1 – Introdução
Este artigo tem como foco uma análise crítica do discurso proferido e difundido por Rem Koolhaas nesta última década. Trata-se de um esforço de compreensão e rebatimento de suas ideias a respeito da cidade e da arquitetura focado em dois momentos de sua carreira como “intelectual público”, segundo sua própria denominação. Um deles é seu texto manifesto “A cidade genérica”, publicado há pouco mais de dez anos, e o segundo sua palestra proferida em maio do ano passado no grande auditório do Centro Georges Pompidou em comemoração aos trinta anos desta instituição francesa.
Não é objetivo do presente estudo polemizar com as ideias do renomado arquiteto de forma gratuita ou inócua. Espera-se aqui exercitar, a partir dos elementos fornecidos por sua própria teoria, um aprofundamento de suas ideias com o objetivo de retirar das mesmas um aparente foco universalista.
Antes de se passar para a análise, no entanto, vale recuperar os dois objetos focados neste trabalho para o leitor que desconhece sua obra. A respeito de sua palestra, em comemoração aos trinta anos do Centro Georges Pompidou, em Paris, que se completaram em 2007, esta instituição organizou no seu calendário um ciclo de conferências de pessoas de destaque no campo artístico e “cultural” destas décadas, dentre eles o arquiteto holandês Rem Koolhaas. Este se apresentou no grande auditório daquele Centro para uma plateia notadamente de estudantes de arquitetura franceses, ou melhor, que realizam seus estudos em território francês, posto que era notória a presença de diversas outras nacionalidades no hall de espera, principalmente de asiáticos ou descendentes seus, uma plateia genérica, enfim.
O evento foi organizado de modo a chamar cada convidado segundo algum seu destaque durante os trinta anos de vida do Centro. Os primeiros convidados, a título de ilustração, foram os também arquitetos Richard Rogers e Renzo Piano, responsáveis pela concepção do conhecido edifício. Koolhaas (2), por sua vez, fora convocado para falar sobre o ano de 1998, devido ao impacto que causou um projeto seu de uma residência em Bordeaux naquele mesmo ano.
Como é comum no meio, o arquiteto, inclusive autorizado pelo apresentador do evento, atropelou a pauta e preferiu dar sua contribuição a respeito do andar da arquitetura contemporânea, traçando inclusive seu destino a partir do que hoje é realizado, obviamente focado na produção de seu escritório, o OMA (Office for metropolitan architecture). Sua fala pontuou, dentre outras coisas, a condição atual de trabalho dos arquitetos num cenário de transformação política mundial e a maneira como se dão as realizações dos arquitetos neste mesmo cenário. Estes serão pontos importantes da análise a seguir.
Seria, no entanto, improdutivo retomar sua fala sem resgatar seus escritos. Como já fora dito acima será seu manifesto “A cidade genérica” (3) a obra a ser explorada tanto por conter o germe de suas ideias de hoje, como por se tratar de um texto realizado de maneira a se tornar um importante documento sobre o pensamento dos arquitetos do final século, da mesma maneira que os textos de Le Corbusier, explosivos e diretos, acabaram por se tornar o farol reflexivo do início do século XX. A obra se divide em dezesseis pequenos capítulos onde o autor vai abordar, a partir de sua vivência como arquiteto que (se)projetou em diversas regiões do globo sua percepção de como as cidades estão acontecendo no final do século, ou melhor, a partir desta data adiante. Trata-se de um texto carregado de ironias e construído num formato de manifesto ou talvez de manual de instruções que requer uma síntese para que possa ser combinado com sua fala realizada no Centro Pompidou.
2 – Da cidade genérica ao espaço genérico
A cidade construída por Koolhaas em seu livro é destituída de identidade. O arquiteto constrói em seu texto uma percepção de que os símbolos de cidades consolidadas, ou históricas, são apropriados por cada vez mais pessoas, o que cria uma diluição identitária que se reflete na produção contemporânea da cidade, a “persistência da obsessão concêntrica atual faz que todos nós sejamos pessoas de ponte e túnel, cidadãos de segunda classe em nossa própria civilização, privados de nossos direitos por essa tola coincidência de nosso exílio coletivo de um centro.” Restaria, portanto, à cidade genérica uma identidade focada em logotipos.
Os edifícios síntese desta cidade seriam os aeroportos e os hotéis, que cada vez mais se tornam espaços abrangentes e representantes da vida estereotipada de cada aglomeração urbana. Vale destacar que esta proposição de Koolhaas se pretende uma leitura aplicável a um espaço total, isto é, a um objeto que se constrói hoje e que representaria o futuro de todos os outros. A cidade genérica é uma espécie de germe do que está para acontecer, ela se reproduz em diversos cantos do globo criando simultaneamente sua perenidade descartável, ou ainda, a cidade genérica seria para Koolhaas uma ideia a ser alcançada, uma espécie de “revolução urbana” lefebvriana vista a partir do olhar de um arquiteto “global”.
Interessante notar que, em sua obra “S,M,L,XL”, existe um gráfico que demonstra que, em 1993 o arquiteto passara 305 noites em hotel, viajando um total de 360.000 Km. Este dado parece revelador sobre a origem do pensamento de Koolhaas que, no entanto, constrói um pensamento generalista que acaba por ser absorvido por diversos profissionais do campo da arquitetura, mesmo que muitas vezes estejam encerrados em sues escritórios, aguardando a ligação de um improvável cliente.
Sua cidade é aparentemente calma, posto que as atividades realizadas em seu espaço são eminentemente virtuais, não necessitando de deslocamento ou presença corporal. Sua agitação ocorre apenas em seus bairros considerados históricos apinhados de turistas que cada vez mais circulam por seus hotéis e aeroportos, como, aliás, acontece com aquele arquiteto. Nesta cidade, “estar em trânsito se torna universal” (Koolhaas, 2007, p.20).
O autor realiza também uma crítica a duas disciplinas, o urbanismo e a sociologia, que, segundo ele, são incapazes de perceber o fenômeno da cidade genérica. Quando se refere ao urbanismo, ele pinta a cidade genérica como um caos que se espalha de forma sistêmica, mas cujo sistema é ainda incapaz de ser captado pelo urbanismo e sugere o surgimento de um novo analfabetismo em relação à leitura desta cidade.
De forma similar, considera que a sociologia é incapaz de classificar as cidades genéricas, posto que seriam inclassificáveis e propõe que esta “inclassificabilidade” seria a riqueza desta cidade. Ele afirma que são nas suas infinitas contradições que reside sua dinâmica, afirmando que a sociologia descarta esta hipótese antes de realizar qualquer análise. Não é objetivo deste estudo, mas vale destacar que sua visão a respeito da sociologia e do urbanismo parece se aproximar daquela produzida a partir da ecologia urbana da Escola de Chicago, onde talvez as críticas levantadas pelo arquiteto façam sentido.
O autor ainda toca em dois aspectos que merecem destaque, a política e a história. Sobre aquela não se vai aprofundar neste momento, isto será realizado a seguir posto que sua fala no Pompidou retoma este mesmo item de maneira estratégica, por ora, registre-se que as cidades genéricas têm alguma relação com diferentes tipos de regime autoritário.
Em relação à história, no entanto, é importante discorrer um pouco mais, já que uma reflexão a respeito deste tema pode ajudar a compreender a estrutura de raciocínio de construção das cidades genéricas.
Koolhaas levanta uma questão muito importante neste item. O arquiteto considera a permanência de espaços considerados históricos nas cidades como um consenso que merece ser questionado. Ele destaca o valor da ausência histórica como fator teórico de reflexão e afirma que as cidades passam por diferentes fases que são superadas e suplantadas ao longo do tempo e que serão, mais tarde, descobertas pelos arqueólogos em suas escavações. A cidade é realizada em camadas. Porém, ao construir a relação da cidade genérica com a história, não há uma ideia de superação de fases, mas de abandono. Não há diferentes camadas para a cidade genérica, há diferentes espaços. O autor ironiza ao dizer que o estudioso da história das cidades genéricas não necessitará de uma pá, mas de passagens de avião.
Ora, esta ironia é carregada de sentidos que merecem um aprofundamento analítico. Na medida em que a pá é substituída pelo avião, há nesse raciocínio uma reificação do espaço em relação ao tempo. A cidade genérica torna-se um lugar sem história, ou melhor, a cidade desejada pelo arquiteto é aquela onde o espaço suplanta o tempo, o que demonstra uma ruptura com a forma de se perceber tanto a cidade como de conceber arquitetura.
Vale ressaltar o que fora acima escrito, a cidade genérica é antes de tudo um conceito formulado por um arquiteto que a produz. Talvez esta seja a chave de se compreender a teoria de Koolhaas. A ausência de tempo em sua análise reflete a sua vivência nessas cidades que, como já fora dito, reduz-se, aparentemente, a uma vivência genérica em aeroportos e hotéis. Esta é uma condição importante de se ter em mente ao ler seus textos. Koolhaas amplia sua vivência a um conceito abrangente de cidade.
Não se quer invalidar sua teoria ou mesmo desmentir as percepções deste autor. Mas considera-se importante estabelecer este distanciamento para que se possa efetivamente, além de compreender, utilizar seu conceito. Talvez se o autor tivesse uma outra vivência de cidade, levaria em consideração os diferentes tempos simultâneos que ocorrem nas mesmas, desde o tempo acelerado do sistema econômico contemporâneo, batizado de maneira sagaz de YES (4) pelo próprio Koolhaas, que se relaciona de maneira forte com a cidade genérica, até um tempo lento que ocorre tanto como substrato deste mesmo sistema – a cidade informal, as cidades esquecidas ou ignoradas pelo sistema – quanto os espaços onde uma vida ainda focada em práticas tradicionais ocorre como permanência de um mundo rural que se esvazia como modo de produção, mas mantém certos traços em sua cultura.
As cidades sem tempo, que seriam as cidades genéricas, são, portanto, apenas um lado da realidade urbana contemporânea. Um lado que se apresenta mais palpável para um arquiteto que lidera um escritório internacional de produção intensa de arquitetura genérica. Não se pode separar a criatura do criador, posto que é sintomático que este conceito seja criado por quem o realiza na prática. Não que se trate de um conceito sem validade, ou até mesmo perverso, mas ele surge fora do campo crítico, e dentro do campo de produção do espaço.
Esta observação serve para que se reflita sobre a produção de Koolhaas como intelectual, não na direção de enfraquecer suas reflexões, mas de dar-lhe seu devido alcance, que pode ser imenso, principalmente se recebido como verdade. O fato de o conceito surgir a partir de uma reflexão feita no campo próprio da produção lhe dá uma característica de transformação da produção em si. Quando Koolhaas manifesta esta ideia de cidade genérica, ele acaba por inaugurar uma forma de pensar sobre e de agir na própria cidade. No entanto, é fundamental que o leitor de Koolhaas tenha em mente esta característica, já que ela carrega consigo também uma ausência de distanciamento do objeto a ser estudado, levando a conclusões generalistas que não devem ser aceitas de maneira automática, como a acima destacada relação tempo-espaço.
Por fim, é necessário comentar a arquitetura da cidade genérica. Dentre diversos aspectos colocados em seu texto, o autor coloca que o estilo pós-moderno é o que impera na cidade genérica e o será para sempre, posto que é o estilo, segundo ele, mais democrático. Esta definição é coerente com a relação da cidade genérica com a história. Na medida em que não há tempo nesta cidade, é válido que se copie, ou se interprete, formas dos mais variados estilos e lugares em um mesmo sítio. A banalidade desta arquitetura reforça também seu argumento inicial, de que não há identidade nesta nova cidade contemporânea. Pode-se afirmar que a produção arquitetônica genérica seria o encerramento do projeto albertiano para a arquitetura. A cidade genérica inauguraria uma nova fase de produção onde o tempo, o amadurecimento da obra e sua permanência perdem seu significado abrindo nova possibilidades menos sólidas, mais gratuitas, ou mais dinâmicas de intervenção. Talvez seja este o desejo do arquiteto.
Certamente há aqui, por parte do leitor, um questionamento a respeito do grau de ironia contido no discurso de Koolhaas. Alguns interpretariam sua cidade genérica não como um texto manifesto, mas como um protesto a respeito do que se realiza contemporaneamente como arquitetura em nome de uma retomada de um projeto mais contundente do edificar. No entanto, não se acredita nesta interpretação. Afirma-se que o arquiteto teve, ao realizar este texto, uma profunda sensibilidade e uma vontade de divulgar uma nova maneira de se apreciar a arquitetura que rompesse com cânones anteriores, aceitando o novo como positivo, ainda que estranho. Mas acredita-se também que o mesmo texto deva ser encarado como uma forma de se sustentar como arquiteto global, posto que a arquitetura que defende como crítico é a mesma que realiza. Esta percepção ficará mais clara ao se adentrar no conteúdo de sua fala para os futuros arquitetos genéricos, realizada no Centro Pompidou.
3 – Do espaço genérico ao discurso genérico
Já se disse que, em sua palestra em Paris, Koolhaas abandona o tema para o qual fora convidado e parte para uma análise do cenário contemporâneo do trabalho do arquiteto. Sua fala pode ser entendida como uma afirmação, uma década depois, do que havia escrito sobre a cidade genérica. O arquiteto apresenta aos ouvintes sua visão a respeito das mudanças políticas do mundo e a forma como o profissional de arquitetura deve trabalhar neste cenário dinâmico.
O início de sua fala é revelador do que vem adiante. Koolhaas compara a renda dos arquitetos pops com a de outros setores do ramo, como os artistas de Hollywood ou os praticantes de esportes demonstrando como os arquitetos ganham pouco em relação a estes outros. Parece perversa tal argumentação, já que ele, mesmo se considerando um integrante do star system julga que sua renda é baixa em comparação com sua fama. De certa forma, sua atitude pretende criar um falso distanciamento seu em relação às outras “estrelas do projeto”, aproximando-o da plateia de estudantes de todo o mundo, que, ao que parece, almejam de fato esta aproximação.
Mais que uma estratégia utilizada para cativar o público, Koolhaas utiliza deste argumento para aproximar sua produção do tipo de arquitetura que ele demonstra como sendo a contemporânea, isto é, a mesma arquitetura que ele produz, diferenciada dos grandes e próxima da arquitetura comum o que leva a uma ligação imediata de que ele seria o arquiteto referência de tudo que aparece anonimamente.
O intelectual público então mostra diversas imagens muito bem pensadas e construídas, dentre elas um panorama de diversos edifícios realizados pelo star system, incluindo um edifício seu (o da CCTV) lado a lado no intuito de demonstrar a falta de diálogo entre estas construções, chamando de individualista o tipo preferido dos projetos contemporâneos. Há uma ausência de harmonia entre os projetos onde um anula o outro em uma luta por um reconhecimento estético, ou imagético. Não fica clara, no entanto, até que ponto ele pretende criticar ou simplesmente constatar tal fato. Mais uma vez, acredita-se que este gesto sirva para situá-lo nos dois campos, ele se torna o interlocutor dos grandes escritórios que é capaz de discernir o que se passa para os estudantes, mas que está lá, também, presente no mainstream.
Esta posição dúbia se torna coerente quando o mesmo arquiteto, posteriormente, cria um panorama da arquitetura anônima hoje produzida e a coloca em um mesmo tipo de imagem, com diversos edifícios lado a lado, afirmando que o novo hoje se assemelha ao que o star system vem produzindo, principalmente no tocante ao individualismo arquitetônico. Ele considera o fato uma lástima, mas o aponta como o início da derrocada do system. Mais uma vez uma posição dúbia já que, ele próprio, representante do sistema é quem percebe, ou anuncia, a sua derrocada.
Em meio a toda esta argumentação, o arquiteto mostra diversos projetos seus, anunciados como diferentes daqueles propostos pelo system, num sutil movimento de que sua arquitetura está tentando romper com este movimento, tornando-se mais uma vez a vanguarda. E é nesta hora que sua teoria anterior, da cidade genérica, serve como uma luva.
Koolhaas dá um grande destaque à sua atuação em Dubai, o oásis pós-moderno do Oriente Médio e apresenta sua atuação naquele sítio como uma confirmação a posteriori de sua teoria genérica. Como fora acima afirmado, a cidade genérica se apresentava como uma visão de futuro, de devir, e ele, o próprio construtor da teoria, torna-se o executor de sua confirmação, numa atitude que confunde teoria com teleologia, similar ao que ocorreu, no campo social, com diversos marxistas vulgares que desejavam entender o Capital como guia de um futuro, deixando de lado toda sua complexidade e contradição.
Koolhaas coloca, sem dizer, Dubai como uma cidade genérica tipo. Inicialmente ele deixa claro que o campo político da região não está inserido na definição de democracia, afirmando que os arquitetos de hoje devem recolher preconceitos perante isto e aprender a projetar nestas condições sócio-políticas. Obviamente ele se refere aqui aos colegas europeus que vivem segundo regimes proclamados democráticos.
Em seguida expõe que Dubai reconfigura o conceito de cidade, já que esta se destina prioritariamente ao lazer e não ao trabalho, ou seja, pode-se imaginar uma cidade que gira em torno de aeroportos e hotéis. Por fim mostra seu projeto, que ele ainda não sabe se será executado posto que tirou segundo lugar no concurso mas recebeu a chance de erguê-lo em um outro sítio qualquer na mesma cidade (5).
Este projeto de Koolhaas se encaixa no que ele previa a respeito da arquitetura genérica em seu texto anterior. Trata-se de uma esguia barra branca, giratória, de 200m de largura por 300m de altura. Sua argumentação é a de que a simplicidade, ou pureza como já foi usual de se dizer, de sua proposta criaria um contraponto aos edifícios individualistas ali presentes.
Ora, nada mais pós-moderno, sua proposta se resume a uma releitura de um estilo histórico, que pode ser realizada em qualquer cidade e em qualquer parte dela. A singularidade está no fato de que ele refaz a proposta do estilo moderno. Sua releitura arquitetônica consagra o pós-moderno por conseguir apropriar de sua negação e origem, a arquitetura Miesiana mais pura. Este seria o ápice da arquitetura genérica, ao reconhecer como histórico e ao mesmo tempo utilizável de múltiplas formas o estilo arquitetônico que rompeu, como ele deseja romper, com toda relação com a estética anterior à sua. A arquitetura moderna atravessa o espelho tendo Koolhaas como condutor.
O arquiteto também não deixa de reagir contra a sociologia. Expondo argumentos de Mike Davis a respeito de Dubai e afirmando que tais leituras são superficiais e incapazes de perceber o que se passa naquelas cidades, o arquiteto justifica sua autonomia disciplinar e intelectual e faz tabula rasa de um diálogo multidisciplinar que pode ser necessário ao ofício de projetar
Seu argumento contra a sociologia se foca na questão de que estes impedem a ação, e que os arquitetos não devem se pautar por tais críticas, posto que sua atuação nestes sítios é fundamental para que se crie algo novo. Esta exposição contra a sociologia também reforça um argumento seu anterior onde afirma que os europeus devem se focar num novo campo de atuação que consiste dos países próximos à Comunidade Europeia e que se distanciam da hegemonia norte-americana. Seriam eles a Rússia, China, Oriente Médio e Índia.
Descolado, pois, da crítica sociológica e disposto a trabalhar para regimes autoritários, o arquiteto europeu estaria pronto a disseminar sua percepção urbana da cidade genérica em diversos novos mercados, testando o novo que parece cada vez mais difícil de ser realizado em suas cidades “históricas”. A história se repete se em forma de farsa ou de tragédia cabe ao leitor escolher.
A fala ainda vai tratar da transformação da clientela contemporânea, baseada fortemente na iniciativa privada (6) e não mais na pública dentre outras coisas que não cabem aqui serem analisadas. Mas resta ainda comentar a respeito de sua percepção sobre a cidade de Lagos que se mostra bastante reveladora. Koolhaas preparava, à época, um livro sobre esta cidade que parece já ter sido editado e adiantou sua leitura a respeito da pobreza e do caos encontrados naquele lugar. Seu argumento consistiu em demonstrar como existe uma certa inteligência em meio a toda a penúria das condições de vida em Lagos. O conferencista chega a afirmar que as pessoas que habitam os lixões da cidade, vivendo numa situação de total precariedade e risco sócio-ambiental, carregam consigo uma sensibilidade ambiental rara ao viver da reciclagem do que é lá encontrado.
Talvez seja interessante, para um outro estudo, comparar este novo livro de Koolhaas a uma das obras mais famosas de seu sociólogo alvo, Mike Davis, “Planeta Favela”. Talvez em tal comparação se encontre certo equilíbrio entre intenção e gesto. O mais importante, porém, para o presente texto, a respeito de Lagos, é a importância dada por Koolhaas a grandes projetos realizados para essas áreas.
Em suas pesquisas ele descobre um projeto realizado por arquitetos iugoslavos na década de cinquenta para aquela cidade e demonstra como este projeto é importante ainda hoje por não apenas garantir uma certa infraestrutura tão ausente na região, mas, exatamente por esta ausência, atrair toda uma vivacidade da cidade nesta área. A presença de infraestrutura a partir de um grande projeto garante o acúmulo de pessoas inteligentes à sua volta, que reciclam a cada dia sua estratégia de sobrevivência. As relações sociais são, assim como antes o fora o tempo, completamente subjugadas à primazia do espaço. Ou talvez ele esteja simplesmente abrindo um novo campo de atuação pós-Dubai, a África.
4 – Conclusão
Estes dois momentos isolados da presença de Koolhaas como intelectual da arquitetura não resumem de forma alguma a obra daquele arquiteto e de sua equipe e nem se pretende, com esta crítica, diminuir sua abrangência e importância. No entanto, é importante que, e espera-se que isso tenha sido exposto com clareza nas linhas acima, leia-se com cuidado e distanciamento as suas obras. Se por um lado não se pode negar sua percepção a respeito do que ocorre no mundo urbano contemporâneo, já que ele é um observador privilegiado, por outro não se deve também acatar as suas críticas e propostas, negando uma vivência própria como sujeito social.
A forma de observar o mundo de Koolhaas é muito particular e isto deve ser levado em consideração ao se aproximar tanto de suas reflexões como de suas obras. Da mesma maneira nada suplanta a vivência própria de cada arquiteto em relação ao seu tempo, à sua cidade e ao seu tempo na cidade. É na relação entre tais percepções, sabendo encarar o outro de forma dialógica e relacional que se consegue apreender pontos de vista complexos e polêmicos como os de Koolhaas.
Não se deve esquecer que o mesmo, além de arquiteto “genial” e midiático, é também responsável por um grande escritório que deseja, sobretudo, construir suas obras e deixar suas marcas num contexto sócio-econômico, e a palavra marca, aqui, vai muito além de registro e permanência em um território.
As obras criadas e deixadas por arquitetos como Koolhaas, utilizando seu próprio raciocínio, são marcas que deverão ser logo apagadas e substituídas, posto que esvaziadas de história e de intenção de permanência. O foco de Koolhaas não é o tempo, mas o espaço a ser conquistado, tanto o espaço terreno, o chão, como o espaço na mídia, fato este legítimo e nunca dissimulado pelo mesmo, como se pode observar em sua teoria e em sua fala acima criticadas.
Há que se criar um distanciamento para que se compreenda que existem outros tipos de arquitetura, existem outras ideias a serem resgatadas que vão além da cultura genérica. Espera-se também como tarefa do arquiteto contemporâneo uma retomada do tangível, do temporal, uma revalorização do espaço em detrimento da imagem, do específico em oposição ao genérico. Espaço conjugado com o tempo. Esta importância do tempo na arquitetura, já destacada desde o projeto albertiano, é das mais urgentes a se repensar em nossa ação contemporânea. É através do retorno do tempo, da história, que o arquiteto será capaz de se desprender do presente, compreendendo que há um passado, ou diversos passados para então perceber que há um futuro, ou melhor, há diversos futuros.
A partir da escolha de um projeto de futuro o arquiteto poderá realizar suas opções de projeto, negando a força de um presente eterno que condiciona a arquitetura e a cidade a uma existência genérica e, portanto, sem identidade. É preciso lutar contra isso, menos para derrotar este campo que para criar uma possibilidade de confronto de ideias, escapando à perigosa hegemonia do consenso hoje existente. Consenso complexo de se apreender, posto que baseado na multiplicidade e na possibilidade infinita mas que, no entanto, acaba carregando consigo a ausência de possibilidades que se reforça no individualismo extremo, inclusive nas soluções para a arquitetura e para o urbanismo.
notas
1
O texto aqui apresentado é uma versão pouco alterada de reflexões realizadas para a disciplina “Conceitos e ideologias no pensamento urbanístico do século XX” ministrada pelo professor Roberto Segre para o curso de doutorado em Urbanismo da FAU-UFRJ (PROURB). Naquela versão apresentei mais imagens que, infelizmente, não aparecem aqui posto que não obtive resposta do OMA quanto à possibilidade de publicação online das mesmas. Tratava-se de fotomontagens e perspectivas de alguns projetos mencionados no texto. De toda forma, são facilmente encontradas no site do OMA <www.oma.eu> assim como são projetadas durante a palestra dada por Koolhaas em Paris (ver nota 2).
2
A fala de Rem Koolhaas pode ser assistida e baixada a partir da internet e está disponível na seguinte URL: http://www.centrepompidou.fr/histoiredestrente/videos/videoRemKoolhaas.htm.
3
Este texto pode ser encontrado no livro de Rem Koolhaas e Bruce Mau: S,M,L,XL (1995). Existe também uma versão em espanhol somente do texto isolado editada como um livreto pela editora Gustavo Gili, de 2007, utilizada para as referências deste artigo: KOOLHAAS, Rem. La ciudad genérica. Barcelona: GGmínima. 2007. 62p.
4
Corruptela dos símbolos das moedas internacionais mais valiosas, respectivamente o Iene (ou Yen), o Euro e o Dólar.
5
O primeiro lugar, só para constar, foi dado a Zaha Hadid.
6
Certamente Koolhaas não acreditava na possibilidade de crise do sistema como a que hoje ocorre.
sobre o autor
Cláudio Rezende Ribeiro é arquiteto e urbanista (UFMG/2000) e mestre em planejamento urbano e regional (IPPUR-UFRJ/2006). Atualmente é doutorando em urbanismo pela FAU-UFRJ-PROURB