Dentro da perspectiva aberta nas últimas décadas pela ampliação do conceito de patrimônio (1), algumas novas idéias têm desempenhado um papel decisivo e inovador. Uma delas vai ser a de “paisagem cultural”, que, desenvolvida pela Unesco desde o início dos anos 1990, combina de forma inextricável os aspectos materiais e imateriais do conceito, muitas vezes pensados separadamente, indicando as interações significativas entre o homem e o meio-ambiente natural. Com isso, esse conceito parece oferecer uma rica perspectiva quando aplicada também às idéias tradicionais do campo da preservação, podendo servir para ampliar a perspectiva de visada sobre os próprios centros históricos, permitindo leituras que compreendem justamente as interações entre os aspectos natural e cultural, material e imaterial desses conjuntos, muitas vezes ignoradas. (2) A partir desta compreensão ampliada, parece-nos possível também se propor estratégias integradas de intervenção que, ao combinar esses diversos aspectos, terminam por constituir respostas muito mais completas ao complexo desafio da conservação urbana.
Para ilustrar essas possibilidades, vamos tomar o caso da cidade do Serro, localizada no “Distrito do Diamante”,em Minas Gerais, a255 quilômetrosao norte de Belo Horizonte, e uma das poucas cidades da região da mineração a ter sua economia marcada também pela agricultura, desde o inicio da ocupação. Primeiro conjunto urbano a ser tombado nacionalmente pelo SPHAN, ainda em 1938, o Serro apresenta um excepcional conjunto arquitetônico, ao lado de fortes elementos naturais – a Serra do Espinhaço, matas e sítios arqueológicos, e bens culturais imateriais de grande importância, ligados tanto à religiosidade, quanto à sua longa tradição rural, tais como o conhecido “Queijo do Serro”, registrado como patrimônio nacional em 2008. Esses elementos vão se combinar numa rica paisagem cultural, que vai se apresentar forma bastante peculiar em relação às dos demais Sítios Urbanos Nacionais do ciclo do ouroem Minas Gerais, principalmente no que se refere à sua conformação e ao papel que a agricultura nele desempenha. Para se ilustrar conjuntamente as possibilidades que tal conceito oferece, vai se analisar aqui um plano de revitalização da paisagem cultural através da agricultura urbana, em curso no Serro, que parte justamente da compreensão do caráter rural daquele município e da conformação morfológica muito própria do seu centro histórico.
Tentativas de delimitação de um conceito
Apesar da verdadeira explosão por que tem passado o conceito de patrimônio desde os anos 1960, o fato é que tradicionalmente se continuou por muito tempo a lidar de forma muitas vezes estanque com o patrimônio cultural e com o patrimônio natural, demarcando-se cada uma das áreas e pouco se pensando em sua conexão. Assim, por exemplo, a Convenção do Patrimônio Mundial da UNESCO, desde sua aprovação em 1972, vinha classificando separadamente o patrimônio cultural e o natural, lançando-se definitivamente a nova categoria de “paisagem cultural” apenas por ocasião da 16ª sessão do Comitê do Patrimônio Mundial, realizadoem Santa Fé, Novo México, em 1992, depois de anos de discussão sobre a essência das paisagens culturais. Com isso, a Convenção vai ser o primeiro instrumento legal internacional a reconhecer e proteger tal tipo complexo de patrimônio – focada na interação entre natureza e cultura e, ao mesmo tempo, ligado também intimamente às maneiras tradicionais de viver.(3) Tanto para a Unesco quanto para o Comitê do Patrimônio Mundial, esta nova perspectiva vem representar uma importante contribuição para se abordar a questão do desenvolvimento sustentável, ao envolver mais de perto as próprias comunidades. (4) Dando seqüência à abordagem deste conceito, a UNESCO definiu, ainda em 1999, as paisagens culturais da seguinte forma, no documento intitulado “Diretrizes operacionais para a implementação da Convenção do Patrimônio Mundial”:
Paisagens culturais representam o trabalho combinado da natureza e do homem designado no Artigo I da Convenção. Elas são ilustrativas da evolução da sociedade e dos assentamentos humanos ao longo do tempo, sob a influência das determinantes físicas e/ou oportunidades apresentadas por seu ambiente natural e das sucessivas forças sociais, econômicas e culturais, tanto internas, quanto externas. Elas deveriam ser selecionadas com base tanto em seu extraordinário valor universal e sua representatividade em termos de região geocultural claramente definida, quanto por sua capacidade de ilustrar os elementos culturais essenciais e distintos daquelas regiões. (5)
Em 1993, o Parque Nacional Tongariro, na Nova Zelândia, se tornou o primeiro bem a ser inscrito na lista do Patrimônio Mundial, já utilizando os novos critérios, sendo colocado sob a categoria de paisagem cultural. A Unesco assim descreve esse novo patrimônio da humanidade:
As montanhas no coração do parque têm importância cultural e religiosa para o povo Maori, e simbolizam as ligações espirituais entre esta comunidade e seu meio-ambiente. O parque tem vulcões extintos e ativos, uma ampla gama de ecossistemas e algumas paisagens espetaculares. (6)
Hoje, 16 anos depois do início da sua utilização pela Unesco, 55 paisagens culturais já foram oficialmente inscritas na Lista do Patrimônio Mundial, inscrições que refletem também a diversidade do conceito: dos remanescentes arqueológicos do Vale Bamivan no Afeganistão até os terraços de arroz nas Filipinas, do Parque Nacional Uluru-Kata Tjuta na Austrália até os Jardins Botânicos Reais em Kew, Inglaterra, as paisagens culturais da lista da UNESCO cobrem as diversas regiões do globo (embora a maior parte delas ainda esteja concentrada na Europa) e representam configurações variadas.
Como se pode perceber apenas pelos exemplos listados, o .termo “paisagem cultural” vai abarcar uma diversidade de manifestações dos tipo de interações entre a humanidade e seu meio-ambiente natural: de jardins projetados a paisagens urbanas, passando por campos agrícolas, rotas de peregrinação entre outras, como veremos. E vai ser justamente essa amplitude do termo e sua delimitação ainda um tanto indefinida que leva a controvérsias de toda natureza, como mostram vários estudiosos, que apontam que apesar do renascimento que esse termo vive hoje, ele ainda é marcado por um relativo desconhecimento por parte até de experts, e por uma enorme polissemia. (7)
Cenários convergentes: bens culturais e naturais na paisagem cultural do Serro
Para ilustrar as possibilidades de utilização dessa perspectiva, que ilumina exatamente as interações entre os aspectos natural e cultural, material e imaterial do patrimônio, vamos tomar a cidade do Serro, localizada no “Distrito do Diamante”,em Minas Gerais, a255 quilômetrosao norte de Belo Horizonte, e uma das poucas cidades da região da mineração a ter sua economia marcada também pela agricultura, desde o inicio. Localizada ao longo da chamada “Estrada Real”, a paisagem cultural do Serro combina, como mostraremos, uma topografia específica, um significativo patrimônio edificado, uma riqueza de espécies vegetais e uma maneira tradicional de cultivar o solo, que liga o conjunto a outros de origem portuguesa.
Por muito tempo, a historiografia sobre as cidades coloniais brasileiras, muito bem representadas pela obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil (2000), apontava a sua oposição ao modelo das cidades de origem espanhola nas Américas. De acordo com seu ponto de vista, enquanto essas eram planejadas e organizadas de acordo com um padrão rigidamente ortogonal, seguindo estritamente as “Leyes de las Indias”, aquelas seriam produtos de uma ocupação espontânea. Recentemente houve uma transformação na historiografia, e essa visão sofreu uma profunda revisão por autores tais como Nestor Goulart Reis Filho (Evolução urbana no Brasil, 1968) e Roberta Marx Delson (New Towns for colonial Brasil: Spatial and Social Planning of the Eighteenth Century, 1979), que mostraram a existência de cidades planejadas no período colonial e de uma política territorial exercida pela Coroa Portuguesa.
Esta revisão levou a uma compreensão mais detalhada da forma urbana das cidades brasileiras, e várias obras recentes têm tentado estabelecer os padrões reais e complexos seguidos pelas nossas cidades tradicionais. O fato é que as cidades portuguesas apresentam uma coerência formal e são estruturadas com base em uma serie de princípios que pode ser observado na morfologia urbana tanto em Portugal quanto nos outros territórios além-mar, em diversos períodos históricos (TEIXEIRA, 2000). A organização das cidades no Brasil aconteceu por meio das “ordenanças” que transplantaram a organização municipal portuguesa para a colônia, produzindo uma forma urbana muito específica que, não obstante, tem suas regras próprias, constituindo aquilo que poderíamos denominar de uma “paisagem cultural” bastante peculiar, nova idéia no campo da preservação do patrimônio que estamos explorando.
Grande parte das cidades brasileiras do inicio de nossa colonização – como o Rio de Janeiro, Salvador, e muitas outras – se desenvolveram tradicionalmente na costa, em áreas de baías. O caso de Minas Gerais, no entanto, foi bastante peculiar, pelas razões já mencionadas anteriormente: a maior parte das cidades aqui se desenvolveu próxima a rios e / ou em encostas suaves, ao longo da Estrada Real. O solo nessas regiões é normalmente bastante irregular e desfavorável à ocupação humana: localizando-se numa altitude geralmente elevada, a maior parte das cidades nessa região se estende por áreas acidentadas e íngremes, uma dificuldade que é aumentada pelo solo duro que faz ainda mais difíceis os trabalhos agrícolas.
A forma linear da maior parte das cidades é explicada pelo seu próprio processo de formação: em muitos casos, as cidades aparecem como uma conexão entre pequenos arraiais mineradores, erigidos ao redor de pequenas capelas. Diferentemente das cidades coloniais de origem hispânica, aqui não havia uma Plaza Mayor ou Plaza de Armas, praça principal onde a Catedral convivia com os edifícios públicos – servindo esses pequenos espaços urbanos articulados pelas capelas de praças ou largos. Também diferentemente das cidades hispânicas, as cidades mineiras não seguiam um layout prévio, articulando-se geralmente ao longo de uma via mais antiga, ao longo da qual começam a aparecer edificações residenciais e comerciais. Como um resultado, a forma das cidades costuma se adaptar aos contornos do terreno de uma maneira “casual”: ao invés de uma malha rígida e ruas alinhadas, as cidades coloniais brasileiras – e as mineiras em particular – se espalham a partir do seu ponto de partida para cobrir as encostas, protegidas dos ventos mais fortes e das inundações, freqüentes nas áreas mais baixas.
Se essas cidades tiveram uma fase inicial fortemente marcada por esse fenômeno “espontâneo”, numa fase subseqüente de desenvolvimento, pode-se observar uma ocupação “intencional” dos pontos dominantes do território para funções urbanas e edifícios significativos – civis e religiosos, edificações que iriam atrair o desenvolvimento de logradouros ao seu redor (Vasconcellos, 1977).(8) Um bom exemplo deste desenvolvimento pode ser dado pela Praça Tiradentes,em Ouro Preto(MG), um espaço oficial desenvolvido no topo do Morro de Santa Quitéria, o ponto mais alto na ocupação da cidade, que separavam os dois assentamentos existentes, cuja ocupação foi planejada e executada pelo Estado. Um arranjo espacial diferente pode ser notado ali, tendendo mais para um padrão regular, mais próximo ao padrão da malha, que reflete o poder imperial e o seu poder crescentemente repressivo.
Todo esse processo pode ser observado na cidade do Serro (MG), que aparece no início do século XVIII com a descoberta do ouro naquela região, tendo sido inicialmente conhecida como “Arraial das Lavras Velhas do Ivituruí”, próximo aos córregos do Lucas e dos Quatro Vinténs. Graças a seu rápido crescimento, o arraial foi elevado à Vila do Príncipe em 1714, tornado-se uma comarca em 1720, com a importante responsabilidade legal-administrativa sobre quase todas as regiões norte e nordeste da recentemente estabelecida Província de Minas Gerais.
A região permaneceu relativamente isolada do resto do país, não apenas devido a sua distância à costa, mas por causa das leis estritas e rigorosas que tentavam impedir o contrabando de diamantes que tinha se tornado o principal produto da região. Não obstante, a Vila do Príncipe teve um notável crescimento, mesmo que não comparável aos de Ouro Preto ou São João Del Rey, no mesmo período.
A cidade do Serro mantém até hoje um esquema urbano básico, próximo àquele do século XVIII, quando a sua ocupação foi consolidada: a cidade se estende linearmente, principalmente nas meias encostas e próxima a córregos. A sua origem também é muito similar a de outras cidades mineiras: a nova cidade se formou gradualmente, articulando-se ao longo de um eixo principal que conectava dois assentamentos de mineiros, conhecidos como o “Arraial de Cima” e o “Arraial de Baixo”, que correspondem, como os nomes já indicam, às partes alta e baixa da cidade, num processo que também foi mostrado por Sylvio de Vasconcellos em relação à Diamantina.(9) O seu crescimento seguiu uma tendência longitudinal, na direção leste-oeste, e a cidade se articula em torno e três eixos principais – a rua Direita, a rua de Cima e a rua do Corte, que têm um ponto de confluência na entrada da cidade da Estrada Real.
No entanto, há certos traços que diferenciam a cidade do Serro de todos os outros centros históricos de Minas Gerais, e esses se relacionam especialmente a seu caráter rural, que caracteriza a região desde os seus primeiros tempos. A sua topografia é marcada pela presença de uma cadeia de montanhas e por rios, e o seu clima café o típico de montanhas. O solo é pedregoso, no entanto, fértil o suficiente, e favorável à agricultura, especialmente para o cultivo de milho, cana de açúcar, feijão, mandioca e banana. Com a decadência do ciclo do ouro, na segunda metade do século XVIII, a cidade do Serro intensificou sua atividade agrícola.(10) Na sua região norte, há muitas fazendas de criação de gado, e a produção de queijo artesanal sempre foi tradicional na região, sendo bastante conhecida em todo o país, ao ponto do queijo do Serro ter tido seu registro como patrimônio imaterial tanto no Estado de Minas Gerais, quanto por parte do Iphan.
Quando Augustin de Saint-Hilaire visitou o Serro, em1817, acorrida do ouro já tinha terminado, mas ele descreveu a boa aparência da cidade, as suas ruas pavimentadas (o que não era comum na época), e a sua rica vida social. Essa vitalidade devia-se em parte a seu caráter agrícola, que impediu que o Serro, diferentemente de muitas outras cidades do Estado, tivesse uma decadência muito profunda (SAINT-HILAIRE, 1975, p.1 45).
Enquanto as cidades hispano-americanas tinham um centro único, organizado em torno da Plaza Mayor, e eram organizadas regularmente, em malha, estas também tinham limites muito precisos, distinguindo-se claramente entre o urbano e o rural. De forma diferente, a cidade portuguesa tendia a ter um contorno impreciso, com o urbano fundindo-se lentamente no rural, à medida em que a cidade ficava menos densa quando se caminhava ara a periferia. Nas periferias dessas cidades, a ocupação gradualmente se tornava menos densa e os lotes, maiores, muitas vezes conhecidos como “sítios”, serviam para a prática da agricultura familiar. No caso do Serro, esse traço é muito perceptível, e não apenas na periferia, na medida em que aqui se conserva uma baixa ocupação dos lotes, mantendo-se a relação cheio-vazio da época colonial: lotes grandes e uma ocupação pouco densa marcam todo o conjunto urbano do Serro, e não apenas nas periferias.
Outro traço morfológico definidor da paisagem do Serro vai ser a predominância de terrenos muito íngremes, com as declividades variando de 30% a 100%, o que termina por contribuir fortemente para moldar a arquitetura local, marcada por uma tipologia específica de sobrados, na qual, de acordo com a topografia, vão se acomodar mais andares num dos lados da edificação, que terminam atingindo até quatro pavimentos, embora do outro lado apareçam apenas um ou dois desses andares.
Um plano de preservação da paisagem cultural
Conservar as paisagens culturais é um dos desafios mais complexos com os que se depara a área do patrimônio hoje. Se a sua conceituação já se mostra uma tarefa difícil, tal dificuldade se aprofunda quando se passa para a formulação de estratégias para o tratamento dessa categoria especial de patrimônio. O National Park Service americano, órgão responsável pela formulação de políticas de patrimônio nos Estados Unidos, país com longa tradição de tratamento do patrimônio natural, vem se empenhando significativamente neste sentido, emitindo ainda em 1992 diretrizes relativas às paisagens culturais, distinguindo-se entre os diversos tipos de intervenção – preservação, restauração, revitalização das paisagens. Não se trata de tarefa fácil, já que não se trata apenas de se ater à dimensão estética das paisagens, devendo um correto tratamento das mesmas envolver simultaneamente tanto a dimensão funcional dessas paisagens, quanto a sua dimensão ecológica.(11)
A significação e a autenticidade dessas paisagens vão envolver também elementos que se relacionam com a dimensão imaterial do patrimônio, dependendo freqüentemente da continuidade e da vitalidade de sistemas tradicionais de cultura e de produção, que criaram ao longo do tempo padrões característicos de uso da terra e um sentido único de lugar. Hoje muitos desses usos tradicionais da terra – e os produtos a eles relacionados – que eram largamente aceitos sem maior reflexão, correm o perigo de serem desestabilizados e destruídos. Mudanças demográficas, o aumento do valor da terra, a industrialização da produção agrícola e a competição dos mercados mundiais, estão revolucionando as relações sociais e econômicas tradicionais com a terra. A velocidade e o alcance dessas mudanças são inéditas e têm implicação significativa na gestão do patrimônio cultural, que incluem a fragmentação e a mudança de paisagens culturais, a perda de mercado dos produtos tradicionais e mesmo a erosão da identidade e distinção regionais. Assim, preservar as paisagens culturais vai ser, muitas vezes, defrontar-se com as formas tradicionais de agricultura.
Na mesma linha de raciocínio, Metchild Rossler, do Centro do Patrimônio Mundial da Unesco, no Forum Unesco realizado em 2005, aponta a íntima ligação entre a “proteção dos valores e do patrimônio intangíveis” e a das paisagens naturais, sendo que “manutenção do tecido social, do conhecimento tradicional, dos sistemas de uso da terra e das práticas nativas são essenciais para a sua sobrevivência” (12) As paisagens naturais seriam, a seu ver, aqueles lugares por excelência onde “se pode aprender sobre a relação entre o povo, a natureza e os ecossistemas e como isso conforma a cultura, a identidade e enriquece a diversidade cultural e biológica.” Esta vai ser a idéia motriz de um plano que vem sendo desenvolvido no município do Serro, e que se propõe a promover a revitalização da paisagem cultural através da agricultura urbana, partindo justamente da compreensão do caráter rural daquele município, corporificado nas práticas agrícolas tradicionais, e da conformação morfológica muito própria do seu centro histórico. Assim este projeto se propõe a salvaguardar um patrimônio imaterial – as práticas, conhecimentos e técnicas tradicionais relativos ao cultivo, preparo e conservação tanto de alimentos quanto de plantas medicinais, no Serro (MG), não só através do seu inventariamento, mas também através de um plano de salvaguarda, que passa pela revitalização da paisagem do núcleo urbano e do seu entorno através da prática sustentável da agricultura familiar. Para isso, combina-se pesquisa com extensão, num entrelaçamento ainda inédito em nosso país das temáticas do planejamento urbano, preservação do patrimônio urbano e cultural e o incentivo à agricultura familiar.
Carlos Fernando de Moura Delphim, do Iphan, em sua “Proposta de intervenções paisagísticas em sítios do centro histórico e adjacências na cidade do Serro, MG”, documento produzido para o Iphan no ano 2000, já chamava a atenção para a riqueza contida naquela localidade e a necessidade de preservá-la:
O Serro é depositário de espécies domésticas do patrimônio genético, algumas em vias de extinção. Na casa dos Otoni serviu-se uma variedade de mandioca inigualável no sabor, tamanho e maciez. No pomar de uma residência reencontrei uma variedade de mexerica pela qual vinha procurando há anos. Conhecia-a como laranja-cravo. Ali dão-lhe o nome de cravina. O moderno interesse puramente comercial por novas variedades de híbridos e a facilidade de se comprar enxertos destas variedades é responsável pelo desaparecimento de muitos cultivares tradicionais de frutas e legumes. A cidade que ainda possui exemplares dessas espécies deve preservá-las com o mesmo zelo que preserva suas igrejas. O patrimônio genético só assume seu pleno valor quando os recursos naturais se associam ao conhecimento de formas para seu uso, sobretudo de formas peculiares, como é o caso de usos culinários como o fubá insuado e o cuscuz, feito também com fubá.(13)
Em sua exposição, já podemos perceber o entrelaçamento que se dá nas práticas agrícolas, entre os elementos naturais e culturais: o rico “patrimônio genético” só assumiria seu pleno valor quando associado “ao conhecimento de formas para seu uso”. O quadro a seguir, tenta ilustrar, de forma gráfica, alguns desses elementos – naturais e culturais – que compõem o saber-fazer tradicional ligado à produção, preparo e conservação dos alimentos:
Cabe anotar aqui que a paisagem do núcleo urbano vai ter uma forte presença dos vazios, grande parte deles ocupado pelo cultivo de diversas espécies, prática que vem desde o período colonial, como atestado pelos diversos viajantes que por lá passaram. Saint Hilaire, em seu livro Viagens pelas províncias do Rio de Janeiro e Minas Gerais, já identifica ali plantações de bananeiras, mamoeiros, laranjeiras, pés de café, couve, algumas espécies de curcubitáceas, entre outros, cultivadas nos quintais de cada casa no núcleo urbano. “Das janelas que se abrem para o campo”, descreve, “goza-se de agradável panorama: avistam-se as casas próximas entremeadas de massas espessas de verdura formada pelo arvoredo dos jardins; mais além descortina-se o vale estreito que se estende ao pé da cidade e em cujo fundo corre o quatro vinténs; ..." (São Paulo: Cia. Editora Nacional. Tomo I. 1938, p. 280) O aspecto de “jardim” dos amplos quintais acidentados – conservados até hoje – faz com que a paisagem do Serro se aproxime mesmo a de algumas configurações semelhantes no mundo de origem lusitana, como, por exemplo, às da Ilha da Madeira.
No entanto, hoje se percebe uma perda e descaracterização dessa paisagem, em grande parte provocada pela má utilização da agricultura urbana: terraceamentos mal feitos, espécimes inadequadas à topografia, entre outros, atestam a perda progressiva do saber-fazer da agricultura urbana tradicional, que sempre caracterizou o conjunto do Serro. Assim, faz-se urgente o inventariamento e a salvaguarda deste saber fazer tradicional, não só para se evitar o seu desaparecimento iminente, mas para alavancar a preservação da paisagem cultural característica daquele conjunto tombado, ao mesmo tempo em que, num trabalho de extensão agrícola, se estimula a agricultura familiar num núcleo marcado por um baixo nível de renda.
Trata-se, assim, de um projeto inédito e exemplar na área da extensão agrária e da preservação do patrimônio em nosso país: pela primeira vez, no Brasil, propõe-se um projeto de resgate das práticas agrícolas tradicionais que servirá de subsídio para se tratar e preservar de forma sustentável a “paisagem cultural” de um núcleo urbano tombado, categoria que, como vimos, começa a ser utilizada a nível mundial. Combina-se, na perspectiva da paisagem cultural, a preservação do patrimônio material (o conjunto urbano tombado) e imaterial (práticas, conhecimentos e técnicas tradicionais relativos ao cultivo, preparo e conservação em áreas urbanas, tanto de alimentos quanto de plantas medicinais).
Finalmente, cabe destacar, mais uma vez, o caráter de sustentabilidade da proposta: ao se propor um plano de plano de salvaguarda de um saber fazer tradicional para através dele se perseguir a revitalização da paisagem cultural do Serro, está se abordando, simultaneamente, a dimensão cultural e paisagística, mas também as suas bases sociais e econômicas. A agricultura urbana parece-nos representar uma importante atividade econômica alternativa para a população de um município pobre e com baixo índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Assim, este projeto vem atender às diretrizes do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, as oferecer aos moradores da cidade a oportunidade de perceber a paisagem como patrimônio a ser preservado, através justamente do resgate e preservação de um saber fazer tradicional, que também lhes reverta em benefícios econômicos, garantindo assim a sua sustentabilidade.
Numa perspectiva multicefálica, o plano conjuga ao lado de um “Programa de salvaguarda das práticas, conhecimentos e técnicas tradicionais relativas ao cultivo, preparo e conservação dos alimentos e plantas medicinais”, o “Programa de reabilitação da paisagem”, combinando intervenções físicas e projetos de ação cultural, ao lado ainda de um Programa de fortalecimento econômico e de um Programa de fortalecimento institucional, como pode ser visualizado no quadro seguinte.
Proposto em 2007, esse trabalho vem sendo executado, com o patrocínio do Programa Monumenta do governo federal, por uma ampla equipe multidisciplinar – arquitetos, antropólogos, geógrafos, agrônomos, historiadores, entre outros profissionais –, como seria de se esperar num projeto dessa natureza, que visa o complexo tema da paisagem cultural. Já foram finalizados os diagnósticos e o planejamento prévio, e neste momento, a equipe trabalha com a Prefeitura local na preparação de um plano estratégico para as diversas ações envolvidas, entre as quais estão sendo eleitos alguns projetos pilotos. No entanto, já se pode adiantar que um dos subprodutos mais importantes e articulador das ações é uma “Lei de Preservação da Paisagem Cultural”, que incorpora desde diretrizes de uso e ocupação para a área tratada, até um completo programa de agricultura urbana, passando pela criação de um fundo rotativo para financiamento das atividades.
Este projeto tem um sentido prospectivo, articulando uma proposta de preservação da paisagem cultural, que explora as suas diversas dimensões. Ao lado dessa dimensão investigativa, parece-nos inegável também que o projeto terá um grande impacto no que se refere ao desenvolvimento social e cultural, local e regional. Trata-se, afinal, de se mudar a “atitude” da população frente à paisagem local, estimulando-a a recuperar práticas, conhecimentos e técnicas tradicionais, que será muito útil no que se refere ao tratamento a ser dispensado aos vazios urbanos agriculturáveis. Ao mesmo tempo, estará se oferecendo uma alternativa real de geração de renda para a população de um município pobre e com baixo IDH. Os ganhos sociais são óbvios nesse caso: melhoria na renda, no abastecimento e mesmo na saúde da população local, com a possibilidade do cultivo e manipulação de ervas medicinais. Já os ganhos culturais também são de grande monta, podendo se destacar a recuperação e preservação de saber-fazer tradicional, no que se refere ao cultivo, preparo e conservação de alimentos e ervas medicinais, e a recuperação e preservação da paisagem cultural, única no país.
notas
1
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio.São Paulo: UNESP, 2000.
2
FOWLER, P.J. World Heritage Cultural Landscapes 1992-2002. UNESCO, World Heritage Centre. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001331/133121e.pdf. Acesso em: 2003
3
O Comitê reconheceu que as paisagens culturais representavam o “trabalho combinado da natureza e do homem”, designado no Artigo 1º da Convenção. A esse respeito, confira UNESCO, Documento Conceptual, Reunión de Expertos sobre Paisajes Culturales en El Caribe: Estrategias de identificación y salvaguardia.Santiago de Cuba, noviembre 7-10, 2005
4
BANDARIN, Francesco. Foreword. In: FOWLER, P.J.. World Heritage Cultural Landscapes: 1992-2002.Paris:UnescoWorldHeritageCenter, 2003. (World Heritage Paper, 6)
5
Unesco. Operational Guidelines for the Implementation of the World Heritage Convention. Disponível em: <http://whc.unesco.org/opgutoc.htm>. Acesso em: 7 mar. 2009.
6
Unesco. Disponível em: http://whc.unesco.org/en/list/421
7
RIBEIRO, Rafael Winter. Paisagem Cultural e Patrimônio. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, 2007.
8
Esses pontos dominantes podem estar no topo das montanhas ou os pontos mais proeminentes nas meia-encostas onde a cidade se desenvolve (Confira, VASCONCELLOS, Sylvio de. de. Vila Rica. São Paulo: Perspectiva, 1977.)
9
Mais sobre esse ponto, confira CANNIGIA, G.; MAFFEL, G.L. Interpretation basic building: architectural composition an building typology.Firenze: Alínea, 2001.
10
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado de Minas Gerais, 2007.
11
A esse respeito, confira HOHMAN, Heidi. Mediating ecology and history. In: LONGSTRETH, Richard. Cultural Landscapes: Balancing nature and heritage in preservation practices. Minessota:University ofMinessota Press, 2008.
12
Unesco. Documento Conceptual. Reunión de Expertos sobre Paisajes Culturales en El Caribe: Estrategias de identificación y salvaguardia. Santiago de Cuba, Nov. 2005, p. 7-10.
13
DELPHIM, Carlos Fernando de Moura. Proposta de intervenções paisagísticas em sítios do centro histórico e adjacências na cidade do Serro, MG, Brasília: IPHAN, 2000.
sobre o autor
Leonardo Castriota é arquiteto-urbanista, com doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000) e pós-doutorado junto ao Getty Conservation Institute (GCI) (2001) e a Universidad Politécnica de Madrid. Professor Titular da Universidade Federal de Minas Gerais, com vasta produção bibliográfica, na qual se destacam os livros Arquitetura da Modernidade (Editora da UFMG, 1998) e Patrimônio Cultural: conceitos, políticas, instrumentos (Annablume, 2008) e pesquisador do CNPq e da FAPEMIG.