Na França, quando pensamos no infinito, são sempre metáforas que vêm à mente. Mas em São Paulo o infinito é tomado ao pé da letra. Ei-nos aqui, nós, que fomos formados no senso da medida, no espírito das idéias claras e distintas, para quem os contrastes são mais freqüentemente graduações imperceptíveis, ei-nos confrontados com o gigantismo, as misturas, as contradições absolutas. ...
O que faz ainda a especificidade de São Paulo tão radicalmente oposta à ponderação e à temperança francesas, às nossas pequenas cidades sob a pátina dos séculos de história, aos nossos pequenos hábitos, é essa estrita relação entre o primitivo e o moderno, essa espantosa capacidade de produzir mestiçagens, ou seja, de juntar o que nós separamos. (1)
Para descrever São Paulo não há números suficientes, embora seus índices oficiais inscrevam de forma completamente abstrata suas dimensões quase infinitas. Os índices de São Paulo revelam sempre recordes, tanto em excesso como em déficits.
Porém é na inquietude de suas ruas e no anonimato de sua arquitetura que São Paulo se inscreve, não em um retrato, mas nos golpes na retina de quem vive a cidade. Procuraremos entender São Paulo a partir de seus sistemas constitutivos considerados secundários, apesar de numericamente importantes, na composição do complexo e inacabado mosaico urbano da cidade.
Ao contrário dos shopping-centers, hiper- mercados e torres de escritórios e de serviços, este texto dará destaque aos locais aonde a vivacidade da cidade é mais farta, a saber, nos comércios de rua, nas lojas de artigos de segunda mão, nos mercadinhos, nas feiras livres e ambulantes, pois estas formas de comércio acumulam camadas de cultura e de temporalidades multi- dimensionais, que permitem leituras transversais. São contextos vivos, que podem ser apalpados, cheirados, experimentados. Podem ser chamados de sistemas abertos, sujeitos às chuvas, aos feriados nacionais, às estações do ano, como também à sanção da polícia e da prefeitura.
Natureza abismal
... a primeira palavra americana que passou para o idioma universal, agarrada pelos náufragos dos descobrimentos, é furacão. (2)
Através da frase, o autor cubano Alejo Carpentier fisgou um instantâneo do complexo processo de colonização do continente latino-americano, nos lembrando de que ainda no caminho para o novo mundo, as realidades indomáveis se apresentam aos navegantes sob a forma de vendavais, tornados, maremotos e enervantes calmarias, antevendo aos viajantes as intensidades da terra desconhecida da qual se aproximam.
Não há comprovação da veracidade da afirmação de Carpentier, mesmo porque tal verdade é irrelevante. O autor ultrapassa o fato, constrói no lugar da verdade uma intensidade.
Na frase está contido o processo de ocupação das terras novas, que se desdobrou em tantas outras intensidades contíguas aos acontecimentos das viagens marítimas que podemos até dizer que naufrágios e furacões são acontecimentos decisivos na constituição do homem enxertado na encruzilhada da colonização das Américas. O europeu que chega aqui é, portanto, de partida um náufrago, que tem atrás de si o oceano transcontinental e à sua frente a americana-desmesura (3) das distâncias geográficas.
E os desembarques continuaram a acontecer espalhando pelo continente grandes quantidades de portugueses desterrados, religiosos em missão, árabes expulsos da península ibérica, escravos nobres, escravos pobres e aventureiros de toda espécie. Aqui as legiões de estrangeiros encontraram a mata embaralhada de indígenas diferentes com costumes complexos, centrífugos aos dos viajantes.
A velocidade com que todas essas civilizações foram postas em contato gerou conseqüências socioculturais comparáveis aos fenômenos naturais tropicais, tais como os furacões dos quais falava Carpentier. Como seria possível pensarmos em unidade numa sociedade formulada a partir dos escombros dos naufrágios e dos desembarques desastrados em nossas praias?
Ainda hoje observamos que tudo o que encalhou nas areias da América Latina foi aproveitado e re-arranjado. Os elementos locais mesclaram-se àqueles vindos de longe e, o que no princípio foi o improviso pela emergência da sobrevivência náufraga, torna-se parte dos “fazeres” do continente. Porém essa solda cultural inicialmente improvável não gerou uma síntese definitiva entre as estranhezas, nenhum cristal cultural que nos assegurasse uma identidade, uma origem determinada, mesmo que definida a partir de escombros.
O que percebemos, no entanto, é que a conexão sintática de elementos estranhos torna-se procedimento fundamental para conviver e compor com a instabilidade das condições de vida na América Latina. É preciso aceitar que nossos procedimentos conectivos não são fiéis a uma única ideologia, e que as sintaxes resultantes são acima de tudo provisórias, pois os sistemas culturais estão em constante movimento e por isso mesmo, as conexões apresentam-se como formulações frágeis de sentidos. Duram enquanto houver tensão entre suas partes. A qualquer instante outro elemento pode agregar-se ao conjunto ou desistir dele, traindo qualquer ilusão de unidade e permanência que se possa ter.
A natureza abismal do nosso continente impõe-se em manifestações furiosas que rememoram a Pangéa: furacões, vulcões, ciclones, secas, inundações e terremotos em proporções apocalípticas. Do mesmo modo, as dimensões, as proporções dos espaços, as distâncias entre lugares, os vazios e os cheios tangenciam o infinito, nos impedem de conter as paisagens em uma única síntese.
As insurreições cataclismáticas das Américas contrastam com a tranqüilidade geológica do velho continente Europeu, mas aqui sabemos que o elemento incontrolável da força da natureza está incluído em nossa cultura e espiritualidade.
(Na Europa) o raio deixou de ser uma manifestação da ira divina desde que Benjamim Franklin o caçou com um pára-raios. E a chuva torrencial foi substituída, há tempos, pela garoa que encharca lentamente, por persuasão, os transeuntes que nada fazem para evitá-la nas ruas de suas cidades...
... A América ainda vive sob o signo telúrico das grandes tempestades e das grandes inundações. Sempre haverá algum boletim metereológico, de Miami, de Havana, da ilha de Gran Caimán, para nos lembrar que nossa natureza ainda não é tão “gentil” nem tão “pacificada” como Goethe gostaria que fosse a do mundo inteiro – à semelhança de sua romântica Alemanha. (4)
As tempestades americanas citadas por Shakespeare e outros autores europeus ainda não deixam de surpreender o mundo. Vivemos persistentes ciclos anuais de chuvas, furacões, ciclones e terremotos, manifestando forças impossíveis de serem domesticadas e moduladas pelo homem.
Conseqüentemente, não foi possível ao homem da América portuguesa dominar todo o entorno aplicando a geometria régia e cortando a pedra no ângulo reto. Foi preciso ir contornando, negociando com a geografia, ancorando cidades na beira dos mares e dos morros. Para Carpentier o homem latino-americano e suas cidades estão em constante mutação, nunca prontos.
A distância é dura e tantálica, por isso mesmo que cria imagens-espelhismos que estão fora dos alcances musculares do contemplador. A desproporção é cruel porquanto se opõe ao módulo, à euritmia pitagórica, à beleza do número, ao corte do ouro. (5)
Cidade abismal
Não menos importantes que cachoeiras e florestas, são as manifestações da natureza nas áreas urbanas. Nas metrópoles da América Latina a natureza se impõe através dos regimes de luz, de ventos, além da insistência vegetal sobre o construído e da incontinência de córregos e rios que não conseguem permanecer retificados. O regime de forças naturais a que somos submetidos nos apresenta a desmesura como parte constituinte e ativa na conformação de nossas metrópoles.
Porém a natureza telúrica pode não ser o único regime de forças que constitui a urbanidade das cidades do continente. Desejamos incluir ao campo do urbanismo forças coletivas que ocupam e constituem nossa urbanidade: edifícios abandonados ocupados por movimentos sociais ou mesmo a lenta e invisível insistência das favelas, que se enquistam em áreas privilegiadas da cidade.
O artista espanhol Dionísio Gonzalez (acesso às imagens e vídeos no sítio: www.dionisiogonzalez.com.es/ ) faz inserções arquitetônicas com o recurso da fotomontagem. Ele age no contexto caótico das favelas, mas não as organiza, apenas acrescenta intervenções imaginárias, micro-utópicas, que compõem pontualmente com a paisagem, de maneira quase invisível.
No trabalho de Gonzalez as favelas persistem como táticas de resistência à correção, à retificação do habitar. Para ele a favela deve resistir como um sistema insurrecional do olhar, algo que sobrevive e desconstrói o imaginário arquitetônico contemporâneo através de hibridações do precário (6). O artista quer mostrar que todos nós habitamos, não só os favelados, demolições de sentidos, vivemos em meio às catástrofes.
As imagens criadas nos fazem perceber outras camadas e possibilidades da forma urbana chamada favela. Não trata de estetizar a pobreza, mas de incluir o inacabado e o precário como parte do cotidiano, como constituinte do vocabulário urbano, sem idealizações, mas criando possíveis.
Elementos urbanos como as favelas, as ocupações dos sem-teto, requerem novas categorias críticas, que des-universalizem a vitimização da pobreza, para que não sejam usadas como instrumento de sublimação estética do terrível, mantendo-o como alteridade, porque desta forma a segregação funciona como margem de segurança para a manutenção da exclusão: o terrível é o outro.
Nos anos 70, Vilém Flusser faz predições de um futuro instável, no qual não reconheceríamos mais nossos lares burgueses. O primeiro sintoma de instabilidade que o autor identifica são os rastros deixados pelas migrações internas, no caso do Brasil, de nordestinos em direção ao sul do país, especialmente para São Paulo. Refere-se aos migrantes como nenês famintos, por serem submetidos ao tratamento assistencialista por parte do poder público, que investem na desfavelização e na canalização dessas populações para a periferia como estratégia de controle e proteção da cidade. Essa postura só conseguiu reforçar ainda mais a posição marginal dessas populações. Vilém Flusser ainda profetiza que os nenês não permaneceriam nas periferias, e que, ao contrário, descontentes, avançariam de volta para o centro. O autor recomenda que todos, não só os marginalizados, captem esse movimento como parte inexorável da urbanidade a partir de então.
Está se processando profunda modificação da forma como moramos. Modificação comparável apenas àquela no início do neolítico, quando passamos ao estagio sedentário.
Estamos abandonando a forma sedentária de vida. Estamos de mudança, indivíduos e grupos. Observador distanciado da atualidade terá imagem de formigueiro espantado por pé transcendente. (7)
Atualmente podemos verificar que o refluxo dessas populações para o centro de São Paulo aconteceu de fato, só que de maneira mais complexa, pois para permanecer nos centros, os nenês famintos competem - tribos contra Estado - com a revalorização do solo central das grandes cidades, promovido pelo poder público em consórcios com a iniciativa privada, recuperando o centro como pólo atrativo de produção de capital.
Vilén Flusser, mesmo reconhecendo que “lar” não é necessariamente um lugar fixo, e que perdê-lo não significa ter que sair ou ser expulso, continua ameaçando, com ironia, a segurança do burguês. Mostra a fragilidade de seu território sagrado transformando-o em lugar irreconhecível quando invadido por hordas famintas de subdesenvolvidos. As fronteiras do suportável são invadidas, pois não conseguir manter as barreiras que separam o “lar” do contato com o indesejável é o mesmo que ter que viver em ambiente inabitual, portanto inabitável.
Pulsões de valorização, desvalorização e revalorização do solo urbano contribuem para a circulação dispersa dos nenês pela cidade, que seguem resistindo à força centrífuga que os empurra para fora das fronteiras da cidade. Movem-se como navegantes nômades (8). Por mais que essas populações nômades sejam vigiadas e a cidade seja esquadrinhada pelos radares da polícia e dos diagnósticos sociais, a permanência dos nenês nos centros superpõe-se à organização imposta pelo Estado. O controle não atinge necessariamente sua navegância errante.
Termos como dobra, brechas, nomadismo, plataforma ou platôs são não somente metáforas geográficas e geológicas como também uma tentativa de organizar a diversidade espacial. Instalação, fluxo, produção ou intempestivo são também termos que procedendo das experiências estéticas contemporâneas se convertem em verdadeiras categorias filosóficas. (9)
A cidade libera buracos e trincheiras como formas de resistência nômade, são
...imensas favelas móveis, temporárias, de nômades e trogloditas, restos de metal e de tecido, patchwork, que já nem sequer são afetados pelas estriagens do dinheiro, do trabalho ou da habitação. Uma miséria explosiva... (10)
A cidade impõe controles que não param de ser transgredidos, mas também abriga sistemas que exigem tradução, que migram da marginalidade ao centro. São segundo Deleuze-Guattari os espaços estriados e os espaços lisos; e na cidade os dois tipos de espaço operam em jogos dessimétricos, distintos, mas não opostos pois
...devemos lembrar que os dois espaços só existem de fato graças às misturas entre si: o espaço liso não para de ser traduzido, transvertido num espaço estriado; o espaço estriado é constantemente revertido, devolvido a um espaço liso. (11)
Os nenês famintos, os ambulantes, os moradores de rua, escancaram na existência nômade na cidade um revide à força da estriagem. Ser nômade não significa necessariamente o eterno ir e vir, podendo mesmo significar uma permanência, resistir aos estriamentos dos espaços justamente por não migrar. São nômades por tentarem manter um espaço de intensidades, incerto, onde prossegue o afrontamento entre o liso e o estriado, as passagens, a alternância, e superposições. (12)
A cidade comprova a todo instante a ineficiência da classificação, do rastreamento das populações nômades e da circunscrição de seus espaços lisos, como estratégia de proteção. É que a cidade continua se esburacando, abrindo brechas apesar e por causa da estrialização. Uma cidade menor introduzindo-se numa cidade maior, ou seja, esses movimentos nômades insistindo em acontecer. Ao mesmo tempo em que resistem aos sistemas de controle, reivindicam a tradução de sua marginalidade, provocando mais deslocamentos
Há como viver sem temer ser esmagado pelo pé transcendente de que fala Vilém Flusser? É preciso entender que a cidade menor e a cidade maior não param de se influenciar, isto é, a cidade maior inspira-se na cidade menor e vice versa. A tradução daquilo que é estranho e de sua possível incorporação, ainda que fragmentária e parcial, pela cidade maior, é a estriagem do liso nômade, o qual continua abrindo seus buracos e escapando.
É essa questão que Vilén Flusser apresenta como contraponto ao cinismo da arquitetura atual: é impossível e ineficaz represar e neutralizar os nenês nas periferias e não se render ao território-desterritório da vida urbana atual.
notas
1
LAPLANTINE, François. Um olhar francês sobre São Paulo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1993, pp. 15,16.
2
CARPENTIER, Alejo. Literatura e Consciência Política na América Latina. São Paulo: Global editora, 1969, p. 22.
3
CARPENTIER, Alejo. Op. Cit.,pp. 22-23
Alejo Carpentier, escritor cubano, re-significou a palavra desmesura através do substantivo americana. Americana-desmesura significa uma dimensão geográfica-visual somente conhecida a partir do descobrimento do continente americano pelo homem ocidental.
4
CARPENTIER, Alejo. Visão da América. São Paulo: Marins Fontes, 2004, p. 106, 107.
5
CARPENTIER, Alejo. Op. Cit., 1969, p. 23.
6
Sítio: <www.dionisiogonzalez.com.es/> acessado em fevereiro de 2010.
7
FLUSSER, Vilém. Pós História: Vinte Instantâneos e um Modo de Usar. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1983, p. 102
8
DELEUZE, Gilles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs, vol. V. Trad. Peter Pál Pelbart e Janice Caiafa. São Paulo:Editora 34, 2002, p. 186.
Deleuze e Guattari citam a navegação nômade, empírica e primitiva, guiada por ventos, ruídos, cores e sons do mar, anterior às determinações da longitude e da astronomia.
9
SOLÁ-MORALES, Ignasi. Territorios. Barcelona: Editorial Gustavo Gilli, 2002, p. 72.
Termos como plegamiento, greta, nomadismo, plataforma ou platôs non son solo metáforas geográficas y geológicas sino um intento de organizar la diversidad espacial. Instalación, flujo, producción o intempestivo, son también términos que procediendo de lãs estéticas contemporâneas se convierten em verdaderas categorias filosóficas.
10
Deleuze/ Guattari, Op. Cit., p.189.
11
Deleuze/ Guattari, Op. Cit., p.188.
12
Deleuze/ Guattari, Op. Cit., p.185.
sobre a autora
Mila Goudet é Professora das disciplinas de Projeto e História da Arquitetura Contemporânea na UNIP. Doutora em Comunicação e Semiótica da PUCSP, como bolsista CAPES. Participa do Grupo de Pesquisa Cultura e Comunicação: Barroco e Mestiçagem (CNPq). Concluiu Mestrado pela Psicologia Clínica no Núcleo de Subjetividades Contemporâneas na PUCSP com bolsa CAPES. Graduou-se em Arquitetura e Urbanismo na EESC- São Carlos.