Patrimônio e turismo
O patrimônio urbano tem um grande poder de atração visual. As formas urbanas herdadas são concebidas como parte da imagem de cidade e representam um importante trunfo em um mercado cada vez mais competitivo. Cidades turísticas enfrentam o desafio de altos investimentos na estrutura de negócios e também em seu capital humano, de forma a preservar tradições e identidades culturais ao mesmo tempo estimulando criatividade e inovação. O mercado turístico tem uma ação na imagem da cidade através de campanhas publicitárias que realçam aspectos particulares da paisagem, da cultura e das feições urbanas, o que contribui para criar “etiquetas” que capazes de identificar claramente os lugares.
O Brasil tem sido anunciado, quase exclusivamente, como um “destino tropical” onde turismo baseado em sol & praia constitui a maior e mais significante parcela da indústria do turismo nacional, tanto domestico quanto internacional. Entretanto ao passo que a cultura assume um papel mais relevante no desenvolvimento urbano, sobretudo a partir década de 1980, centros históricos passaram a experimentar um processo de rejuvenescimento urbano em consequência de uma atividade turística que despertou o interesse por edifícios, bairros e mesmo cidades inteiras antes abandonados e esquecidos no tempo (1).
A combinação entre arquitetura e historia se tornou um fator fundamental para a economia local em pequenas e médias cidades. Nas grandes metrópoles, o “turismo cultural”, como passou a ser reconhecido esse segmento do mercado, impulsionou iniciativas de recuperação dos centros históricos e de monumentos e edifícios degradados.
O caso de Salvador
A imagem de Salvador foi formada em torno de uma estratégia de marketing que compreende patrimônio urbano e cultura como meios de fomentar o turismo na cidade para diferentes audiências. Salvador apresenta uma combinação única de culturas africanas e europeias, as quais imprimiram no tecido urbano e na população local características peculiares que podem ser observadas nas suas igrejas barrocas, nos santuários africanos, no sincretismo religioso, na gastronomia, na musica e nas festividades.
Sendo a primeira capital do país Salvador tem sua imagem confundida com a própria identidade brasileira. Durante o ano de 2000, por exemplo, quando foi celebrado os 500 anos do Descobrimento, o estado da Bahia lançou a campanha “Bahia, o Brasil nasceu aqui”, divulgando imagens da cidade e do centro histórico na mídia nacional.
A antiga cidade, conhecida como ‘Pelourinho’, foi cenário de um dos mais ambiciosos programas de renovação urbana no Brasil no inicio da década de 1990 e em 2000 já era uma tração turística de sucesso. A maior parte do seu patrimônio construído havia sido recuperado, muitos edifícios foram salvos da ruína e agora hospedam museus, hotéis, restaurantes e lojas. O ‘novo’ Pelourinho foi exaustivamente anunciado como o lugar para experimentar a ‘cultura baiana’, através da animada atmosfera do lugar (2).
Entretanto a experiência peculiar do programa de renovação do Pelourinho também provocou polemicas e despertou criticas relativas ao estimulo a gentrificação, transformando um sitio histórico em espetáculo para o consumo de massa que poderia ameaçar a identidade cultural local e consequentemente a sustentabilidade da área.
O processo de renovação urbana no Pelourinho ainda continua, embora novas políticas urbanas e esquemas de financiamento tenham alterado o escopo do programa através dos anos. Mesmo assim a imagem da ‘cidade feliz’ – melhor exemplificada no slogan referente a Salvador como “Terra da Felicidade” – é geralmente considerada como um fator essencial na estratégia de turismo.
O governo local e empreendedores privados vêm explorando aspectos como ‘sociedade multirracial’, ‘terra exótica’, ‘povo amigável’, ‘diversidade cultural’ e ‘autenticidade’ como instrumentos para alcançar o sucesso na implementação de projetos elaborados para melhorar o atrativo da paisagem urbana, apesar da visível desigualdade econômica e social que caracteriza a cidade de Salvador.
Decadência e recuperação de um patrimônio cultural: Salvador e seu centro histórico
Salvador foi a primeira capital do Brasil colonial, fundada em 1549. Nos dois séculos que se seguiram ocupou a posição de ‘segunda cidade’ do Império Português (depois de Lisboa) e era o principal porto no Atlântico Sul.
Embora a capital tenha sido transferida para o Rio de Janeiro, em 1763, a cidade de Salvador manteve um papel significativo na economia do país devido a sua posição estratégica e sua infraestrutura, construída através da exportação de produtos primários e manufaturados, um mercado concentrado na indústria da cana de açúcar. Essa riqueza foi responsável pela construção de uma exuberante cidade colonial, principalmente baseada na arquitetura barroca de estilo português.
Ate o final do século XIX a cidade experimentou um desenvolvimento urbano dinâmico, mas as consequências da rápida industrialização na região sudeste do Brasil (comandada pelas cidades de São Paulo e Rio de Janeiro), o declínio da industria açucareira e a proibição da escravidão, a qual proveu a forca de trabalho ‘gratuita’ por mais de 300 anos, provocou depressão econômica e estagnação.
Este cenário se modificou na década de 1950 quando foi descoberto petróleo na Baia de Todos os Santos (3), fato que desencadeou uma nova fase de desenvolvimento industrial, posteriormente refletindo em modernização urbana e explosão demográfica, colocando Salvador entre as maiores metrópoles do Brasil (4). Ao longo do século XX a organização socioeconômica no espaço urbano foi reconfigurada, e seus efeitos mais dramáticos recaíram sobre o centro histórico de Salvador, o qual foi sendo gradualmente abandonado pelas camadas de media e alta renda da população desde as primeiras décadas.
Esses efeitos se intensificaram durante a década de 1970, quando varias atividades urbanas tradicionalmente centrais foram realocadas para a região nordeste da cidade, como foi o caso do terminal de ônibus, do Centro de Convenções e em última instancia a sede da administração do governo baiano, a qual foi transferida para um grande e moderno complexo nos arredores da cidade, ao longo da Avenida Paralela, que liga o centro urbano ao aeroporto internacional.
Juntos esses eventos atraíram investimentos que conformou um distrito de negócios caracterizado por edifícios e infraestrutura urbana modernos. Por volta do inicio da década de 1980 esta nova centralidade estava consolidada, dando suas costas ao centro antigo. A degradação do Pelourinho é também considerada como consequência de uma serie de fatores que estão presentes na maioria das capitais brasileiras: o crescimento urbano, a falta de investimentos públicos em habitações sociais e infraestrutura, a pobreza combinada com a exclusão sócio-espacial.
Os centros urbanos no país se constituíram áreas problemáticas para o governos locais, e para as camadas de media renda um lugar a ser evitado, perigoso, inseguro e sujo. Essa imagem negativa era ainda mais forte em Salvador. A maioria dos edifícios colônias estava praticamente arruinada já no final da década de 1960, quando vários sem-teto começam a invadir as construções. Prostituição e trafico de drogas também se espraiaram pelas vielas mal iluminadas, elevando os níveis de criminalidade e o medo.
Apesar da decadência física – e alguns diriam, moral – um poderoso movimento cultural surgiu in Salvador, baseado nas tradições do Carnaval manifesto na musica afro-brasileira e na dança, a qual vinham se manifestando desde a década de 1950. Esse renascimento cultural foi centrado principalmente em grupos musicais conhecidos como blocos afro. O primeiro desses grupos - Filhos de Gandhi – foi fundado em 1949; sendo seguido pelo Ile Ayie (1974), Olodum (1979), Muzemza (1981), Araketu (1989), Timbalada (1996), entre outros.
Esses grupo fizeram um enorme sucesso na cena musical nacional e mesmo internacional, como e o caso do Olodum e seus concertos na America do Norte, Europa e Japão, exportando a cultura negra do Pelourinho e da Bahia. O movimento musical teve um impacto positivo na imagem da cidade, mas o grande momento de mudança aconteceu logo após os trabalhos de renovação urbana empreendidos pelo governo do estado da Bahia na década de 1990.
O ameaçado patrimônio arquitetônico era uma preocupação para os governos local e nacional por um longo tempo. A riqueza dos edifícios que estava sendo consumida pela falta de manutenção contrastava com os esforços de recuperar o antigo ‘glamour’ do assentamento colonial. De fato entre o final da década de 1960 e o inicio da década de 1990 – um período de menos de 30 anos – cerca de 25 projetos e planos foram elaborados para a renovação da área mas nenhum deles foi bem sucedido (5).
A maioria desses projetos eram ambíguos e previam uma extensa lista de programas urbanos e sociais na tentativa de reverter o processo de degradação. Em 1985 o centro histórico de Salvador foi nomeado Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO, a segunda cidade no país a se juntar a lista (6). A nomeação aumentou as pressões sobre as autoridades locais para a tomada de medidas mais efetivas para a preservação do patrimônio histórico.
Nessa época Salvador estava ganhando uma sólida reputação como destino turístico no mercado nacional e a cada ano o Carnaval atraia cada vez mais pessoas. Os governos do estado e do município tinham planos para tornar a cidade em uma atração para também o mercado internacional e certamente o centro histórico tinha um grande potencial a ser melhor explorado.
Assim, um novo programa foi lançado em 1991 pelo governo do estado da Bahia para a recuperação parcial do centro histórico. Em 1994 foi inaugurado o ‘novo Pelourinho’, com festa e celebrações, revelando uma paisagem urbana remodelada, de ruas limpas, fachadas coloridas e sobretudo ambiente seguro.
A terra da felicidade: qualificando a imagem da cidade
Em um texto para a edição 2006 do guia turístico ‘Guia Unibanco Brasil: Nordeste’ o escritor angolano Jose Eduardo Agualusa afirma:
“A região nordeste do Brasil, e especialmente Salvador, tornou-se nas ultimas décadas uma espécie de África feliz,uma África que deu certo, apesar desse terrível crime em sua origem – a escravidão” (7).
Esta percepção de Salvador como o coração da cultura africana no Brasil esta bem estabelecida pois a cidades e a região circundante concentra a maior população afrodescendente do pais. A ideia de ‘berço do Brasil’ se refere as raízes históricas de Salvador mas também ao sentimento de identidade cultural e mais ainda de autenticidade. As imagens conectadas a essa ideia são a de uma sociedade multirracial amigável e harmoniosa, que foi forjada pela superação de contradições do seu passado escravagista e de dominação colonial.
A constituição dessa chamada ‘Cidade da Alegria’ tem seus fundamentos na preservação do Candomblé, a religião de origem africana trazida ao país pelos escravos. Imagens da religiosidade negra no Brasil, e particularmente em Salvador, estão envoltas em uma atmosfera de ritos de possessão, altares e panteões dos deuses africanos, tambores hipnóticos e danças ritmadas. Estes aspectos são por sua vez associados aos poderes mágicos de seus praticantes e a uma série de superstições. Essa complexa religião combina em sua liturgia elementos da natureza (plantas, minerais, clima) a uma peculiar gastronomia, instrumentos simbólicos, cores e indumentária.
Os rituais do Candomblé acontecem em sítios sagrados denominados terreiros e em Salvador existem centenas deles por toda a cidade (8). Em ocasiões especiais uma cerimônia e preparada para celebrar e venerar os orixás – as divindades do Candomblé.Enquanto a preparação dessas festas e restrita aos iniciados a cerimônia e frequentemente aberta ao publico – incluindo turistas. De fato as agencias de turismo de Salvador oferece informações sobre as festividades do Candomblé em sua agenda mensal de eventos. Geralmente essas cerimônias se estendem por horas, sempre ao anoitecer, com danças, performances, cantos, musica e refeições oferecidas em honra aos orixás.
Em Salvador é comum encontrar em algumas casas uma vela acesa para o orixá e outra para o santo católico no mesmo altar, a fim de pedir proteção divina e conforto espiritual. Esse sincretismo religioso entre Candomblé e Catolicismo esta também pressente nas festividades publicas, as mais importantes acontecem entre dezembro e marco, durante o verão, coincidindo com a alta temporada de turismo. Estas festividades são frequentadas por praticantes de ambas as religiões, uma vez que muitos dos orixás do Candomblé têm uma divindade associada entre os santos católicos. Uma das celebrações mais impressionantes e a Lavagem do Bonfim, quando as escadarias da igreja do Nosso Senhor do Bonfim, cujo orixá correspondente e Oxalá, e lavada pelas baianas do Candomblé com água perfumada.
A imagem da cidade esta também enredada nas narrativas propostas por artistas locais e intelectuais que acabaram por se tornar as ‘vozes’ do mito e da magia da Bahia. Tais visões poéticas são provenientes de um pequeno, mas bem definido circulo de amizades, dentre o qual se destacam Jorge Amado, Pierre Verger, Carybe e Dorival Caymmi. O trabalho desses artistas inspirou as mentes e corações de habitantes locais e turistas durante a segunda metade do século XX e ainda são influentes hoje em dia.
Jorge Amado (1912-2001) e um dos mais conhecidos e mais bem sucedidos escritores brasileiros, tendo sua obra traduzida em mais de 40 línguas. A maioria dos romances de Jorge Amado descreve a vida cotidiana em Salvador e seus personagens muitas vezes retratam a população negra pobre: os pescadores, marinheiros, prostitutas e os vendedores de rua. Muitas obras foram adaptadas para a televisão revertendo um uma imensa popularidade para seu autor. Jorge Amado era e ainda e considerado parte do patrimônio da cidade, uma espécie de ‘embaixador’, e seus livros uma transcrição da alma da Bahia.
No guia turístico da cidade que escreveu em 1945, Jorge Amado convida os forasteiros a visitar a Salvador que não esta nos mapas, iniciando cada parágrafo com um chamado para os aspectos particulares da cultura local: os tambores que podem ser ouvidos pela ‘misteriosa noite’, os saveiros içando suas velas, o sarapatel, o acarajé e o vatapá nas ruas da cidade, as incontáveis igrejas e casarões coloniais. O texto contem duas frases que passaram a ser slogans da cidade
“Vem, a Bahia te espera
A Bahia e um estado de espírito” (9).
O fotografo e antropólogo francês Pierre Verger (1902-1996) desembarcou na Bahia em 1946 deixando para trás a turbulenta Europa do pós-guerra para encontrar um lugar pacifico, quase paradisíaco, no atlântico sul. Podemos tentar imaginar como o contraste de duas culturas distintas influenciou o seu trabalho posteriormente, em milhares de fotografias nas quais ele retrata a cidade através da sua gente, na área portuária, nas festas populares e nos rituais africanos do Candomblé.
Seduzido pela cultura e paisagem locais Pierre Verger permaneceu na cidade ate sua morte, meio século após a sua chegada. Durante esse período Verger visitou países africanos muitas vezes. Ele era um praticante entusiasmado do Candomblé e iniciado em seus rituais. Testemunhos de outros artistas e intelectuais confirmam a marcante contribuição de Pierre Verger para a construção da imagem de Salvador:
“Verger exerceu um papel extremamente importante na redescoberta da memória africana em nossa cultura”.
(Gilberto Velho, antropologista)
“Ele foi um desses estrangeiros que acabaram por incorporar o baianismo. Os arquivos deixados por Verger são indispensáveis para qualquer estudo sobre o estado da Bahia”.
(Darcy Ribeiro, antropologista)
“Ele era a ponte entre a Europa, a África e o Brasil. Ninguém compreendeu a alma e a cultura da Bahia tão bem quanto Verger. Esse francês, que conduziu tanta pesquisa na África, se tornou o mais baiano entre os baianos. Ele foi um baiano no fundamental”.
(Jorge Amado, escritor)
O artista argentino Hector Julio Bernabo, conhecido como Carybe (1911-1997) era, assim com Pierre Verger, um filho “adotado” pela Bahia. A primeira vez em que esteve em Salvador foi em 1938. Doze anos mais tarde Carybe se mudou para a cidade, tornando-a sua residência permanente. Carybe foi um artista prolífico que deixou inúmeras obras - painéis, murais, esculturas, pinturas e gravuras - espalhadas pela cidade, em espaços públicos e edifícios.
O principal tema da obra de Carybe era os orixás do Candomblé, os quais foram retratados das mais diversas formas e nos mais variados contextos, transformando-se em uma espécie de iconografia ‘oficial’ das divindades. A preferência de Carybe por esse tema demonstra a sua integração com a cultura afro-brasileira e as crenças religiosas.
Dorival Caymmi (1914-2008) tem um distinto lugar na musica popular brasileira, sendo o mais conhecido compositor baiano no país. Um dos seus maiores sucessos e uma reviravolta na cena musical brasileira foi “O que é que a baiana tem?” A composição foi gravada por Carmen Miranda e lançada no Carnaval de 1939, conferindo fama instantânea a Dorival. Uma longa e criativa carreira se seguiu pontuada por canções inesquecíveis canções populares embasadas nas tradições das melodias e ritmos do carnaval.
A vida diária a beira da praia e as paisagens de Salvador são temas constantes em suas canções. Dorival construiu uma reputação de compositor baiano mesmo vivendo no Rio de Janeiro – sua cidade de residência desde 1939. Ele desfrutou da amizade com Jorge Amado por toda a sua vida e influenciou muitos outros músicos, entre os quais os igualmente aclamados baianos Caetano Veloso e Gilberto Gil.
A estratégia turística da “cultura & entretenimento”
Ações e programas para o desenvolvimento do turismo em Salvador se tornaram prioridade para o governo local a partir da década de 1990, quando o Carnaval se torna um produto cultural “vendido” por todo o país. Com a reestruturação e ampliação do aeroporto o carnaval também passou a ser vendido internacionalmente para turistas europeus e americanos.
Salvador recebeu atenção especial do governo do estado uma vez que e considerado o portão de entrada para a região nordeste. O principal objetivo era ressaltar os atrativos turísticos existentes e ao mesmo tempo promover outros setores, explorando o potencial da cidade. Turismo cultural, eventos de negócios e atividades náuticas foram definidos como os setores estratégicos para Salvador. (10).
O programa de renovação urbana do Pelourinho deve ser entendido dentro dessa estratégia mais ampla que oferece atrações alternativas para o turismo de sol e praia. A estrutura da administração publica foi reformulada e em 1995 cultura e turismo se juntaram em uma mesma secretaria do governo estadual. Enquanto isso o Pelourinho ganhava o status de produto cultural, sendo anunciado nos meios de comunicação como o lugar por excelência da “cultura baiana”, onde se poderiam encontrar as autenticas raízes africanas e experimentar a atmosfera de “tambores mágicos”, um ecoando o convite de Jorge Amado feito em seu guia turístico publicado quarenta anos antes.
O Pelourinho esteve no centro da política de turismo cultural principalmente porque a renovação física foi planejada para se tornar uma vitrine das políticas públicas. Entretanto o projeto causou uma série de impactos negativos e recebeu severas criticas devido a falta de um enfoque mais democrático. A população que estava vivendo nos edifícios arruinados por décadas, nas mais precárias condições, não foi consultada previamente e não tomou parte do processo decisório.
O processo de renovação também apresentou sérios problemas de administração devido ao seu enfoque social e econômico. O programa não considerou o uso habitacional como parte do planejamento da área e o esquema de compensações oferecido a população local – uma quantia em dinheiro para as famílias a serem recolocadas – provou ter severos efeitos colaterais. A maioria mais pobre foi removida para bairros distantes, despovoando o centro urbano: em algumas áreas o bairro histórico apresentou um declínio de cerca de 67% entre 1980 e 2000 (11).
O plano para a reestruturação econômica da área nunca foi elaborado envolvendo os negociantes locais. Ao contrario, comerciantes estabelecidos em outros bairros da cidade – proprietários de lojas de souvenir, joalherias, lojas de moda, restaurantes de estilo, galerias de arte - foram convidados a ocupar os edifícios restaurados mais prestigiados do centro histórico. Apenas poucas lojas, bares e restaurantes locais permaneceram na área (12).
Todos esses efeitos negativos não foram sentidos de imediato. De fato, o impacto imediato da renovação do Pelourinho foi de um certo ‘deslumbramento’ perante uma beleza arquitetônica revelada ao mundo. A inauguração da primeira fase do programa, em 1992, trouxe Jorge Amado ao lado do governador do estado para celebrar, com a cobertura da mídia nacional, para celebrar o renascimento do mais significativo patrimônio histórico da Bahia.
Após dois anos, em 1994, o governo começa observar um declino no interesse da população local sobre o centro histórico. O fluxo sazonal de turistas, com significativas diferenças entre a baixa e a alta estação, não era suficiente para manter o nível de lucros dos negócios ao longo do ano. O governo então lançou programas como Pelourinho Dia e Noite na tentativa de atrair um maior contingente de visitantes.
Estava claro que o modelo de renovação urbana falhava no seu propósito de transformar o centro histórico em uma atração turística. A recuperação física era necessária e fundamental para o seu sucesso, mas sem outras ações não era sustentável. O apoio ao turismo cultural foi uma estratégia correta do governo do estado, mas o setor privado nunca perdeu o interesse em estender seus empreendimentos na orla marítima. O mercado imobiliário vinha sendo aquecido desde a década de 1980. A cidade estava recebendo mais turistas durante o Carnaval no verão e havia uma demanda por hotéis e imóveis de segunda residência.
O governo contribuía investindo em instalações para os turistas de veraneio. Muitos espaços públicos ao longo da costa foram renovados e receberam ciclovias, chuveiros, jardins e iluminação noturna. Os investidores privados investiam em bares, restaurantes, comercio e serviços locais. Um projeto em especial atraiu a atenção do publico: o Aeroclube, anunciado como o primeiro “shopping aberto” de Salvador, foi inaugurado em 1999.
Esse empreendimento foi planejado como um complexo de lazer “cultural e de entretenimento” e construído, com a permissão da prefeitura, sobre as areias da praia Jardim Armação. O projeto logo após sua inauguração causou intensa polemica em relação aos aspectos ambientais, pois foi situado em uma área de preservação. Mais interessante de se observar, porem, foi o impacto causado sobre o Pelourinho. O Aeroclube foi a grande novidade daquele ano e o interesse pelo centro histórico – sobretudo da população local – foi diminuído.
Esse fenômeno criado pela competição entre duas atrações turísticas distintas impõe uma importante questão ao ‘novo Pelourinho’: seria este o autentico lugar da cultura baiana ou uma mera fantasia para o entretenimento de turistas?
O programa se desenvolveu em seis fases entre 1992 e 1999 e a maior parte dos recursos financeiros foi fornecida pelo tesouro do governo do Estado da Bahia. Em 2000 Salvador foi incluída no Programa Monumenta, uma nova estratégia lançada pelo governo federal para a recuperação de sítios e monumentos históricos nacionais. O centro histórico recebeu recursos externos do governo federal e do Banco Interamericano de Desenvolvimento. Esse novo programa também implicou em novas diretivas para o processo de renovação urbana e pela primeira vez foram incluídos programas para habitação de interesse social.
A sétima fase do programa de renovação do Centro Histórico de Salvador foi iniciada em 2000 e continua em andamento. As principais mudanças, porem, aconteceram a partir de 2007. Naquele ano o grupo político que havia governado a Bahia, intermitentemente, ao longo de três décadas, foi substituído pelo partido de oposição.
Essa mudança política refletiu em mudanças nas políticas de preservação do patrimônio. O novo governo estadual estabeleceu acordos para a inclusão do governo municipal no processo de planejamento. Um novo órgão foi criado, o Escritório de Referencia do Centro Antigo, a fim de estabelecer uma política mais inclusiva, tanto social, com participação publica, quanto espacial, com a ampliação dos limites físicos de atuação governamental. O principal conceito dessas políticas públicas está na integração do Pelourinho ao contexto urbano, tomando-o como parte da cidade e deixando de tratar o bairro como uma ilha.
Apesar do cenário otimista vários problemas persistem. A burocracia aliada à falta de experiência em praticas democráticas de planejamento urbano impedem uma melhor colaboração entre órgãos da administração publica, setor privado e comunidades locais. O ritmo das obras de renovação e lento e isto resulta em colocar em risco o patrimônio edificado. Os casarões coloniais necessitam constante manutenção e muitos estão visivelmente se deteriorando a ponto de desabarem (13).
Conclusões: “Bahia é muito mais!”
A frase acima, na pagina inicial do website da Empresa de Turismo do governo da Bahia (Bahiatursa), poderia bem servir ao Centro Histórico: um bairro que não é apenas um belo cartão postal mas também o coração da cidade. Esse coração bate forte e bate apertado, entre alegria e agonia.
A cultura única de Salvador tem sido explorada intensamente nas campanhas publicitárias promovidas tanto pela Bahiatursa como pelas agencias de turismo, que criaram uma espécie de “mitologia” em torno dos seus habitantes e a experiência mágica de visitar a cidade (14).
As operadoras de turismo sempre enaltecem as características mais positivas da “cidade da alegria”, mas fica difícil negar problemas urbanos como poluição, degradação física, intenso tráfego e infraestrutura urbana deficiente. Mais preocupante é a realidade cotidiana de pobreza e violência de Salvador. Tais aspectos não podem ser desconsiderados e representam um enorme desafio a sustentabilidade do turismo na cidade. Durante as décadas de 1980 e 1990 o crescimento do turismo de certa forma pressionou o governo local e os órgãos públicos a investir em melhorias da paisagem urbana, como forma de reforçar a imagem da cidade como um lugar alegre e festivo.
Como foi mostrado neste artigo a identidade cultural da Bahia foi aclamada e reforçada através das obras de artistas e suas poéticas visões sobre o lugar e sua gente. O legado dessas obras de arte deram uma extraordinária contribuição para a preservação das tradições e memória de Salvador. Elas celebravam a cultura Africana e muitas vezes foram utilizadas para promover a cidade para os turistas.
O programa de renovação conduzido durante a década de 1990 representou, infelizmente, uma oportunidade perdida para o governo local em tornar claro o seu comprometimento com essas tradições africanas. Ao contrario, estabeleceu-se uma situação de conflito ao promover o Pelourinho como o coração negro da cidade ao mesmo tempo em que negligenciava seu principal patrimônio cultural: a sua gente. Vários autores tem apontado essa contradição e criticado o processo que transformou o Pelourinho em um não lugar, uma ilusão para o entretenimento dos turistas (15).
As iniciativas do governo em andamento pretendem conceber um processo diverso, mais democrático e mais sustentável. Entretanto a experiências passadas em Salvador para recuperar seu Centro Histórico podem estimular os promotores das políticas publicas a repensar suas estratégias. Empreendedores privados e comunidades tem dessa forma a oportunidade de colaborar e criar parcerias. Porem ha um longo caminho a ser percorrido ate que resultados positivos apareçam.
Os desafios são claros: reduzir a pobreza, inibir a violência e enfrentar os baixos níveis de educação. Eles estão todos presentes no Centro Histórico e superá-los não é apenas um problema de recuperar edifícios e fachadas mas a confiança de toda uma população em uma melhor qualidade de vida.
Salvador tem muitas vantagens como cidade turística. Tem uma localização extraordinária que oferece vistas magníficas do mar. Seu clima e paisagem tropicais são extremamente atrativos. Seu animado Carnaval traz visitantes de todo o mundo. Tem uma forte cena musical como os blocos Afro, uma manifestação única no país.
Salvador pode aproveitar dessas vantagens e usar sua cultura local e criatividade para alavancar o tanto o desenvolvimento social como econômico. Algumas organizações artísticas, por exemplo, tem ajudado a população mais pobre – principalmente de jovens – a encontrar trabalho e recuperar a autoestima. São essas iniciativas que poderão tornar possível vislumbrar uma “terra mágica” mais real, justa e acessível, para ser desfrutada por todos.
notas
1
LANCI da SILVA, Maria da Glória. Cidades turísticas: identidades e cenários de lazer. São Paulo, Aleph, 2004.
2
GUERREIRO, Goli. “A cidade imaginada: Salvador sob o olhar do Turismo”. Revista Gestão e Turismo. Salvador, ano 6, n. 11, 2005, p. 06-22.
3
Salvador esta situada em uma península mais ou menos triangular, tendo a Baia de Todos os Santos a oeste e o oceano Atlântico a leste.
4
De acordo com o Censo de 2000 Salvador tinha 2.443.107 habitantes, o que colocava a cidade na terceira posição no ranking populacional do país. A população estimada em 2009 e de 2.998.156 habitantes. Consultar IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. http://www.ibge.gov.br/cidadesat/topwindow.htm?1
5
GOMES, Marco Aurélio de Figueiras. “Historia, cultura y turismo e la ciudad contemporánea: algunas reflexiones sobre la rehabilitación del Pelourinho”. Medio Ambiente y Urbanización. Buenos Aires, Instituto Internacional de Medio Ambiente y Desarrollo, vol. 55, 2000, p. 66-78.
6
A primeira cidade noemada pela UNESCO foi Ouro Preto, em 1980.
7
Ver o texto do escritor angolano AGUALUSA, José Eduardo. “A África que deu certo” In: Guia Unibanco Brasil: Nordeste. São Paulo, BEI, 2006.
8
Em um estudo realizado pela Universidade Federal da Bahia e a prefeitura foram identificados 1400 terreiros na cidade. Consultar http://www.terreiros.ceao.ufba.br/analise.
9
AMADO, Jorge. Bahia de todos os santos. 25ª ed. (1ª ed., 1945). Rio de Janeiro, Livraria Martins Editora, 1973.
10
QUEIROZ, Lúcia Aquino de. Turismo na Bahia: estratégias para o desenvolvimento. Salvador, Secretaria da Cultura e Turismo / EGBA, 2002.
11
NOBRE, Eduardo A. C. Intervenções urbanas em Salvador: turismo e ‘gentrificação’ no processo de renovação urbana do Pelourinho. X Encontro Nacional da Anpur – Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano, 2003.
12
GOMES, Marco A. F. Op. cit.
13
“Estudo mostra que 111 casarões podem desabar”. A Tarde, 20/07/2010. http://www.atarde.com.br/cidades/noticia.jsf?id=4818153
14
GUERREIRO, Goli. Op. cit.
15
AZEVEDO, R. M. “Será o Pelourinho um novo lugar?”, Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Rio de Janeiro, n. 23, 1994, p. 130-137; GOMES, Mmarco A. F. Op. cit.; SANT’ANNA, M. “A recuperação do Centro Histórico de Salvador: origem, sentidos e resultados”. Revista de Urbanismo e Arquitetura. Salvador, UFBA, vol. 6, n. 1, 2003, p. 44-59.
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sobre a autora
Gloria Lanci é doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAUUSP) e autora do livro "Cidades Turísticas: identidades e cenários de lazer" (Aleph, 2004). Atualmente mora na Inglaterra e e' pesquisadora associada da University of the West of England e University of Bristol.