Muitos autores acadêmicos têm se debruçado recentemente sobre temas e termos correntes da arquitetura na tentativa de compreender e explicar o processo de projetação. O aprofundamento recente destas pesquisas e reflexões tem produzido noções sempre mais didáticas e esclarecedoras, tanto para estudantes e professores como para arquitetos com interesses teóricos e mesmo para leigos e amantes da arquitetura.
A história é rica em exemplos do interesse em resumir o projeto a um processo linear, possuidor de uma técnica de realização passo a passo, como montar uma máquina, como cultivar soja, primeiro isto, depois aquilo e aquilo outro, e assim por diante numa seqüência de procedimentos idêntica a tantas outras técnicas e disciplinas inventadas pelo homem.
Um aspecto interessante da atividade de projeto é justamente a quantidade de teorias, metodologias, manuais de procedimentos e técnicas as mais diversas da qual foi objeto historicamente. Mais interessante ainda é observar que, embora partes do processo de produção do projeto possam estar sujeitas a uma seqüência de procedimentos, o processo inteiro jamais poderá se enquadrar neste modelo, e, portanto, as metodologias não se sustentam enquanto sistemas universais, embora seja obrigatório conhecê-las, pois a nenhum arquiteto é permitida a ignorância sobre a experiência acumulada que compõe a história da arquitetura.
O termo projetação tem sido pouco usado no Brasil, mas é o termo que define a produção do projeto de arquitetura como um processo. Este processo tem um momento crítico e imponderável que foge a qualquer metodologia, mesmo quando a projetação estava sujeita às regras da composição clássica. Este momento crítico é o momento que envolve as decisões relativas ao que conhecemos por partido arquitetônico, termo que em outros lugares é também conhecido como estratégia ou conceito.
Para efeito desta reflexão usarei o termo partido arquitetônico por ser o mais comum no Brasil e, creio, mais específico do campo da arquitetura do que estratégia ou conceito, os quais são muito comuns em outras áreas. Com base na experiência pode-se também dizer que “partido” é o termo comum à linguagem própria dos arquitetos, o assunto central, senão único, entre arquitetos no âmbito da produção, do julgamento de concursos de arquitetura, do ensino de projeto, das conversas informais. E não creio se tratar de um exagero cogitar a exclusividade do assunto, dado que em “partido” se compreende a discussão de aspectos como estratégia de implantação e distribuição do programa, estrutura e relações de espaço, todas elas questões centrais para os arquitetos. Outros temas relativos às atividades criativas – como composição, estilo, estética etc. – embora tenham sido objeto de interesse da teoria da arquitetura recentemente, são tratados no âmbito da prática com pudor e desinteresse, senão como meros epifenômenos.
A definição de partido arquitetônico, portanto, e as reflexões sobre seu significado, dado o interesse geral, tem sido tarefa de vários autores e todas elas contêm aspectos novos e esclarecedores. O exame destas definições é um primeiro objeto de meu interesse.
Desde o período acadêmico até as primeiras definições modernas, o projeto de arquitetura tem sido descrito como resultado de um raciocínio lógico. Em Teoria e projeto na primeira era da máquina, Banham compara Guadet, para quem a composição era o tema perene, e Choisy, que enfatiza a construção, ambos teóricos da composição arquitetural, para quem a natureza lógica da concepção constitui o tema mais destacado:
“a forma como conseqüência lógica da técnica – que torna a arte da arquitetura sempre e em toda parte a mesma.
[Para Choisy] a essência da arquitetura foi sempre a construção, a função do arquiteto sempre foi esta: fazer uma avaliação correta do problema com que se deparava, após a qual a forma do edifício seguir-se-ia logicamente dos meios técnicos a seu dispor” (1).
Autores modernos, como Carlos Lemos, também propõem definições fazendo uso dos termos “conseqüência” e “resultado”, nos quais uma idéia de lógica permanece implícita:
“A mencionada definição é a seguinte: Arquitetura seria, então, toda e qualquer intervenção no meio ambiente criando novos espaços, quase sempre com determinada intenção plástica, para atender a necessidades imediatas ou a expectativas programadas, e caracterizada por aquilo que chamamos de partido. Partido seria uma conseqüência formal derivada de uma série de condicionantes ou de determinantes; seria o resultado físico da intervenção sugerida. Os principais determinantes, ou condicionadores, do partido seriam:
a. a técnica construtiva, segundo os recursos locais, tanto humanos, como materiais, que inclui aquela intenção plástica, às vezes, subordinada aos estilos arquitetônicos.
b. o clima.
c. AS condições físicas e topográficas do sítio onde se intervém.
d. o programa das necessidades, segundo os usos, costumes populares ou conveniências do empreendedor.
e. as condições financeiras do empreendedor dentro do quadro econômico da sociedade.
f. a legislação regulamentadora e/ou as normas sociais e/ou as regras da funcionalidade” (2).
É certo que todo arquiteto defende seu projeto como um produto da aplicação da lógica face aos dados fornecidos para sua elaboração. Mas, em arquitetura parece que temos uma lógica para cada projetista, pois se dependêssemos meramente da lógica, o processo seria universal e já não caberia qualquer preocupação sobre o assunto. Talvez, neste caso, a ação de projetar e construir já teriam sido integralmente resolvidos pela indústria, através de seus computadores e máquinas.
E o que se vê é justamente o contrário, há um claro incômodo a respeito – “Esa incómoda situación del partido”, afirma Corona-Martinez (3) –, sempre surgem novas explicações e teorias, como se sempre mais estivéssemos interessados em desvendar um mistério, perscrutar as mentes criadoras para pôr às claras algo nebuloso, abrir uma “caixa preta”:
“Le Corbusier enfatizou ainda mais o uso da lógica matemática de Descartes ao dizer que o início do processo de criação é a definição da planta arquitetônica, que por sua vez é a representação do programa arquitetônico (função da edificação). Assim, a projeção vertical da planta resultaria, segundo ele, nas paredes que por sua vez se tornariam volumes: linhas que se transformam em planos que se transformam em volumes; é a seqüência linear e crescente do raciocínio cartesiano.
Embora se saiba que Descartes ainda é apreciado nas escolas de arquitetura do Brasil para o ensino-aprendizagem do projeto arquitetônico, sabe-se também que em algum momento do processo de criação surge algo estranho que parece não caber na lógica cartesiana: é a caixa preta; um conceito usualmente utilizado pelos arquitetos para significar o momento em que a subjetividade psicológica do arquiteto define, por meio de um rabisco (croqui) o partido do projeto. Apesar dos arquitetos conhecerem esse processo, ninguém até hoje explicou o que acontece dentro dessa caixa preta, dizem que é inexplicável” (4).
Duas publicações recentes abordam estes temas, suas reflexões são a base para uma compreensão e críticas contemporâneas desta problemática. São elas Adoção do partido em arquitetura, de Laert Pedreira Neves e Composição, partido e programa – uma revisão de conceitos em mutação, de Anna Paula Canez e Cairo Albuquerque da Silva, este último se tratando de uma coletânea de ensaios de vários autores.
Destes textos emergem duas idéias principais. Em primeiro lugar, a de que o partido é a idéia inicial de um projeto e em segundo, que esta idéia é uma criação autoral e inventiva, e artística na medida em que faz uso da composição. Vemos em Neves as definições nesta seqüência. Em primeiro lugar:
“Denomina-se Partido Arquitetônico a idéia preliminar do edifício projetado.
Idealizar um projeto requer, pelo menos, dois procedimentos: um em que o projetista toma a resolução de escolha dentre inúmeras alternativas, de uma idéia que deverá servir de base ao projeto do edifício do tema proposto; e outro em que a idéia escolhida é desenvolvida para resultar no projeto. É do primeiro procedimento, o da escolha da idéia, que resulta o partido, a concepção inicial do projeto do edifício, a feitura do seu esboço” (5).
Antes, no texto introdutório:
“É importante ressaltar que projetar um edifício é, na essência, o ato de criação que nasce na mente do projetista. É fruto da imaginação criadora, da sensibilidade do autor, de sua percepção e intuição próprias. É resultado do trabalho do pensamento. Sendo assim, constitui-se em algo de difícil controle, interferência e ordenamento” (6).
Em Composição, partido e programa – uma revisão de conceitos em mutação, o texto de Rogério de Castro Oliveira faz uso de uma linguagem mais complexa, mas de conteúdo similar e complementar. Primeiramente uma argumentação genérica:
“Em suma, no projeto de arquitetura, a concepção do partido arquitetônico pressupõe a proposição de configurações que descobrem, ou inventam, relações espaciais e programáticas a partir de uma dispersão inicial, indeterminada, de possibilidades projetuais. A coerência de tais construções deriva, antes, de um progressivo fechamento interno do que de determinação externa. O partido é, por hipótese, uma prefiguração do objeto, que o projetista elege como ponto de partida e fio condutor: cabe à investigação epistemológica construir contextos de explicitação das razões que asseguram pertinência e validade a essas arquiteturas projetadas” (7).
Ainda no mesmo texto, quando se dedica a uma comparação entre os projetos de Le Corbusier e Lúcio Costa para a Cidade Universitária do Rio de Janeiro em 1939:
“Para Lúcio Costa... ao contrário, tomar partido implica dar início a um percurso inventivo que se traça sobre um campo de relações em constante formação e renovação, ainda que aos tateios e sujeito a inúmeros e imprevisíveis retornos e desvios. Tais relações simultaneamente externas e internas ao objeto projetado implicam a construção de correspondências entre formas e conteúdos, organizando-se progressivamente em esquemas que conectam partes antes separadas. Este dinamismo atribui à construção do partido um sentido eminentemente operativo, antecipador das configurações compositivas que conduzirão à finalização do projeto” (8).
Todas estas definições, desde as mais simples como as de Neves, às mais sofisticadas, como as de Rogério de Castro Oliveira, procuram sempre mais elucidar, ilustrar e compreender o projeto de arquitetura e o momento de adoção do partido arquitetônico. Nota-se que no âmbito da experiência prática no Brasil, e em face da maneira como o tema tem sido abordado tradicionalmente, que cada autor, cada arquiteto poderia igualmente descrever a projetação de maneira muito similar, alterando a ênfase neste ou naquele aspecto, simplificando ou elaborando mais e mais o texto, mantendo, contudo a sua essência.
Deste modo pode-se concluir, a partir destes teóricos brasileiros, que o Partido Arquitetônico é a idéia inicial de um projeto, que a sua formulação é uma criação autoral e inventiva com base na coerência e na lógica funcional, e que, o partido, sendo uma prefiguração do projeto, faz da projetação um processo que vai do todo em direção à parte.
Este conceito de Partido Arquitetônico parece ser um dos traços mais característicos da herança corbusiana no Brasil:
“Le Corbusier abordava o programa de arquitetura partindo de princípios de ordem geral, adaptando-os em seguida à situação real. O projeto era definido pelo partido que se organizava do geral para o particular. [...] A casa Baeta projetada por Vilanova Artigas em 1956, segundo o conceito de partido de Le Corbusier, define-se pelas empenas das fachadas da frente e dos fundos e pelas aberturas das fachadas laterais, é organizada em meios níveis” (9).
Também empiricamente, em cada situação específica baseada na prática de concursos e avaliações no âmbito universitário, é possível identificar a preponderância deste conceito nas discussões entre arquitetos, professores e membros das comissões julgadoras, sendo esta a característica fundamental que acaba por se estabelecer como um invariante, uma estrutura de pensamento que, pode-se supor, continua válida como aspecto central da teoria de projeto e da projetação no Brasil, teoria tributária também dos princípios acadêmicos e modernos herdados pelos grandes mestres modernos brasileiros tanto cariocas quando paulistas, em face do seu carisma e de sua longevidade, para além dos fatores conjunturais históricos, resumidos por Futagawa desta maneira:
"Durante os períodos antes e depois da Segunda Guerra Mundial, a arquitetura brasileira passou por desenvolvimento específico através das obras criativas dos arquitetos pioneiros como Lucio Costa, Afonso Reidy, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas e Lina Bo Bardi. Os princípios do modernismo foram aplicados e adaptados às condições locais do contexto brasileiro, como se a idéia do modernismo simpatizasse com o clima tropical do Brasil e da cultura das pessoas que lá vivem. Mais tarde, veio à luz uma forma única e original de arquitetura, que só existe no Brasil, e que vai além do movimento modernista original.
O regime militar instalado no Brasil em 1964 provocou vinte anos de estagnação cultural, mas, ao mesmo tempo, também isolou a área de arquitetura do movimento pós-moderno que envolvia todo o mundo naquela época. Portanto, o Brasil se tornou um dos raros países que conta com sucessores legítimos do movimento modernista, e esse pano de fundo influencia fortemente a produção dos jovens arquitetos atuais, seguindo o princípio do modernismo entre as novas gerações" (10).
Quero propor a seguir algumas reflexões sobre estes temas acima citados em busca dos novos significados e usos destas terminologias, bem como uma compreensão contemporânea a respeito destes mesmos processos.
Em primeiro lugar, sobre o que é partido arquitetônico.
Quando se usa a expressão “adoção do partido”, deve-se observar o fato de que esta afirmação pode pressupor uma biblioteca de partidos adotáveis, como se estivessem todas as possibilidades já dadas e catalogadas. Convenhamos, analogamente, que adotar um filho é muito diferente de conceber um filho”.
A afirmação de que o partido é a idéia preliminar do edifício a ser construído, ou uma prefiguração do objeto, que o projetista elege como ponto de partida e fio condutor, não abrange a totalidade dos modos de projetar, portanto não é universal, como também não o é o movimento do todo em direção à parte. Um claro exemplo disto são os projetos que envolvem tecnologias de pré fabricação de componentes para aplicação em série, invertendo, portanto, o raciocínio, a parte precede o todo (projetos de James Stirling, tais como para o Andrew Melville Hall, 1968, e University of St. Andrews Student Residence, 1967).
Proponho aqui pensar sob o pressuposto de que o modo como cada arquiteto projeta é menos relevante do que o resultado final do seu trabalho. A sua metodologia, que é sempre particular, tem um interesse menor neste momento.
Considerando, portanto, o cenário contemporâneo de grande diversidade arquitetônica, o partido arquitetônico é compreendido como a idéia que subjaz ao projeto, aquela identificada como idéia principal ou central, quando o projeto já se apresenta concluído, não importando quando esta idéia surgiu. É a idéia que o projeto é capaz de veicular ou expressar, o conteúdo intelectual de um edifício ou projeto enquanto manifestação, mediada por uma linguagem. É da avaliação destas idéias que se ocupam as comissões julgadoras em concursos, professores em avaliação etc.
De fato, a idéia central de um projeto pode nascer no início do processo ou durante o processo - tal como descrito nos textos anteriormente citados – ou pode mesmo anteceder ao processo, como é o caso dos arquitetos teóricos, cujas reflexões oportunamente se aplicarão na prática. Analisemos alguns exemplos de definições enunciadas por arquitetos que questionaram a teoria do projeto, revisando as tradicionais concepções da coerência e lógica, funcional e construtiva, do modernismo. É possível observar também que em seus projetos há sempre uma idéia central, não obstante a diferença de abordagem.
Robert Venturi propõe o abrigo decorado, um caixa funcional inexpressiva acrescida de uma fachada bidimensional ornamentada e comunicativa segundo a natureza do edifício.
"Venturi prefere os abrigos decorados, porque ele afirma que a sua comunicação é mais eficaz, embora os arquitetos modernos tenham se dedicado durante muito tempo a projetar 'patos'. O pato é, em termos semióticos, um signo icônico, porque o significante (forma) tem certos aspectos em comum com o significado (conteúdo). O abrigo decorado depende de outros significados – a escrita ou a decoração – que são signos simbólicos" (11).
Aldo Rossi propõe: a forma fica, a função muda. Por que então a função deve determinar a forma? A forma deve ser determinada pelo ‘lugar’.
“A primeira grande crítica de Rossi foi ao que denominou de funcionalismo ingênuo do movimento moderno, que ao priorizar a explicação da cidade apenas pela função, deixava de entendê-la pelo que tinha mais significativo: o conhecimento da arquitetura pelo mundo de suas formas. A função era de uma circunstância que fazia uso da forma como um ato social. Ela nunca ia além de seu tempo, enquanto a forma permanecia” (12).
Peter Eisenman sobrepõe à realidade do projeto – função, programa, lugar, topografia – disciplinas ou conceitos sobre os quais explorar ou deconstruir a forma, tal como assim se define:
“Os conceitos, nos quatro projetos, transitam, se justapõe, interagem em ato. Malhas, escalas, rastros e dobras são freqüentemente concomitantes. Na exposição foram pensados como detonadores de pensamento, como balizas para a percepção e inteligibilidade da obra de Peter Eisenman. Mas a concomitância entre inteligibilidade e percepção, este movimento duplo parece ser recorrente e indissociável na reflexão e produção da arte” (13).
Mais recentemente Herzog e de Meuron adotam modelos de exploração e geração de forma, caracterizado como um processo contínuo com auxílio do computador e sem final determinado, como no projeto para o Pavilhão Jinhua Structure II – Vertical Basilea (ver AV Proyectos 007 2005, p. 40).
E numa postura contemporânea mais radical, no sentido de uma autonomia da forma, sobrepujando tudo o mais, destaca-se os projetos de Frank Owen Gehry (Guggenheim Bilbao, 1997, e Walt Disney Concert Hall, 2003) e Zaha Hadid (tais como Contemporary Arts Center, 2003, em Cincinatti e MAXXI Museo, 2010, em Roma).
A idéia central (ou Partido) pode ser identificada mesmo em situações onde a configuração funcional é um dado, uma condicionante ou determinante, fato comum quando em projetos para estádios, ginásios esportivos, teatros e em alguns casos, aeroportos. Via de regra configurações funcionais rígidas por tradição ou quando o próprio cliente é a autoridade no que tange às funções, muito comum no ramo das indústrias. Em todos esses casos, a despeito dos limites, o arquiteto encontrará espaço para introduzir uma idéia, ora migrando da forma para a matéria (Herzog & de Meuron, Estádio Allianz Arena, 2005, na Alemanha, e Estádio Nacional "Ninho do Pássaro", 2008, na China), ora enfocando radicalmente o design (como em Massimiliano Fuksas, no projeto do Aeroporto Internacional Shenzhen na China, ver AV proyectos 026 2008, p. 46) ou a tecnologia construtiva (Renzo Piano, Estadio de Bari, 1990, na Itália, e Richard Rogers, Aeroporto de Barajas, 2006, Espanha), etc.
Em segundo lugar, cabe indagar, o que é a “caixa preta”?
O que ainda pode ser dito sobre a adoção/ invenção/ formulação do Partido Arquitetônico, o momento crítico imponderável, a caixa preta?
Vamos admitir que os arquitetos fazem projetos e isto é um fato; portanto, em algum momento um determinado conjunto de informações se torna uma idéia para um edifício. O campo das idéias em arquitetura implica em um vasto campo de estudo da teoria e da história, mas este não é o espaço para desenvolver esse tipo de exercício intelectual e acadêmico. Vamos apenas considerar, de maneira mais simples, que este fato se relaciona com um fenômeno humano de grande interesse das ciências humanas, por um lado, e da filosofia, passando no século XX pelo estruturalismo, semiologia e semiótica: o fenômeno da linguagem, compreendida como manifestação e processo intrínsecos às diversas mediações sígnicas. A capacidade humana de inventar linguagens, a possibilidade de inventar distintas linguagens – verbais e não verbais – e transitar e fazer transposições entre estas (transtextualidade) são os mecanismos do intelecto típicos da arte e da arquitetura. Compreendida em maior ou menor grau como linguagem, a arquitetura é uma atividade desta mesma natureza de mediação e manifestação da idéia (14).
Assim procedem os artistas, um poeta descreve uma paisagem (transposição do ícone para o texto), um escritor descreve um personagem (ícone para texto), um desenhista produzindo um retrato falado (ícone para texto e de novo para ícone), e tantas outras atividades do homem, um artista pintando um retrato (ícone para ícone), um ator em cena (texto para texto mais imagem), sempre pressupondo interpretação de um conteúdo numa linguagem seguido de uma expressão em outra.
O partido arquitetônico, neste contexto, se dá no momento em que o texto, compreendido como articulação semântica – pensamento e idéia - expressa na linguagem verbal, se transforma em ícone, transposição da linguagem verbal para a linguagem não verbal, ou de maneira mais precisa, a operação que faz o arquiteto é de texto e ícone para ícone, pois o programa é texto e o lugar é ícone.
As transposições entre linguagens podem inicialmente sugerir a idéia de tradução, mas as tentativas empreendidas no sentido de estudar a arquitetura - tanto como história como prática projetual - a partir das estruturas da língua de forma automática – como tradução literal - apenas exacerbaram as diferenças estruturais entre estas linguagens, diferenças que implicam, para a arquitetura, num grau superior de liberdade no nível da expressão, dada a ausência de vínculos com as regras e convenções a que está sujeita a linguagem fala/texto:
“O que se deve evitar nessa análise é a aplicação mecânica do modelo da linguagem à arquitetura, como fizeram diversos estudos semióticos. A aplicação mecânica de um modelo especificamente desenvolvido para a linguagem em outros sistemas semióticos, como a arquitetura, apenas permite reconhecer o que é semelhante à linguagem no nível da ideologia, mas não define as diferenças de estrutura interna entre a linguagem e, outros sistemas semióticos. Mesmo que seja possível conceber a linguagem como um sistema complexo de regras subjacentes, e, portanto, que seja viável compará-la com os sistemas explícitos e implícitos de regras da arquitetura, as regras arquitetônicas são definidas por uma determinada facção de uma determinada classe social, ao passo que a língua não é propriedade de ninguém, nem em geral nem em particular.. Os sistemas de regras arquitetônicas não exibem nenhuma das propriedades da langue – não são finitos, não tem uma organização simples nem determinam a manifestação do sistema. Ademais, as regras arquitetônicas estão em constante fluxo e mudam radicalmente.
A aplicação mecânica do modelo da língua/fala à arquitetura ocidental fortalece a ideologia arquitetônica, porque nega as diferenças entre a arquitetura e a língua e ignora o lugar da linguagem natural na arquitetura. Além disso, o fato mais importante talvez seja que essa aplicação automática nega a presença de “algo” que define uma importante diferença entre a arquitetura e a linguagem – o aspecto criativo da arquitetura. Na língua, o indivíduo pode usar, mas não modificar o sistema da linguagem (langue). O arquiteto, ao contrário, pode e faz modificações no sistema, que é inventado a partir de um sistema de convenções” (15).
E mesmo o referido sistema de convenções, ou contrato social, compreendido como base da linguagem, constitui um elemento limitador para a expressão em arquitetura:
“Não havia nenhuma razão especial para que os ingleses designassem um animal de Bull, os franceses o chamassem de boeuf e os alemães de Ochs. [...] Mas porque a relação entre significante e significado era arbitrária, devia ser respeitada por todos. Ninguém pode mudar isso unilateralmente; há um contrato social entre todas as pessoas que falam inglês de que elas devem usar a palavra bull toda a vez que quiserem se referir a esse animal específico. Se alguém usar outra palavra, ou inventar uma nova palavra para esse fim, ninguém o compreenderá; ele terá quebrado o contrato social. Note-se de passagem que, com poucas exceções, não existe um contrato social para o significado da arquitetura, e esta é uma diferença fundamental entre a arquitetura e a linguagem” (16).
O homem de início pensou sobre as coisas, depois começou a pensar sobre o próprio pensamento, principalmente depois de Descartes, que levou tudo para dentro do intelecto (“je pense, donc je suis” – Discours de la Méthode, 1637). Com os arquitetos não haveria de ser diferente. Em meio a dificuldades de solução para um projeto o arquiteto freqüentemente se interroga sobre seu pensamento, seu método (que em projetos anteriores funcionara tão bem!).
Mas o projeto de arquitetura, embora circundado de problemas técnicos e profundamente vinculado ao uso, é por natureza um processo criativo avesso a enquadramentos, formatações, metodologias ou fórmulas. Permanece, portanto, e como desde sempre, aberto à infinita inovação, ao espírito dos tempos, à antecipação de tendências, à revisão de paradigmas, e, no pólo oposto, a novas visitas e itinerários interpretativos pelas tradições do passado.
notas
1
BANHAM, Reyner. Teoria e projeto na primeira era da máquina. São Paulo, Perspectiva, 1979, p. 40.
2
LEMOS, Carlos. O que é arquitetura. São Paulo, Brasiliense, 2003, p. 40-41.
3
Alfonso Corona Martinez. Prefacio. In: CANEZ, Ana Paula; SILVA, Cairo Albuquerque (org). Composição, partido e programa – uma revisão de conceitos em mutação. Porto Alegre, Ritter dos Reis, 2010, p. 35.
4
AMARAL, Cláudio Silveira. Descartes e a caixa preta no ensino-aprendizagem da arquitetura. Arquitextos, São Paulo, n. 08.090, Vitruvius, nov. 2007 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.090/194>.
5
NEVES, Laert Pedreira. Adoção do partido na arquitetura. Salvador, Edufba, 1998, p. 15.
6
Idem, ibidem, p. 9.
7
OLIVEIRA, Rogério Castro de. Construção, composição, proposição: o projeto como campo de investigação epistemológica. In: CANEZ, Ana Paula; SILVA, Cairo Albuquerque (org). Op. cit., p. 35.
8
Idem, ibidem, p. 16.
9
ACAYABA, Marlene Milan. Brutalismo caboclo e as residências paulistas. Projeto, São Paulo, n. 73, 1985.
10
FUTAGAWA, Yukio. Modernism Architecture of Brazil. GA Houses, Tóquio, n. 106, p. 8. No original em inglês:
“Throughout the periods before and after the World War II, Brazilian architecture went through some unique development conducted by the creative works of those pioneering architects such as Lucio Costa, Alfonso Reidy, Oscar Niemeyer, Vilanova Artigas, Lina Bo Bardi. The principle of the modernism was fostered and adapted to the unique, local conditions and contexts of Brazil, as if the idea of the modernism sympathized with Brazil´s tropical climate and the culture of the people who reside there. Later on, a unique and original form of the architecture only found in Brazil has brought to light, which goes beyond the original modernism movement.
The military regime founded in 1964 brought a 20 years of cultural stagnancy to Brazil, but at the same time that also caused their architecture field to be isoladed from the postmodernism movement that had involved all over the world at that time. Consequently Brazil has become one of the rarest countries that remain with the legitimate successors of the modernism movement, and this background strongly affected to produce today´s young architects following the modernism priciple among new generations”
11
JENCKS, Charles. The Language of Post-modern Architecture. Nova York, Rizzoli, 1977, p. 45. No original em inglês:
“Venturi would prefer more decorated sheds, because he contends, they communicate effectively, and modern architects have for too long only designed ‘ducks’. The duck is, in semiotic terms, an iconic sign, because the signifier (form) has certain aspects in common with the signified (content). The decorated shed depends on learned meanings – writing or decoration – which are symbolic signs.”
12
SPADONI, Francisco. Rossi: figura, memória e razão. In: Informe arqlab (boletim informativo do Laboratório de Arquitetura do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Belas Artes), São Paulo, n. 1, fev. 1998, p. 3.
13
SUMNER, Anne Marie. Prefácio. In: Gridings, Scalings, Tracings and Foldings in the work of Peter Eisenman. Catálogo de exposição. São Paulo, Masp, 1993.
14
Abordagens acerca do mesmo fenômeno, ver:
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites I (1980). In: NESBIT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 172-177.
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites II (1981). In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 177-182.
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites III (1981). In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 183-188.
TSCHUMI, Bernard. Arquitetura e limites III (1981). In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 183-188.
TSCHUMI, Bernard. Introdução: notas para uma teoria da disjunção arquitetônica (1988). In: NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 188-191.
EISENMAN, Peter. Diagram Diaries. Londres, Thames & Hudson, 1999.
ABASCAL, Eunice Helena S.; ABASCAL BILBAO, Carlos . Arquitetura e ciência. Reflexões para a constituição do campo de saber arquitetônico. Arquitextos, São Paulo, n. 11.127, Vitruvius, dez. 2010 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/11.127/3688>.
15
AGREST, Diana; GANDELSONAS, Mario. Semiótica e arquitetura: consumo ideológico ou trabalho teórico. In NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 137-138.
16
BROADBENT, Geoffrey. Um guia pessoal descomplicado da teoria dos signos na arquitetura. In NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 153.
sobre o autor
Mario Biselli é arquiteto formado pela FAU Mackenzie, mestre em Arquitetura e Urbanismos pela mesmo instituição. É sócio do escritório Biselli & Katchborian arquitetura e professor do Departamento de Projeto da FAU Mackenzie