A noção de Patrimônio Cultural contemporânea é muito mais ampla do que aquela que se fazia há poucas décadas atrás, quando ela se estabelecia apenas sobre os pilares da história e da arte, época em que a excepcionalidade artística ainda tutelava o reconhecimento histórico. Os tempos mudaram, mas as raízes de formação do pensamento patrimonial ainda definem com bastante intensidade o tratamento que é dado aos bens patrimoniais. A abordagem que se pretende fazer aqui é antes uma maneira de investigar as diversas faces do conceito de patrimônio e as conseqüências que elas têm nas estratégias de preservação, evitando-se mascará-las como se houvesse uma unidade de pensamento supostamente estabelecida pelas “cartas internacionais” ou que certas tensões, como por exemplo, a opção entre instância estética ou instância histórica já tivessem sido superadas pela história do restauro.
Visão de mundo: princípios correntes de preservação
Ao analisarmos a História do Restauro, ou seja, da intervenção consciente em contextos materiais históricos reconhecidos como documentos importantes para a humanidade, temos que seus primórdios como “ciência” remontam ao século XIX, período marcado pela maioria dos historiadores como fundante, a partir das diferenças de pensamento entre Viollet le-Duc e Ruskin. Sua consolidação como campo de conhecimento se deu ao longo do século XX, através de sucessivas contribuições de teóricos e das “cartas internacionais”, as quais funcionaram como pactos procedimentais, mas são também, e talvez principalmente, recomendações técnicas.
A consolidação moderna de uma consistente “teoria da restauração” foi realizada pelo italiano Cesare Brandi (1906-1988), a partir das contribuições sobre o tema que já vinham sendo debatidas na Europa desde o século XIX. A sua teoria se estabeleceu sobre os dois pilares acima citados, a história e a arte, levando-o a discorrer sobre uma instância histórica e uma instância artística aplicáveis aos objetos a serem restaurados. Dois conceitos fundamentais para o entendimento contemporâneo do patrimônio – a cultura e a memória - não foram explorados, mas apesar disso, a prática contemporânea aplica a teoria brandiana indiscriminadamente aos bens a serem preservados, desconhecendo que toda ela foi estabelecida apenas com relação às obras de arte, hoje apenas uma parcela de nosso vasto patrimônio.
Além disso, a separação entre uma instância histórica (na maior parte das vezes relacionada à matéria) e artística (na teoria brandiana associada à imagem) possibilita também uma separação entre imagem e matéria, a qual muitas vezes aponta para uma atitude simplista que reduz o trabalho de restauro a uma mera adaptação da matéria à obra de arte em sua exigência formal, desconhecendo envolventes da memória e da cultura.
É claro que o período de desenvolvimento das teorias da restauração é profundamente marcado pelas correntes filosóficas e diferentes visões de mundo que marcaram esse período, especialmente o positivismo do século XIX e o paradigma da infalibilidade da ciência que dominou o século XX. Ao longo da História do restauro, conviveram também outras correntes filosóficas idealistas ou materialistas, mas, sem aprofundar muito na História da Filosofia – o que seria conveniente, mas extenso demais para os limites deste artigo – parece-nos que duas direções de visão têm tido influência decisiva na História do restauro, a partir das distinções entre instância histórica e instância artística, imagem e matéria. A primeira direção aponta para três paradigmas, quais sejam o objetivismo histórico (a matéria como prova inequívoca do passado), a imanência da arte (a imagem dotada de uma aura única e reveladora, imutável) e a estabilidade da cultura (a identidade e os costumes como padrões imutáveis caracterizadores de um determinado povo). Quanto à segunda direção de visão, esta aponta para certa confusão do que seja a natureza da Arquitetura, Arquitetura aqui entendida de forma ampla como todo e qualquer agenciamento espacial feito pelo homem, englobando, portanto, a paisagem, a cidade e o edifício, se é que é possível separa-los assim. Passemos a examinar esses pontos de vista.
O objetivismo histórico pode ser abordado sob dois ângulos. O primeiro diz respeito à epistemologia da própria disciplina da História e o segundo relativo ao par autenticidade/ verdade, o qual documentaria inequivocamente a historiografia.
Quanto às questões epistemológicas, embora a História contemporânea questione a idéia “objetiva” de verdade histórica, ela está tão arraigada no senso comum e na patrimonialidade “agregada” aos objetos que elas se confundem com a impossível busca de recuperar os fatos passados como eles realmente aconteceram, contrariando a constatação de que o discurso histórico é essencialmente dedutivo e as suas explicações são antes “avaliações” que “demonstrações”. Por um lado, é impossível uma reconstrução integral dos fatos exatamente como ocorreram, pois, na realidade, a História agrupa fatos em função do método e do historiador, sendo, portanto, por um lado, extremamente influenciada pelo momento em que é escrita e, por outro, as fontes que supostamente “documentariam” objetivamente os fatos podem ter sido manipuladas pelo poder (documentos “oficiais”) ou pela opinião (fontes jornalísticas) ou ainda pelo filtro do narrador (indeterminação da memória).
Quanto às questões relacionadas ao par autenticidade/ verdade – temas que por si só já ensejaram congressos e cartas internacionais – podemos rapidamente dizer que muitas vezes esses conceitos também partem de uma ilusão sobre um suposto “documento histórico”, objetivo, palpável, como se também ele não fosse sujeito a manipulações e desvios e sobre os quais só temos acesso a certas partes de sua própria história. Assim, temos que a prática tem muitas vezes colocado a sua atenção mais no objeto de estudo e esquecido do sujeito que o estuda, como se a “verdade” ou “autenticidade” de um documento ou de um patrimônio não dependesse fundamentalmente da interação entre o que é observado e quem o observa. Qualquer que seja a sua forma, no entanto, o documento antigo constitui um acervo patrimonial, posto que é uma herança que vem do passado e tem sua origem em um tempo que não volta mais, mas, independentemente de seu valor de “verdade”, ele é um objeto do passado, com potencial de expressão próprio. Isto não quer dizer, no entanto, que ele é certamente o documento comprobatório da história e nem que ele é “original” de um determinado fato histórico ou de um único momento específico de criação: ele deve ser absolutamente relativizado como sobrevivente do passado, mas sem a aura de um inconteste documento de uma História “real”.
O ponto de vista da imanência artística entende a obra de arte como provida de uma “aura” ou de uma expressão metafísica que automaticamente se revelaria à humanidade com toda a expressividade nela contida, como uma “epifania”, segundo os dizeres de Cesare Brandi. Sem querer desmerecer a clara expressividade da obra de arte e a sua consistência própria ou a sua coerência de totalidade, devemos nos lembrar, no entanto, que as questões de restauração se aplicam sobre a recuperação da obra de arte e aí entram vários outros fatores “externos” à obra, tais como seu grau de deterioração, a importância desta para a cultura dos diferentes grupos sociais em tempos diversos (aliás como já dizia Riegl em 1903 [1]), a legibilidade da obra em função do deterioro e das diferenças culturais e de formas de legibilidade desejáveis, diferentes formas de tratamento de lacunas, isto tudo sem falar das vertentes arquiteturais, onde esses problemas se mostram ainda mais complexos, conforme veremos adiante.
O ponto de vista da estabilidade da cultura trata a cultura como se ela, responsável pela identidade dos povos, fosse imutável e cuja perda levaria ao deterioro de uma determinada civilização. Também aqui se confundem conceitos. Se por um lado é clara a função identitária da cultura e a importância da preservação de seus valores para a coesão dos povos, por outro lado, isso não significa que a cultura seja imutável e que a identidade seja fixa. Estamos submetidos a processos de transformação de crença e valores tanto como indivíduos, quanto como grupos e uma análise, ainda que breve, sobre as transformações culturais mostraria como um mesmo povo em diferentes épocas valoriza ou vê de forma diferente o mesmo bem cultural. A situação se mostra ainda mais forte se estendermos a nossa observação a um período histórico mais largo, quando podemos observar que as intervenções na pré-existência só muito recentemente valorizam sua bagagem histórica e documental.
O estudo dos paradoxos que a problemática do Restauro traz consigo e do seu desenvolvimento histórico, bem como a observação ao longo do tempo do que seja “patrimônio, histórico, cultural e artístico” – onde a própria mistura de três vertentes tão diferentes já se apresente muito complicada – nos mostra que “patrimônio” é um conceito difuso, relativo e circunstancial e que a “patrimonialidade” não está apenas na matéria, mas também depende de quem a define e nos valores que crê, sua visão de mundo, portanto.
Quando se discute a natureza da arquitetura sob esse arcabouço paradigmático, os problemas se tornam ainda mais complexos. Profundamente influenciadas pela noção de restauro da obra de arte, as questões de restauro arquitetônico foram trabalhadas como se a Arquitetura fosse uma arte visual e desde um ponto de vista relativo a um conceito de integridade visual, onde a obra seria um todo fechado do qual nada se poderia retirar ou acrescentar, o que para a sobrevivência dos artefatos arquitetônicos seria uma tarefa impossível. A aplicação dos métodos de restauro da obra de arte na arquitetura tem levado a distorções, à criação de híbridos descaracterizados e até mesmo a ações de restauro tipológico, estes falsos tanto quanto á história, quanto à arte. Há que se reconhecer, portanto que os princípios adequados às intervenções arquiteturais não podem se confundir com os preceitos adotados para as artes visuais e, embora se possa compartilhar alguns deles, a Arquitetura deve desenvolver seus próprios princípios de restauro em função de sua natureza peculiar.
Para ilustrar essa diferença relativa a outras artes visuais, podemos dizer que a Arquitetura é uma arte que se faz em função do uso e é feita para servir e materializar as sociedades e, portanto, sua sobrevivência no tempo depende da sua capacidade de manter essa propriedade. Tanto o edifício quanto a cidade e a paisagem estão em constante transformação, diferentemente de um quadro ou uma escultura.
A crítica aos princípios de restauro
Alguns pontos críticos dessa visão de mundo aplicada à intervenção/ restauro da Arquitetura são claramente evidentes:
- O fenômeno artístico é um “acontecimento” que envolve tanto o objeto artístico como seu fruidor e tanto um como o outro são sempre outros: o primeiro pela ação do tempo e das intervenções sobre eles realizadas, os últimos pelas diferenças de maturidade e bagagem pessoal ou pelas transformações sociais e culturais;
- A história como “pura” é uma concepção ilusória de que as coisas podem permanecer inalteradas. Isto se revela com muita clareza no paradoxo da Nau de Teseu, eternamente ancorada no porto, mas tendo sempre suas peças deterioradas substituídas, o que no limite, levaria a uma mudança total da matéria e ao questionamento da “autenticidade” do monumento;
- O patrimônio como sendo eternamente ameaçado (conforme já nos mostrou José Reginaldo Gonçalves [2]) e com ele ameaçadas a nossa identidade e a autenticidade do bem, uma preocupação também com a conspurcação do documento, o que levaria ao fim e ao cabo a uma “magnificação” do bem a ser preservado;
- A impossibilidade da conservação da imagem e da história, como se as coisas pudessem ser conservadas imutáveis, o que remete ao paradoxo da redoma, exemplificado pela conservação dos documentos em papel, onde o máximo de preservação ocorreria na completa reclusão do documento à luz, o que é claro lhe retiraria toda a sua função social e cultural.
A partir dessas constatações, temos que alguns perigos, se apresentam à compreensão/ interpretação (e seu rebatimento na preservação) que necessitam ser apontados para a crítica metodológica (3):
- O perigo historicista acontece quando colocamos o “contexto no lugar do texto”, ou seja, quando tentamos entender o bem patrimonial não como ele se apresenta hoje a nós, mas como ele era e se portava no contexto onde ele nasceu. Este é o perigo que conduz ao embalsamento e a mumificação do bem e que também conduz a sua apropriação excessivamente setorial (geralmente pela indústria do turismo) e que, ao tentar lhe recuperar a “verdade” do significado, acaba por lhe retirar quase todo ele;
- O perigo psicológico acontece quando, na preservação, procuramos interpretar a intenção do autor ou o espírito da época em uma forma de congenialidade que é mais pretensiosa do que possível;
- O perigo objetivista (4) acontece quando se procura derivar o sentido do bem a ser interpretado a partir apenas dele próprio, “tornando-o independente do autor, do contexto e do intérprete”;
- O perigo relativista, próximo ao historicista, acontece quando obliteramos nosso modo próprio de interpretação pela tentação de relativizar sempre a obra ao seu contexto original. Por esse perigo substituímos a fruição/ intervenção do presente pelo excesso de zelo pelo suposto documento;
- O perigo subjetivista acontece quando a balança pende para o lado do leitor/ restaurador que impregna o bem patrimonial com sua própria e exclusiva interpretação ou quando, no processo de intervenção, minimiza a presença da sua historicidade para fazer valer sua própria intencionalidade;
- O perigo positivista acontece quando se acredita poder trabalhar o bem apenas pelo método científico, sobre supostas bases “seguras” que a ciência ou o método analítico pudesse lhe fornecer;
- O perigo idealista aparece, no patrimônio edificado, naquilo que tange ao culto à imagem ou a matéria como se elas fossem, respectivamente, os centros da expressão artística ou da historicidade do objeto;
- O perigo do senso comum aparece na suposta “verdade” superficial assimilada coletivamente ou na superficialidade do gosto ou do juízo comum.
Do exame desses perigos, podemos verificar que a compreensão estética e histórica não se dá a partir de uma congenialidade, nem a partir de algo que seria imanente ou transcendente ao próprio objeto, nem ainda sobre o esforço analítico, mas sim à consciência da filiação da obra a nosso mundo. A crítica brasileira tem estado atenta a essas questões e em alguns momentos procura substituir a visão imobilista por uma visão mais aberta, mas há, a nosso ver, ainda muito a caminhar e muito a se buscar. Podemos apontar algumas direções como propostas de abertura de caminhos para reflexão.
Em primeiro lugar, podemos trazer à tona a crítica da dimensão material desapegada da sua dimensão imaterial, baseada na constatação que fizemos anteriormente da indissociabilidade entre matéria e sujeito. Parece-nos que não há como atuar no material sem atuar no imaterial e que a transformações do bem necessariamente não concorrem para a perda de seu significado, mas muitas vezes o reforçam. A comprovação dessa assertiva pode ser encontrada na Igreja de Nosso Senhor do Bonfim em Salvador a qual nos mostra que as suas sucessivas transformações históricas só fizeram o templo se mostrar ainda mais presente e adequado às transformações históricas da sociedade (5).
Em segundo lugar, é importante reforçarmos a crítica da cidade como obra de arte, um pouco como fez Aldo Rossi, que a entendia como artefato cultural sempre em transformação. Paraele, a cidade pode ser uma obra de arte, pois confere sentido e condensa significados, mas sua natureza seria diferente das outras obras de arte, pois calcada em um processo de transformação contínuo. Assim, para nós, a transformação da cidade se relaciona com certos parâmetros de estabilidade em seu território que por um lado estimulam certos fatos urbanos a partir de sua presença referencial e por outro, ensejam esforços de preservação desses mesmos elementos referenciais. A cidade seria, então, função do espaço e do tempo, o resultado da dialética entre permanência e transformação dentro do jogo da história.
A terceira crítica importante seria àquela da recomposição da integridade da obra de arte, o que tantas vezes tem levado a uma conservação estilística ou mesmo a uma inadequação à vida moderna, cujo custo é, muitas vezes, a própria morte do bem ou sua deterioração por inservível ou por perda de significado. Henri Pierre Jeudy (6) tem nos alertado que nossas práticas quanto á gestão patrimonial, tem nos levado a uma uniformização dos bens, resultando em uma museificação (no sentido de perda de presença na vida atual e isolamento) e uma conseqüente redução de seu potencial simbólico. Por outro lado há uma tendência de “magnificação” e supervalorização de tudo que é considerado patrimônio levando a distorções de significado e de tratamento físico dos bens, muitas vezes o dotando de atributos e presença que não são condizentes com sua forma ou história. Tudo isso, ainda segundo Jeudy, levaria a um “totalitarismo patrimonial” baseado na aniquilação da alteridade ao tentar assimila-la e reinseri-la, “tratada”, na vida social.
Ao mudar a cultura, transformam-se os valores e transformam-se, também, é claro, as atitudes quanto ao patrimônio. Assim, parece que o que se preserva, na realidade, é a identidade em transformação, ou seja, a preservação não está na capacidade do bem de permanecer como está, mas na sua capacidade de mudar junto com as mudanças sócio-culturais. Essa concepção se choca com a acepção de imutabilidade do bem a ser preservado, pois também ele, como a tradição e a cultura, está em constante transformação. Não há, portanto, como buscar a essência do objeto de restauro em uma idéia imutável de “objeto” que sobreviveu à história, pois ele está inserido na história da vida, a qual se caracteriza pela transformação. Não há esse objeto a-histórico “essencial” - além do que isso seria uma contradição com seu valor como “patrimônio histórico” conferido exatamente por estar inserido na história. Mesmo a idéia de uma transmissão “neutra”, independente da cultura e da tradição não se sustenta ainda mais que sabemos que as palavras “tradição” e “traição” têm a mesma raiz etimológica
A questão da preservação se centra agora, portanto, no conceito de transformação, ou seja, como manejar essa transformação de forma que não se rompa a delicada tessitura entre a tradição e a contemporaneidade, pois, ao intervir no bem patrimonial nós o estamos modificando, sempre, afinal pela tradição ele já nos chega alterado, pela cultura ele nos chega tematizado e, pelo tempo, com sua significação “original” perdida
Assim, para examinar com consciência o exame do conceito de preservação, resta-nos que a grande dificuldade epistemológica do restauro está na evanescência de seu objeto de aplicação. Afinal, a que se aplica o restauro? O que se restaura? A palavra restaurar, de origem latina, traz consigo a idéia de recobrar, reaver, recuperar, recompor. Ora, pelo que vimos até agora, estas são ações impossíveis com relação ao bem patrimonial, posto que, ao intervirmos na sua matéria, seja na sua estrutura ou na sua aparência, não o estamos recuperando, mas modificando-o. Além do mais, preservar e restaurar, apesar de serem conceitos interligados, não são exatamente ações associadas e nem sempre complementares, pois restaurar significa intervir em um bem, ao passo que preservar significaria apenas, a princípio, a sua transmissão através do tempo. A interligação biunívoca entre as práticas de preservação e restauração, portanto, só teriam sentido se para a transmissão do bem - e o seu vigor no presente – fosse indispensável a sua recuperação, o que já vimos não ser também sempre necessário. A ação de restaurar, portanto, se aplica apenas quando há um objetivo precípuo de superar a destruição causada na transmissão daquele bem que, sem a ação do restauro, perderia totalmente o seu potencial de significação (7). Restaurar, portanto, parece ser uma ação interventiva que visa recolocar o bem patrimonial no jogo do presente através da recuperação de suas próprias perdas e é, portanto, sempre um processo de re-significação e daí uma re-criação que se faz sobre a matéria que conseguiu sobreviver ao tempo.
Essas premissas poderiam nos dar a ilusão de que, então, ao desaparecer efetivamente o objeto do restauro, se desapareceria também o seu objetivo, o que, é claro, não faz sentido. Essa digressão nos leva a compreender, então, que a ação de restaurar está presente na dimensão existencial do ser, mas deve ser repensada mais quanto aos seus objetivos do que quanto aos seus objetos (sobre os quais a História da Restauração sempre versou). No entanto, não é pelas dificuldades epistemológicas relacionadas ao objeto do restauro que estariam liberados os limites de ação do restaurador. Essas dificuldades só nos mostram que, na realidade, ao aprofundarmos nossa investigação sobre patrimônio, preservação e restauro, não estamos “reduzindo” a aplicabilidade desses conceitos, mas ampliando-os e com isso, também redimensionando o “objeto” do restauro. É essa a tarefa que se nos apresenta neste momento e convém começarmos por algumas distinções conceituais importantes que se dão, por exemplo, entre preservação e restauro ou entre conservação e restauro, dentre outras.
Assim, o que se preserva não é:
- O bem “intocado”, pois se o não tocarmos ele se degrada e, ao nele tocarmos, acabamos por modificá-lo;
- A matéria “original”, como aparece no paradoxo da Nau de Teseu;
- A forma “congelada” do bem, posto que é impossível parar a ação do tempo e de cada geração sobre o bem;
- Uma suposta “verdade” histórica, posto que esta não existe objetivamente;
- O seu momento “original” de criação, posto que esse já passou e só poderia ser acessado por uma suposta congenialidade, esta também impossível;
- A intervenção apenas na matéria, sem com isso intervir na dimensão imaterial;
- A redução de seus significados ou de sua complexidade
- E nem se dá através de um método exclusivamente científico, universal e neutro (que pende para o lado do objeto), mas também não tão aberto que desconsidere elementos compartilhados coletivamente (o que penderia para o lado do sujeito) e nem se faz a partir de um entendimento “globalista”, onde o objeto artístico é entendido de maneira global, sem levar em consideração as especificidades de cada expressividade artística.
A partir disso, entendemos que, na realidade, o que se preserva é:
- A “existência” do bem patrimonial, na sua capacidade de se fazer presente;
- A sua capacidade de pontuar a existência, referenciando-a, a sua especialidade no espaço e no tempo;
- A sua capacidade de nos atrair e possibilitar uma elaboração sobre ele;
- A fruição do presente instituída pela memória e as possibilidades abertas pelo passado: não é o retorno ao passado, mas a sua vivência no presente;
- A abertura de significados que a obra de arte (e de resto, mesmo o bem patrimonial não dotado de caráter artístico) “fixou” na matéria e no lugar e não apenas pelas características objetivas (formais e físicas) do objeto, portanto as suas dimensões material e imaterial;
- A identidade em transformação: a capacidade de mudança do bem, mantendo o equilíbrio dos modos pessoal e impessoal, dentro da dinâmica do tempo e da cultura.
Investigação de saídas
A saída para uma compreensão contemporânea da preservação passa, a nosso ver, por uma profunda e franca análise dos métodos e princípios empregados, bem como por uma capacidade de despojamento quanto a práticas bastante sedimentadas e bastante arraigadas. Se não está consolidado, até o momento, um modelo alternativo que possa substituir as práticas vigentes, pelo menos é possível se fazer a sua crítica e se estabelecer possíveis direções a investigar. Conjuntamente com o desenvolvimento dessa chave conceitual, há que se desenvolver a compreensão de que a Arquitetura não é uma arte visual, mas tem um estatuto próprio a ser considerado, o qual influencia as práticas de intervenção e, como a paisagem, profundamente relacionado com as práticas sociais.
Uma outra possibilidade de investigação é o aporte, para a área de patrimônio, dos instrumentos e práticas ligados às questões de sustentabilidade que, com seu desenvolvimento recente apontam para a solução de problemas típicos não só da área ambiental, mas também, com muita pertinência, da área cultural. Faz parte de seus preceitos o respeito à pré-existência, o encontro das agendas social, patrimonial, econômica e ambiental, o reconhecimento de que não se busca um estado idealizado e imutável, mas que na realidade a sustentabilidade é um processo, diz respeito à manutenção do caráter e da personalidade locais, bem como entende a importância da legitimação social dos atos de conservação.
Essas duas possibilidades de investigação podem ainda ser fundamentadas através dos estudos da intersubjetividade e do aporte da hermenêutica. A análise da intersubjetividade nos faz reconhecer que é necessário fazer circular as informações e formar uma sociedade consciente, o que pressupõe um entendimento amplo da realidade e o compartilhamento de decisões, entendendo que a patrimonialidade não está apenas no objeto, mas é também um ato social, o que aponta para uma ética de intervenções baseada na negociação, equilíbrio, discussão, diálogo e consensos.
A contribuição da Hermenêutica de Gadamer (8), de base fenomenológica, também pode ser uma importante referência teórica. Essa base fenomenológica nos faz compreender as relações que estabelecemos com o bem patrimonial associadas ao conceito de cura. A cura é um conceito de Heidegger (9) que pode ser entendido, de forma simplificada, como o exercício do ser na sua existencialidade, ou seja, na lida cotidiana do homem com as coisas, com as outras pessoas, com o mundo, dentro da vida.
Outro ponto importante relacionado à questão da cura - e que se dá em decorrência da ilusão de perenidade - é de que o objeto patrimonial é a imagem congelada do passado. Como imagem, ele teria, portanto, uma imanência própria que o desvincularia do fruidor, possuindo em si as propriedades necessárias para gerar sempre a mesma mensagem. Na realidade, ele é um elemento de interação reflexiva com o fruidor, seja pela consciência histórica ou artística, seja como estímulo à sua compreensão pessoal.
Em segundo lugar, a Hermenêutica de Gadamer reforça a importância da relatividade do pensamento presente na consciência histórica. Para Gadamer, o homem moderno tem o privilégio de “ter consciência da historicidade de todo presente e da relatividade de toda opinião (...) e ter senso histórico significa pensar expressamente o horizonte histórico co-extensivo à vida que vivemos e seguimos vivendo”(10). Esse senso histórico permite ao homem moderno se entender na perspectiva do tempo e relativizar a sua opinião, dois pontos fundamentais para se exercer a abertura necessária à interpretação hermenêutica.
Quanto ao terceiro ponto, Gadamer identifica também uma consciência estética, como sendo um tipo de compreensão que se realiza a partir do próprio centro da relação entre o fruidor e a obra de arte, na “verdade” que aí, na relação, se estabelece. Para ele, a verdade da arte não estaria na referência à realidade, como resultado de sua imitação ou transformação, mas no mundo que ela própria institui, o qual cria a sua própria verdade quando a nós se apresenta.
Podemos concluir, portanto, entendendo que quanto mais a preservação se mantiver no continuum da vida, respeitando a pré-existência, mas sem magnificações artificiais, reconhecendo valores urbanos e sociais do espaço e suas alterações sustentáveis tanto da matéria quanto dos significados, tanto mais estaremos preservando nossos sítios urbanos naquilo que eles têm de peculiar, mas também na sua conexão com seus cidadãos e com a personalidade própria de cada lugar.
notas
NE
Artigo extraído da tese de doutorado do autor “Desenho Contextual: Uma abordagem fenomenológico-existencial ao problema da intervenção e restauro em lugares especiais feitos pelo homem”, orientada por Odete Dourado Silva e defendida na UFBa, disponível em www.bibliotecadigital.ufmg.br
1
RIEGL, Alois. El culto moderno a los monumentos. Madrid: Visor, 1987.
2
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. A retórica da perda. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ/ IPHAN, 1996.
3
Os cinco primeiros foram trabalhados a partir daqueles apresentados por Carlos Antônio Brandão (BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Introdução à hermenêutica da arte e da arquitetura. Topos – Revista de Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, v. 1, n. 1, jul-dez. 1999, p. 115, 116). A eles acrescentamos os últimos três.
4
BRANDÃO chama a este perigo de “positivista”, mas preferi reservar este termo para as posturas esteticistas e filológicas do limiar dos séculos XIX e XX.
5
SANTANA, Mariely. Bonfim: Alma e festa de uma cidade. 2003. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2003
6
JEUDY, Henri Pierre. Espelho das Cidades. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005.
7
O que também já vimos, através de Riegl, ser impossível, pois mesmo uma ruína é prenhe de significados.
8
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I. Petrópolis: Vozes, 2004.
9
HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Volumes I e II. Petrópolis: Vozes, 2004.
10
GADAMER, Hans-Georg. O problema da consciência histórica. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2003. p. 17, 18.
sobre o autor
Prof. Dr. Flavio de Lemos Carsalade é Arquiteto Urbanista, Professor e atual Diretor da Escola de Arquitetura da UFMG e ex-presidente do IEPHA/MG.