para Cecilia
“É porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na ideia, querendo e ajudando”
Guimarães Rosa (1)
A série de quatro viagens feitas pelo filósofo alemão Max Bense (1910-1990) ao Brasil, entre 1961 e 1964, se insere no contexto de uma sequência de eventos que provocaram a formulação de uma nova concepção de projeto no Brasil nos anos 50-60, com desdobramentos extremamente produtivos no campo da arte, da poesia e do design, antes que da arquitetura. Entre os arquitetos, na verdade, o evento mais conhecido e citado dessa sequência ainda é a primeira vinda de Max Bill ao Brasil, em 1953. E menos pela discussão em torno da sua concepção de projeto que por conta do mal-estar provocado pelas críticas severas que o arquiteto e artista suíço fez então à arquitetura brasileira (e particularmente niemeyeriana).
Diferentemente de Max Bill, no entanto, Max Bense se mostrou bem mais flexível e aberto a um diálogo intelectual com o país. Além de ter organizado várias exposições na Alemanha (Almir Mavignier, Volpi, Lygia Clark, Mira Schendel, Noigandres e outros), manteve, como se sabe, um rico diálogo com os irmãos Haroldo e Augusto de Campos, Décio Pignatari e João Cabral de Melo Neto. E foi como figura central no intercâmbio entre as vertentes construtivas brasileira e germânica que fez uma série de viagens ao Brasil nos primeiros anos da década de 1960, a convite do Ministério das Relações Exteriores. Viagens que registrou no livro “Inteligência Brasileira. Uma reflexão cartesiana”, dedicado a Bruno Giorgi, Aloisio Magalhães e Wladimir Murtinho, e publicado originalmente na Alemanha em 1965.
A epígrafe do livro – extraída do “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa – resume o esforço de Bense de dar conta de uma espécie de inteligência local, cujo caráter “original e inovador” se explicaria em grande parte pelo fato de se constituir “de maneira menos histórica” que na Europa, “numa permanente atualidade” (2). O texto não trai a origem do autor – um filósofo com formação em física e matemática e ex-professor da HfG/Höchschule für Gestaltung – a assim chamada Escola Superior da Forma, em Ulm, que teve Max Bill como primeiro diretor (3). Percebe-se, no entanto, um corpo-a-corpo com a realidade brasileira que o distancia muito da postura de Max Bill e vai configurando quase um ensaio de crítica cultural, produzido pelo espanto de Bense diante de uma cultura que todo o tempo lhe desafia, e àquela altura – nos primeiros anos da década de 1960, com Brasília recém-inaugurada e o país às vésperas do golpe militar – lhe parece “uma momentânea e extrema intensificação do poder criador universal”.
O livro segue uma estrutura própria, nem cronológica nem temática, definida por 53 capítulos curtos, numerados e sem título, ao longo dos quais encontramos uma ampla constelação de personagens, como Aleijadinho, Affonso Eduardo Reidy, Lucio Costa, Burle Marx, Clarice Lispector, Lygia Clark, Volpi, Haroldo e Augusto de Campos. Vê-se por aí como a programação de Bense no Brasil foi intensa, compreendendo encontros com escritores, artistas, arquitetos, designers, críticos e músicos, visitas à Bienal de São Paulo, ao recém-inaugurado Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e um tour por vários estados, além de um curso sobre estética moderna na recém-criada Esdi/Escola Superior de Desenho Industrial, no Rio de Janeiro, profundamente alinhada então com o modelo ulmiano.
Bense desembarcou no Brasil pela primeira vez em outubro de 1961. Era sua primeira viagem a América. E dentre as cidades que visitou, duas o fascinaram: Rio de Janeiro e Brasília. Não as viu isoladamente, no entanto, senão em função do seu caráter complementar: o Rio como extensão da natureza, Brasília como extensão da inteligência. E se as montanhas do Rio ganharam de Bense um poema concreto (Tallose Berge, 1965), foi na capital recém-inaugurada, onde circulou ciceroneado por João Cabral de Melo Neto (4), que o filósofo reconheceu uma “sonora proclamação da inteligência cartesiana”. E mais: “a primeira expressão visível de um cartesianismo convertido em design”. Brasília, cidade planejada como um cartaz, a própria “revogação da idéia de pintura”, segundo Bense, foi definida por analogia com a noção fundamentalmente germânica de Gesamtkunstwerk [obra de arte total], como a “expressão de um design total”. A referencia ao conceito estético central para o romantismo alemão e revigorado pela Bauhaus evidenciava, por um lado, a perspectiva intelectual de Bense, e por outro reforçava uma disciplina que começava a se estruturar no Brasil naquele momento. Mas se conceito de obra de arte total é uma chave fundamental do texto, é o conceito de mobilidade, no qual Bense se apoia para tratar de Brasília, que mais nos interessa aqui. E isso por ser um conceito bastante novo então no campo da arquitetura, que se define num quadro marcado por uma intensa revisão de valores e princípios.
Como se sabe, do ponto de vista da crítica ao urbanismo funcionalista que emerge nos anos 1950, o conceito de mobilidade se apresenta como uma chave para questionar a ênfase na circulação, um dos pilares da Carta de Atenas – documento-síntese do pensamento urbanístico do CIAM do pré-guerra. Para os arquitetos que tomaram a frente desse debate, o conceito de mobilidade sugere uma noção mais complexa de cidade, que responde aos princípios do planejamento racional modernista com diversidade em detrimento de zoneamento monofuncional, efemeridade em detrimento de permanência, padrões espontâneos de crescimento urbano em lugar de determinismo, interação social em lugar de esquema circulatório racionalizado.
Não por acaso, o conceito de mobilidade foi tomado, junto com os conceitos de “cluster”, “crescimento e mudança” e “habitat”, como eixo central das comissões que estruturaram o X CIAM/Congresso de Arquitetura Moderna, realizado em Dubrovnik em 1956 (5). E logo se tornou um dos conceitos chave do Team X, a ponto de aparecer estampado na capa da revista holandesa “Forum” de setembro de 1959, em edição dedicada a situar (e justificar) a emergência do grupo dentro do CIAM, em seu momento terminal (6). Mas se a dissolução do CIAM ficou muito associada ao abalo provocado em suas bases por arquitetos como Alison e Peter Smithson, Aldo van Eyck, Georges Candilis, Giancarlo de Carlo e Ralph Erskine, a discussão sobre mobilidade deve muito a Yona Friedman, arquiteto de origem húngara baseado na França. Embora tenha mantido uma postura independente em relação ao Team X, Friedman participou de algumas das reuniões organizadas por seus integrantes. E foi no X congresso do CIAM, justamente, que ele lançou as bases da sua “arquitetura móvel”, definida por sua capacidade de adaptar-se a mudanças, necessidades, desejos e fantasias dos usuários – ou seja, em oposição clara à setorização cultivada pela ideia modernista de cidade que naquele momento era colocada em xeque no próprio âmbito da instituição criada para definir e disseminar as bases da arquitetura moderna.
Em princípio, portanto, seria possível considerar uma aproximação entre a “arquitetura móvel” de Yona Friedman e alguns dos temas que estavam na pauta dos arquitetos do Team X, sobretudo do conceito de “cluster”, elaborado pelo casal Smithson. Embora, aos olhos de Friedman, a “cidade cluster” dos Smtihsons ainda guardasse um valor artístico e autoral – como uma “desordem pitoresca” (“a picturesque jumble”), enquanto sua noção de “arquitetura móvel” buscava romper com o caráter autoral do projeto e explorar a possibilidade de uma “arquitetura randômica”, associada a um ato instintivo, não controlado pelo arquiteto (7). Desse modo, por meio de projetos, textos teóricos e da criação do GEAM/Groupe d’Etudes d’Architecture Mobile – sediado na França entre 1958 e 1962 – Friedman ia se distanciando dos arquitetos do Team X, mas ao mesmo tempo contribuindo, a seu modo, para alimentar a crítica a uma concepção de cidade que ganharia em Brasília sua expressão mais concreta (8).
O livro de Max Bense faz referência a Friedman no capítulo 28, mais especificamente ao “manifesto da arquitetura móvel”, apresentado por Friedman no X CIAM. Na versão mais programática do texto (assinada por David George Emmerich, Camille Frieden, Yona Friedman, Günter Günschel, Jean Pierre Pecquet e Werner Ruhnau e publicada no mesmo mês e ano da inauguração de Brasília), o texto se organiza em 4 itens sucintos: A: os fatores que levaram à catástrofe do planejamento urbano moderno; B: os problemas cotidianos enfrentados pelos habitantes da cidade; C: os princípios arquitetônicos capazes de contribuir para melhorar as condições da vida na cidade; D: as técnicas correspondentes a esses princípios. Defende-se assim, em poucas linhas, uma arquitetura baseada no princípio do movimento, tal como entendido pelo GEAM: uma arquitetura dinâmica, intercambiável e adaptável, associada a uma cidade com ampla mistura de funções e escalas, com ênfase na participação dos usuários/habitantes e na exploração de sistemas industrializados, elementos leves e pré-fabricados (9).
Tratava-se de uma crítica dirigida fundamentalmente aos princípios da cidade funcionalista moderna, tal como resumidos na década de 1930 na Carta de Atenas. Em vez de se organizar espacialmente em setores rigidamente estabelecidos em correspondência com as 4 funções consideradas essenciais da cidade (habitar, trabalhar, cultivar o corpo e o espírito e circular), a “cidade espacial” imaginada por Friedman – em suas diversas versões – teria uma parte fixa, equivalente à infra-estrutura, e outra flexível, pronta para ser movida e removida de acordo com as circunstâncias. A “cidade móvel” de Friedman seria, assim, tudo menos estática, limitada, hierárquica ou setorizada. Com suas estruturas espaciais suspensas sobre o solo, em grids infinitamente proliferantes construídos segundo a lógica do “plug-and-play”, essas cidades não-funcionais se ergueriam sobre as ruínas do próprio pensamento urbanístico radicado no Plano Piloto de Lucio Costa para Brasília. Desenraizada, acentrada, anti-hierárquica e anti-monumental, a “cidade espacial” de Friedman significaria, no limite, a própria dissolução da cidade, do ponto de vista dos seus espaços e elementos urbanos tradicionais e historicamente definidos. Nem praças, nem ruas, nem quadras, nada disso restaria ali. Mesmo paredes, tetos e pisos seriam considerados “peças de mobiliário”, que o habitante poderia mover e remover, cabendo ao arquiteto o papel limitado da definição da infraestrutura (elementos de sustentação + redes hidráulica, de esgoto, eletricidade, telefone etc).
Tratava-se, como se vê, de uma aposta num modo de vida radicalmente novo, em contínuo movimento, potencializado pelas novas tecnologias e materiais desenvolvidos com a guerra. Ao tomar como referência o manifesto da arquitetura móvel, portanto, Max Bense se mostra bastante informado sobre o que representa o pensamento de vanguarda no campo da arquitetura e do urbanismo naquele momento. No meio arquitetônico brasileiro, muito preso então à cartilha corbusieriana, ao estatuto do autor e à contemplação como categoria por excelência da arte (e da arquitetura), a referência ainda que breve a Yona Friedman chega a ser mesmo desafiadora, na medida em que introduz um pensamento ainda mais radical que o dos arquitetos do Team X, e ignorado pela maior parte dos arquitetos brasileiros naquele momento (10). Por outro lado, ao tomar como referência o manifesto da arquitetura móvel para falar de Brasília, Bense parece pouco atento a um debate teórico que vinha se desenvolvendo no campo da arquitetura e do urbanismo há pelo menos uma década, e que já levava Brasília a ser alvo de crítica justamente por seu imobilismo, expresso na forma fechada do Plano Piloto de Lucio Costa.
Ainda assim, se desconsidera o quadro crítico em que o conceito de mobilidade emerge, nem por isso Bense deixa de fazer uma leitura surpreendente de Brasília: se a cidade “exclui, como um todo, qualquer mobilidade”, é seu aspecto “intercambiável” que lhe interessa, na medida em que sugere, mais que o conceito de mobilidade aplicado à arquitetura (“Mobilität”), a idéia de uma “maciça mobilidade” de uma população urbana e flutuante que se recusa ao sedentarismo – seja ele burguês ou proletário, diz ele. E neste sentido, vem a ser melhor definida pelo termo “Beweglichkeit”, o qual sugere, mais especificamente, uma capacidade de movimento, uma possibilidade.
De que mobilidade então fala Max Bense, quando fala de Brasília? Da arquitetura móvel das cidades espaciais de Yona Friedman? Da mobilidade intrínseca à cultura americana, cujos dispositivos portáteis já fascinavam Reyner Banham (11)? Da circulação virtualmente sem limites oferecida pela técnica rodoviária valorizada no Plano Piloto de Lucio Costa? Da mobilidade social prometida pelo projeto desenvolvimentista de Juscelino? Das transformações muito rápidas vividas por um país capaz de mudar de novo sua capital? Da disponibilidade de uma cultura de raízes ibéricas, no sentido apontado por Sergio Buarque de Holanda?
Embora o tema não tenha sido desenvolvido em maior profundidade pelo autor, ele permanece latente no livro, e de certo modo se relaciona com a “permanente atualidade” que Bense associa à “inteligência brasileira”. O que nos leva ao argumento central em torno do qual se constrói o próprio livro: a idéia de que a cultura brasileira seria caracterizada por dois componentes básicos: o espírito tropical – definido pelo autor como orgânico, vital (e como tal, pode-se dizer, essencialmente movente) – e o espírito cartesiano – analítico, lógico, claro –, que aqui encontram-se não em contraposição mas em relação dialética.
Sendo assim, enquanto o urbanismo de Brasília seria tomado como exemplo do espírito cartesiano – a ponto de Bense sugerir que fosse erguido ali um monumento a Descartes –, a “quase-geometria” de Bruno Giorgi seria exemplo do espírito tropical. E Guimarães Rosa, a melhor expressão da fusão de ambos. O que leva Bense a assinalar a brusca mudança entre a atmosfera informal que vigora no restaurante apertado do centro antigo do Rio, onde almoça com Guimarães Rosa e Clarice Lispector, e o “estilo forense” que passa a dominar logo em seguida o escritor-embaixador, ao conduzir o visitante estrangeiro pelos salões palacianos do Itamaraty. Logo vai ficando claro, então, que o tema fundamental que interessa a Bense são os contrastes que envolvem o Brasil: a alegria e a melancolia, a natureza e a inteligência, a improvisação e o projeto, a inércia e a mobilidade.
Menos preocupado desta vez em expor suas premissas teóricas, Bense deu a “Inteligência Brasileira”, assim, um cunho quase antropológico, reforçado pelas poucas imagens incluídas na edição alemã (e lamentavelmente suprimidas da edição brasileira):
1 foto da Capela do Palácio do Alvorada (fotógrafo não identificado, e nenhuma referência à autoria do projeto),
1 foto de Ouro Preto (por Almir Mavignier),
1 foto da escultura “Os Candangos”, de Bruno Giorgi, na Praça dos Três Poderes (fotógrafo não identificado);
1 foto de um trabalho de Lygia Clark intitulado “Arquitetura escultural” (fotógrafo não identificado);
1 foto da praia de Copacabana (por Elisabeth Walther, então sua assistente).
Cinco fotos apenas, portanto, que somadas à imagem da capa – o símbolo do IV Centenário de fundação da Cidade do Rio de Janeiro, projetado por Aloisio Magalhães – compõem o perfil àquela altura já institucionalizado da cultura brasileira por meio de alguns de seus elementos mais reconhecidos internacionalmente: dois exemplares máximos dos períodos que então definem o que se entende por arquitetura no Brasil (colonial e moderno), dois artistas renomados (Bruno Giorgi e Lygia Clark), e a praia mais célebre de todas (Copacabana).
A foto da praia de Copacabana é a última imagem incluída no livro, e assinala uma diferença em relação à primeira, da capela de Niemeyer. Em princípio, esta pertence ao álbum de retratos quase ficcional da nova capital, e como tal se vincula de algum modo à narrativa épica que se constrói então sobre Brasília e é amplamente divulgada no exterior. Porque mesmo que a angulação não privilegie um ponto de vista monumental, é a arquitetura de Niemeyer que se apresenta, numa foto provavelmente de Marcel Gautherot – fotógrafo preferido de Niemeyer e responsável por boa parte das imagens oficiais da nova capital (12). Já a foto da praia é uma cena de rua. A preocupação estética de ambas as fotos é evidente, e se traduz visualmente no rigor da composição. Mas a foto de Copacabana parece apenas o flagrante do cotidiano de uma cidade à beira-mar; e se não fosse pelo calçadão de Burle Marx, provavelmente não reconheceríamos o Rio. Não vemos sequer o Pão de Açucar, afinal, e mesmo os banhistas estão distantes, em dimensões reduzidas, quase diluídos na areia. Em primeiro plano, vemos um homem sozinho, em farrapos, com um chapéu de palha e uma vassoura na mão. Postado de costas para a câmera, à beira do calçadão, ele olha em direção aos banhistas e à trave de futebol na areia. Calça sandálias havaianas, mas não põe o pé na areia. Não tem nome, nem rosto, e provavelmente nem chegou a perceber-se fotografado.
A foto, por si só, indica como o olhar de Bense assume aqui um viés antropológico que não encontramos facilmente em sua obra. E acaba permitindo uma outra aproximação com a fotografia de Marcel Gautherot; agora, com o registro do canteiro de obras de Brasília. Desta vez a vassoura foi substituída por uma enxada, a areia de Copacabana pela laje de Niemeyer, o horizonte do Rio pelo de Brasília, e o homem em primeiro plano se multiplica (e se dispersa) nos candangos que constroem o Congresso Nacional. Numa e noutra foto, uma diagonal estrutura a composição e estabelece uma linha divisória que explora os contrastes que a justaposição quase espelhada de grandes áreas de sombra e luz anuncia. Embora na foto de Gautherot o protagonista seja claramente a arquitetura monumental de Niemeyer, enquanto na foto de Elisabeth Walther quem assume o papel central é um anônimo varredor de rua.
Longe de se definir como um tratado estético, “Inteligência Brasileira” também contribui, assim, para a construção do imaginário coletivo que move o Brasil dos primeiros anos 60. Mas se estão presentes aqui os conceitos fundamentais da inusitada estética bensiana, em desenvolvimento desde a década anterior e posteriormente condensados na Kleine Aesthetik, em “Inteligência Brasileira” o filósofo não se pauta pela proposta delirante de medição da obra de arte nem se estende sobre a base semiótica que rege sua atividade no campo da estética. E se opera com um vocabulário extraído em grande parte de Christian von Ehrenfels, nem por isso deixa de compor o livro como uma espécie de mosaico de anotações que não esconde nem a dificuldade de dar conta da exuberância, do improviso e desperdício que vê no Brasil, nem seu enorme fascínio por um país cujo caráter progressista estaria expresso, nas suas palavras, na dimensão “antiprovinciana” do urbanismo da sua nova capital. Livre da barbárie, da história, do conservadorismo cristão e do pessimismo hegeliano perante a arte, nossa “civilização tropical”, tão exuberante e desordenada quanto amoral, revelaria, de acordo com Bense, a própria “essência em progresso” do homem, transmitindo uma esperança de renovação há muito enterrada na Europa.
“Saber quem ele é somente pela história é uma sentença fulminante do homem europeu sobre si mesmo”, escreve Bense. Daí o grau de liberdade e promessa que ele reconhece nos trópicos, onde mesmo o sono, no embalo da rede na fazenda, seria “uma possibilidade”, e não uma “metáfora da morte”. E onde tudo seria, afinal, produto de uma consciência não-histórica, “que não olha para trás, mas se mantém atenta” ao porvir. Nessa perspectiva, entende-se o interesse de Bense pelo design no Brasil, como uma atividade essencialmente prospectiva que surge aqui como “substituto dialético” daquilo que a Europa chama de consciência histórica. Ideia expressa na “essência em progresso” que Bense vê aqui, e que nos reenvia ao conceito de “mobilidade”, que vai se firmando como uma chave no seu esforço de compreender o Brasil – e Brasília, em particular.
Embora uma outra foto de Gautherot confirme a distância entre a Brasília de Lucio Costa e Oscar Niemeyer e a cidade espacial de Yona Friedman. Porque aqui as estruturas espaciais não são nem de longe um sistema neutro capaz de oferecer liberdade ao usuário/habitante, mas andaimes que deverão sair de cena logo após a conclusão das obras-monumentos de Niemeyer. Assim como os sacos de cimento vazios que, uma vez descartados, vão se transformar em barracos precários na periferia do canteiro, na assim chamada “Sacolândia”, essa Brasília em negativo que Gautherot não conseguiu publicar e Bense talvez sequer tenha visto. É aí na Sacolândia, afinal, que se escancaram as dificuldades que a concepção de projeto ulmiana encontra num ambiente profundamente resistente à lógica industrial e cada vez mais tensionado social e politicamente, que logo converteria Brasília na expressão não da liberdade – e muito menos de mobilidade social – mas da repressão. Mas é também na Sacolândia que o alto grau de improviso diante da escassez vai nos confrontar com o lado menos heróico, e nem por isso menos essencial, da “Inteligência Brasileira” – na mobilidade espantosa, e tantas vezes brutal, de um Brasil avesso ao projeto, e ao mesmo tempo sempre por se fazer.
notas
NE
Texto apresentado em versão preliminar no II Enanparq/ II Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação, realizado em Natal em setembro de 2012. A autora agradece ao Instituto Moreira Salles pela cessão das imagens de Marcel Gautherot.
1
ROSA, Guimarães. Apud Bense, Max. Inteligência brasileira. São Paulo, Cosac Naify, 2009 (original: BENSE, Max. Brasilianische Intelligenz. Wiesbaden, Limes, 1965).
2
BENSE, Max. Op. cit, p.11-12.
3
Max Bense deu aulas na HfG em dois períodos: entre 1954 e 1958 (quando a escola esteve sob a direção de Max Bill) e em 1966, dois anos antes da sua dissolução.
4
Ver: MELO NETO, João Cabral de. Acompanhando Max Bense em sua visita a Brasília, 1961. (Museu de tudo. 1966- 1974). In: MELO NETO, João Cabral de. Obra completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1994, p. 371.
5
Ver: RISSELADA, Max; VAN DEN HEUVEL, Dirk (org.). Team 10. 1953-81. In search of a utopia of the present. Rotterdam, Nai Publishers, s/d.
6
Ver RISSELADA, Max; VAN DEN HEUVEL, Dirk (org.). Op. cit.
7
FRIEDMAN, Yona. Pro Domo. Barcelona, Actar, 2006. p. 31.
8
Sobre a obra de Friedman, ver em especial http://www.yonafriedman.nl.
9
GEAM. “Programme for a mobile architecture” in: Conrads, Ulrich. Programs and manifestoes on 20th-century architecture.Cambridge, MIT Press, 1997. pp.167-8.
10
Salvo raras exceções, como Sergio Bernardes. Ver NOBRE, Ana Luiza. Fios cortantes. Projeto e produto, arquitetura e design no Rio de Janeiro (1950-70). Tese de doutorado. Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2008.
11
Ver em especial: BANHAM, Reyner. The Great Gizmo (1965). In: A critic writes. Essays by Reyner Banham. p. 109-118.
12
O nome de Marcel Gautherot não aparece em nenhum momento no livro. E embora a foto publicada não tenha crédito do autor, nem tenha sido localizada nos arquivos do fotógrafo (hoje no Instituto Moreira Salles), tudo indica que se trata de uma foto sua, pela linguagem, composição e relação com a série de fotos da mesma igreja de Gautherot.
referências bibliográficas
BANDEIRA, João (org). Arte concreta paulista. Depoimentos. São Paulo, Cosac Naify, 2002.
BENSE, Max. Pequena Estética. São Paulo, Perspectiva, 1971.
NOBRE, Ana Luiza. Fios cortantes. Projeto e produto, arquitetura e design no Rio de Janeiro (1950-70). Tese de doutorado. Rio de Janeiro, PUC-Rio, 2008.
OCKMAN, Joan (org.). Architecture Culture 1943-1968. Nova York, Rizzoli, 1993.