Cinquenta é, aproximadamente, a quantidade, de projetos concluídos pela dupla suíça Herzog e de Meuron. Dentre estes, são aproximadamente quinze os projetos de maior destaque, em cidades como Tóquio, Munique e até São Paulo (Complexo Cultural Teatro de Dança). Esses projetos abrangem desde museus a estádios de futebol, variando quanto à forma e à escala. Devido ao reconhecimento internacional, principalmente após o projeto de conversão da Tate Modern (Londres, 2000), é pertinente inquirir: Por que a arquitetura dessa dupla é disputada hoje por diferentes cidades em todo mundo? As novas formas de gestão de cidades, em sua configuração atual, dão subsídios para uma resposta.
A globalização da economia imprimiu a adoção de estratégias mercadológicas, submetendo a cidade a condições similares às das empresas. Nesse sentido, os princípios de competitividade e produtividade tornaram-se fundamentais na concepção de “cidade-global” e competitiva, como produto da associação entre agentes multilaterais e governos locais (1). O empresariamento da gestão urbana (2), como parte desse processo, tomou conotação mundial, principalmente nos países desenvolvidos (ou em maior escala nesses países), como escolha estratégica para o desenvolvimento das cidades. A gestão empresarial transpostada para a gestão de cidades, tendo princípios de aplicabilidade equivalentes, parece ter sido a escolha predileta para as cidades que desejam fortalecer-se economicamente como forma de inserção no mercado global.
Assim, Arantes discorre que:
“as cidades só se tornarão protagonistas privilegiadas, como a Idade da Informação lhes promete, se, e somente se, forem devidamente dotadas de um Planejamento Estratégico capaz de gerar respostas competitivas aos desafios da globalização [...], e isto a cada oportunidade [...] de renovação urbana que porventura se apresente na forma de uma possível vantagem comparativa a ser criada” (3).
Essa ideia está apoiada em experiências bem sucedidas – “modelos de sucesso”– que servem de inspiração para outras cidades trilharem as mesmas estratégias. O exemplo mais famoso é o de Barcelona. Para os Jogos Olímpicos de 1992 foram aplicadas várias medidas com vistas à renovação urbana e à “repaginação da cidade” para o estrangeiro. Um dos objetivos de Barcelona era tornar-se atrativa. Para isso, foi realizada uma série de intervenções, tanto no campo material como no campo simbólico, a fim de fortificar a imagem da cidade.
Visto que o “modelo-Barcelona” (4) foi de extremo sucesso, deu-se início a um “efeito dominó”, na medida em que cada cidade passou a adotar as mesmas soluções. Por rebatimento, as transformações no nível territorial – infraestrutura, revitalização de antigos centros históricos, implantação de equipamentos culturais de grande porte – tenderam a valorizar espaços de interesse, resultando em disputas espaciais. Vale salientar que esses espaços de interesse seriam parcelas territoriais onde houvesse características positivas e potencial lucrativo para os planejadores urbanos e a iniciativa privada investirem. Sánchez introduz a ideia de mercantilização do espaço da cidade, argumentando que
A existência de um mercado de cidades, como um fenômeno recente, mostra a importância cada vez maior do espaço no capitalismo – a orientação estratégica para a conquista do espaço, que agora alcança cidades como um todo, postas em circulação num mercado mundial – evidencia a produção global do espaço social. (5)
A globalização introduziu novas maneiras de acumulação de capital, sendo uma delas a produção global do espaço. Visto isso, o espaço funcionaria como atrativo para investimentos que atendessem às lógicas mercantis. Sendo assim, o direito a usufruir desse bem convergiria àqueles que detêm maior capital, implicando no favorecimento do mercado imobiliário, já que o potencial financeiro é mais elevado. Como resultado, a valorização do espaço acarretaria uma disputa por áreas de interesse com foco no investimento em atividades rentáveis.
O conceito de cidade-mercadoria definido por Vainer (6), sob a ótica da cidade como produto a ser vendido, está correlacionado à produção global do espaço. Na medida em que se procura investir em regiões pontuais da cidade – implantando infraestrutura, segurança, sistemas de telecomunicação avançados, aeroportos, hotéis, restaurantes – tendo em vista a midiatização dessas áreas, o espaço das cidades competem entre si por investimentos. Nesse sentido, o city marketing é um dos instrumentos utilizados pelos gestores urbanos na formação de uma imagem representativa do espaço segregado como elemento coletivo. Vale salientar que a midiatização da cidade vem acompanhada de estratégias no campo simbólico, imprimindo uma nova forma de dominação (ou alienação?).
Acerca disso, Sánchez esclarece que:
Como parte da nova racionalidade do capitalismo, capaz de potencializar a eficiência econômica e a reorganização territorial, são introduzidas formas modernas de dominação e técnicas de manipulação cultural [...] Deste modo, o espaço toma forma também através de representações e imagens adequadas, o que explica a importância que vem adquirindo o city marketing como instrumento das políticas urbanas. (7)
Essas políticas de city marketing buscam formular uma imagem tanto material como simbólica, de paisagens onde haja forte apelo visual, concebidos por estruturas modernas, avançadas, que exprimam tecnologia, poder e dinheiro. É sob essa lógica que os agentes privados e gestores urbanos se esforçam em construir paisagens atrativas, a fim de alcançarem o lucro máximo. Esta construção se dá, inclusive e principalmente, pela inovação estrutural e estética, por meio de um veículo que se tornou fenômeno mundial: a arquitetura do espetáculo.
Herzog & de Meuron: a “mundialização” de uma marca
A arquitetura de Jacques Herzog & Pierre de Meuron é, hoje, uma das mais almejadas pelas cidades que desejam constituir uma galeria a céu aberto de grifes arquitetônicas. Herzog & de Meuron (H&dM), e cerca de uma dúzia de arquitetos de renome internacional, são considerados peças-chave na composição do tabuleiro dos arquitetos pertencentes ao star-system (8). A dupla se destaca pelos inúmeros projetos realizados, considerados de “sucesso”, e pela integração entre arte e arquitetura, rompendo as convenções modernistas, na medida em que usam elementos tradicionais de uma forma inusitada (9).
Nascidos em 1950, na cidade de Basle, Suíça, estudaram na Escola Politécnica de Zurique, formando-se em 1975. Em 1978 montaram a primeira firma de arquitetura, tendo na figura de Joseph Beuys (10) uma influência artística. Mas foi em 1995, após vencerem o concurso para reconversão da Tate Modern (Londres), localizada às margens do rio Tâmisa, numa velha central elétrica de Bankside, que o escritório ganhou prestígio internacional (11).
Para H&dM, a associação entre o artista e o arquiteto é fundamental. “Nós queremos mais que uma colaboração, queremos o artista como parte da equipe” (12), afirma Herzog ao ressaltar a importância do artista na formulação de uma imagem arquitetônica inovadora e na produção de uma imagem que apele aos sentidos e à percepção. Para isso, eles investem no estudo de possíveis relações harmônicas entre forma e superfície. Nesse sentido, “observa-se um interesse em desenvolverem um volume simples como tema central, o cubo ou a caixa, envolvidos por elementos arquitetônicos não convencionais como fotografias ou palavras” (13). Herzog expõe a ideia-chave que move os projetos da dupla:
(...) nos interessa mais o impacto direto e físico e emocional, como o som de uma música ou o aroma de uma flor. (...) A força de nossos edifícios está no impacto imediato, visceral, que tem no visitante. Para nós, isso é tudo que importa. (14)
A fim de alcançar esse “impacto imediato”, a dupla aposta no emprego de novos materiais ou, mesmo não sendo novos, reutilizam-nos de maneira não convencional (15). É nesse ponto que H&dM veem o papel do artista, como Joseph Beuys, sendo um auxílio quanto à escolha do material adequado e à percepção que este irá causar no observador. Eles investem numa ornamentação associada a elementos de recobrimento (superficiais), que superpõe toda a estrutura, resultando num aspecto de “pele” (16).
O inusitado na arquitetura dos suíços é a maneira pela qual eles trabalham as “peles” que recobrem o edifício. O anseio em provocar sensações resulta numa arquitetura “simulada”. A imagem que se tem do concreto e vidro, da transparência e opacidade é rompida, causando estranhamento para o observador. A biblioteca Eberswalde, na Alemanha, exemplifica o conceito do uso de um material comum de forma inesperada. As faixas de concreto e vidro intercaladas, cobrindo todo o edifício, bem como os apliques de silkscreen (17), em todas as fachadas externas, provocam reações de incompreensão quanto ao invólucro do edifício (18). Esse projeto valoriza, no sentido de destacar, a linguagem arquitetônica da imagem sobressaindo-se à composição estrutural.
O efeito produzido pela técnica de silkscreen descaracteriza a tectônica da obra, transcendendo a materialidade para um nível imaterial. A formulação de imagens que provoque sensações de estranhamento e desentendimento é, à primeira vista, a base da concepção seguida por Herzog e de Meuron (19). Nesse sentido, ainda na Biblioteca Eberswalde, o vidro se confunde com o concreto e o concreto com o vidro. Moreira aponta que
Os efeitos sensoriais conseguidos por meio do tratamento dos materiais estão na base do design de H&DM, que procuram dar um novo e mais profundo significado à arquitetura. Por sinal, uma sensação de estranhamento e inquietação parece ser a primeira reação aos seus edifícios, e tais sensações são provocadas pela maneira como tratam os materiais. (20)
Esse tratamento segue uma linha de desmaterializar a tectônica do objeto. O edifício Prada em Tóquio chama a atenção pela emblemática envoltória. As paredes de vidro transmitem sensação de leveza e transparência à estrutura. As “bolhas”, em forma de diamante, que recobrem todo o edifício, funcionam como um mosaico de vidros côncavos e convexos, e geram sensação de dinamicidade ao observador. Apesar do efeito sinérgico que tem para o observador, há uma lógica capitalista e empresarial por trás dessa tela transparente de seis andares.
O valor simbólico agregado à marca “Prada”, como empresa que esbanja dinheiro, luxo, design, é convertido em uma tentativa de representação material daquilo que não é palpável. A própria forma do edifício e os elementos que o constituem – em forma de diamante – tentam reafirmar a imagem que se tem dessa marca. A diferença é que agora se investe não só na midiatização dos produtos, mas também, em estruturas físicas que tentem decodificar o valor de marca presente na memória coletiva. Dessa maneira, a imagem de empresa luxuosa e moderna é transposta a uma representação que comunique essa ideia ao consumidor e fortifique o caráter de sucesso da marca. Para isso, o melhor veículo é uma arquitetura que exprima a essência de poder e dinheiro (21). Um poder que perpassa desde o campo econômico até o simbólico.
Esse poder econômico tem como referência, entre outros fatores, uma empresa que dita e influencia a moda global. Essa está relacionada a um tempo, a um comportamento, a um uso, e (por que não?) também, aos arquitetos Herzog & de Meuron. Da mesma forma que existem tendências no mundo da moda variando de acordo com o tempo e os estilos, existem tendências no mundo das grifes arquitetônicas. A escolha da Prada pela dupla não ocorreu de modo aleatório. Esses arquitetos estão em voga, são considerados estrelas da arquitetura mundial e apresentam renomado prestígio no universo das marcas. Sendo assim, para a sociedade, a junção H&dM e Prada, unidas em um só elemento – a arquitetura –, reforçam o caráter simbólico, agregando status, além de atenderem às estratégias mercadológicas.
Evidentemente, parte do sucesso da dupla é devido à flexibilidade arquitetônica dos seus projetos. A depender do cliente, o arquiteto deve buscar estar em concordância com a visão personalizada dele, desenvolvendo um projeto que atenda às suas “culturas de gosto” (22). De fato, o projeto foi pensado com soluções para relacionar a imagem da marca à imagem da estrutura do prédio. O conceito proposto foi o de leveza e sofisticação, repetido em outros projetos da dupla. A fim de alcançar um resultado satisfatório, as “peles” funcionaram como elemento fundamental na estética do edifício. Quanto a isso, “não custa insistir: a prevalência das superfícies em relação às estruturas é o que permite a mágica de sua desmaterialização e transformação em imagem midiática”. (23)
Paralelamente ao edifício Prada, outras empresas globais têm adotado medidas semelhantes. A envoltória que recobre os edifícios da Mikimoto (Toyo Ito & Associates), Louis Vitton (Jun Aoki), Dior (Sejima + Nishizawa & Associates [SANAA]) e Chanel (Peter Marino Architects), todos localizados em Tóquio, revelam a tendência em usar uma linguagem arquitetônica capaz de decodificar a mensagem que se pretende. O intuito é estereotipar a representatividade simbólica da grife. Coincidência (ou não), a presença das “peles” está evidente em todos os projetos mencionados, como elementos que “disfarçam” a estrutura enquanto ressaltam a noção de imaterialidade.
Talvez seja esse o motivo para reforçar o caráter superficial da obra. Todavia, Arantes aponta que não só a inovação nos materiais configura a exclusividade de um projeto.
A sofisticação técnica ostensiva, a diferenciação das superfícies e a exuberância formal passaram a ser requisitos para constituir imagens arquitetônicas exclusivas, capazes de valorizar os investimentos e, consequentemente, as cidades que os disputam. [...] Quanto mais informe, retorcido, “desconstruído” ou “liquefeito” o objeto arquitetônico, maior seu sucesso de público e, portanto, seu valor como imagem publicitária. (24)
Apesar de Herzog & de Meuron, no início, não seguirem uma linha desconstrutivista (25), a transição do século XX para o XXI deu maior fluência com relação à rigidez que predominava nas arquiteturas da dupla suíça. Uma explicação possível para esse fato reside nas novas tecnologias dos materiais – permitindo uma maior liberdade construtiva – atrelada à gestão urbana atual das cidades, na qual objetiva-se em “vender” a cidade para o exterior, investindo em imagens com forte apelo midiático.
Estilizando o estilo: novas adições ao partido arquitetônico
Por volta da década de 1990, a arquitetura de Herzog & de Meuron era um tanto purista, havendo predomínio de elementos básicos, bem como traçados retos e formas simples. Uma das características marcantes desse período se referia à maneira pela qual trabalhavam as fachadas, com certo minimalismo em contraste à rigidez formal. Os apliques de silk-screen em superfícies de concreto e vidro eram usuais no estilo arquitetônico da dupla. Projetos como a Goetz Gallery (Munique, 1992) e o Ricola Mulhouse (França, 1993) são exemplos de obras inseridas nesse contexto estilístico dos anos 90, no qual explora o caráter superficial bem como o de revestimento. Como percebido, parte desses projetos derivava de soluções convencionais, além de que a escala arquitetônica era relativamente baixa, variando entre projetos de armazéns, galerias, bibliotecas.
À medida que se aproximava do século XXI, as mudanças no caráter formal da arquitetura de H&dM caminhavam gradativamente, porém, de maneira pouco expressiva. Paralelamente a esse processo, com a globalização da economia, difundiu-se uma série de transformações no modo de gerir as cidades, como também de produzir o espaço urbano. As mudanças nos perfis econômicos e produtivos, fruto da revolução tecnológica e das novas configurações territoriais, acirraram as disputas entre cidades por atração de investimentos, principalmente, externos. A depender do grau de desenvolvimento econômico, essas cidades se tornaram reflexo de sua complexidade urbana, espelhando formas de representação no espaço condizentes com suas estruturas econômicas. Ou seja, na medida em que uma cidade se desenvolve e se infiltra na rede de fluxos globais, mais ela irá reafirmar sua posição de poderio e influência sobre outras cidades (26), por meio de elementos capazes de potencializar a imagem de cidade desenvolvida.
Nessa lógica, a cidade necessita de elementos que a tornem destaque perante o mundo. E o que há de mais eficiente senão investir em imagens representativas de modernidade e entretenimento? Essas imagens podem ser traduzidas em projetos urbanos de grande porte, que se utilizam da publicidade para gerar um consenso em torno de um objeto vendido como promotor cultural (27). Para Arantes, a “animação cultural” está associada aos projetos de intervenção, tendo como respaldo o viés capitalista, no qual a cultura nesse modelo se volta em benefício de um interesse primário: o mercado. Como consequência, essa mercantilização da cultura será refletida para a cidade em “paisagens urbanas pós-modernas”, voltadas à venda de uma imagem subsidiada por estruturas expressivas que marcam o cenário urbano e são objeto de grande visibilidade. Arantes, ao analisar a cidade sob a ótica cultural, revela que
a cultura [...] ao tornar-se imagem, quer dizer, representação e sua respectiva interpretação [...] acabou moldando, de um lado, indivíduos [...] que se auto-identificam pelo consumo ostensivo de estilos e lealdade a todo tipo de marca; de outro, o sistema altamente concentrado dos provedores tão intangíveis quanto fabulosamente lucrativos. (28)
Em razão disso, a arquitetura imagética irá refletir os paradigmas da cidade contemporânea, globalizada e competitiva. As novas exigências mercadológicas associadas ao avanço tecnológico darão suporte a uma arquitetura que exprime maior liberdade inventiva e estrutural, de modo que quanto mais espetacularizada ela for, maior seu sucesso de público e sua publicidade para o exterior (29). A consolidação desse tipo de arquitetura no século XXI, baseada em grandes projetos de intervenção urbana, seguindo a linha cultural, acarretou numa competitividade em nível micro se comparado com a cidade. Isso porque agora não só as cidades competem entre si por investimentos e lucratividade, mas os próprios arquitetos, inseridos nesse modelo de planejamento estratégico, competem entre si por obras que sejam cada vez mais inéditas. Talvez, em função dessa disputa, verifica-se uma maior plasticidade no estilo arquitetônico de Herzog & de Meuron.
Os recentes projetos que configuram a fase atual dos arquitetos – ampliação da Tate Modern (Londres, 2012), Hoffman-La Roche (Basiléia, 2015), Spanish Bank BBVA (Madrid, 2013) – apesar de não estarem concluídos, apontam para uma verdadeira diferenciação quanto às formas, aplicação dos materiais e escala se comparados aos da fase inicial. Isso não quer dizer que houve uma mudança plena na arquitetura da dupla, mas sim uma evolução, em termos estilísticos, de elementos que agora fazem parte das tendências estéticas produzidas por arquitetos de renome. O projeto da Cottbus University Library (Alemanha, 2004) se enquadra numa fase transitória – enquanto aponta para uma maleabilidade formal, apresenta toda superfície coberta por uma camada de silk-screen. O uso dessa técnica associada ao tratamento das “peles” permanece como característica estilística marcante no partido arquitetônico de H&dM, embora haja uma sobressaliência do uso massivo do vidro e de formas mais livres nos últimos projetos da dupla.
O edifício 56 Leonard Street (Nova York, 2010) evidencia essa nova etapa, como parte das recentes tendências contemporâneas de exploração desse material. O 56 Leonard Street é uma torre residencial de luxo, localizada em Manhattan, que lembra mais uma série de prismas retangulares superpostos, deslizando um sobre o outro, do que um edifício residencial convencional (Figura 7). Se visto de diferentes perspectivas, o edifício parece ganhar movimentação. As caixas de vidro dão a impressão que brotam da superfície, num jogo de “vai e vem”, causando certo dinamismo ao observador. Para completar o efeito, o prédio é revestido, basicamente, por uma comprida pele de vidro, que explora, quase em sua totalidade, a permeabilidade visual. Durante o dia, a imponente escala arquitetônica torna-o visível em diferentes pontos da cidade e, à noite, a iluminação artificial completa o visual, configurando uma verdadeira vitrine iluminada para a cidade.
Como se não bastasse, a base do prédio foi ornamentada com uma arrojada escultura feita pelo artista plástico Anish Kapoor (30), revelando mais uma vez a importância, para Herzog & de Meuron, do entrelaçamento entre o artista e o arquiteto. Se observado, a escultura parece romper com a gravidade da edificação enquanto é levemente “esmagada” pelo peso – um tanto leve, se comparado à escala arquitetônica do edifício que parece pousar sobre essa espécie de bolha reluzente. Essa associação de grifes – escultura/arquitetura; artista/arquiteto – fortalece ainda mais o sentimento de exclusividade destinado ao edifício e aos moradores que lá irão residir. Somando-se a isso, a publicidade entra em jogo, enaltecendo a obra a ser lançada na cidade, como atesta o crítico de arquitetura Edwin Heathcote para o The Financial Times of London:
“Renovador, surpreendente e suficientemente absurdo, esse edifício modernista é destinado a ser um dos mais extraordinários conjuntos, numa cidade já repleta de surpresa e incidência arquitetônica […]” (31).
Dentre as razões que tornam esse projeto um marco para cidade de Nova York (escala, materiais, assinatura), pode-se auferir a inovação no design. O 56 Leonard Street vai além do imaginário convencional de arranha-céu como uma grande caixa ortogonal revestida por uma pele de vidro. Ele parece extrapolar os limites físicos, por possuir vários patamares em balanço, distribuídos de maneira irregular ao longo da estrutura, ao mesmo tempo em que transmite um aspecto de leveza, dada a utilização extensiva do vidro nas fachadas. Acerca da aplicação desse revestimento nos projetos arquitetônicos, como elemento estético de destaque na atualidade, Cruz e Pequeno defendem que
Hoje em dia, um dos mais seguros e inovadores caminhos da arquitectura segue precisamente neste sentido, no trilho da potencialização arquitectônica por via da singularidade e dos níveis de luminosidade natural e permeabilidade visual que o vidro possibilita. (32)
Ora, se reparado, os projetos de grande porte divulgados recentemente pelos arquitetos do star-system inovam nas soluções formais, além de grande parte apresentar como similaridade o vidro sendo um constituinte estrutural e estético predominante nas fachadas. Essa tendência que, aliás, se fortificou com a arquitetura moderna, pode em função desse material estar associada, atualmente, à ideia de modernidade, avanço tecnológico, além de integrar o interior com o exterior (33). Seguindo essa lógica, o vidro é inserido como elemento estruturante de uma materialidade simbólica, a partir do momento em que maximiza o caráter estético da obra, à medida que dissolve o aspecto físico da edificação.
A Biblioteca Central de Seattle (Washington, 2004) e o edifício da CCTV (China, 2009) de Rem Koolhas; a Torre Agbar (Barcelona, 2007) e a futura Torre Signal (Paris, 2014) de Jean Nouvel; a 30 St. Mary Axe (Londres, 2004) e a Torre Hearst (Nova York, 2006) de Norman Foster evidenciam dois fatos: a monumentalidade e o design permeável dos projetos. Em se tratando dessa tendência, o interesse é atestar um fenômeno considerado recente sem, necessariamente, estipulá-lo como paradigma, mesmo porque a “contorção formal” e o tratamento das peles fazem parte da nova caderneta de arquiteturas espetaculares. Provavelmente, o estilo de Herzog & de Meuron tem se estilizado por incorporar novos itens dessa caderneta utilizada como guia básico de uma arquitetura de “sucesso”.
O fato é que numa época onde a dinâmica urbana está associada aos novos fluxos globais, tais projetos vão surgindo pouco a pouco no espaço, configurando uma paisagem híbrida, marcada por estruturas antigas e super modernas sem que, necessariamente, dialoguem entre si. Coerente ou não, é evidente o impacto que um ícone arquitetônico desempenha numa cidade bem como em sua economia. E é nessa áurea de mercantilização e midiatização do espaço, que a cidade revela um verdadeiro festival de arquiteturas de grife, cada uma mais emblemática que a outra, onde o céu, por vezes, parece ser o limite e a estetização formal o princípio da representação simbólica da arquitetura contemporânea.
Considerações Finais
No contexto das cidades contemporâneas, inseridas no modelo de planejamento estratégico, a arquitetura espetacular funciona como instrumento midiático, cujo papel visa fortificar a imagem de cidade, na qual atributos positivos fomentem o mercado de turismo e a atração de investimentos externos. Diante desse cenário de competitividade entre cidades – palco de constantes disputas por representações físicas daquilo que possa ser remetido à uma simbologia de lugar e/ou de poder –, a arquitetura de Herzog & de Meuron, assim como de outros arquitetos de grife, é de grande valia no fortalecimento de imagem de marca, tornando-se evidente a importância que essa dupla imprime, hoje, em algumas cidades. Não apenas por estarem incluídos na esfera da elite arquitetônica internacional, mas também por possuírem domínio técnico do espaço, da forma, da superfície. O século XXI se configura como a fase de amadurecimento da dupla, no tocante às novas adições do partido arquitetônico e à evolução da escala, por meio de uma arquitetura muito mais imponente e monumental, como a torre residencial 56 Leonard Street, mencionada anteriormente.
A pluralização arquitetônica da dupla suíça, em consonância com a importância simbólica desse tipo de intervenção na cidade, agregando valor e status, faz com que esse tipo de arquitetura seja requisitada em vários países do mundo, a exemplo do projeto Teatro de Dança em São Paulo. Em certa medida, o fato de não haver uma reprodutibilidade marcante no estilo de H&dM evidencia-os como arquitetos de caráter exclusivo e inovador. Isso porque, embora os recentes projetos da dupla divulgados pela mídia apontem para uma tendência na utilização do vidro como revestimento preponderante, principalmente nas obras de maior escala, o que significa que a dupla conserva traços estilísticos que se perpetuam desde as primeiras obras de relevância, no século XXI, um repertório extenso de projetos concluídos indica que os arquitetos exploraram diferentes possibilidades no tocante à forma e à aplicação de revestimentos. A inovação e a exclusividade reafirmam a posição seleta de Herzog & de Meuron, na produção de uma arquitetura simbólica, constituindo uma grife para a cidade, o cliente e para eles mesmos.
notas
NA – nota da autora
Agradeço ao prof. Dr. Márcio Moraes Valença pelas orientações, sugestões e críticas.
1
SÁNCHEZ, Fernanda. “A reinvenção das cidades na virada de século: agentes, estratégias e escalas de ação política”. In: Revista de Sociologia Política. Curitiba: jun/2001, n. 16, p.31-49.
2
HARVEY, David. “Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio”. In: Espaço e debates. Cidades: estratégias gerenciais: Revista de estudos Regionais e Urbanos – Ano XVI – 1996. São Paulo, 1996.
3
ARANTES, Otília. “Uma estratégia fatal - a cultura nas novas gestões urbanas”. In: MARICATO, H.; VAINER, C. e ARANTES, O. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p.12.
4
SÁNCHEZ, Fernanda. Op. Cit., p.33.
5
Idem. Ibidem.
6
VAINER, Carlos. “Pátria, empresa e mercadoria: notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano”. In: MARICATO, H.; VAINER, C. e ARANTES, O. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000.
7
SÁNCHEZ, Fernanda. Op. Cit., p.32.
8
O star-system representa o estrelato arquitetônico, composto por um grupo seleto de arquitetos, considerados de elite, em termos de produção, do século XXI. Como exemplo, tem-se hoje as figuras de Frank Gehry, Zaha Hadid, Norman Foster, Renzo Piano, Richard Rogers, Daniel Libeskind, Jean Nouvel, dentre outros.
9
MOREIRA, Fernando Diniz. “Herzog & de Meuron e os abrigos decorados de Venturi & Scott Brown”. In: ARQTEXTO. Porto Alegre, 13, novembro, 2008. Disponível em:<http://www.ufrgs.br/propar/publicacoes/ARQtextos/PDFs_revista_13/05_fernando%20moreira.pdf>. Acesso em: 2 ago 2010.
10
Joseph Beuys (1921 – 1986) foi um artista alemão, considerado um dos mais influentes do século XX. Sua carreira de artista perpassou por múltiplas áreas, como as de desenho, escultura, obra e performance. A noção de Beuys quanto à materialidade física conjugada ao efeito que essa gerava na percepção dos usuários serviu de influência para a arquitetura da dupla Herzog & de Meuron.
11
BENEVOLO, Leonardo. A arquitetura no novo milênio. São Paulo: Estação Liberdade, 2007, p. 215 – 217.
12
HERZOG apud MELO, Magda. “Herzog & de Meuron, diálogo sobre arte e arquitetura”. In: Akrópolis – Revista de Ciências Humanas da UNIPAR, v. 10, no1, 2002, p. 53.
13
MELO, Magda. “Herzog & de Meuron, diálogo sobre arte e arquitetura”. In: Akrópolis – Revista de Ciências Humanas da UNIPAR, v. 10, no 1, 2002, p. 53.
14
HERZOG apud MELO, Magda. Op. Cit., p. 53-54.
15
MOREIRA, Fernando Diniz. Op. Cit.
16
MELO, Magda. Op. Cit..
17
A técnica do silkscreen é uma das preferidas de Herzog & de Meuron. Ela é definida pela impressão nos materiais. Nos projetos da dupla, verifica-se a impressão de imagens repetidas perpassando todo o volume. O resultado dessa técnica consiste num aspecto de “pele” que recobre todo o edifício, unificando-o e descaracterizando a tectônica dos materiais. Alguns projetos como o Armazém Ricola Mulhouse (França), a Biblioteca Universitária Cottbus (Alemanha) e o Edifício Forum (Barcelona), fazem uso do silkscreen em suas fachadas.
18
MOREIRA, Fernando Diniz. Op. Cit.
19
MELO, Magda. Op. Cit..
20
MOREIRA, Fernando Diniz. Op. Cit., p. 21.
21
ARANTES, Pedro. “O grau zero da arquitetura na era financeira”. In: Novos Estudos. CEBRAP, v. 80, p. 175-195, 2008.
22
JENCKS, 1984 apud HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Ed. Loyola, 2002.
23
ARANTES, Pedro. Op. Cit., p. 193.
24
ARANTES, Pedro. Op. Cit., p. 175-176.
25
O termo “desconstrutivismo” foi citado pela primeira vez no campo linguístico, pelo filósofo Jacques Derrida. O movimento pós-moderno, iniciado em meados da década de 1980, transpôs esse termo para o campo das produções arquitetônicas. Esse movimento partia do princípio de desarticular, sucessivamente, elementos de um objeto, até que resultasse numa forma não definida. Segundo Harvey (1992, p.96), “a fragmentação, o caos, a desordem, mesmo dentro de uma ordem aparente, permanecem como temas centrais” na arquitetura desconstrutivista. Arquitetos como Daniel Libeskind, Zaha Hadid, Frank Gehry, Rem Koolhaas estão inseridos nesse movimento.
26
DUARTE, Fábio; FIRMINO, Rodrigo. “Cidade infiltrada, espaço ampliado: as tecnologias de informação e comunicação e as representações das espacialidades contemporâneas”. Arquitextos, São Paulo, 08.096, Vitruvius, mai 2008. Disponível em: <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/08.096/3408>. Acesso em: 18 jan 2010.
27
ARANTES, Otília. “Uma estratégia fatal - a cultura nas novas gestões urbanas”. In: MARICATO, H.; VAINER, C. e ARANTES, O. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis-RJ: Vozes, 2000, p.12.
28
ARANTES, Otília. Op. Cit., p. 16.
29
ARANTES, Pedro. Op. Cit.
30
Anish Kapoor (1954) é um renomado artista plástico indiano-britânco, reconhecido pela sua maneira de trabalhar com o design e a superficialidade dos materiais, muitas vezes, com o intuito de atrair a atenção do público. Geralmente explora formas simples, fechadas e curvas, enquanto ressalta o revestimento de suas obras. Kapoor já havia trabalhado em associação com Herzog & de Meuron anteriormente, na produção do Marsyas (2002), para a Tate Modern em Londres.
31
STREET, 56 Leonard. New start for an urban form. Disponível em: <http://www.56leonardtribeca.com/pdf/080916_FT_Heathcote.pdf>. Acesso em: 2 out 2010.
32
CRUZ, Paulo; PEQUENO, João. “Vidro na arquitectura”. In: Arte&Construção, nov, 2005, p. 58.
33
Idem. Ibidem.
sobre a autora
Camilla Ramos Cardoso Bandeira é graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, UFRN, Brasil.