A fábrica e o arquiteto João Filgueiras Lima
João Filgueiras Lima, conhecido popularmente como Lelé, formou-se em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1956. O primeiro momento de sua trajetória profissional foi entre os anos de 1957 a 1965, coincidindo com a época em que surgiu o plano de Brasília. Recém-formado, aos 25 anos Lelé vai para Brasília trabalhar sendo responsável pela construção da superquadra 108 Sul. Um grave problema enfrentado na construção da nova capital brasileira foi o tempo. Brasília precisava ser construída antes do término do mandato de Juscelino Kubitschek, ou seja, em um período de cinco anos. Diante desse fato, foi necessária a introdução de métodos racionalizados que se apresentavam como a maneira mais adequada para seguir o ritmo acelerado da construção da nova capital (1).
A construção industrializada nesta época estava mais difundida no Leste Europeu. Diante disso, em 1963, a Universidade de Brasília, sob o intermédio de Darcy Ribeiro, patrocinou uma viagem a Europa para Lelé verificar os sistemas construtivos e, com isso, adquirir conhecimento necessário à implantação de uma fábrica de pré-fabricados do CEPLAN (Centro de Planejamento da UnB). As técnicas da pré-fabricação indicavam um novo caminho para a arquitetura, e essa viagem teve uma grande importância para que ele pesquisasse o que os estrangeiros estavam realizando com relação à pré-fabricação. No entanto, a produção desenvolvida pelos países visitados por Lelé não poderiam ser integralmente aplicados a nossa cultura. Essa tecnologia deveria ser convertida para a realidade brasileira, englobando desde a organização física-espacial até a execução e a montagem dos elementos pré-fabricados (2).
A construção da nova capital representou para Lelé o seu ponto de partida, incorporando os conceitos de pré-fabricação que orientaram os seus futuros projetos. A experiência de Brasília foi, sem dúvida, o grande acontecimento que despertou o seu interesse em realizar pesquisas no campo da industrialização e pré-fabricação, configurando-se como um momento decisivo que até hoje responde pelas gradativas transformações da sua produção (3).
Em 1963, o arquiteto e sua esposa Alda Rabello Cunha, sofreram um acidente automobilístico, ficando dois meses internados no hospital de Brasília. Isso possibilitou o convívio e a amizade entre Lelé e o médico Aloysio Campos da Paz Junior, que havia voltado da Inglaterra e dirigia o serviço de ortopedia do hospital. Aloysio tem uma visão de que o mais importante em um hospital é o ser humano, e a partir dessa visão humanista se estabeleceu uma identidade entre os dois. Identidade que mais tarde se tornou profissional, transformando-se em parceria na criação da Rede Sarah (4).
A rede Sarah foi criada em 1976, com o nome de Subsistema de Saúde na Área do Aparelho Locomotor, a partir de um documento elaborado por Lelé, pelo médico Aloysio Campos da Paz Junior e pelo economista e engenheiro Eduardo Kertész, cuja proposta foi amadurecida ao longo de treze anos (5).
A obra arquitetônica de Lelé caracteriza-se pela busca da racionalização e da industrialização da arquitetura. A partir de sua formação na Escola Militar e em uma faculdade mais direcionada para a parte técnica, o arquiteto se desenvolveu nos procedimentos com os pré-fabricados. Os seus primeiros estudos foram desenvolvidos utilizando o concreto pesado. Posteriormente, começa a desenvolver estudos dessa tecnologia com argamassa armada, onde as peças adquiriam uma maior resistência com poucos centímetros de espessura, tornando-as mais leves e flexíveis e, consequentemente, melhorando as condições técnicas para o transporte.
Lelé consegue adequar os projetos da Rede Sarah às necessidades tecnológicas e ambientais do programa hospitalar, estabelecendo princípios que estruturam todos os edifícios da rede, como: padronização de elementos construtivos, espaços verdes, iluminação e ventilação naturais. O Brasil por ser um país de clima tropical, e pela grande maioria dos hospitais dessa rede estar localizados em regiões de clima quente e úmido, o uso da ventilação natural, como uma estratégia para se alcançar o conforto térmico, é essencial. Além desse tipo de solução propiciar ambientes mais agradáveis e mais salubres, evita o uso do ar condicionado e conseqüentemente o gasto excessivo de energia elétrica.
CTRS e industrialização das construções
O Centro de Tecnologia da Rede Sarah - CTRS foi criado através da Rede de hospitais Sarah, buscando estender a rede a todo o território nacional. Seus principais objetivos são: 1) projetar e executar os edifícios da rede baseado na industrialização, buscando economia e rapidez na construção; 2) projetar e executar os equipamentos hospitalares, se estes oferecerem vantagens com relação ao mercado e 3) executar a manutenção dos prédios e equipamentos de todas as unidades da rede (6).
Os sistemas de pré-fabricação são aplicados em todas as etapas dos edifícios da rede Sarah, indo desde a superestrutura, até objetos hospitalares, como a cama-maca. Posteriormente, esses mesmos sistemas foram utilizados em outros projetos do arquiteto como os centros administrativos e os tribunais de contas.
Sempre muito ligado às técnicas construtivas, a pré-fabricação o possibilitou criar elementos com um repertório formal próprio, e foi na arquitetura hospitalar que ele aperfeiçoou as técnicas da industrialização, desenvolvendo formas mais funcionais e leves. Lelé constrói obras que oferecem a população espaços agradáveis, econômicos e funcionais.
Em 1992, o CTRS começou a funcionar em instalações provisórias, sendo somente em 1993 que surgiram as instalações definitivas. O centro está localizado em Salvador, BA, no mesmo terreno do hospital Sarah, em uma área ampla de aproximadamente 800m de comprimento e 100m de largura, totalizando uma área construída de cerca de 20.000 m2. (7)
O centro se desenvolve em prédios térreos interligados, com um pé-direto de 6 metros, onde funcionam as oficinas de metalurgia pesada, metalurgia leve, argamassa armada, marcenaria e plástico.
Na parte superior das oficinas, têm-se mezaninos onde se localizam os setores técnicos, administrativos e o escritório do arquiteto Lelé, acompanhando toda a produção dos elementos construtivos. A interligação das oficinas acontece por corredores em dois níveis superpostos, sendo que a superior atende os escritórios e vestiários, e a inferior serve para o abastecimento e intercomunicação dos setores de produção (8). Essa integração entre o espaço construído, usuários e produção é fundamental para Lelé, e se estabelece desde a concepção do projeto:
Vivemos em um mundo onde a palavra-chave é integrar. A arquitetura tem de integrar vários saberes, e fragmentada do jeito que está é um caos. [...] É preciso que as equipes estejam muito azeitadas, trabalhando juntas, discutindo juntas a cada momento. (9)
Processo de concepção do projeto
A concepção dos hospitais da Rede Sarah acontece de forma multidisciplinar, ou seja, com a participação de profissionais de diversas áreas, como arquitetos, paisagistas, engenheiros civis, engenheiros mecânicos, engenheiros elétricos, entre outros. O responsável pelo projeto arquitetônico e pela coordenação técnica é o arquiteto Lelé, supervisionando todo o processo de projeto de forma muito minuciosa, o que facilita as etapas posteriores de execução e de manutenção. Além disso, em cada setor existem profissionais responsáveis pela coordenação da equipe.
É importante ressaltar que em cada setor descrito acima, existem muitos outros profissionais, como os operários, que trabalham nas oficinas do CTRS. No setor de projetos, têm-se outros arquitetos que auxiliam o Lelé na confecção dos hospitais, e com relação aos equipamentos hospitalares, existe um profissional exclusivo (10) para resolver a automação dos edifícios, como esquadrias móveis, piscinas de treinamento, entre outros. Além disso, existe a arquiteta paisagista Beatriz Secco que é responsável pelo paisagismo dos hospitais e o arquiteto contava com a colaboração do artista plástico Athos Bulcão, falecido no ano de 2008, responsável pela integração das obras de arte.
A concepção do projeto arquitetônico acontece simultaneamente aos outros projetos. Durante a definição do esboço do edifício, já ocorre uma reunião do arquiteto com o engenheiro estrutural Roberto Vitorino e com o engenheiro mecânico George Raulino, para a compatibilização do projeto arquitetônico com os complementares. Além de, otimizar tempo, este procedimento proporciona a integração entre os diferentes projetos desde o início, proporcionando um melhor funcionamento do edifício na prática.
Como o escritório de Lelé e da maior parte da sua equipe é no CTRS, o processo de projeto é facilitado, pois ao mesmo tempo em que se tem o processo de concepção de uma peça-pré-fabricada, em uma oficina ao lado ela é executada pelos operários, analisada e coordenada pelo arquiteto. O cuidado rigoroso com a concepção do projeto arquitetônico, com a confecção das peças pré-fabricadas e com a execução da obra acontece pelo fato de que todas as etapas são realizadas pela sua equipe, inclusive a manutenção.
O projeto arquitetônico desenvolvido chega a um excelente nível de detalhamento. A fim de auxiliar na confecção das peças e posteriormente as suas montagens na obra, são realizados detalhes na escala 1:1, até dos encaixes dos parafusos. Em um hospital, chega-se a 10.000 desenhos de detalhes (11). Além disso, é desenhado um esquema sobre como realizar essa montagem em obra, buscando facilitar a execução do edifício e acelerar sua montagem. Este procedimento é importante, pois o CTRS se localiza na cidade de Salvador, e grande parte dos hospitais da rede estão localizados em outras cidades, como Rio de Janeiro, Fortaleza, Brasília, entre outras.
Outro aspecto importante é a modulação. Em edifícios complexos, como hospitais, que exigem um método construtivo rápido e racionalizado, a padronização é importante, não somente para aumentar a produtividade, como também para a compatibilização dos projetos. Deste modo, nos hospitais Sarah se adotou uma modulação que possibilita uma maior precisão no alcance das medidas, melhorando o entrosamento entre os diversos projetistas. A modulação estabelecida é utilizada no projeto arquitetônico e nos complementares, além do seu uso na confecção das peças pré-fabricadas, facilitando a comunicação entre os projetos.
Os hospitais da Rede Sarah são um exemplo bem sucedido da utilização de sistemas modulados. O arquiteto Lelé afirma que já utilizou vários módulos como 1,10m e 1,20m (12), e ele acredita que adotar uma medida para modulo é também questão de bom senso, devido a dificuldade de definir qual a melhor dimensão. Atualmente, é utilizado o módulo de 1,25m e os múltiplos desse número por se apresentar mais adequado, além de uma série de vantagens, que serão abordadas a seguir.
Primeiramente, os módulos adotados de 1,10 e 1,20 apresentaram problemas com relação aos materiais de revestimento de piso, onde são utilizados basicamente porcelanato e o prensado melamínico. Na Rede Sarah, com relação aos prensados, são utilizados peças pré-cortadas de 62,5cm, seguindo assim a modulação básica de 1,25m. Já as cerâmicas, o tamanho utilizado é 50cm, dificultando o uso do módulo de 1,20m. Isso facilita o assentamento dos pisos, racionaliza o consumo dos materiais e reduz o desperdício (13).
As enfermarias do Sarah são grandes salões, permitindo a mobilidade dos pacientes. No entanto, quando é necessário privacidade, é possível isolar os leitos. Cada boxe dos leitos possui uma medida de 2,50m, o que também é facilitado pelo módulo de 1,25m (14).
As instalações elétricas são inseridas em calhas que correm horizontalmente pelas vigas metálicas ou em dutos verticais, servindo inclusive para as redes hidro-sanitárias contra incêndio e para o ar condicionado. Dessa forma, as soluções são padronizadas e diminui-se a variedade de materiais (15). As paredes de argamassa armada são confeccionas obedecendo a essa modulação, tendo uma largura de 0.625m. Ao contrário das dimensões horizontais, não há qualquer modulação na direção vertical, sendo esta determinada de acordo com a necessidade do projeto (16).
Produção: Centro de Tecnologia da Rede Sarah - CTRS
O sistema construtivo dos Hospitais da Rede Sarah é composto por componentes pré-fabricados, basicamente formados por estrutura metálica e vedação em argamassa armada, produzidos no CTRS em Salvador. Isto possibilita maior flexibilidade, facilitando as etapas de construção, montagem e principalmente a manutenção e as futuras ampliações dos hospitais. Em edifícios de saúde isso se torna importante, pois a flexibilidade possibilita adequação às novas técnicas de atendimento, de tratamento e aos novos equipamentos utilizados. Segundo Pressler (2006) (17), apesar de geralmente demandar um investimento inicial mais oneroso, a flexibilidade pode resultar em aumento da eficiência operacional e dos funcionários, e também economias potenciais em futuros projetos de renovação. No caso dos hospitais da Rede Sarah, o fato da produção ser industrializada reduz este custo inicial, viabilizando empreendimentos flexíveis.
A oficina destinada à metalúrgica pesada produz elementos e estruturas mais pesadas, utilizando a tecnologia da chapa dobrada, que garante um desenho específico das peças (18).
Na oficina de argamassa armada são produzidas todas as divisórias dos hospitais. Na confecção das armaduras são utilizadas telas de aço industrializadas, e incorporados vergalhões de aço especial para combater os esforços mecânicos e específicos. A argamassa é misturada nas argamassadeiras e distribuída mecanicamente para os postos de fundição. Em seguida, essa argamassa é injetada por gravidade nos moldes metálicos através de um funil, sendo despejada dentro das fôrmas. Enquanto as fôrmas estão sendo preenchidas de argamassa armada, vibradores acoplados aos moldes metálicos garantem uma distribuição homogênea do material, evitando assim as possíveis bolhas. Depois das fôrmas estarem preenchidas, elas são içadas por pórticos e imersas dentro de tanques com água aquecida, com proteção contra retração, onde ficam por volta de 4 horas, a uma temperatura de 60°C. A água aquecida tem a propriedade de acelerar o processo de cura da fôrma (19).
Após a cura, esses moldes são transferidos para um sistema mecânico de translação onde se realiza a desmontagem. Posteriormente à desfôrma, é necessário dar acabamento às peças, para remoção de rebarbas, lixamento, entre outros aspectos que exigem um refinamento. Em seguida, as peças são transferidas para o controle de qualidade, e feito isso, as paredes estão prontas e são encaminhadas ao estoque. Os materiais são condicionados em caixas, totalmente especificadas para facilitar o trabalho no canteiro e, posteriormente, são transportadas para as obras. O CTRS tem capacidade de produção equivalente a 3 a 4 ciclos por dia.
A confecção das coberturas é um processo minucioso, uma vez que a arquitetura de Lelé é marcada pelas coberturas curvas, com uso dos sheds. O raio estabelecido no projeto para os sheds é desenhado no chão para servir de base aos operários. Depois de determinar o raio, as telhas são passadas várias vezes em uma calandra, até conseguir o raio desejado. Posteriormente, as peças são encaminhadas para a oficina de pintura, onde recebem acabamento e, após a secagem, são embaladas.
Na oficina de metalúrgica leve, são produzidos os elementos que exigem um acabamento mais rigoroso, como esquadrias, mobiliários e equipamentos hospitalares. Nos primeiros hospitais da Rede Sarah, as esquadrias abriam manualmente e, atualmente, são motorizadas. Esse setor de automação possui um rigor técnico muito grande, sendo todas as peças fabricadas no CTRS, no setor da mecatrônica e da eletrônica. Como exemplos podem-se citar as esquadrias do hospital do Rio de Janeiro, que são todas motorizadas, a piscina desenvolvida pelo arquiteto para treinamento dos pacientes, a cama-maca, cuja altura é móvel para facilitar a transferência dos pacientes da maca para a cadeira e o bondinho do hospital de Salvador, que realiza o transporte dos pacientes do ponto mais baixo para o ponto mais alto do terreno. Além disso, os carros que transportam os pacientes também são desenvolvidos no CTRS.
Já a marcenaria é responsável pela fabricação de elementos de acabamento (portas e divisórias) e mobiliários (armários, estantes, mesas, cadeiras, etc.). Por fim, na oficina de plástico são produzidas as cadeiras da recepção, ventiladores, entre outros. Além disso, toda a parte de comunicação visual do hospital, como placas de advertência e indicação, é desenvolvida no CTRS.
O potencial médio de produção do CTRS equivale a execução anual de um hospital de 200 leitos equipado, no valor de 60 milhões de reais. Mas seu potencial máximo pode atingir o dobro: 120 milhões de reais, sem perda de qualidade e de custos de produção. No entanto, a produção mínima para manter o centro economicamente viável não pode ser inferior a 20 milhões por ano (20).
Transporte
A facilidade do transporte das peças é muito importante no caso dos hospitais Sarah, pois todos os componentes são produzidos no CTRS em Salvador e, posteriormente, transportados para o canteiro de obras dos hospitais, vencendo grandes distâncias para atingir diversas cidades do país. Deste modo, foi necessário considerar a questão do transporte no processo de produção. Apesar da fábrica se localizar próxima a um porto marítimo, o transporte considerado mais viável foi o rodoviário, através de caminhões, pois existem hospitais da Rede em diversos estados brasileiros e muitos deles distantes do litoral. Evita-se assim que as peças percorram um trecho de navio e, posteriormente, seja necessário desembarcá-las e carregá-las em caminhões, para então serem levadas e descarregadas no canteiro de obras. Desta forma, a logística se torna mais simples e mais barata (21).
O transporte também exerce influência sobre o projeto das peças pré-fabricadas, pois é necessário que as dimensões das mesmas sejam compatíveis com as dos caminhões. Segundo o engenheiro de estruturas Roberto Vitorino (22), sempre que possível evita-se a utilização de caminhões maiores, principalmente aqueles que excedem o comprimento estabelecido pela lei e necessitam de veículo auxiliar para o tráfego. Estes cuidados são tomados para redução dos custos, sendo que apenas em casos específicos têm-se exceções.
Montagem
Caracterizando-se como uma construção industrializada, a arquitetura e estrutura dos hospitais da rede Sarah são concebidas considerando a etapa de montagem. Isto inclui nos projetos detalhamentos de encaixes, a forma como as peças serão montadas, que tipo de guindaste será utilizado, o custo desse guindaste, entre outros fatores.
No canteiro de obras, se realiza a montagem das peças produzidas na fábrica, através de encaixes e soldas. Os dados levantados demonstram a preocupação com a facilidade na montagem, como a confecção de esquemas para evitar erros. Além disto, existe um grande cuidado com a estruturação destes encaixes, para garantir a qualidade da obra.
Durante a produção, são deixadas folgas propositais, ou seja, as peças são fabricadas com tamanho ligeiramente menor que o módulo. Estas folgas são proporcionais às dimensões da peça. Desta forma, evitam-se problemas durante o encaixe e diminui-se o desperdício de peças. De acordo com as entrevistas realizadas, estes desacertos se devem, por exemplo, ao corte ou às dobras das chapas, mas não se admitem erros por falta de atenção. Em casos de erros que comprometam a qualidade da construção, a peça é devolvida para a fábrica para ser substituída ou arrumada.
Em alguns casos específicos de estruturas mais complexas, como o caso da cobertura do auditório do hospital do Rio, as peças foram pré-montadas na fábrica, com pré-solda nos cantos, para conferência. Após a garantia de que as peças não possuíam defeitos e a montagem estava correta, a estrutura foi desmontada e transportada para o canteiro de obras. Este procedimento se justifica pelo fato de que possíveis defeitos são detectados na fábrica com maior facilidade, pois, devido à complexidade da estrutura em questão, seria difícil detectar, no canteiro, qual peça está fora de conformidade e poderia ser necessário levar toda a estrutura de volta para a fábrica (23).
Também foi apurada a preocupação da equipe de coordenadores em concentrar as atividades mais complexas na fábrica, onde a mão-de-obra é mais qualificada e o ambiente de trabalho é mais favorável, tanto no tocante ao conforto quanto aos recursos e à proximidade entre operários, produção, e equipe técnica de arquitetos e engenheiros (24).
O CTRS hoje
Até o ano de 2000, o CTRS produzia outras obras não relacionadas à Rede Sarah, tais como edifícios ligados ao governo através de convênios federais, como os Tribunais Regionais Eleitorais (TER) e Tribunais de Contas da União (TCU). A partir de 2000, o próprio TCU proibiu a construção de edifícios que não fossem da rede pelo CTRS. Assim, como atualmente não se tem previsão de novas obras da Rede Sarah, o centro está atendendo somente a manutenção dos hospitais e a fabricação dos equipamentos hospitalares (25).
Devido a essa exigência, o ritmo de produção do CTRS se tornou mais lento. Das cinco oficinas existentes no centro, estão funcionando ativamente três: 1) A oficina de metalurgia pesada e leve, que antes eram separadas, hoje estão concentradas no mesmo espaço; 2) marcenaria; e 3) Plástica. A oficina de pré-moldados está praticamente parada. Se eventualmente, as reformas em algumas unidades exigirem o seu uso, tem-se condição de operá-la.
Em função desses fatores, o quadro de funcionários do CTRS teve uma grande redução. Em fases antigas do centro, onde a produção era maior, a equipe chegou a ser composta por 800 funcionários. Atualmente, a equipe é composta por volta de 230 funcionários, sendo que em torno de 40% dos funcionários estão na oficina metalúrgica, 30% estão entre as oficinas de marcenaria, plástico, pré-moldados e manutenção e, 30% estão nos setores administrativos, apoio, segurança, entre outros (26).
Em virtude disso, o arquiteto Lelé se desligou do CTRS e, baseado em suas vastas experiências de equipe multidisciplinar e da criação de projetos sociais, criou o Instituto Brasileiro de Tecnologia do Habitat – Instituto Habitat. O instituto é uma entidade sem finalidade lucrativa, instituída como organização não governamental, atuando nas áreas de pesquisa, ensino, projeto, fabricação, montagem e desenvolvimento tecnológico, buscando construir edifícios sociais, não só voltados para edifícios de saúde, que é impedido pelo CTRS. O programa do novo instituto é composto por oficinas de argamassa armada, serralheria, pintura, marcenaria e usinagem de apoio, além dos setores de administração, projeto, salas de aula e biblioteca (27).
Considerações finais
O Centro de Tecnologia da Rede Sarah se destaca como uma fábrica e um centro de pesquisas em tecnologia de construção industrializada, produzindo edifícios com velocidade e qualidades diferenciadas em relação à produção tradicional do setor de construção.
A produção do Centro de Tecnologia da Rede Sarah (CTRS) em Salvador, BA, pode ser caracterizada como preponderantemente de Ciclo Fechado (28) já que o CTRS responde pela maior parte dos componentes e elementos constituintes dos Hospitais da Rede Sarah. Estes hospitais, com seu sistema construtivo industrializado em argamassa armada e aço, podem ser considerados como um caso paradigmático de industrialização fechada com elevada qualidade arquitetônica no Brasil.
Os sistemas fechados apresentam como vantagem a produção em grande série utilizando métodos industriais de massa. Isto permite a redução de custos por unidade produzida, e a ampliação da qualidade e do conteúdo tecnológico do sistema construtivo, garantindo assim a perfeita conectividade e integração entre componentes construtivos. A lógica da indústria de massa permite também um maior investimento no projeto e detalhamento do sistema construtivo, pois os investimentos serão diluídos na série de produção.
O modelo de construção baseado em pré-fabricação e industrialização adotado nos hospitais da Rede Sarah determina que a manutenção seja realizada pelo próprio CTRS, ou seja, reformas e ampliações podem ser realizadas com a utilização de peças e componentes fabricados no mesmo local e com as mesmas características da construção inicial. Isto caracteriza um serviço agregado de manutenção, que garante qualidade do edifício ao longo de seu ciclo de vida e a manutenção mínima da produção do CTRS.
No entanto, a dificuldade de tais sistemas é a necessidade do elevado volume de produção de componentes construtivos relativamente padronizados, implicando em algum tipo de homogeneização da linguagem estética dos edifícios construídos a partir de um mesmo sistema construtivo. No entanto, como demonstra a produção dos diversos hospitais da Rede Sarah, isso não implica em uma construção sem imaginação ou de baixa qualidade.
Atualmente, o centro se encontra com um ritmo de trabalho reduzido, uma vez que se destina exclusivamente aos hospitais da Rede Sarah e não há previsão de construção de novas unidades. Sendo assim, o CTRS está trabalhando basicamente para garantir a manutenção das unidades existente, e se encontra, portanto, ocioso. O surgimento do Instituto Habitat visa à expansão desta tecnologia para outros tipos de edifícios, sem se ater à Rede Sarah.
Na indústria em geral, os paradigmas de produção em massa, caracterizados pela industrialização fechada, vem sendo substituídos desde a década de 1970 por modelos baseados na flexibilidade dos meios de produção (máquinas e contratos de trabalho flexíveis) que permite a fabricação em lotes menores e customizados aos clientes, de forma a incorporar novos valores como: qualidade, produção Just – in – time, sustentabilidade, entre outros. Esses devem ser os novos desafios para produção industrializada da construção.
notas
1
GUIMARÃES, A. G. João Filgueiras Lima: o último dos modernistas. Dissertação (Mestrado) – Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 2003.
2
Idem. Ibidem.
3
Idem. Ibidem.
4
LIMA, João Filgueiras. O que é ser arquiteto: memórias profissionais de Lelé (João Filgueiras Lima); em depoimento a Cynara Menezes. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 50.
5
Idem. Ibidem.
6
LATORRACA, G. João Filgueiras Lima, Lelé. Lisboa: Blau; São Paulo: Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, 1999.
7
Idem. Ibidem.
8
Idem. Ibidem.
9
ANTUNES, B. “Integração desde o princípio”. In: Revista AU, São Paulo. Out. 2008, p.61.
10
Os sistemas motorizados são projetados por Lelé e desenvolvidos por Hurandy Matos, responsável pelo setor de metalúrgica leve e mecatrônica do CTRS.
11
Entrevista realizada com o arquiteto João Filgueiras Lima, em 18 de novembro de 2008.
12
CARVALHO, A. P. A.; TAVARES, I. “Modulação no Projeto Arquitetônico de Estabelecimentos Assistenciais de Saúde: o caso dos Hospitais Sarah”. In: III Fórum de Tecnologia Aplicada à Saúde, 2002, Salvador. III Fórum de Tecnologia Aplicada à Saúde, Anais... Salvador: Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia, Multgraf, 2002.
13
Idem. Ibidem.
14
Idem. Ibidem.
15
Idem. Ibidem.
16
Entrevista realizada com a arquiteta Adriana Filgueiras Lima, em 04 de agosto de 2008.
17
PRESSLER, G.R. “Born to flex: Flexible design as a function of cost and time”. In: Health Facilities Management, Volume 19, Issue 6, June 2006, Pages 53-54, 56, 58.
18
Visita ao CTRS, no dia 19 de Novembro de 2008, guiada pelo arquiteto André Borém.
19
Visita ao CTRS, no dia 19 de Novembro de 2008, guiada pelo arquiteto André Borém.
20
ANTUNES, op. cit., p.63
21
Entrevista realizada com engenheiro estrutural Roberto Vitorino, em 19 de novembro de 2008.
22
Entrevista realizada com engenheiro estrutural Roberto Vitorino, em 19 de novembro de 2008.
23
Entrevista realizada com engenheiro estrutural Roberto Vitorino, em 19 de novembro de 2008.
24
Entrevista realizada com engenheiro estrutural Roberto Vitorino, em 19 de novembro de 2008.
25
Entrevista realizada com a arquiteta Denise Freire Menicucci, em 18 de Março de 2010.
26
Entrevista realizada com a arquiteta Denise Freire Menicucci, em 18 de Março de 2010.
27
Entrevista realizada com o arquiteto Lelé, em 16 de Março de 2010.
28
A industrialização pode ser organizada em sistemas Fechados, “[...] compostos por elementos ou componentes [...] fabricados por um único fabricante com dimensões e características próprias e unidos única e estritamente no próprio sistema”; e sistemas Abertos “[...] compostos por elementos ou componentes, provindos de diferentes fabricantes e que podem se adaptar ou se integrar uns aos outros e ao próprio sistema”. No sistema fechado, temos uma organização única que é responsável pelas regras de compatibilidade entre os componentes e conseqüentemente domina a tecnologia do produto e seu processo de desenvolvimento. Já no sistema aberto, temos regras normatizadas ou acordadas de compatibilidade entre as partes, e daí surge múltiplas possibilidades de combinação e reformulação (CAMARGO, 1975; SERRANO, 1980) - CAMARGO, A. R. Industrialização da construção no Brasil. 1975. Dissertação (Mestrado) – Escola de Engenharia de São Carlos, Universidade de São Paulo, São Carlos, 1975; SERRANO, J. S. Alojamiento y tecnologia: industrialización abierta? Instituto Eduardo Torroja de La Construction y Del Cemento, Consejo Superior de Investigaciones Científicas, Madrid, 1980.
sobre os autores
Marieli Azoia Lukiantchuki é Arquiteta e urbanista, graduada pela Universidade Estadual de Maringá, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Urbanismo e Tecnologia da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo.
Michele Caroline Bueno Ferrari Caixeta é Arquiteta e urbanista, graduada pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo, mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Arquitetura, Urbanismo e Tecnologia na mesma instituição.
Márcio Minto Fabricio é Engenheiro Civil, Doutor em Engenharia Civil pela Escola Politécnica da Universidade de São Paulo, Professor Associado em Arquitetura, Urbanismo e Tecnologia pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo.
Rosana Caram é Física, doutora em Engenharia Civil pela Universidade de Campinas, Professora Associada em Arquitetura, Urbanismo e Tecnologia pela Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo.