sido concebida em tão pouco tempo por um paleógrafo francês.
4
SAMPAIO, Maria Ruth Amaral de (Org.). A promoção privada de habitação econômica e a arquitetura moderna 1930-1964. São Carlos: RiMa, 2002.
5
BONDUKI, Nabil. Origens da habitação social no Brasil. Estação Liberdade / FAPESP, São Paulo, 1998,
6
A ideologização no campo da arquitetura brasileira antecipa em uma década os atos que vão desestabilizar o legítimo processo político brasileiro depois de 1964. É comum ver submetida a condição da arquitetura brasileira moderna à instabilidade da exceção política. É mais provável que importantes decisões e o próprio destino da arquitetura moderna brasileira sejam decididos em meados da década de 1950, por decisão e responsabilidade dos arquitetos e segundo interpretação daquilo que chega do exterior.
7
Stanislaus von Moos emprega a perspicaz expressão “gigantesca operação midiática” para referir-se ao canteiro de obras de Brasília na palestra intitulada “Notas sobre a retórica do canteiro: a cidade como processo” no 7º seminário DO.CO.MO.MO – Brasil na UFRGS – Propar, Rio Grande do Sul, outubro de 2007. O palestrante chama a atenção para a impressionante quantidade de fotógrafos famosos que documentam o canteiro de Brasília. Moos sustenta que a propaganda estatal desse canteiro tenha sido uma das mais ostensivas da arquitetura moderna no século XX.
8
Em períodos diferentes, são colaboradores desta pesquisa: Jaime Cunha Júnior, arquiteto pela Escola de Arquitetura e Urbanismo da UNIP e mestre pela FAUUSP, e Leonardo Musumeci, arquiteto e aluno da pós-graduação do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da EESC-USP. O primeiro cuida da obtenção de todos os processos com os desenhos de prefeitura nos arquivos da PMSP e monta a primeira parte dos projetos com programa de arquivo DWG. O segundo completa os desenhos e faz as correções e edição final de todos os desenhos e da apresentação.
9
ESPALLARGAS GIMENEZ, Luis. Oscar Niemeyer: a arquitetura renegada na cidade de São Paulo. Cadernos de Arquitetura Ritter dos Reis, v. VI, 2008. O texto aponta os atributos urbanos da arquitetura de Niemeyer no período na primeira metade da década de 1950 que antecede sua dedicação à criação da cidade de Brasília.
10
Por exemplo, a residência de praia Lovell, em Newport Beach, Califórnia, de 1926 do arquiteto Richard M. Schindler. Talvez o monopólio do concreto aparente em certos períodos constitua um expediente para iludir etapas construtivas posteriores e reforçar o império estrutural no desenho de arquitetura.
11
BOESIGER, Willy; STONOROV, Oscar. Le Corbusier et Pierre Jeanneret. Œuvre compète 1910-1929. Zurique: Girsberger, 1937, p. 23-26. Os desenhos que se seguem à descrição do célebre sistema estrutural de 1915: o “loteamento dom-ino”, as inábeis plantas das unidades e as perspectivas classicistas mostram evidente dificuldade do arquiteto para elaborar uma solução moderna. A “Villa Cook”, p. 130-35, em Boulogne-sur-Seine em Paris, de 1926, é considerada por muitos a primeira solução moderna de Le Corbusier.
12
De qualquer maneira, é um tema promissor para pesquisa entender como a estrutura de uma construção limita ou dificulta sua possibilidade de industrialização. A axonometria da estrutura “dom-inó” de Le Corbusier, em 1915 deve ser comparada com os desenhos isométricos da tradicional ballon framing usada na construção dos EUA e da sua evolução para a estrutura platform framing, na qual o robusto elemento estrutural vertical que concentra carga é substituído por painéis periféricos que recebem e distribuem cargas das vigas, tornando a construção do arcabouço homogênea e industrializada, Essa evolução aponta para o desaparecimento dos elementos verticais de estrutura e para sua substituição por painéis leves mais fáceis e adequados ao processo de industrialização e montagem.
13
Artigas e Cascaldi desenham importante elevação nordeste no Edifício Louveira, em 1946, um dos poucos projetos de edifício habitacional para a iniciativa privada. Apesar disso, chama a atenção quando cronistas preferem referir-se à fachada oposta de serviço com galeria em que uma escada dupla socorre e expõe níveis desencontrados. Apesar de não serem compostas por esquadrias de madeira as precisas fachadas do edifício Eiffel de Oscar Niemeyer, de 1951-52, dão testemunho desse deslocamento ao considerar que nessa época se iniciam experiências com pilares “V” e “W” na cidade de Belo Horizonte e também na Galeria Califórnia, de 1952-54, na cidade de São Paulo.
14
ORTEGA Y GASSET, José. A desumanização da arte. Lisboa, Codex, 1996.
15
As experiências expressivas, cariocas ou paulistanas, atraíram quase todos os arquitetos. Poucos resistem à pressão do traço brasileiro sedutor ou heróico, nem mesmo o arquiteto Rino Levi que mantêm por muito tempo uma trajetória autônoma e coerente com princípios mais escrupulosos da arquitetura acaba por capitular em suas últimas obras e seu escritório desenha os edifícios habitacionais Gravatá, 1964, e Araucária, 1965, ambos na Avenida Nove de Julho, na cidade de São Paulo, influenciados pela hegemonia da expressão estrutural combinada com o puritanismo heróico.
16
FONYAT, José Bina. Veneziana e vidro: a ocorrência. Acrópole, n. 251, São Paulo, 1958, p. 384-412.
17
“Yet it was not wholly chauvinism, I believe, that led me to the conviction, based at first only on what I saw in one weekend in one of fifty states – I have since seen work of equal interest in other states, all the way from Le Corbusier’s Carpenter Center at Harvard University in Massachusetts to Goldberg’s Marina City in Chicago and Johnson’s Sheldon Art Gallery in Lincoln, Nebraska – that the continuing American building boom, far from producing chiefly quantity and monotony in curtain-walled construction as was to an uncomfortable extent true in the 1950’s, now offers a great variety of interest as the combined production of the four northerly European countries.” (Henry Russell Hitchcock, no artigo Connecticut, U.S.A., in 1963, revista Zodiac 13, Milão:Edizioni di Comunità, maio de 1964).
“Apesar de acreditar não ter sido exclusivamente o chauvinismo, aquilo me levou a convicção, baseada primeiramente apenas no que vi em um fim de semana em um dos cinqüenta estados americanos – desde então tenho visto obras de igual interesse em outros estados, desde o Carpenter Center da Universidade de Harvard de Le Corbusier em Massachusetts até as torres da Marina City de Bertrand Golderberg em Chicago e a Sheldon Art Gallery de Philip Johnson em Lincoln, Nebrasca – de que o contínuo boom de construção americano, longe de produzir prioritariamente quantidade e monotonia de construções em “pano de vidro” como na embaraçosa situação constatada na década de 1950, agora oferece uma grande variedade de interesses, em linha com a produção conjunta dos quatro países escandinavos [que visitei há pouco].”
Neste fragmento otimista e com expectativa renovada, diversa da má impressão que causa a produção americana da década de 1950, o mentor do “estilo internacional” e da “regularidade” em 1932, considerados os exemplos, se junta ao coro dos que defendem a arquitetura como a arte exagerada e emocionante.
bibliografia complementar
BILL, Max. Le Corbusier & P. Jeanneret- Œuvre complete 1934-1938. Zurique: Les editions d’Architecture, 1964.
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sobre o autor
Luis Espallargas Gimenez, arquiteto e professor doutor do CAU:EESC:USP e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo USJT