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architexts ISSN 1809-6298

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português
Este estudo sobre a cidade modernista de Angélica (MS), projetada por Jorge Wilheim em 1954, analisa as mudanças ocorridas na cidade em relação a seu plano original: aumento da conectividade; aproximação de usos; e abandono de tipologias modernistas

english
This study about the modern city of Angélica, designed by Jorge Wilheim in 1954, examines the changes produced in the city compared to the original plan, concerning connectivities, the changes on the use and the building of non-modern typology

español
Este estudio analiza la ciudad moderna de Angélica, proyecto de Jorge Wilheim en 1954, y los cambios producidos en el plan original: el aumento de conectividades, los tipos de usos y el rechazo a las tipologías modernistas


how to quote

SABOYA, Renato Tibiriçá de. Permanência e Renovação da Morfologia Urbana Modernista. Um Estudo de Caso sobre Angélica – MS. Arquitextos, São Paulo, ano 11, n. 121.05, Vitruvius, jun. 2010 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.121/3448>.

Introdução

Angélica é um município de aproximadamente 7.300 habitantes (Fonte: IBGE) localizado no Estado do Mato Grosso do Sul, a 260Km da capital Campo Grande (Fig. 01). A área total do território do município é de 1.273Km2. Sua economia baseia-se na pecuária, especialmente bovinos e, em menor escala, na lavoura do café. O município apresenta alta taxa de analfabetismo, em torno de 16%. A área urbana do município possui aproximadamente 5.500 habitantes, que vivem, em sua maioria, em função das atividades agropecuárias desenvolvidas na área rural.

Fig. 01 – Localização da área de estudo [Google Earth]


Em 1954, o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim foi convidado pela família Neder, de Campo Grande, para fazer o projeto de uma nova cidade. Eles possuíam uma grande gleba de 13.600 hectares localizada em Dourados (MS, na época ainda MT) e tinham um projeto para a criação de pequenas glebas de 24 ha destinadas à exploração do algodão e, principalmente, do café (1). Angélica seria o núcleo urbano que prestaria suporte a essas atividades e onde residiriam os proprietários rurais.

Dessa forma, foi desenhado o plano da cidade, baseado nos princípios modernistas de Le Corbusier, bem como nas cidades-jardins inglesas e na Broadacre City de Frank Lloyd Wright (2). Entretanto, o projeto de colonização não foi levado adiante e a cidade, apesar de construída conforme o projeto original, desenvolveu-se de forma autônoma, o que resultou numa taxa de crescimento menor do que a prevista inicialmente (o projeto foi elaborado para 15.000 pessoas). Somente em 1976, esse núcleo urbano tornou-se município, através da Lei Estadual n.3691.

Apesar de ser a primeira cidade modernista do Brasil, Angélica permanece desconhecida da grande maioria dos brasileiros, especialmente em comparação com outras propostas de urbanismo modernista realizadas à época, tais como alguns planos diretores de cidades universitárias, de centros administrativos e mesmo parques e áreas de expansão residencial, dos quais são exemplos a proposta para a Universidade do Brasil, e do CTA em São José dos Campos, este último de Niemeyer, e a proposta de Lúcio Costa para o centro administrativo de Salvador (3).

Sendo assim, algumas questões sobre essa experiência serviram de motivação ao presente estudo, podendo ser sintetizadas da seguinte forma:

Q1) Até que ponto o projeto original obedece aos princípios do modernismo?

Q2) A partir da implementação do projeto original, o que mudou e por que tais alterações foram feitas?

Q3) Como é o desempenho atual dos elementos modernistas que foram mantidos do projeto original?

Metodologia

A metodologia utilizada para a realização deste trabalho envolveu, inicialmente, uma revisão bibliográfica para estudar o Urbanismo Modernista, com vistas a melhor entender seus postulados e seus conceitos, bem como as suas origens. Foram revistas também as críticas feitas ao modernismo, como forma de estabelecer um contraponto auxiliar na elaboração das hipóteses de trabalho.

Em seguida, foi realizado um levantamento em campo, que envolveu registro fotográfico das áreas de interesse, medições, observação direta sobre os aspectos de interesse (nível de apropriação dos espaços públicos, intensidade de utilização das vias, localização dos usos e atividades, modificações na configuração, etc.) e conversas informais com moradores e funcionários da prefeitura municipal.

Essas informações, posteriormente, foram compiladas para subsidiar a análise e as conclusões alcançadas.

Urbanismo modernista

O Urbanismo Modernista surgiu como uma reação à cidade capitalista, resultante do intenso processo de urbanização da Revolução Industrial, e foi influenciado por ideias e conceitos defendidos por autores que propuseram alternativas à ocupação desenfreada desse período. Entre eles, estavam Tony Garnier, Fourier, Robert Owen e Ebenezer Howard. Le Corbusier é, entretanto, incontestavelmente a figura mais influente do pensamento modernista.

A partir de uma leitura da Carta de Atenas, bem como de uma análise das propostas de Le Corbusier, é possível tentar elaborar uma síntese de seus princípios mais importantes, os quais serão tratados a seguir. Tais princípios serão utilizados mais adiante para avaliar se – e em que medida – o projeto original de Angélica é realmente modernista.

Princípio 1: Universalidade e racionalidade

Le Corbusier acreditava que a racionalidade deveria guiar o desenho das cidades e que, além disso, os seres humanos compartilhavam necessidades semelhantes, independentemente da origem, da cultura ou da localização geográfica. Por isso, as cidades deveriam seguir, todas, os mesmos princípios básicos.

Princípio 2: Altas densidades com aumento das áreas verdes

O Urbanismo Modernista defendia a combinação de altas densidades, especialmente nas áreas centrais, com grandes áreas verdes, mediante a construção em altura. Dessa forma, seria possível alcançar altas densidades ao mesmo tempo em que haveria maior quantidade de áreas livres para o desempenho de atividades públicas e para a circulação de veículos e pedestres (4).

Princípio 3: Aversão à rua tradicional e fluidez do trânsito de veículos

Segundo Le Corbusier, a rua tradicional era um espaço enclausurado por causa das dimensões estreitas da sua largura em contraste com a altura das edificações. A solução seriam edifícios recuados em relação às vias, bem como a separação entre veículos e pedestres. O número de cruzamentos deveria ser diminuído, o que seria alcançado pelo aumento dos tamanhos das quadras, que passariam a ter 400m em cada lado.

Princípio 4: Separação e segregação de usos

Uma dos principais características do pensamento de Le Corbusier, e que maior influência teve no Urbanismo, foi a da separação entre as principais funções da cidade. Ele defendia que “As chaves do urbanismo estão nas quatro funções: habitar, trabalhar, recrear-se (nas horas livres), circular” (5). As três primeiras funções deveriam estar localizadas em setores específicos determinados por um plano, e ligadas pela quarta função: circulação. Le Corbusier adotou também o conceito de unidade de vizinhança. Em síntese, a unidade de vizinhança reconhece a necessidade de que as áreas habitacionais tenham acesso facilitado a certos tipos de comércio do dia-a-dia e que, portanto, esses comércios devem estar localizados próximos a elas. As viagens mais longas seriam necessárias apenas para acessar comércios e serviços mais especializados, bem como os locais de trabalho.

As críticas ao Urbanismo Modernista

Muitos são os autores que, de uma maneira ou de outra, criticaram o Urbanismo Modernista. Neste trabalho, por questões de espaço, vamos nos ater a revisar brevemente apenas uma delas, provavelmente a mais influente: Jane Jacobs. Segundo ela, o caminho para cidades mais interessantes passava por um conceito fundamental para a cidade: a diversidade. Quatro eram as condições básicas para que uma área urbana tivesse diversidade:

a) Usos principais combinados. O distrito, ou o bairro, deve atender a mais de uma função principal e, de preferência, a mais de duas. Essas funções devem garantir que as pessoas saiam de casa em horários diferentes e estejam na rua por motivos diferentes.

b) Quadras curtas. A maioria das quadras deve ser curta, para permitir diversas opções de trajetos. Quadras curtas facilitam as interações entre os moradores de ruas adjacentes, assim como o surgimento de pequenos comércios nas esquinas.

c) Idades diversas. O bairro deve ter uma combinação de edifícios com idades variadas e incluir uma boa parcela de prédios antigos.

d) Altas densidades. Deve haver uma densidade suficientemente alta de pessoas, porque a densidade pode sustentar usos mais especializados e, com isso, contribuir para a diversidade.

Jacobs (6) valorizava também as ruas enquanto elementos importantes no tecido das cidades. Sua configuração, segundo ela, poderia contribuir bastante para o surgimento e a manutenção da vida urbana. Para isso, algumas condições devem ser atendidas:

a) Deve ser nítida a separação entre o espaço público e o privado. Isso era uma crítica direta à tipologia modernista de edifícios sobre pilotis dispostos sobre áreas públicas, por onde todos poderiam circular livremente. A falta de privacidade e a proximidade forçada por esse tipo de configuração prejudicariam as possibilidades de trocas sociais.

b) Devem existir os “olhos da rua”. As edificações que abrigam as residências, comércios e demais atividades urbanas devem abrir-se para as ruas, de forma que as pessoas possam olhar para ela desde o seu interior.

c) A calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente. Isso funciona tanto para aumentar na rua o número de olhos atentos, quanto para incentivar quem está dentro das edificações a observar a rua.

1. Angélica: uma cidade modernista

1.1. O projeto original

A proposta urbanística para Angélica foi claramente inspirada pelos princípios do urbanismo modernista, vistos acima. Nela, estão presentes a separação de usos, o conceito de unidade de vizinhança, edifícios isolados distribuídos em grande áreas abertas, e uma certa segregação, ainda que não tão intensa, entre o tráfego de veículos e pedestres.

Os usos estão claramente separados em áreas destinadas ao comércio, à habitação, às indústrias, ao centro cívico e ao lazer (Fig. 02). O comércio está localizado na porção oeste, curiosamente de forma não central ao conjunto como um todo. Aparentemente este local era destinado aos usos mais especializados, e não ao comércio do cotidiano, que teria seu lugar reservado nas superquadras.

Fig. 02 – Proposta original para Angélica – MS [Adaptado de Wilheim (2003)]


As áreas habitacionais, por sua vez, estão conformadas em unidades de vizinhança, compostas por dois conjuntos de vias sem saída que terminam junto a um espaço aberto central que tem como função abrigar usos de lazer e institucionais (igrejas, clubes, escolas, postos de saúde, locais de piquenique) (7). Diferentemente do que pregava Le Corbusier, neste caso as habitações estão previstas em lotes isolados, e não em habitações em fita de alta densidade (Fig. 03).

Essas áreas verdes deveriam ser conformadas de maneira contínua em cada superquadra, e seriam complementadas pelo comércio de vizinhança em uma de suas extremidades. Dessa forma, haveria uma certa integração e continuidade, no sentido longitudinal, entre as áreas verdes de duas superquadras adjacentes.

Os usos industriais ficariam localizadas no extremo leste da cidade, bastante próximos aos usos comerciais. Isso também está em desacordo com a visão modernista, que em praticamente todas as suas propostas previa extensos cinturões verdes separando os usos industriais das porções mais centrais da cidade.

Fig. 03 – Superquadras residenciais [Adaptado de Wilheim (2003)]


Fig. 04 – Centro Cívico e superquadras [Adaptado de Wilheim (2003)]


Os usos institucionais, por outro lado, são os que mais fielmente obedecem aos princípios modernistas. Os principais (Prefeitura, igreja) estavam previstos em uma ampla área aberta, denominada Centro Cívico, juntamente com hotéis e feiras, dispostos em edificações isoladas que se espalhariam como objetos sobre a superfície verde (Fig. 4). Há aqui uma clara intenção de conferir maior hierarquia a esse espaço, indicada por:

a) Uma configuração distinta daquela adotada para o resto da cidade, que se desenvolve na sua maioria em edificações localizadas em lotes individuais;

b) Um aumento na escala dos espaços abertos, o que reforça a sensação de formalidade do espaço e seu caráter simbólico (7);

c) Posição central no conjunto da cidade, dividindo-a ao meio e separando os usos comerciais dos usos residenciais.

Outros usos institucionais (corpo de bombeiros, cadeia, quartel e hospitais) estariam em áreas institucionais adicionais localizadas mais ao sul, assim como as áreas de preservação, tais como o Jardim Botânico e uma mata natural a ser preservada. Os usos de lazer estariam concentrados ao norte, reunindo a praça de esportes e espaços de recreação.

O sistema viário, por outro lado, não é inteiramente modernista. Primeiro, porque a separação entre pedestres e veículos não é tão acentuada quanto o defendido por seus teóricos; segundo, porque não evita com tanta veemência os cruzamentos entre as vias, nem utiliza passagens em nível. Sua forma é, em essência, ortogonal, o que foi permitido pelo relevo plano da região. Com relação à hierarquia, esta possui vias arteriais cortando todo o tecido, especialmente no sentido leste-oeste, funcionando como vias de penetração do setor das superquadras. A importância de tais vias tenderia a ser reforçada por um eventual crescimento linear na direção leste, conforme indica o plano original, o que aumentaria a quantidade de pessoas a serem servidas por essas vias de circulação.

Há no projeto a intenção de evitar o fluxo de veículos no “interior” das superquadras, uma vez que estas estão conformadas em pares de vias locais sem saída. Esse interior, portanto, seria acessível apenas ao pedestre. Chama a atenção também a criação de vias exclusivamente de pedestres no setor comercial, criando, em conjunto com as vias convencionais, dois sistemas relativamente independentes de circulação.

As densidades previstas também não estão de acordo com os ideais modernistas. Tanto as áreas residenciais quanto a área comercial preveem lotes isolados e de dimensões reduzidas, o que induz à ocupação de baixa altura e baixa densidade, ao contrário das ocupações em altura previstas pelo modernismo.

Após esta análise do projeto original, é possível elaborar algumas hipóteses a serem testadas neste trabalho. Adotando como base teórica os trabalhos de autores que criticaram os preceitos do Urbanismo Modernista, em especial Jacobs (9), esperávamos que muitas modificações houvessem sido feitas ao projeto original ao longo desses 55 anos de história da cidade. Conforme indicam vários resultados empíricos (10; 11; 12; 13), espaços modernistas tendem a ser apropriados pela população de forma diferente da esperada, muitas vezes sofrendo modificações estruturais que os reaproximam a configurações mais “tradicionais”. Sendo assim, as hipóteses foram no sentido de a) prever um certo “retorno” a características mais tradicionais dos tecidos urbanos, quando possível, tais como mistura de usos e proximidade entre os fluxos de veículos e pedestres; e b) esperar espaços abandonados e/ou degradados nas áreas que ainda mantiverem sua característica modernista original.

As hipoteses elaboradas são as seguintes:

H1) As superquadras não funcionariam como unidades autônomas, como previsto: especificamente, o comércio de vizinhança não teria se estabelecido, ou, ao menos, não da forma como foi projetado, voltado para o interior da superquadra;

H2) Haveria maior mistura de usos do que foi previsto no projeto original, com os comércios seguindo a hierarquia das vias e de fluxos, e não as zonas pré-estabelecidas inicialmente;

H3) Os espaços livres internos das superquadras estariam mortos, sem utilização, ou teriam sido convertidos em outros usos;

H4) As vias de pedestres do setor comercial seriam lugares segregados, provavelmente marginalizados e sem utilização;

H5) O Centro Cívico seria um espaço árido, com pouca apropriação por parte da população, causada sobretudo por suas grandes dimensões, proporcionais a uma escala monumental, gerada pelas amplas áreas abertas e edificações isoladas;

1.2. Angélica atual: uma análise

A forma geral da cidade manteve-se, basicamente, a mesma do projeto original. Na foto aérea é possível perceber que o traçado original e o formato das quadras e dos lotes manteve-se praticamente o mesmo. Entretanto, uma observação mais cuidadosa mostra que muitos aspectos foram modificados, conforme será explorado a seguir.

O uso do solo

A maior modificação feita em relação ao plano original foi, provavelmente, no uso do solo. Logo ao entrar na cidade fica claro que não há separação de usos em setores próprios. O comércio se espalha por quase toda a cidade e penetra nas áreas residenciais da mesma forma que nas cidades “tradicionais” (Fig. 5). O comércio vicinal previsto para as unidades de vizinhança não vingou. Essas áreas permanecem vazias ou foram ocupadas por usos residenciais ou institucionais.

Fig. 5 – Esquema do uso do solo atual [Adaptado de Wilheim (2003)]


A Av. Mario Carrato é emblemática (Fig.s 6, 7 e 8). Prevista para ser apenas residencial, vem apresentando uma tendência de transformação para uso comercial, provavelmente como resultado da densificação do seu entorno e do papel importante que desempenha como eixo de ligação da parte mais antiga, situada a oeste, com a parte leste da cidade.

Fig. 6 – Localização esquemática da Rua Mario Carrato, principal eixo de expansão atual do comércio da cidade


Fig. 7 – Foto da Rua Mario Carrato
Foto Renato Saboya


Fig. 8 – Foto da Rua Mario Carrato
Foto Renato Saboya


O setor comercial, por sua vez, acabou resumindo-se basicamente à Rua Stefan Dudas (Fig. 09), central com relação ao setor mas não com relação à cidade. Ali estão concentradas as lojas de roupas, farmácias, videolocadoras, bares, restaurantes, além de alguns comércios maiores. Pela Fig. 10, é possível perceber a maior intensidade do comércio nessa rua.

Fig. 9 – Configuração e localização esquemática da Rua Stefan Dudas, principal eixo de comércio da cidade


Fig. 10 – Foto da Rua Stefan Dudas
Foto Renato Saboya


Um aspecto da história da cidade ajuda a entender a concentração de comércio nessa via. Inicialmente, o núcleo urbano de Angélica localizava-se na área que corresponde ao Setor Comercial do projeto original. Nessa época, portanto, essa rua era central em relação ao conjunto da cidade, e era efetivamente a mais conectada e a mais acessível. Com o crescimento, entretanto, essa condição foi se modificando, ficando a Rua Stefan Dudas cada vez mais deslocada em relação ao centro e menos acessível em relação à cidade como um todo. Assim, a dinâmica da cidade encarregou-se de criar centralidades lineares dispersas pela malha urbana, concentrando-se principalmente ao longo das vias de maior fluxo, o que aproximou o comércio das áreas habitacionais.

As atividades administrativas, por sua vez, estão, ao contrário da intenção original, espalhadas pela malha urbana, conforme pode ser verificado na Fig. 11. O Centro Cívico, que deveria abrigar essas funções, foi profundamente descaracterizado e não desempenha esse papel nem do ponto de vista funcional nem do simbólico. Atualmente, as únicas funções desse tipo localizadas ali são o fórum, o cartório eleitoral e o Centro de Convivência da 3ª Idade. Mesmo a prefeitura encontra-se fora dele, em um espaço adjacente pertencente a uma das superquadras. A Câmara de Vereadores, o Ministério Público e a Secretaria Municipal de Saúde também estão localizados fora do Centro Cívico.

Fig. 11 – Distribuição atual dos usos institucionais em comparação com a proposta original (em cinza) [Adaptado de Wilheim (2003)]

Concluímos, no que diz respeito ao uso do solo, que as modificações ao projeto original foram feitas para suprir necessidades sentidas pela população, conforme defendiam os críticos do Urbanismo Modernista, ou seja, a necessidade de integração entre os diferentes usos e atividades que a cidade abriga, bem como a otimização das distâncias a serem percorridas na fruição diária dos espaços urbanos. A forma encontrada pela população aproximou esses usos e criou “tentáculos” de centralidade que permeiam de forma mais natural o tecido da cidade.

Os comércios vicinais deveriam amenizar esse problema mas, apesar disso, sua previsão em locais não beneficiados pelo fluxo natural de pessoas impediu que eles florescessem, preferindo localizações mais “tradicionais” ao longo das ruas de maior movimento. Não foi possível, portanto, “impor” uma localização para os usos comerciais. Ao pensar o comércio independentemente dos fluxos que o suportam, como se pudessem, por si sós, funcionar como atratores de movimento e geradores de urbanidade, o projeto original tornou-se difícil de ser respeitado.

Por fim, as áreas reservadas às indústrias acabaram sendo utilizadas, de forma extremamente esparsa, por comércios e serviços mais especializados (mecânicas, materiais de construção, etc.) e mesmo algumas residências. A maior parte de sua área, entretanto, permanece vazia.

Densidades

As densidades residenciais estão abaixo das previstas inicialmente, ficando em torno de 32 habitantes por hectare, em média, de densidade bruta. Entretanto, mesmo que a cidade tivesse se desenvolvido conforme o previsto, elas certamente permaneceriam distantes da recomendação de 300 habitantes por hectare feita por Le Corbusier.

Espaços públicos

Os espaços públicos mantiveram sua forma e localização gerais como propostos originalmente, apresentando, contudo, importantes modificações quando analisados individualmente. O Centro Cívico, principal espaço público do projeto, foi o que sofreu maior descaracterização, uma vez que não se parece nem remotamente, tal como se apresenta hoje, com a proposta de um grande e único espaço público contida no projeto original. O Centro Cívico atual está fragmentado em diversos subespaços, seja por lotes e edificações murados, seja por espaços vazios sem tratamento algum, que acabam lhe conferindo um aspecto de “terra de ninguém”. Praticamente não existe tráfego de passagem em seu interior, sendo que os fluxos entre a área comercial e as superquadras são desviados pelas suas bordas. Isso impõe uma segregação que certamente não estava prevista no plano original.

Nesse sentido, o Centro Cívico atualmente funciona como um limite, separando o setor comercial das superquadras. Entretanto, esse limite não exerce o papel proposto no plano original, em que possuía uma imagem vívida e marcante, atuando como referencial na leitura do espaço urbano, ao mesmo tempo em que costurava os dois setores da cidade. Na situação atual, esse limite certamente não funciona como costura, mas como uma barreira que prejudica os fluxos e os contatos sociais.

Interessante notar que esse limite não aparece como uma barreira no sentido mais tradicional do termo, mas sim como um elemento “desfocado” na imagem que as pessoas têm da cidade, que apenas torna mais distantes os dois setores, sem, contudo, gerar uma imagem forte.

As áreas abertas no interior das superquadras também estão diferentes, apesar de não estarem tão descaracterizadas quanto o Centro Cívico. Em diversos pontos a continuidade dos espaços abertos foi interrompida pela implantação de equipamentos urbanos e comunitários, e de edifícios institucionais.

A apropriação desses espaços é baixa, com exceção de um tráfego moderado de passagem para acesso às residências. Um fator que contribui para isso, além dos citados acima, é sua escala. Seguindo a cartilha modernista, eles são bastante amplos, o que é reforçado pelo fato de que o entorno não apresenta alta densidade, conforme defendia o movimento moderno. Dessa forma, a densidade gerada pelas habitações unifamiliares das superquadras não parece capaz de alimentar os espaços públicos internos de forma a gerar urbanidade.

Por outro lado, a abertura das vias não previstas parece ser um fator benéfico para o local, possibilitando um acesso mais facilitado e incentivando o fluxo de pessoas. É interessante notar como uma “subversão” do projeto original acabou trazendo um pouco mais de vida urbana para esses locais, atendendo a uma necessidade de conexão que não estava contemplada.

Sistema viário e acessibilidade

O sistema viário foi o aspecto que mais se manteve fiel à proposta original mas, ainda assim, algumas modificações significativas foram feitas. A principal delas diz respeito à criação de conexões entre as vias originalmente sem saída que compõem as superquadras. Além disso, foram criadas vias que ligam essas vias de conexão entre si, cruzando o espaço originalmente destinado às áreas livres internas às superquadras (Fig. 12).

Fig. 12 – Diferenças no sistema viário – proposta original e configuração atual


Ambas as modificações atuaram no sentido de aumentar a acessibilidade e a conectividade do traçado originalmente proposto. Tal constatação reforça o entendimento de que houve uma necessidade de diminuir os tamanhos das quadras, tal como defende Jacobs, o que por sua vez traria como benefícios um aumento da acessibilidade e uma maior diversidade de trajetos possíveis, conforme discutido anteriormente.

A apropriação das vias pelos moradores não seguiu a intenção inicial, criando algumas situações em que há um certo descompasso entre a largura e o perfil da via, por um lado, e seu papel na estrutura geral da cidade, por outro. O exemplo mais significativo é a Rua Stefan Dudas, representada esquematicamente na Fig. 09. Apesar de ser a rua mais movimentada da cidade e a que concentra a maior quantidade e diversidade de usos comerciais e de serviços, sua largura é menor que grande parte das outras vias, que possuem tráfego muito menor. A calçada também não é proporcional ao fluxo de pedestres que por ali passam (cerca de 3m de largura com 1,5 de largura útil em alguns pontos).

2. Conclusões

Retomando as questões colocadas inicialmente, pudemos tirar algumas conclusões. A primeira questão – “Até que ponto o projeto original obedece aos princípios do modernismo?” – foi respondida no item 3.1. O projeto obedece quase integralmente aos princípios modernistas, com exceção das densidades, que não são tão altas, e os tipos residenciais, que seriam compostos por residências unifamiliares isoladas nos lotes.

A segunda questão – O que mudou na situação atual em relação ao projeto original e por que essas modificações foram feitas? – foi a que se revelou mais rica em termos de possibilidades de observação e reflexão. As hipóteses levantadas para essa questão foram parcialmente confirmadas. De forma geral, concluímos que as críticas feitas ao Urbanismo Modernista (que embasaram a construção das hipóteses) foram corroboradas pelo estudo de campo. Vejamos:

Hipótese 1: Esta hipótese foi totalmente confirmada. Os comércios não se localizaram no espaço destinado a eles, preferindo instalar-se ao longo das vias de maior acessibilidade e maior tráfego de pessoas e de veículos. As áreas pré-definidas para o comércio local foram simplesmente ignoradas. Além disso, o comércio que surgiu ao longo das vias de penetração do setor das superquadras não era necessariamente de caráter estritamente local.

Hipótese 2: Esta hipótese também se confirmou totalmente. Não apenas o setor das superquadras desenvolveu usos comerciais não previstos, como também o setor comercial abrigou usos residenciais. Isso demonstra uma estreita interdependência entre esses usos e a consequente necessidade de que eles estejam localizados próximos um do outro, sugerindo que haja uma forma mais “natural” de relacionamento entre usos comerciais e residenciais, em contraste com a separação rígida alcançada através de legislação e fiscalização.

Os resultados mostram também a relação estreita dos usos com o sistema viário e com a distribuição de níveis de acessibilidade.

Hipótese 3: Esta hipótese não se confirmou totalmente. A efetiva implementação de usos institucionais, em especial escolas e igrejas, funcionou como atração para essas áreas, e manteve o espaço com basicamente a mesma característica prevista inicialmente, apesar de sua dimensões dificultarem uma apropriação intensa (Fig. 13). Entretanto, colaboraram para uma certa apropriação as modificações feitas no sistema viário, que eliminaram as vias sem saída e criaram maior acessibilidade a essas áreas internas.

Fig. 13
Foto Renato Saboya


Hipótese 4: Esta hipótese não pôde ser testada pelo fato das vias de pedestres terem sido (mal) adaptadas para funcionarem como vias de veículos (Fig. 14). Foi possível observar que, nessa função, elas não se tornaram espaços marginalizados; entretanto, permanece a dúvida sobre como estariam hoje caso tivessem mantido seu caráter original.

Fig. 14
Foto Renato Saboya


Hipótese 5: Esta hipótese confirmou-se parcialmente. O espaço é árido e com pouca apropriação, mas não da forma imaginada inicialmente. O caráter unitário do espaço modernista projetado foi fragmentado em vários espaços menores e desconectados, que não formam um conjunto coeso. Os lotes murados criados em alguns locais do Centro Cívico destruíram sua unidade. A parte que ainda permanece vazia, no centro, parece-se mais com um terreno baldio do que com uma área pública.

Nesse sentido, seria melhor que o Centro Cívico seguisse a proposta original, mesmo que sujeita às críticas feitas a esse tipo de espaço, ao invés de ser parcialmente “absorvido” pelo tecido mais tradicional e ter “desaparecido” dentro da malha. Se fosse mantido, ao menos a cidade teria hoje um centro simbólico e talvez algum senso de identidade nesse espaço público, que deveria ocupar posição de especial importância dentro do conjunto da cidade.

A terceira questão – Como é o desempenho atual dos elementos modernistas que foram mantidos do projeto original? – não pôde ser respondida, porque praticamente nenhum elemento foi mantido como previa a proposta original, a não ser aqueles que não obedeciam aos princípios modernistas (densidades e tipologias habitacionais). Mesmo o sistema viário, que sofreu relativamente poucas alterações no que diz respeito aos perfis das vias, foi substancialmente alterado na sua configuração, modificando relações de conexões, hierarquias e tipo de fluxo (veículos x pedestres).

Concluímos, portanto, que pouco foi mantido da configuração urbana modernista em Angélica. Em síntese, as modificações atuaram no sentido de a) aumentar a a conectividade e a acessibilidade, especialmente do ponto de vista do automóvel; b) aproximar os usos comerciais dos usos residenciais; e c) recuperar tipologias edilícias tradicionais, corroborando outros resultados empíricos que colocaram em xeque os princípios do Urbanismo Modernista.

notas

1
ARRUDA, Ângelo. Plano Urbano de Jorge Wilheim fez nascer a cidade de Angélica há 50 anos. Minha Cidade, São Paulo, 04.044, Vitruvius, mar 2004 http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/minhacidade/04.044/2017.

2
WILHEIM, Jorge. A obra pública de Jorge Wilheim. São Paulo, DBA Dórea Books and Art, 2003.

3
GOMES, Marco Aurelio Filgueiras. Cultura urbanística e contribuição modernista: Brasil, anos 1930 - 1960. In: XI ENCONTRO NACIONAL DA ANPUR, 2005, Salvador. Anais eletrônicos... Salvador: 2005.

4
LE CORBUSIER. La ciudad del futuro. Buenos Aires, Ediciones Infinito, 1971.

5
LE CORBUSIER. Carta de Atenas. 1935. Disponível em: <http://ns.rc.unesp.br/igce/planejamento/carta%20de%20atenas.pdf>. Acesso em 19/08/2008. Item 77.

6
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, Martins Fontes, 2000.

7
WILHEIM, Jorge. Op.cit.

8
HOLANDA, Frederico de. O espaço de exceção. Brasília, Editora da UNB, 2002.

9
JACOBS, Jane. Op.cit.

10
Idem.

11
DEL RIO, Vicente. Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento. São Paulo, Pini, 1990.

12
HILLIER, Bill; HANSON, Julienne. The social logic of space. Cambridge, Cambridge University Press, 1984.

13
HOLANDA, Frederico de. Op.cit.

sobre o autor

Renato T. de Saboya é aArquiteto e Urbanista, Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS e Doutor em Cadastro Técnico e Gestão Territorial pela UFSC. Professor do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). Mantém o blog Urbanidades (http://urbanidades.arq.br)

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