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architexts ISSN 1809-6298

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Este artigo apresenta uma perspectiva científica, com base histórica e arqueológica, sobre a história das maquetes e sobre os recursos tridimensionais de representação arquitetônica no mundo romano

english
This paper presents a scientific approach, with historical and archaeological bases, to the history of architectural models and three-dimensional resources for architectural representation at the roman world

español
Este artículo presenta una perspectiva científica, con base histórica y arqueológica, acerca de la historia de las maquetas y de los recursos tridimensionales de representación arquitectónica en el mundo romano


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ROZESTRATEN, Artur Simões. Aspectos da história das maquetes e modelos tridimensionais de arquitetura no mundo romano. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 139.00, Vitruvius, dez. 2011 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.139/4155>.

A relevância cultural, técnica e espacial da arquitetura romana é evidente, isto já se sabia nos princípios da Idade Média, e preservou-se em Bizâncio, como continuidade do Império Romano do Oriente. No Ocidente, contudo, tal posição viria a se consolidar somente com o reconhecimento dos arquitetos da Renascença Italiana no Quattrocento e, a partir de então, alimentou o imaginário de inúmeros artistas e arquitetos, de Bernini (1598-1680) a Louis Khan (1901-1974), de Piranesi (1720-1778) a Rafael Moneo. O patrimônio arquitetônico romano fundamentou também  interpretações modernas sobre a valorização do espaço interno, por Alois Riegl (1) e Bruno Zevi (2), aspecto praticamente ausente na arquitetura grega monumental.

Contudo, difundiu-se pouco o que se sabe sobre o modus operandi dos arquitetos romanos. Que representações gráficas utilizavam? Faziam maquetes? Que tipo de maquetes e com quais finalidades?

São estas questões que balizam este artigo. Para investigar este assunto, serão feitas considerações sobre os modelos arquitetônicos produzidos na península itálica desde o fim da Idade do Bronze até o período do Alto Império Romano, entendendo o termo “modelo arquitetônico” como todo objeto com formas arquitetônicas em escala reduzida e usos diversos, dentre os quais o uso como maquetes. Também serão considerados neste corpus objetos provenientes de territórios dominados pelos romanos durante o período imperial.

Os modelos mais antigos que aqui serão mencionados foram produzidos pela cultura Villanoviana (3) entre os sécs. X-VIII a.C., no início da Idade do Ferro, em um período anterior portanto à cultura etrusca. Os demais modelos pertencem ao período da Monarquia, República e Império romano com datação até o séc. II d.C. Dentre estes, interessa especialmente duas maquetes em pedra vindas do Líbano: a maquete de teatro de Heliópolis-Baalbek, e a maquete de Niha, um provável modelo de estudo para a edificação do templo A de Niha, próximo à Baalbek. Para finalizar, serão feitas algumas considerações sobre o tratado de Vitrúvio, os Dez Livros Da Arquitetura, procurando identificar e relacionar as referências textuais a maquetes às evidências materiais fornecidas pela arqueologia.  

Tipologias

A história dos modelos arquitetônicos na península itálica inicia-se com uma tradição de urnas cinerárias villanovianas, diretamente relacionada aos cultos funerários característicos dos povos indo-europeus que invadiram a região na Idade do Bronze. A essa tradição de modelos funerários que perdurou entre o sécs. X e VIII a.C. se sobrepôs uma antiga tradição mediterrânea de naískoi, muito provavelmente trazida da Grécia para a Magna Grécia, região da Sicília e do sul da Itália, entre os sécs. VIII e VII a.C. Tal tradição, com origens no Oriente Próximo na região da antiga Palestina, atravessou todo o período de formação da Monarquia etrusca e perdurou até o período tardo-helenístico (séc. I a.C.) já em fins da República romana. Na peníncula itálica, porém, a tradição de naískoi conformou uma variante tipicamente romana: os templetes, miniaturas de templos com formas características da arquitetura helenística e riqueza de detalhes ornamentais. Raros modelos de torre também se fazem presentes no corpus de objetos caracterizados como modelos arquitetônicos romanos.

Todos esses objetos: naískoi, templetes e torre caracterizam-se, claramente, como modelos votivos em conformidade com a tradição mediterrânea adaptada ao panteão romano. Já os modelos de cenários, frons scaenae, de uso pouco conhecido até o momento, aparentemente se vinculam à difusão do teatro grego durante o período helenístico. 

Possíveis Maquetes de Arquiteto

Dentre os vários modelos arquitetônicos romanos existem alguns poucos exemplares que podem ter sido usados como maquetes de arquiteto: a maquete de stadium de Villa Adriana (4), a maquete de Óstia (5), a maquete de teatro de Baalbek, e a maquete de Niha. Por considerar essa possibilidade, esses modelos são designados aqui como maquetes. Entretanto, vale frisar, que no caso dos três primeiros objetos, ainda há muitas questões em aberto e poucas certezas a respeito de seu uso provável em sua época.

Os estudos específicos desenvolvidos sobre esses modelos são recentes, datam do final dos anos 60 e início dos anos 70, como o breve e seminal artigo de Kalayan (6) de 1971, sobre a maquete de Niha. Recentemente estas possíveis maquetes de arquiteto romanas foram retomadas em artigos de Will (7), Wilson Jones (8) e Pensabene (9).

Este artigo irá se concentar sobre a maquete de teatro de Baalbek, e a maquete de Niha, ambas encontradas em escavações nos arredores de Baalbek ou Heliópolis no Líbano, cidade situada no vale de Beqaa (ou Bekaa), a noroeste de Beirute, e datadas no séc. II. Neste local, antigo santuário fenício, foram construídos os mais monumentais templos do Império Romano, compondo um conjunto arquitetônico grandioso com três templos principais dedicado à tríade Júpiter, Baco e Vênus. A construção deste complexo, erguido entre o último quartel do séc. I a.C. e o séc. III, demandou um canteiro de obras igualmente gigantesco e, certamente, exigiu esforços e estratégias especiais de controle de projetos, construção e gerenciamento de obras. O vínculo dessas duas maquetes com a região de Baalbek é especialmente significativo quando se considera os desafios tecnológicos – espaciais, construtivos e de comunicação/representação – que se colocaram nesse contexto do Oriente-próximo para os quadros técnicos e administrativos de Roma. Logo, esses dois objetos podem ser tomados como indícios significativos da existência de uma cultura projetual imperial romana, à qual possivelmente se integrava a prática de modelagem tridimensional, envolvendo a fatura de maquetes de caráter experimental.

Vista Panorâmica do complexo de templos e santuário de Baalbek ao fundo, e de edificações da cidade nos arredores do santuário à frente
Foto Tancrède R. Dumas, (1860-1900) [Imagem do Acervo da Biblioteca do Congresso dos EUA. Domínio público]

Ruínas do templo de Júpiter em Baalbek, Líbano. Fotografia datada entre 1890 e 1923
Coleção de Frank e Frances Carpenter [Imagem do Acervo da Biblioteca do Congresso dos EUA. Domínio público]

  

Maquete de Teatro de Baalbek

A maquete de teatro da cidade de Baalbek ou Heliópolis no Líbano é uma peça talhada em um bloco de pedra calcárea dura, datada no início do séc. II d.C., que representa a cávea ou plateia de um típico teatro da antiguidade clássica semicircular, sem proscênio e nem cenário. Não se pode descartar a hipótese de que o frons scaenae era composto por uma outra maquete complementar. A maquete foi encontrada nos arredores da colina de Sheik-Abdallah, e se supõe que corresponda ao teatro de Baalbek que, provavelmente, se localizava na encosta desta mesma colina, construído durante o séc. II d.C. (10) Conforme esta hipótese, o teatro de Baalbek teria uma implantação incrustada comum a vários teatros gregos e romanos, como por exemplo o de Éfeso, do séc. III a.C. A própria opção construtiva de se confeccionar a maquete escavando um bloco de pedra – de forma análoga ao que se fez no canteiro de obras –, também poderia constituir uma aproximação experimental-construtiva entre modelo reduzido e arquitetura real.   Entretanto, a hipótese de correspondência entre a maquete e o teatro romano de Baalbek ainda não pôde ser verificada por meio de escavações arqueológicas, pois a área provável do teatro está ocupada pelo Hotel Palmyra de Baalbek, e não houve desapropriação do terreno. A futura escavação da encosta, onde supostamente estariam os vestígios do teatro, é portanto imprescindível para o estudo comparativo entre o modelo tridimensional e a arquitetura real. Se eventualmente, após as escavações e o levantamento completo da área, forem verificadas semelhanças entre os vestígios arqueológicos do teatro e o modelo reduzido, a hipótese de que se trata de uma maquete de arquiteto será reforçada. No momento, contudo, ainda não se dispõe de todos os dados necessários para tanto.

Teatro de Éfeso, Ásia menor, atual Turquia, séc. III a.C.
Foto Artur Rozestraten

Maquete de Niha

A maquete de Niha foi encontrada no final dos anos 60, no interior de uma pequena edificação que provavelmente servia como espaço de apoio à construção do templo A de Niha, e se localizava junto ao início da escadaria do templo que leva ao ádyton, espaço sagrado localizado no fundo do templo. Este sítio arqueológico está próximo à atual cidade de Zahleh, no vale de Beqqa, a aproximadamente 25 Km de Baalbek, e 60 Km de Beirute (11). A datação da maquete é feita no séc. II d.C. período de plena atividade construtiva no santuário de Baalbek. As primeiras descrições e considerações sobre esse objeto foram publicadas por Kalayan em 1971 nos Annales Archéologiques Arabes Syriennes (12). No referido artigo, o autor conseguiu – pela primeira vez na história do estudo dos modelos arquitetônicos da antiguidade –, relacionar diretamente um modelo tridimensional reduzido a uma determinada arquitetura real que lhe era contemporânea. Deste modo, Haroutune Kalayan provou que a maquete de Niha corresponde ao templo A de Niha em uma escala de 1:24, e o estudo de vários aspectos deste objeto apontou  indícios de que se trata de uma maquete de arquiteto.

Vista externa do templo A de Niha
Foto Bertramz [Creative Commons]

Vista interna do templo A de Niha
Foto Bertramz [Creative Commons]

Conforme Ernst Will, a maquete é oca, a parte de trás do modelo é aberta e o espaço sob a escadaria é vazio. Detalhe muito significativo, pois alivia bastante o peso da peça, o que facilitaria seu transporte. A maquete também representa apenas uma parte do templo A de Niha, justamente a parte principal, interna, e mais sagrada, a escadaria e o próprio ádyton (13).

Na vista frontal, o ádyton se localiza no fundo da maquete e é precedido por dois lances de escadas com um patamar intermediário que tem à direita uma porta de acesso à cripta. O primeiro lance possui 11 espelhos e está tripartido, ou dividido em 3 partes, por corrimãos ou bloqueios de pedra. No templo real, o primeiro lance de escadas é menor e possui apenas 9 espelhos. O segundo lance de escadas da maquete possui 12 espelhos no total, sendo que a escadaria central possui um lance de 8 espelhos, e depois mais 4 espelhos conjugados 2 a 2, espaçados por patamares. No templo real, o segundo lance de escadas é menor, com apenas 11 espelhos. A variação no número de espelhos das escadas pode ter sido consequência do aumento da altura dos espelhos na obra, ou uma redução do nível final da cota do piso do ádyton.

Vista frontal da maquete de Niha, séc. II, cerca de 61 x 64 cm de base, e 22,5 cm de altura. Museu de Beirute, Líbano
Foto Bertramz [Creative Commons]

O segundo lance de escadas está interrompido no canto direito por uma projeção do piso do ádyton por sobre uma cripta com porta, e de fato há no templo real uma porta de acesso a uma cripta localizada sob o piso na mesma posição que está indicada na maquete.

O ádyton propriamente dito é representado na maquete com um altar baixo e a base de 2 colunas alinhadas à direita do altar. Essas 2 colunas provavelmente compunham com uma terceira coluna uma colunata lateral do altar, que devia existir também simetricamente do outro lado do altar.

Existem várias inscrições na pedra na área do ádyton da maquete, e as interpretações de tais inscrições reforçam a hipótese de que se trata de uma maquete de arquiteto. Na parte central da maquete existem sete anotações alinhadas, escritas de modo a serem lidas por quem está vendo a maquete da frente para o fundo. Seis dessas anotações são compostas pelo símbolo grego pi, tendo no seu interior o símbolo omicron bem pequeno, acompanhados por uma letra que designa um número como faziam os gregos. Uma dessas anotações, a do meio, localizada no último degrau antes do altar, é o termo grego póda, que quer dizer pé, e se refere a uma antiga unidade de medida grega equivalente a 29,6 cm. Todas as inscrições de medidas estão localizadas sobre o piso dos degraus, ou sobre patamares, e se referem provavelmente a alterações nas medidas desses elementos. Isso poderia explicar a diferença entre o número de espelhos na escadaria da maquete e o número de espelhos na escadaria do templo. Um estudo comparativo entre as duas plantas, da maquete e do templo, poderia confirmar se a causa da diminuição de espelhos foi consequência do aumento da distância atrás do altar conjugado ao aumento da largura dos patamares.

Ainda no trecho central do ádyton existem inscrições circulares interligadas por linhas. Os círculos indicariam a posição de colunas e as linhas indicariam a posição relativa dessas colunas na composição de um único desenho conjunto. Nas inscrições esse desenho está incompleto, mas sugere uma figura octogonal que indicaria a posição das colunas de um baldaquino junto ao altar. De fato existe um baldaquino junto ao altar do templo, mas simplesmente alinhado com o trecho central da escadaria.

Sobre a maquete, à esquerda do altar, está gravado (p)rokenthema ady(ton). O termo grego prokénthema significa literalmente “gravado” ou “inscrito”, e no contexto da maquete é interpretado como sendo uma referência ao plano ou projeto arquitetônico do ádyton.

O que está gravado na pedra parecem ser registros de alterações sobre o projeto original. O termo prokénthema poderia estar simplesmente confirmando a validade de tais desenhos ao registrar algo como: “estas são as alterações a serem feitas sobre o projeto”.

A posição das inscrições na maquete – prokénthema ady(ton) – dando leitura para quem vê a maquete de frente, e as indicações de pódas dando leitura para quem vê a maquete de trás, foi interpretado por Ernst Will (14) como uma registro gráfico de uma situação de diálogo em torno do objeto: de um lado o arquiteto, e de outro os representantes do templo e financiadores da obra.

Desenho em planta da maquete do ádyton do templo A de Niha. Sem escala. Alto Império Romano, séc. II d.C. Fonte da imagem: BOMMELAER, J.-F. "Typologie fonctionnelle des maquettes architecturales dans le monde grec antique". In: Maquettes architecturales de l’Antiquité. Actes du Colloque de Strasbourg, 3-5 décembre 1998, édités par B. MULLER, p. 379. Com base em desenho publicado por WILL, Ernst. "La maquette de l’adyton du temple A de Niha (Beqa)". In: Le dessin d’architecture dans les sociétés antiques. Anais do colóquio de Strasbourg, 26-28 de Janeiro de 1984. Strasbourg: Université des Sciences Humaines de Strasbourg, Centre de Recherche sur le Proche-Orient et la Grèce antiques, 1985. p.277-281.

A sobrevivência da maquete faz supor um processo de projeto arquitetônico que poderia envolver desenhos, modelos em escala real e reduzida, anotações e memoriais descritivos, conjugando a tradição verbal grega – evidente na grafia sobre o modelo – a uma prática original romana.

Amparado nos estudos de Kalayan, Will (15) lança a hipótese de que a construção do templo de Niha e a própria confecção da maquete podem ter contado com o apoio técnico do que ele chama de “Ateliê de Arquitetura de Baalbek”. O que é provável, e merece estudos mais aprofundados, afinal Baalbek foi uma das mais importantes cidades do império romano, estrategicamente localizada no vale de Beqqa, passagem obrigatória das rotas de caravana entre Damasco e Tiro (Beirute atual), ou seja, entre o Mediterrâneo e o interior da Síria, entre Roma e o Oriente Próximo. Durante mais de 200 anos Baalbek abrigou um intenso e desafiador canteiro de obras para a construção do santuário. Muito provavelmente consolidou-se ali um núcleo tecnológico de projeto e obra, formado na confluência multi-cultural das tradições próximo-orientais, da herança grega-helenística, e dos procedimentos de produção monitorados por Roma.

Vista da escadaria monumental de acesso ao ádyton do templo de Baco em Baalbek, com cripta à direita na imagem, mesma posição em que comparece na maquete de Niha
Foto Markus Hündgen [Creative Commons]

As semelhanças arquitetônicas entre o ádyton do templo A de Niha (séc. II d.C.) e ádyton do templo de Baco em Baalbek (séc. II d.C.),  que são contemporâneos, e próximos (25 Km) de fato abrem possibilidades de que tenha havido um intercâmbio técnico e artístico entre as duas localidades à época da construção dos complexo de templos.

Conforme tal hipótese, a maquete pode ter sido confeccionada por artesãos de Baalbek integrados à equipe de trabalho dos templos, e se esse era o procedimento padrão de projeto é provável que os romanos tenham empregado maquetes no projeto e na construção dos templos de Baalbek, e em outras arquiteturas do período Imperial, integradas ao conjunto de conhecimentos técnicos e artísticos, sistematizado e organizado pela administração do império romano, para o planejamento e a construção de cidades, infra-estrutura e monumentos em todos os territórios sob seu domínio.

Pode-se dizer, portanto, que o modelo de Niha é o mais provável exemplo de maquete de arquiteto da Antiguidade Clássica. É uma maquete do Alto Império Romano, contemporânea a um dos maiores canteiro do mundo antigo e ao trabalho de grandes arquitetos como Apollodorus de Damasco (c. 50-120 d.C.), por exemplo, que projetou o fórum e a basílica de Trajano. É também um maquete detalhada, minuciosa, construída em escala matemática precisa, registrando alterações e alternativas distintas, e que se concentra exatamente no diferencial da arquitetura romana: a atenção aos elementos constituintes do espaço interno, como a escadaria e o baldaquino do ádyton.

Comentários sobre Vitrúvio, Os Dez Livros da Arquitetura

No último capítulo do Livro Décimo, capítulo XVI, em que trata de máquinas, especialmente máquinas de guerra, Vitrúvio descreve um episódio do arquiteto Cálias em Rodes onde há referências diretas a maquetes de edificações, e maquetes de máquinas de guerra, ambas diretamente relacionadas ao trabalho de arquitetos.

Da maquete de fortificação pouco se fala, afinal o centro das atenções é a máquina de guerra anti-helépoles. Apesar da pouca atenção dada a essa maquete no texto, o episódio narrado por Vitrúvio faz um registro textual histórico do uso de maquetes de arquiteto anterior ao séc. I a.C., anterior portanto em cerca de 300 anos ao registro arqueológico da maquete de Niha (séc. II d.C.).

O modelo de máquina de guerra mencionado consistia em uma maquineta com movimento. Os habitantes de Rodes ficaram admirados porque viram a maquete de Cálias em funcionamento. Na apresentação da maquete ao povo de Rodes não estava em jogo nenhum espaço ou forma arquitetônica, mas sim um desempenho mecânico com uma finalidade de defesa militar. No desfecho do episódio, Vitrúvio se refere a uma ilusão. Os habitantes de Rodes se sentiram iludidos pois acreditaram ter comprado um domínio sobre uma máquina real, mas quando houve necessidade de construir essa máquina em escala 1:1, Cálias refugou e disse ser impossível construí-la.

O problema que gerou a frustração e a revolta dos habitantes de Rodes com relação ao trabalho do arquiteto Cálias é que sua maquete não se mostrou confiável como um modelo de teste, ou um modelo experimental que deveria manter desempenho semelhante em escala reduzida e em escala real.

Na medida em que se mostrou uma maquete ardilosa, sedutora e inverossímil, a maquete de Cálias poderia ser considerada um mock-up, por simular com perfeição as formas e a aparência de um objeto, sem necessariamente reproduzir seu funcionamento, o que é relativamente útil para um modelo de estudo de elementos arquitetônicos e edifícios, que são estáticos, mas compromete a modelagem de máquinas e dispositivos mecânicos que devem, essencialmente, movimentarem-se.

No relato de Vitrúvio, o arquiteto Cálias nem mesmo se dispõe a tentar fazer a “máquina de gávea giratória”, e esse aspecto é relevante. Por que Cálias não aceitou a encomenda? Por que ele não explicou seus motivos ou justificou a impossibilidade de construir a máquina?

Afinal, era de se imaginar que seria caro e trabalhoso tal empreendimento, assim como deve ter sido a construção da máquina de Epimaco. Entretanto, levando em consideração a situação de ataque iminente e a ousadia da empreitada, é possível que os habitantes de Rodes fossem mais compreensivos com eventuais problemas construtivos ou falhas no desempenho da máquina, do que o foram com a desistência antecipada de Cálias.

A simples caracterização da maquete como um simulacro ardiloso colocaria Cálias como um farsante. Mas há outras interpretações possíveis para esse episódio.

A maquete poderia ser mesmo um modelo de apresentação de um projeto ambicioso, especulativo, ainda em desenvolvimento. A desistência de Cálias, conforme esse viés, poderia ter sido motivada por uma comparação entre a sua ideia de máquina e as dimensões gigantescas da helépole de Epimaco já em construção. De modo criterioso e responsável, a partir de sua experiência e de sua intuição, Cálias percebeu ser impraticável realizar a máquina no tamanho necessário – e no pouco tempo disponível –, e rapidamente afirmou ser impossível construí-la.

Logo em seguida a esse trecho Vitrúvio faz um juízo geral sobre os modelos e relativiza o episódio, afinal, a relação entre os modelos reduzidos e a realidade seria mesmo imprecisa e variável. Vitrúvio afirma que há situações em que os modelos reduzidos produzem um efeito semelhante ao tamanho real. Há também situações que não comportam modelos e que funcionam sem problemas em escala natural. E por fim, há situações, como a vivida por Cálias, que em modelo reduzido parecem viáveis e que na realidade não o são.

A partir das incertezas de Vitrúvio sobre os modelos, poderíamos supor que a confecção de maquetes ainda não havia sido assimilada pela sociedade romana e, portanto, não constituía um conhecimento instrumental auxiliar à prática do projeto? Ou estas especulações vitruvianas, ao apontarem restrições ao uso de modelos, constituem um registro histórico justamente do emprego da modelagem que, consequentemente, deu origem a reflexões tecnológicas sobre sua natureza, possibilidades e restrições?

Vitrúvio e Cálias parecem saber que a relação entre maquetes e realidade não se reduz simplesmente a uma questão de escala, ou de proporção matemática. A experiência construtiva certamente já demonstrara que estruturas e mecanismos feitos em escala reduzida não necessariamente funcionavam na realidade porque os esforços aumentam, não necessariamente em uma progressão aritmética, e os materiais podem não suportar o esforço.

Certamente não faltava à Cálias habilidade e arte para inventar e confeccionar infindáveis maquetes de máquinas fabulosas. O que ainda estava distante de sua época era uma prática e uma reflexão capazes de integrar esses modelos tridimensionais em um processo de projeto experimental que conjugasse observação, formulação matemática e teoria de modo a sistematizar o enfrentamento de situações-problema, desenvolvendo soluções, refletindo e argumentando sobre as possibilidades e as impossibilidades de construir suas invenções. Tal conquista tecnológica levaria cerca de 1.400 anos para se conformar, de maneira exemplar, no trabalho de Filippo Brunelleschi.

Considerações finais

Das supostas maquetes de arquiteto romanas apenas uma, a maquete de Niha, reúne características necessárias e suficientes para ser aceita como tal. Contudo, a documentação publicada a seu respeito ainda é escassa e incompleta. Há a necessidade de se sistematizar o registro dos modelos arquitetônicos com os mesmos padrões do patrimônio arquitetônico, com um conjunto de plantas, cortes e elevações em escala, complementado por uma série de fotografias. Necessidade esta compartilhada e salientada por Jean-Claude Margueron (16) dentre as conclusões do colóquio de Estrasburgo em Dezembro de 1998.

A maquete de Niha, considerando-se sua importância histórica, deveria ser objeto de estudos comparativos mais detalhados, assim como deveria ser mais difundida no âmbito da história da arquitetura e seus processos projetuais.

O estudo dos Dez Livros Da Arquitetura permitiu perceber que embora as referências a modelos tridimensionais em Vitrúvio sejam escassas, a narrativa do episódio do arquiteto Cálias em Rodes, constitui um registro histórico de grande importância para a compreensão do papel dos modelos tridimensionais no trabalho dos arquitetos da Antiguidade.

É certo que se trata de um episódio muito particular, e sempre há risco nas generalizações a partir de um único exemplo. Mas, frente à escassez de textos da época, e mantendo a reserva e a crítica com que os estudos contemporâneos costumam tratar o texto de Vitrúvio, o episódio de Cálias abre novas perspectivas sobre a história das maquetes de arquiteto a partir da exploração das relações entre as características da modelagem tridimensional e a história do projeto de arquitetura.

Considerando o campo de atuação dos arquitetos do Período Helenístico e do Império Romano, futuros estudos sobre as maquetes de arquiteto na Antiguidade não devem se restringir a edificações e seus modelos, mas incluir também as maquetes de apresentação de máquinas de guerra, autômatos, e demais equipamentos mecânicos com atenção especial aos trabalhos de Arquimedes, Ctesíbio e Heron de Alexandria ampliando a compreensão do tema ao âmbito da tecnologia e da história da técnica.

Frente à maquete de Niha e ao “Ateliê de Arquitetura de Baalbek”, há que se rever as interações entre os procedimentos projetuais da Renascença e do Mundo romano, considerando sobrevivências, reinvenções e inovações que se deram ao longo da Idade Média, na Europa ocidental e no Mundo Bizantino, e que vieram a configurar no Quattrocento italiano as bases do modus operandi dos arquitetos modernos.     

notas

NE
Este artigo é parte da dissertação de mestrado do autor disponível na íntegra no Biblioteca Digital de Dissertações e Teses da USP no link: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/16/16131/tde-09062009-145825/pt-br.php>. Aspectos da modelagem no mundo grego também foram publicados pelo autor no artigo: ROZESTRATEN, A. S. . Comentários sobre a modelagem tridimensional na arquitetura grega e romana antigas: Heródoto, Aristóteles e Vitrúvio. Pós. Revista do Programa de Pós Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU/USP, v. 22, p. 142-159, 2007.

Este texto é o terceiro de uma série de três sobre o tema da modelagem arquitetônica na Antiguidade, os dois textos anterior concentram-se no Egito, e em Creta e Grécia.

1
RIEGL, Aloïs. Arte tardoromana (1901). Trad. de Licia C. Ragghianti. Torino: Einaudi Ed., 1959.

2
ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 1996.

3
A designação Villanoviana se deve ao fato de que os primeiros achados arqueológicos que permitiram caracterizar essa cultura se deram em Villanova, próximo a Bolonha, região nordeste da Itália. BOËTHIUS, A.; WARD-PERKINS, J.B. Etruscan and Roman Architecture. Harmondsworth: Penguin Books, 1970.

4
REGGIANI, Anna Maria. Comentário da figura 87. In Las Casas del Alma. Catálogo da exposição “Las casas del alma (5.500 a.C. – 300 d.C.) do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona”. Barcelona: Fundación Caja de Arquitectos, 1997. p. 240-241.

5
PENSABENE, Patrizio. Maqueta de templo en mármol de Luna. In Las Casas del Alma. Catálogo da exposição “Las casas del alma (5.500 a.C. – 300 d.C.) do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona”. Barcelona: Fundación Caja de Arquitectos, 1997. p. 129-132.

6
KALAYAN, Haroutune. “Notes on assembly marks, drawings and models concerning the Roman period monuments in Lebanon”. In: Annales Archéologiques Arabes Syriennes. Revue d’Archéologie et d’Histoire, 21, 1971, p.269-273.

7
WILL, Ernst. “La maquette de l’adyton du temple A de Niha (Beqa) ”. In Le dessin d’architecture dans les sociétés antiques. Anais do colóquio de Strasbourg, 26-28 de Janeiro de 1984. Strasbourg: Université des Sciences Humaines de Strasbourg, Centre de Recherche sur le Proche-Orient et la Grèce antiques, 1985. p.277-281.

8
WILSON JONES, Mark. “Los procesos del diseño arquitectónico: comprender a Vitruvio a partir de los dibujos y maquetas romanos”. In: Las Casas del Alma. Catálogo da exposição “Las casas del alma (5.500 a.C. – 300 d.C.) do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Barcelona: Fundación Caja de Arquitectos, 1997. p. 119-128.

9
Idem nota 4.

10
GHADBAN, Chaker. Comentário da figura 86. In: Las Casas del Alma. Catálogo da exposição “Las casas del alma (5.500 a.C. – 300 d.C.) do Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona. Barcelona: Fundación Caja de Arquitectos, 1997. p. 239.

11
REGGIANI, Anna Maria. Op. Cit.

12
BOËTHIUS, A.; WARD-PERKINS, J.B. Op. Cit.

13
REGGIANI, Anna Maria. Op. Cit.

14
Idem. Ibidem

15
Idem. Ibidem

16
MARGUERON, Jean-Claude. “Conclusions: Aujourd’hui et Demain”. In: Maquettes Architecturales de L’antiquité. Actes du Colloque de Strasbourg, 1998. Paris: De Boccard, 2001. p.533-544.

sobre o autor

Artur Simões Rozestraten é Arquiteto e urbanista, professor doutor junto ao Departamento de Tecnologia da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.

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