O urbanismo ao longo do século 20 respondeu aos seus propósitos de maneira variada e, igualmente, engendrou enfoques distintos para a vegetação urbana, em especial a arborização. Histórica e geograficamente condicionados, estes enfoques oferecem uma origem reconhecível. Entretanto, com difusão transnacional e graus de adaptação variáveis, estes enfoques muitas vezes acabaram aplicados em contextos contrastantes com aqueles de sua origem e por razões distintas daquelas que motivaram a sua formulação. Por vezes foram aplicados de maneira justaposta, híbrida.
Exatamente por isso vale a pena precisar o sentido da composição das paisagens urbanas do século 20, particularmente o vínculo entre desenho urbano, arquitetura e natureza. Com tal intuito, este trabalho estuda o movimento originalmente inglês em torno da garden city e seu o aspecto pitoresco; o movimento norte-americano do city beautiful e a paisagem formal; e, por fim, o movimento moderno em arquitetura e urbanismo e uma certa espontaneidade para com a natureza.
O pitoresco planejado
A paisagem almejada pelo movimento garden city está registrada em ‘Town planning and modern architecture at the Hampstead Garden Suburb’: Nesta publicação, o arquiteto inglês Raymond Unwin apresenta o novo bairro londrino constituído por chalés em amplos jardins, cercas vivas baixas e bosques de ambiência pitoresca (1). Constable está enterrado em Hampstead Garden Suburb e o aspecto geral da composição deste bairro jardim projetado por Unwin e seu sócio Richard Barry Parker não desagradaria o pintor de paisagens românticas.
O bairro jardim diferia da noção howardiana de cidade jardim, mas eles coincidiam na aparência menos urbanae mais bucólica. A proposta original da cidade jardim havia sido forjada com uma certa nostalgia pastoral, uma ligação afetiva com o campo idílico, associada a tradições arquitetônicas do passado inglês (2). Este sentimento não só contribuiu para a substituição da realidade urbana malsã pela ideia de vilarejo aconchegante, jardins cultivados e vidas mais saudáveis, como também se refletiu na remodelação da cidade em bases campestres, com a introdução de árvores, espaços livres, parques e estilos vernaculares. Contra o degradado ambiente urbano pós-revolução industrial, natureza e arquitetura Arts & Crafts seriam o remédio eficaz.
Ebenezer Howard, idealizador da cidade jardim, acreditava que a cidade era “o símbolo da sociedade [...], da ciência, da arte, da cultura, e da religião” e o campo era “o símbolo do amor e do zelo de Deus pelo homem. Tudo o que somos e o que temos vem de lá. Nossos corpos são formados dele: a ele retornarão. Somos alimentados por ele, vestidos por ele e por ele somos aquecidos e abrigados. Em seu seio repousamos. Sua beleza é a inspiração da arte, da música e da poesia. Suas forças empurram todas as engrenagens da indústria. O campo é a fonte de toda a saúde, de toda a riqueza, de todo o conhecimento” (3).
Em Letchwoth Garden City – a primeira cidade jardim inglesa, o traçado informal das ruas, as edificações recuadas, os jardins fronteiriços e os passeios gramados, com arbustos e árvores, assim como o sistema de ruas secundárias de acesso em cul-de-sac, acentuam a ideia de convívio com a natureza, propiciando ambiente agradável e acolhedor. A continuidade do espaço aberto verde se estende aos espaços públicos e parques da cidade, assim como ao seu cinturão agrícola (4). Por certo, não só há uma forte analogia mas também uma ligação histórica direta entre a escola inglesa de paisagismo e o urbanismo de traçado irregular, que acabou influenciado por ela (5).
O paisagismo e o plantio de árvores nas vias urbanas são elementos essenciais na imagem da cidade jardim inglesa (6) e o movimento cidade jardim popularizou esta estética campestre. As ruas sinuosas e os cul-de-sacs densamente arborizados desenhados por Unwin e Parker em Letchworth Garden City ou em Hampstead Garden Suburb, com o seu aspecto idílico, salutar, e sua aparência pitoresca, tornaram-se referência global, exemplo para centenas de subúrbios do tipo garden city e para empreendimentos que comungavam desta necessidade de ‘participar do campo’, mesmo em lugares que nem por força da imaginação poderiam ser tomados como ‘campo’ (7).
Em retrospectiva, urbanizações como Mount Royal, o bairro jardim projetado em Montreal em 1912 (8), os empreendimentos da Cia. City em São Paulo, em especial o Jardim América, bairro projetado pela dupla Unwin-Parker em 1917, e Radburn, a proposta norte-americana de 1929 para uma comunidade do tipo cidade jardim na era do automóvel (9) elaborada por Clarence Perry e Henry Wright, pontuaram o continente americano nas primeiras décadas do século 20 com conformações urbanas de ascendência inglesa e localmente adaptadas. Para ilustrar o projeto do Jardim América, Parker desenhou imagens sedutoras de avenidas ladeadas por jacarandás, criando uma vegetação bucólica, tingida de lilás, através da qual mal se percebiam as edificações – o bairro jardim exemplar, de alto status e baixa densidade (10). Mais tarde, a revisão do projeto de Goiânia, levada a cabo pelo engenheiro Armando de Godoy em 1936, assim como o projeto de Maringá - Paraná, elaborado pelo também engenheiro Jorge de Macedo Vieira em 1945-1947, criaram zonas residenciais cujo traçado urbano conjugado com baixa densidade e densa arborização fizeram ressoar as experiências anteriores do ideário garden city.
Entre elas, são notáveis as recomendações de Unwin expostas no seu manual de urbanismo (11). Neste texto o urbanista inglês advogava pela utilização conjunta da regularidade natural do traçado ordenado com a igualmente natural irregularidade do sítio, uma combinação que favoreceria a singularidade de cada traçado. Ele reconhecia, por um lado, a beleza e a utilidade de ruas retas, apesar de tenderem ao formalismo, à rigidez e à monotonia, mas, por outro, enfatizava a facilidade de adaptação ao sítio e o fator surpresa no caso das ruas curvas, justificadas formalmente como resposta às condições naturalmente irregulares do terreno (12).
Em todo caso, a arborização deveria constituir a “decoração natural” de vias e praças, acrescentando “variedade e encanto” à rua (13). E, para que houvesse unidade no efeito da arborização, longos trechos deveriam ser plantados com a mesma espécie. Pois “se conferirmos uma certa individualidade a nossas ruas, talvez descubramos que as pessoas alteram o seu trajeto do e para o trabalho, tomando a rua das amendoeiras no começo da primavera e, mais tarde, a rua das ameixeiras, a das macieiras ou a dos pilriteiros; e ainda mais tarde as ruas plantadas com acácia ou catalpa, ou com árvores cuja folhagem é a sua exuberância, como o plátano. No outono preferirão aquelas ruas plantadas com árvores mais notáveis pela coloração dos seus frutos e folhas mortas – a sorveira, o pilriteiro, a faia, e tantas outras” (14).
Esta passagem não esconde que a paisagem urbanaera imaginada comouma sequência de imagens (street pictures) adequadamente compostas para cada terreno e cada lugar. Unwin elogiava a harmonia lograda pelo uso inteligente dos materiais de construção comuns e pela organicidade no traçado de ruas e quadras e na implantação das edificações. Ruelas medievais eram agradáveis precisamente pelo efeito de unidade e harmonia entre as partes (15).
Nesse sentido, o desenho urbano, em exercício consciente, adota uma disposição distinta da ordem geométrica. Recusando a grelha especulativa (também recusada pelo Movimento Moderno) e o seu padrão simplificador, o traçado orgânico, em consonância com o sítio, imprime uma relação informal e variável entre as edificações e os espaços livres das tradicionais vias, quadras, lotes e praças. E a arborização viária e os jardins, tal como vislumbrados por Unwin, intensificam o caráter bucólico da imagem urbana.
A natureza disciplinada
Naquelas cidades em que se notam ressonâncias do urbanismo em ‘grande estilo’, a o paisagismo abandona a alusão pitoresca e assume uma estrutura arquitetônica na conformação urbana. Isso quer dizer que o projeto da paisagem está fortemente associado desenho urbano, mas de modo radicalmente distinto daquele entrevisto na cidade jardim pitoresca (16). Imodesto, o urbanismo do ‘grande estilo’ é grandiloquente e pomposo e o verde é arbitrariamente enquadrado de modo a compor com as edificações uma paisagem urbana monumental, marcada por eixos e perspectivas grandiosas. Vista, formalidade e noção clássica de conjunto são logradas com geometria marcante, teatralidade na articulação entre arquitetura e espaço público e o artifício da vegetação ordenada. Com efeito, árvores aparecem militarmente alinhadas ao longo de bulevares solenes que convergem para pontos de destaque no traçado urbano.
No começo do século 20, o Novo Mundo olhava para a Europa em busca de exemplos de como se refazer as combalidas cidades do século 19. E o que atraía o olhar externo era a tradição europeia do urbanismo em ‘grande estilo’, aquela que enfatizava longas vias retas culminando em vistas espetaculares, praças formais e parques ricamente elaborados com fontes, espelhos d’água e esculturas, mais a ordem geométrica e a habilidade de relacionar todos estes elementos em uma unidade coerente. Os precedentes clássicos incluíam o traçado da Roma do século 16, a tradição barroca francesa do século 17 exemplificada em Versalhes e, sobretudo, as transformações modernizadoras de Paris no século 19. Esta retomada do planejamento da cidade em grand manner, referenciada no urbanismo tradicional europeu, ficou mais conhecida nos Estados Unidos como movimento city beautiful (17).
A reverência do planejamento urbano norte-americano à cultura do Velho Continente ficou mais evidente com a Feira Mundial de Chicago, de 1893. Os principais edifícios da exposição eram imensas e brancas composições beaux arts. Mas, mais que os prédios em si, chamava a atenção a longa cour d’honneur – um centro cívico grandioso, um arranjo monumental de edificações desenhado para sensibilizar pela beleza, pela grandeza, pela ordem e pela harmonia. Ali ficava claro que um novo palácio municipal é bom, porém mais que um é melhor. E com tais virtudes do urbanismo à mostra, o layout do parque de exposição rapidamente se transformou em moderna referência projetual, particularmente no traçado de centros cívicos, campi universitários e outros recintos de exposições (18). Ao enfatizar a beleza urbana – a beleza urbana clássica – o city beautiful tratou o verde urbano primordialmente do ponto de vista estético e, submetidas ele, as questões sanitárias e ambientais.
Para o city beautiful, o centro cívico era a peça mais importante do conjunto artístico urbano, um êxito arquitetônico mais surpreendente do que um mero edifício isolado. De fato, suas características mais marcantes residiam menos no objeto arquitetônico em si do que no modo como este objeto se relacionava com o entorno. Pois o agrupamento de edifícios públicos ao redor de um parque, praça ou interseção de vias radiais proporcionava os deleites visuais de perspectivas pomposas e de espaços livres respaldados por fachadas imponentes (19).
Foi nesse sentido que o civic design – contrapartida inglesa ao city beautiful – foi entendido como a arte da arquitetura aplicada à construção da cidade (20), ou a continuação da arquitetura em uma dimensão maior (21). O civic design era, portanto, uma extensão da esfera de influência do arquiteto, tal como aparece na obra de Hegemann e Peets, uma espécie de manual da arte cívica para arquitetos (22) Com efeito, alcançava-se a beleza urbana com um urbanismo que valorizava a arte, a arquitetura e seus princípios, e aplicava o olhar do arquiteto em vários contextos espaciais (23).
De forte apelo simbólico e, quase sempre, com significativas conotações políticas, conformações urbanas como o plano de Chicago, o mall de Washington e a Nova Deli imperial ilustram estas abordagens. A respeito de Washington, o planejador Nelson Lewis reconheceu em 1916 que a capital dos Estados Unidos era uma das poucas cidades americanas que havia prestado a merecida atenção à questão da arborização urbana, com um esquema de plantio desenvolvido para cada rua, o que contribuiu para fazer de Washington a bela cidade que ela é (24).
Até mesmo a área central de Letchworth foi redesenhada em 1914 para apresentar um aspecto mais formal (no conjunto arquitetônico e na vegetação adjacente) e este redesenho seguia o pensamento do próprio Unwin que enfatizava “a importância da formalidade e a ordem no desenho” de modo a “nos lembrar do papel tão natural e importante que a formalidade e a simetria desempenham na agrupação arquitetônica, e aprender e apreciar, a partir do estudo atento do planejamento clássico e renascentista, a importância de se manter diretrizes de desenho amplas, simples e ordenadas, coisa que nos parece faltar em muitos dos planos alemães, nos quais o projetista parece ter esquecido dos amplos recursos de sua arte por conta do indevido enfoque em um aspecto pitoresco algo forçado” (25).
Também o plano de Alfred Agache para a cidade do Rio de Janeiro e o Plano de Avenidas para São Paulo, de Francisco Prestes Maia, ambos divulgados em 1930, incorporam estas ideias (26). Embora o verde não receba maior destaque nas ilustrações que acompanham estas duas propostas de grande escala, a arborização viária e a natureza arquitetonicamente disciplinada têm presença forte, sempre reforçando os efeitos do desenho urbano.
Isso também pode ser notado no projeto para o centro cívico de Goiânia. De modo geral, o trabalho de Attilio Corrêa Lima faz ressoar características formais da garden city mas, mais especificamente, não deixa de mostrar na área central a conformação tipicamente city beautiful e a arborização condizente com ela (27). De acordo com Lima, “guardando as devidas proporções, o efeito monumental procurado [no traçado de Goiânia] é o do princípio clássico adotado em Versalhes, Karlsruhe e Washington” (28); e assim Lima chegou a determinar certas espécies a serem plantadas de modo a ressaltar a linearidade da via pela vegetação (29).
Na conformação do centro cívico das cidades de Maringá e de Cianorte, também no Paraná, ambos do engenheiro Jorge de Macedo Vieira e elaborados em 1945 e 1953, também pode-se notar princípios formais semelhantes (30). A arborização urbana que veio a ser plantada na área central de Maringá respondeu à estética proposta pelo projeto original: linhas de palmeiras e tamareiras destacam os principais eixos viários e lhes atribuem monumentalidade, enquanto ruas curvas em bairros residenciais recebem arborização densa e menos formal e, portanto, mais pitoresca; espécies distintas garantem identidade às avenidas centrais; e floradas consecutivas embelezam a paisagem urbana. A tradição do urbanismo monumental e a ordem cívica almejada pelos planejadores do city beautiful está plantada nestas alamedas e a dimensão estética da arborização viária só faz contribuir para o caráter formal do centro cívico.
A extensão verde
Oficialmente, os Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna (CIAMs) trataram de se distinguir do urbanismo tradicional e defenderam o urbanismo moderno comoantítese a tudo que existiu previamente. O discurso do CIAM deixava claro: estavam excluídos os métodos beaux-arts e garden city, assimcomo qualquer tipo de formalismo explícito. Todas as formulações do urbanismo tradicional não atendiam às necessidades modernas; e assim Letchworth Garden City, por exemplo, foi em certa medida menosprezada como uma “reação contra cortiços, planejada em termos de vila romântica” (31). E Le Corbusier chamou cidades jardins e cidades satélites de soluções falsas ainda que sedutoras (32).
Visto de uma perspectiva histórica, no entanto, há vários pontos de tangência entre eles – em particular com o movimento cidade jardim, já consolidado e difundido mundialmente quando o CIAM nasceu. Entre estes pontos estão a reforma da terra (com o solo urbano submetido ao interesse coletivo) defendida por Howard; a ‘casa decente’ com um mínimo de iluminação, ventilação e dimensões adequadas, tal como as normas da cidade jardim exigiam; o zoneamento, já indicado nos diagramas de Howard; a visão regional de planejamento e a noção de se projetar para uma comunidade de residentes (33).
Mais especificamente, Le Corbusier se apossou do termo usado por Howard e também evocou a imagem de cidades jardins – verdant city (34); contudo o sentido que deu a ele é bastante diferente (35). No livro ‘Urbanismo’, de 1925, Corbusier apresenta uma vista do parque Monceau, de traçado à l’anglaise, e a partir dela vislumbra que “de agora em diante” e na “cidade de amanhã” os arranha-céus de Nova York estariam em meio à natureza (36). Grandes blocos de habitação seriam sempre dispostos atrás de uma cortina de árvores (37). Mas Le Corbusier (diferentemente de um Frank Lloyd Wright, por exemplo) via a natureza à distância, subjugada pela arquitetura. Em ‘A casa do homem’, ele esboça o Pão-de-Açúcar, o mar, palmeira e bananeira ao redor e, por fim, emoldura a natureza com uma face transparente da construção cúbica: do interior se assiste a cena natural – “o pacto com a natureza foi selado” (38).
E é com esta noção que se deve escutá-lo dizer que “por ora, deixando de lado os fatores de higiene, o encontro dos elementos geométricos das construções com os elementos pitorescos das vegetações constitui uma conjugação necessária e suficiente à paisagem urbana. De fato – obtido isso – essa riqueza dos elementos plásticos, prismas nítidos dos edifícios, volumes redondos das folhagens, linhas sinuosas das ramagens, que resta fazer senão desenvolver tais vantagens?” (39).
E, desse modo, a concepção da cidade funcional requeria ‘superfícies verdes’, de modo a implantar edificações isoladas, de alta densidade, em amplas áreas de vegetação espontânea. A elas a Carta de Atenas se refere de modo genérico e abstrato. Este documento resultou do congresso realizado em 1933 sob o tema da cidade funcional – a mais significativa abordagem teórica dos CIAMs (40). O aspecto sanitário é a chave de leitura deste texto que advoga mudança na textura do tecido urbano, de modo que “as aglomerações tenderão a tornar-se cidades verdes” e “ contrariamente ao que ocorre nas cidades-jardins, as superfícies verdes não serão compartimentadas em pequenos elementos de uso privado, mas consagradas ao desenvolvimento das diversas atividades comuns que formam o prolongamento da moradia” (41). Neste caso, as superfícies verdes deveriam acolher jardins de infância, escolas, centros juvenis e todas as construções ligadas à habitação.
A relação entre figura e fundo existente na cidade tradicional foi invertida na cidade funcional modernista; passou-se do contínuo sólido para o vazio contínuo (42). Na cidade tradicional, a figura associava-se aos espaços vazios (ruas e praças) e o fundo aos sólidos (aglomerado edificado). Na cidade funcional, materializada por edificações implantadas como objetos isolados e autônomos em meio a um parque contínuo, a figura passa a estar associada ao espaço privado dos edifícios e o fundo, ao espaço público do parque. Ao estudar Brasília, Milton Braga lembra que “na cidade moderna, ou cidade-parque, foi desfeita a tradicional associação espacial e interação de usos entre as ruas – a face visível das infraestruturas – e os edifícios. O espaço público, bem como o próprio espaço urbano, não seria mais organizado por suas redes infraestruturais, mas, ao contrário, seus edifícios é que seriam a própria estrutura urbana disposta sobre um manto verde contínuo e sem forma legível: os espaços públicos” (43).
Desse modo o urbanista do movimento moderno abandonou a rua-corredor, e as vias urbanas passaram a cruzar imensidões verdes quase indistintas. Isso é o que se pode perceber (igualmente em Chandigarh) e em Brasília, seja nas superquadras, seja nos grandes eixos viários. Gramados e árvores esparsas ou em conjuntos criam vastos campos verdes que envolvem as edificações. O desenho criterioso da arquitetura contrasta com a naturalidade da vegetação que lhe faz fundo. E com isso, afora os jardins palacianos de Burle Marx, nos quais o marriage de contour do qual falava Corbusier risca composições inusitadas, o verde se manifesta casualmente (e, portanto, distinto de qualquer iniciativa de cunho pitoresco), sem muitos retoques ou intenções plásticas enfáticas.
Ainda que admitida a filiação intelectual francesa do eixo monumental, a vegetação uniforme e disciplinada presente no Grande Urbanismo não teve lugar em Brasília. Desse modo, uma composição mais formal no tratamento da arborização urbananão se manifestou na cidade funcional: ela revelaria uma inquietação inadmissível com uma questão menor comoo ornamento e, ainda assim caso existisse, por certo resvalaria em soluções do tipo city beautiful, umavolta ao passado igualmente mal vista.
De fato, Lucio Costa relembra os gramados ingleses, os lawns da sua infância, e afirma que dali provem o verde de Brasília. E, neste caso, Costa parece evocar a informalidade natural dos jardins ingleses. As superquadras foram pensadas de modo a serem “emolduradas por uma larga cinta densamente arborizada, árvores de porte, prevalecendo em cada quadra determinada espécie vegetal, com chão gramado e uma cortina suplementar intermitente de arbustos e folhagens, a fim de resguardar melhor, qualquer que seja a posição do observador, o conteúdo das quadras, visto sempre num segundo plano e como que amortecido na paisagem” (44).
Conclusões
Nestes distintos enfoques para a arborização urbana, as questões ambientais e sanitárias desempenharam continuamente um papel fundamental. A questão estética, porém, mereceu tratamento variado, oscilando conforme a composição do tecido urbano e a noção de beleza aí implícita. Com isso, pode-se perceber uma sensível variação no foco: do ornamento da forma urbana para o contexto funcional mais abrangente. Pode-se perceber também uma alteração de escala: do pitoresco à conformação monumental e à extensão menos tensa e mais ampla. Embora histórica e programaticamente marcados, os enfoques pitoresco e formal acabaram menos excludentes do que originalmente pareciam, em abordagens mais híbridas e menos ortodoxas. O movimento moderno, ao rechaçar o urbanismo tradicional, se mostrou menos aberto a justaposições, embora tenha se apropriado e adaptado parte da imagem e do slogan da cidade jardim.
Um enfoque mais recente tem introduzido a dimensão ecológica na forma urbana, aparentemente sem um tratamento estético específico. E esta pode ser mais uma oportunidade para observarmos as cidades que admiramos.
notas
1
UNWIN, Raymond. Town planning and modern architecture at the Hampstead Garden Suburb. Londres, T. Fisher Unwin, 1909.
2
AALEN, Frederick H. A. English origins. In WARD, S. V. (org.) The garden city: past, present and future. Oxfordshire, Taylor & Francis, 1992, p. 36-37.
3
HOWARD, Ebenezer. Cidades-jardins de amanhã.São Paulo, Hucitec, 2002, p. 110.
4
OTTONI, Dacio A. B. Cidade-jardim: formação e percurso de uma ideia. In HOWARD, E. Cidades-jardins de amanhã.São Paulo, Hucitec, 2002, p. 50.
5
UNWIN, Raymond. Op. cit., p. 126.
6
MEACHAM, Standish. Regaining paradise. Englishness and the early garden city movement. New Haven, Yale University Press, 1998, p. 182.
7
MILLER, Mervyn. English garden cities.Swindon, English Heritage, 2010, p. 22.
8
MCCANN, Larry D. Planning and building the corporate suburb of Mount Royal, 1910-1925, Planning Perspectives, v. 11, n. 1996, p. 259-301.
9
MILLER, Mervyn. Garden cities and suburbs: at home and abroad. Journal of Planning History, v. 1, 2002, p. 18.
10
MILLER, Mervyn. Barry Parker: before and after Jardim America. 15ª Conferência da International Planning History Society. São Paulo, 2012. Disponível em <www.fau.usp.br/iphs/proceedings.html>.
11
Cf. UNWIN, Raymond. Op. cit.
12
Idem, p. 259-260.
13
Idem, p. 270.
14
Idem, p. 278.
15
MEACHAM, Standish. Op. cit., p. 89-90.
16
KOSTOF, Spiro. The city shaped. Urban patterns and meanings through history. Nova York, Bulfinch, 1993, p. 226.
17
REGO, Renato Leão. Ideias viajantes: o centro cívico e a cidade como obra de arte – do city beautiful ao coração de Maringá. In FREITAS, José Francisco Bernardino; MENDONÇA, Eneida Maria Souza (orgs.) A construção da cidade e do urbanismo: ideias têm lugar? Vitória, EDUFES, 2012, p. 162; STELTER, Gilbert A. Rethinking the significance of the city beautiful movement. In FREESTONE, R. (ed.), Urban Planning in a changing world: the twentieth century experience. Londres, E & FN Spon, 2000, p. 99.
18
REGO, Renato Leão. Op. cit., p. 162; WILSON, William H. The city beautiful movement. Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1994, p. 57; MORLEY, Ian. Revelations, predicaments & civic design: the Americanization of the British urban environment, c. 1900-14, Cercles, v. 19, 2009, p. 125.
19
REGO, Renato Leão. Op. cit., p. 163-164.
20
ADAMS, Thomas. Recent advances in town planning. Londres, J & A Churchill, 1932, p. 2.
21
HOLFORD, William. Civic design: an enquiry into the design and nature of town planning. Londres, H. K. Lewis, 1949, p. 12.
22
MORLEY, Ian. British provincial civic design and the building of late-Victorian and Edwardian cities, 1880-1914.Lewiston, The Edwin Mellen Press, 2008, p. 11.
23
Idem, ibidem, p. 56 e 61.
24
Lewis, Nelson P. The planning of the modern city. 2 edição. Nova York, John Wiley & Sons, 1922, p. 243.
25
UNWIN, Raymond. La practica del urbanismo. Una introducción al arte de proyectar ciudades y barrios. Introdução à 2ª edição. Barcelona, Gustavo Gili, 1984, p. 8.
26
AGACHE, Alfred H. D. Cidade do Rio de Janeiro, extensão, remodelação, embelezamento. Paris, Foyer Brésilien, 1930; PINHEIRO, Eloísa Petti. Europa, França e Bahia. Difusão e adaptação de modelos urbanos. 2 edição. Salvador, EDUFBA, 2011, p. 168-169; REZENDE, Vera. Planejamento urbano e ideologia. Quatro planos para a cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1982, p. 41; TOLEDO, Benedito Lima de. Prestes Maia e as origens do urbanismo em São Paulo.São Paulo, Empresa das Artes, 1996, p. 270.
27
PIRES, Jacira Rosa. Goiânia – cidade pré-moderna do cerrado 1922-1938. Goiânia, PUC, 2009.
28
Idem, ibidem, p. 216.
29
Idem, ibidem, p. 230.
30
REGO, Renato Leão. Op. cit., p. 230.
31
MUMFORD, Eric. The CIAM discourse on urbanismo, 1928-1960.Cambridge,Mass., The MIT Press, 2000, p. 58 e 54.
32
LE CORBUSIER. The home of man. In LE CORBUSIER; PIERREFEU, François de. The home of man. Londres, The Architectural Press, 1958, p. 52.
33
Cf. DOMHARDT, Kostanze Sylvia. The garden city idea in the CIAM discourse on urbanismo: a path to comprehensive planning. Planning Perspectives, v. 27, n. 2, 2012, p. 173-197.
34
LE CORBUSIER. Op. cit., p. 52.
35
Cf. LE CORBUSIER. Urbanismo. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
36
Idem, ibidem, p. 190 e 73.
37
LE CORBUSIER. The home of man. In LE CORBUSIER; PIERREFEU, François de. Op. cit., p. 91.
38
Idem, ibidem, p. 87.
39
LE CORBUSIER. Urbanismo (op. cit.), p. 218-222.
40
MUMFORD, Eric. Op. cit., p. 59.
41
LE CORBUSIER. A Carta de Atenas. São Paulo, Hucitec, 1993, item 35.
42
ROWE, Colin; KOETTER, Fred. Collage city. 8ª impressão.Cambridge,Mass., The MIT Press, 1995, p. 56.
43
BRAGA, Milton. O concurso de Brasília.São Paulo, Cosac Naify, 2010, p. 202.
44
COSTA, Lucio. “Ingredientes” da concepção urbanística de Brasília. In COSTA, Lucio. Registro de uma vivência.São Paulo, Empresa as Artes, 1995, p. 282; COSTA, Lucio. Memória descritiva doplano piloto, 1957. In COSTA, Lucio. Op. cit., p. 292.
sobre o autor
Renato Leão Rego é professor titular do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá – UEM, bolsista produtividade do CNPq.