“Sob certo aspecto, a vida de uma estátua começa no dia em que ela termina. Concluiu-se a primeira etapa, pela qual, graças ao cuidado do escultor, o bloco de pedra adquiriu forma humana; uma segunda etapa, ao longo dos séculos, após alternâncias de adoração, admiração, amor, desprezo ou indiferença, e graus sucessivos de erosão e de uso, irá levá-la gradativamente ao estado mineral uniforme do qual a havia arrancado o escultor.”
Marguerite Yourcenar. O tempo, esse grande escultor.
“Na falta de identidade, os americanos têm uma dentição maravilhosa.”
Jean Baudrillard. América.
1. Introdução
Os franceses cunharam uma expressão para se referir a tudo aquilo que indica uma atualização, a qual pode ser de ideias, de valores culturais ou de conceitos: é a mise à jour, que poderia ser perfeitamente traduzida por “colocar em dia”, ou, simplesmente, “atualizar”. Esses termos, tanto em Francês como em Português, apontam para o inelutável fato de que um valor cultural não necessariamente perde o seu poder de evocação e de encantamento mesmo que já tenha, por assim dizer, cumprido a sua função e desempenhado as suas atividades.
Abrimos o nosso texto com estas frases para introduzir o objetivo desse artigo, a saber, estudar uma espécie de mise à jour precisa: o fascínio que a cultura urbana norte-americana – as suas cidades em geral, e New York em especial – ainda desperta em intelectuais e arquitetos franceses (1). Referimo-nos, nesse caso, à possibilidade de se investigar de que maneira essa suposta mise à jour tornou-se possível. E, como exemplo desse fascínio, podemos citar o filósofo francês Jean-Paul Sartre, que efetuou duas viagens aos Estados-Unidos da América, uma em 1945 e uma segunda em 1946, tendo produzido dois curtos, belos e pungentes ensaios sobre as cidades norte-americanas (2). Esses textos foram o remanejamento de seis das trinta e duas reportagens que o filósofo francês escreveu em solo norte-americano para os jornais Le Figaro e Le Combat, este último dirigido por seu então amigo Albert Camus. Mas, uma pergunta se impõe: o que Sartre teria escrito após o cotejamento do que conhecia previamente por fontes literárias e imagens icônicas com o que viu in situ? Ele escreveu, entre outras tantos temas, sobre a sua admiração com os arranha-céus de Chicago e de New York, e sobre o seu espanto com aquelas pequenas cidades “provisórias” perdidas no meio de grandes desertos, e que tinham sido criadas em torno de grandes empreendimentos industriais para os operários e as suas famílias. Nesse caso, ao descrever dessa maneira a paisagem urbana norte-americana, o filósofo francês colocou-se na longa tradição do “exotismo norte-americano” tal como este pode ser compreendido por um europeu (3).
Outro objetivo do nosso artigo seria a investigação de como este fascínio se deu em outro tempo e com outros atores. Ora, se é mister reconhecer que os valores culturais retornam no l’air du temps, não é nenhuma impossibilidade imaginar que esta, por assim dizer, repetição, ocorra no espaço da diferença. A mise à jour, assim como a nobreza, oblige. Nesse sentido, seria talvez profícuo confrontar essa visão escrita em meados da década de 1940 com uma visão mais contemporânea, em busca de pistas e traços que nos indicassem tanto a repetição quanto a diferença. Julgamos essa questão importante porque a visão sobre a cultura urbana norte-americana de Sartre já era uma espécie de “repetição na diferença” da representação que alguns intelectuais franceses – que haviam visitado a mítica “América” precedentemente – realizaram. Poder-se-ia afirmar, então, que o quadro que nos pintou Sartre era “tão somente” uma veladura a mais... Assim, Devemos convocar outras personagens para que a pintura realizada por Sartre receba não apenas uma camada a mais, mais uma camada que seja mais atual e que, por assim dizer, denuncie as transformações dessa mise à jour.
Nesse momento da nossa argumentação seria importante elencar os autores que escolhemos – os dignos proprietários intelectuais de um fascínio que julgamos ainda existente –, e que teriam realizado essa atualização da “América”. Selecionamos, como objeto da nossa análise, uma curta compilação de diálogos entre duas importantes personalidades da vida intelectual francesa – de um lado o filósofo Jean Baudrillard, e de outro o arquiteto Jean Nouvel –, intitulada Les objets singuliers: architecture et philosophie (4). Mas, restaria um esclarecimento suplementar: sobre o que teriam conversado esses nossos dois atores? Ambos lançaram luz sobre um domínio preciso, isto é, a arquitetura, a filosofia e a relação entre essas duas disciplinas, mas, igualmente, sobre um domínio mais multifacetado e heteróclito. Inicialmente, debateram alguns conceitos que são, por assim dizer, “clássicos” nesses tipos de debates: a Modernidade, a Pós-Modernidade, a arte e a cultura. E debateram, igualmente, a própria singularidade que certos objetos pareciam possuir na época em que ocorreu o colóquio: o telefone celular, o computador e a televisão. E dentro dessa labiríntica miríade de temas, é mister reconhecer que estamos diante de um texto leve e fluido, cujo tratamento é, não raras vezes, ousado; mas tudo isto é perfeitamente compreensível, posto que se trata da transcrição de diálogos, e, como sabemos, o discurso oral é quase sempre mais desenvolto e menos maduro que a frase escrita.
Ao leitor tal corpus – um pequeno livro de diálogos – pode parecer, dada a gravidade dos nossos propósitos, excessivamente “magro”, mas esse procedimento foi intencional, uma vez que não quisemos contrapor os textos jornalísticos (e, portanto, de “ocasião”) de Sartre a um discurso que fosse mais “grave” e mais refletido (e, sobretudo, mais “especializado”); trata-se, nesse caso, da aplicação do princípio de isonomia: isto é, comparam-se apenas objetos que são comparáveis. Ora, quando Sartre escreveu as suas reportagens tinha, certamente, plena consciência de quem era o seu público leitor, e, assim, sabia que não se dirigia a um público especializado em arquitetura e urbanismo, mas a leitores de jornais. Da mesma maneira, pode-se dizer que os colóquios entre Baudrillard e Jean Nouvel são, se não uma banalização das ideias do primeiro, uma tentativa bem sucedida de vulgarização destas (5).
2. Sobre uma nova América
Como já afirmamos, Sartre escreveu em 1945 e 1946 sobre o seu espanto em relação às novas cidades norte-americanas, que eram construídas provisoriamente em torno de empreendimentos comerciais e em meio às vastas pradarias e aos não menos vastos desertos. Para um intelectual europeu, com uma sólida tradição urbana, aquela paisagem parecia estranhamente exótica: casas desmontáveis, que não pareciam pesar sobre a terra, e uma cidade com o mínimo possível de equipamentos urbanos, uma clínica, um uniprix e uma única igreja para um “culto válido para todas as confissões” (6). Segundo Sartre, algumas destas cidades permaneciam e se tornavam metrópoles, outras, contudo, “partiam sobre rodas” em direção a outro grande empreendimento comercial. Em 2000, Jean Nouvel e Baudriallard tentam atualizar esta visão sobre a arquitetura e as cidades norte-americanas, mas desta vez sem o importante topos viático que é o espanto (7):
Quanto a mim [o argumento é de Jean Nouvel], o que me agrada nas cidades americanas – mesmo que eu não as faça um modelo –, é que você as atravessa sem pensar na arquitetura, você não pensa que aquela estética tenha uma história, etc.” (8)
Não se trata, como se pode perceber, de pensar as cidades norte-americanas a partir do conceito de “provisório” tal como compreendeu Sartre, mas ainda assim faz-se, aqui, uma referência ao tempo: se elas não são exatamente provisórias, é porque são, simplesmente, atemporais: a sua estética, para um europeu, só pode ser a-histórica, como se aquela arquitetura estivesse estado sempre ali, precisamente naquela esquina. Ora, tudo o que não tem história não a tem porque, justamente, está sempre preparado para o desaparecimento. De certa maneira, ao negar o caráter histórico das cidades norte-americanas, Jean Nouvel repetiu a dicotomia realizada por Sartre em 1945, isto é, de um lado, a cidade europeia, que ele chamou de “cidades museu”, e, de outro, as cidades norte-americanas, nas quais ele não conseguia ver com clareza nem uma história nem monumentos.
De certa maneira, compreender uma realidade sob este ponto de vista – e, nesse caso, uma cidade norte-americana – corresponde a compreendê-la a partir de um estereótipo, posto que equivale a pensá-la por exclusão limitando-a a um conceito que, além de vago e genérico, é definitivo, não admitindo nem exceções nem nuanças. E uma vez que abordamos esta expressão, o “estereótipo” – que frequentemente é uma chave de compreensão da alteridade –, é importante que se afirme o seu retorno no discurso de Jean Nouvel, ainda no mesmo parágrafo:
Pode-se circular ali [nas cidades norte-americanas] como em um deserto, como em um monte de outras coisas, sem se dar conta da commedia dell’arte, da estética, da história da arte, da história da arquitetura, etc. Estas cidades americanas nos permitem voltar a uma espécie de cena primitiva do espaço. (9)
Ora, ao naturalizar a paisagem urbana norte-americana, Jean Nouvel se colocou em uma espécie de “tradição narrativa”, uma vez que Sartre já o havia escrito em 1945, ao comparar as cidades norte-americanas às pradarias da Andaluzia e aos desertos. E, nessa operação de analogia realizada pelo filósofo francês, as construções tornaram-se “partes mortas da paisagem humana”, como colinas e rochas (10). As observações de Jean Nouvel, portanto, não são muito originais, mas, é lícito que nos perguntemos se um estereótipo poderia pretender-se original. E, apenas para responder a nossa pergunta, devemos afirmar que a etimologia do termo não deixa dúvidas, trata-se tão somente de um clichê, de um padrão a ser quase indefinidamente repetido, como, aliás, na arte que está na origem do próprio nome, a estereotipia. Mas em defesa dos nossos autores, é mister reconhecer que nenhum deles pretendia fazer um estudo aprofundado ou original das cidades norte-americanas; no caso de Sartre, como já foi aqui escrito, publicava-se um “escrito de ocasião” que quase desapareceria em meio a uma obra muito vasta, e no caso de Jean Nouvel e de Baudrillard “confrontavam-se um arquiteto e um filósofo” sem que existisse, naturalmente, um roteiro pré-estabelecido.
Aludimos no primeiro capítulo que o filósofo e o arquiteto franceses trataram dos mais diversos conceitos, e em um determinado momento do colóquio, Baudrillard insiste no fato de que o futuro da arquitetura talvez resida no redy-made, que, nesse caso, seria uma colagem de elementos pré-fabricados, e cita como exemplos anunciadores dessa nova arquitetura o museu Guggenheim de Bilbao e as cidades norte-americanas: “Em certas cidades norte-americanas, já é o caso.” (11) Jean Nouvel, por sua vez, desenvolve a proposta:
O aço laminado, os plásticos nervurados, os perfis leves, os cabos, os telhados, um programa que integre os equipamentos, pequenas máquinas redy-made produzidas por milhões e utilizando, da melhor maneira, o nosso conhecimento sobre a autonomia energética. (12)
Porém, essa visão que coloca os Estados Unidos da América na vanguarda da arquitetura está muito longe de ser nova e remonta ao final do século XIX, e talvez a única asserção realmente contemporânea seja a preocupação com a eficiência energética. Ora, Sartre já havia escrito sobre a questão, inserindo-a, no entanto, no contexto cultural da sua época. O filósofo existencialista o fez como muitos outros intelectuais europeus, e a guisa de exemplo podemos citar o influente A mecanização no poder, livro escrito por Gideon e que tem por tema, justamente, a mecanização da sociedade norte-americana. Portanto, as conclusões de Jean Nouvel e de Baudriallard nada têm de muito novo, e Sartre, convém acrescentar, abordou a questão da mecanização a partir das casas desmontáveis, que ele comparou a cabines: “No interior, com os seus móveis em série, o seu aquecimento central, as suas lâmpadas elétricas, as suas geladeiras, fazem pensar em cabines. Cada pequena polegada destas pequenas peças de aspecto anti-séptico foi utilizada: há armários nas paredes e gavetas sob as camas.” (13) É certo que ninguém no nosso século conseguiria associar geladeiras e gavetas sob a cama à ideia de modernidade, mas é igualmente certo que o “moderno” – assim como os materiais de construção – envelhece mais rápido do que normalmente concedemos. O que Baudrillard e Jean Nouvel fizeram foi pensar a mítica “América” do progresso a todo custo e da mecanização acelerada a partir da ótica do seu tempo, ou, se preferirem, a partir do l’air du temps.
Quando intelectuais franceses se reúnem diante de uma plateia ou diante de uma mesa em um café para discutir sobre a arquitetura e as cidades norte-americanas, um tema, evidentemente, não pode faltar: New York. Ora, sabe-se que nenhuma cidade norte-americana é tão emblemática e guarda tanto poder de evocação quanto esta metrópole. E no caso do colóquio entre Jean Nouvel e Baudrillard isto não foi diferente, e New York surgiu – ou foi convocada – não poucas vezes. E há um trecho que ilustra perfeitamente a nossa abordagem de analogia, uma vez que os intelectuais franceses se referiram a um fantasma recorrente no imaginário europeu: New York como a cidade do fim do mundo, ou, se preferirem, New York como a cidade apocalíptica por excelência (14). E fazendo eco a essa longa tradição de associação entre essa cidade e a sua “inevitável” destruição, Baudrillard afirma: “Ora, New York provoca a estupefação de um mundo já acabado, um mundo absolutamente apocalíptico, mas pleno na sua verticalidade – e nisto ela suscita finalmente uma forma de decepção, porque ela está presente, e que não se pode mais destruí-la.” (15)
Devemos reter destas frases duas questões, a primeira é o fato de que New York despertaria no imaginário de um europeu a estranha sensação de que se percorre não exatamente uma cidade vibrante e próspera, a capital simbólica de um império, a metonímia de todo um país, mas uma melancólica cidade em ruínas. Ou, em outras palavras, uma cidade de mortos, na qual os arranha-céus não seriam senão as silenciosas testemunhas de uma glória de antanho. E nisso reside a decepção aludida pelo filósofo francês, New York não é, finalmente, o que parece ser, e cabe ao viajante reconhecer o seu logro: New York cidade apocalíptica que é, ao mesmo tempo, New York cidade indestrutível. A segunda questão é o uso por Baudrillard do termo “decepção”, sentimento o qual Sartre afirmou ter sentido ao ver pela primeira vez uma cidade norte-americana, “vertical e reta contra o céu”: “Quais são as impressões de um europeu quando ele desembarca em cidade norte-americana? Inicialmente, ele se diz que lhe pregaram uma peça.” (16) Embora não tenha usado o termo “decepção”, o filósofo francês alude ao fato de que, finalmente, decepciona-se com o fato de que “a altura média de uma cidade dos Estados Unidos é sensivelmente inferior aquela de uma cidade francesa.” (17) Isto significa que, diante da expectativa de encontrar uma cidade vertical, tem-se a decepção de que os arranha-céus não são tão numerosos assim. Nas cidades norte-americanas, o viajante europeu espanta-se, mas pode, igualmente, decepcionar-se ao não ver as suas – grandes – expectativas realizadas.
Mas, retornando à primeira questão aludida por nós, a saber, New York como a cidade apocalíptica, Sartre comentou:
Hoje, para um francês que chega da Europa, eles [os arranha-céus] não são senão monumentos históricos, testemunhos de uma época passada. Eles ainda se elevam sobre o céu, mas o meu espírito não os segue mais, e os nova-iorquinos passam aos seus pés sem sequer olhá-los. Eu não posso considerá-los sem melancolia: eles falam sobre uma época na qual nós acreditávamos que a última das guerras acabava de terminar, quando nós acreditávamos na paz. Eles já estão um pouco descuidados: amanhã, talvez, eles sejam demolidos. Em todo caso, foi necessária, para construí-los, uma fé que nós não temos mais. (...) Eu vejo ao longe o Empire States Building, ou o Chrysler Building, que apontam em vão para o céu, e eu imagino, de repente, que New York já tem uma história, e que está a ponto de adquirir as suas ruínas. (18)
Entre o anúncio apocalíptico de Baudrillard e as ruínas de Sartre há um tom bastante semelhante, ambos parecem descrever o cenário urbano de uma cidade devastada por um acidente natural ou por uma guerra, na qual os arranha-céus seriam, em uma determinada visão, a contradição impossível da plenitude, e, em outra, o símbolo de uma fé e de uma prosperidade que já não mais existiam. E esse símbolo torna-se ainda mais forte porque foi descrito quando a guerra – mais uma quando se pensava e se tinha a convicção de não mais aconteceriam – finalmente revelava todo o horror dos campos de concentração e todo o mal absoluto da arma nuclear. É a perplexidade e a decepção de Baudriallard: essa cidade, que muito teria visto, deveria perdurar apesar de si mesma e apesar dos homens.
Ainda sobre New York, devemos, quase obrigatoriamente, comentar um evento ocorrido um ano depois do colóquio e que teria marcado definitivamente a imagem de um país e de uma cidade e que não foi, naturalmente, testemunhado por Sartre e nem comentado por Jean Nouvel e por Baudrillard: a destruição das torres do World Trade Center. Não se tratava mais da destruição de cidades a partir do prisma das guerras ditas “convencionais”, como as de 1914-18 e 1940-45, mas da destruição em uma guerra difusa e mais difícil de ser lutada pelos países industrializados e com grande capacidade de mobilização militar. E eis o sentimento que as torres que desapareceriam um ano depois despertavam em Baudrillard: “Se eu tomo a verdade de um edifício como as duas torres do World Trade Center, neste local em que a arquitetura exprime, significa, traduz em uma forma plena, edificada, o contexto de uma sociedade na qual já se desenha uma época hiper-real.” (19) E Baudrillard continua: “Essas duas torres parecem duas faixas perfuradas. Hoje, dir-se-ia talvez que elas clonam uma a outra, que elas estão na clonagem. Seriam elas uma antecipação do nosso tempo?” (20)
Tiradas do seu contexto arquitetônico e do próprio contexto do colóquio, essas frases são perturbadoras porque antecipam algo que o filósofo francês não previa e sequer desconfiava: a destruição de um dos mais fascinantes símbolos de uma das cidades norte-americanas mais impressionantes aos olhos de um europeu. Ora, quando Sartre escrevia sobre os arranha-céus, ele mencionava aqueles edifícios art-déco que já na sua época pareciam ultrapassados e inofensivos; Baudrillard, por sua vez, sequer os mencionava, escrevia diretamente sobre o que ele antevia como o futuro da arquitetura, e não apenas da arquitetura de um país, mas da arquitetura de todo o Ocidente. L’air du temps ou sinal dos tempos?
De qualquer sorte, as torres gêmeas em sua verticalidade representavam para Baudrillard a arquitetura de New York e o futuro da arquitetura do Ocidente, assim como os arranha-céus art déco representavam para os intelectuais europeus de meados do século passado a própria modernidade radical dos Estados Unidos da América. E, nesse sentido, as ruínas que Sartre já dizia ver nos arranha-céus dessa cidade e a imagem da cidade apocalíptica que Baudrillard evocava, e que ele, de alguma maneira, afirmava ser “indestrutível”, se tornaram, face aos acontecimentos de 2001 (e se os leitores me concederem a hipérbole), perturbadoras no seu caráter de premonição.
3. Últimas considerações
Sartre escreveu os seus ensaios sobre o caráter das cidades norte-americanas, e, cinquenta e cinco anos depois, Jean Nouvel e Baudrillard fizeram uma espécie de mise à jour: passamos, então, das casas desmontáveis ao redy-made, da cidade natureza à cidade sem história e da cidade em ruínas à cidade apocalíptica. As novas imagens atualizaram as anteriores e, ao mesmo tempo, repetiram-nas, sempre como uma tentativa de compreender uma alteridade – que neste caso é urbana – radical. Os próprios arranha-céus das cidades norte-americanas tiveram a sua arquitetura transformada, sem, contudo, deixar de fascinar os intelectuais europeus que sempre lograram ver neles os legítimos representantes de uma época. E, neste caso, ora foram interpretados como os símbolos decadentes de uma pretérita era de prosperidade, ora foram vistos como o anúncio de uma hiper-realidade e de uma arquitetura que se clona.
É este o caráter de adaptação dos mitos: as cidades norte-americanas que, a partir do século XIX passam a fascinar os viajantes europeus, se transformaram ao longo dos séculos atualizando-se. Temos, então, as cidades da conquista do Oeste, que Sartre comparou com as “cidades desmontáveis” cuja descrição ele nos legou em 1945, e há ainda as “cidades sem história nem estética” pensadas por Jean Nouvel e Baudriallard. Trata-se de uma corrente cujos elos são tanto criados quanto reproduzidos pelas fotografias, filmes, e, é claro, pela literatura e pela filosofia.
Seria conveniente acrescentar, ainda, que a mise à jour, da maneira como a interpretamos, não deixa de ser uma possibilidade de tentar driblar a morte: para não desaparecer muda-se a face, repetindo-se, então, na diferença. Mas não estaríamos longe da verdade se afirmássemos que, em algum momento, os eventos históricos na sua mais absoluta imprevisibilidade podem destruir qualquer possibilidade de repetição, e o chamado “onze de setembro” foi um desses eventos de ruptura que inauguraram novas e inesperadas maneiras de ver as cidades norte-americanas.
notas
1
Trata-se, naturalmente, de um pressuposto, mas que será (ao menos assim esperamos) devidamente justificado nas próximas páginas.
2
Trata-se dos textos intitulados Villes d’Amérique e New York ville coloniale, ainda sem tradução no Brasil. Para maiores detalhes ver referências.
3
Entre tantos outros, há os romances Amérique, de Chateaubriand, New York, de Paul Morand e Voyage au bout de La nuit, de Céline, todos os três amplamente conhecidos nos meios literários franceses, e que, em diferentes períodos históricos, descreveram e formaram uma “América” mítica e exótica.
4
Os colóquios foram realizados a partir da iniciativa da Maison dês écrivains e da École d’Architecture Paris-La Villette, e fez parte de um projeto intitulado Passarelles dans La ville.
5
Baudrillard é autor de uma narrativa de viagem sobre os Estados Unidos da América. Para maiores detalhes ver referências.
6
SARTRE, Jean-Paul. Villes d’Amérique New York ville coloniale Venise de ma fenêtre. Paris: Editions du Patrimoine, 2002, p. 17. A tradução do Francês para o Português é nossa.
7
Como todo gênero literário a “narrativa de viagens” ou “narrativa viática” tem os seus topoi, a partir dos quais o escritor constrói as suas narrativas. Outros topoi desse gênero são o exotismo, o dépaysement (o sentimento de estar fora e distante do seu local de origem) e o estereótipo.
8
BAUDRILLARD, Jean; NOUVEL, Jean. Les objets singuliers: architecture et philosophie. Paris: Calmann-Lévy, 2000, p. 27. A tradução do Francês para o Português é nossa.
9
Idem. Ibidem.
10
Eis a citação completa: “Eu não tinha olhos preparados para os arranha-céus e eles não me espantavam: eles não pareciam para mim construções humanas habitadas por homens, mas como estas partes mortas da paisagem humana, como rochas, colinas, que são encontradas nas cidades construídas sobre um solo tortuoso e que se contorna sem sequer se prestar atenção.” SARTRE, Jean-Paul. Villes d’Amérique New York ville coloniale Venise de ma fenêtre. Paris: Editions du Patrimoine, 2002, p. 15. A tradução do Francês para o Português é nossa. A semelhança da comparação feita por Jean Nouvel com as observações realizadas por Sartre cinquenta e cinco anos antes não deixa dúvidas: é a eficaz ação do l’air du temps.
11
BAUDRILLARD, Jean; NOUVEL, Jean. Op. Cit., p. 78. A tradução do Francês para o Português é nossa.
12
BAUDRILLARD, Jean; NOUVEL, Jean. Op. Cit., p. 85. A tradução do Francês para o Português é nossa.
13
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 17. A tradução do Francês para o Português é nossa.
14
“Após Hiroshima, New York se tornou o lugar privilegiado da representação da utopia e um destino humano com as cores do apocalipse.” Pinçonnat, Crystel. Le fantasme du retour du chaos dans l’écriture de New York. Em: The French Review, V. 72, nº 02, (Dec. 1998), p. 253. A tradução do Francês para o Português é nossa.
15
BAUDRILLARD, Jean; NOUVEL, Jean. Op. Cit., p. 29. A tradução do Francês para o Português é nossa. Destaque nosso.
16
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 23. A tradução do Francês para o Português é nossa.
17
Idem. Ibidem. A tradução do Francês para o Português é nossa.
18
SARTRE, Jean-Paul. Op. Cit., p. 42. A tradução do Francês para o Português é nossa.
19
BAUDRILLARD, Jean; NOUVEL, Jean. Op. Cit., p. 14. A tradução do Francês para o Português é nossa. Baudrillard define “hiper-real” nesses termos: “Hoje, a abstração não é mais a do mapa, do duplo, do espelho ou do conceito. A simulação não é mais a de um território, de um referencial, de uma substância. Ela é a geração por modelos de um real sem origem nem realidade: hiper-real.” Simulacres et simulation. Paris: Galilée, 1981, p. 10. Baudrillard analisou os acontecimentos do “onze de setembro” no ensaio intitulado Requiem pour les Twins Towers. E talvez fosse hiper-realidade, tal como compreende o nosso autor, a cobertura midiática maciça que se seguiu após o evento, e a repetição, como já afirmamos, quase infinita das suas imagens. Na sua narrativa viática sobre os Estados Unidos da América esse país já era descrito a partir do conceito de hiper-realidade: “A América não é nem um sonho, nem uma realidade, é uma hiper-realidade. É uma hiper-realidade porque é uma utopia que desde o início é vivida como realizada. Tudo aqui é real, pragmático, e tudo o deixa sonhador.” Amérique. Paris: Grasset et Fasquelle, 1986, p. 32. Tradução nossa do Francês para o Português.
20
BAUDRILLARD, Jean; NOUVEL, Jean. Op. Cit., p. 14. A tradução do Francês para o Português é nossa.
bibliografia complementar
BAUDRILLARD, Jean. Power Inferno ; Requiem Pour Les Twins Towers ; Hypothese Sur Le Terrorisme ; La Violence du Mondial. Paris: Galilée, 2002.
PINÇONNAT, Crystel. Le fantasme du retour du chaos dans l’écriture de New York. Em: The French Review, V. 72, nº 02, (Dec. 1998).
YOURCENAR, Marguerite. O tempo, esse grande escultor. Trad.: Ivo Barroso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.