Diversos caminhos podem ser trilhados para o entendimento do que seria um Trabalho Final de Graduação (TFG) no âmbito de um curso de Arquitetura e Urbanismo. Para efeito de reflexão, enumero dois: o primeiro é aquele que coloca o projeto final como uma continuidade dos ateliers, consubstanciando um percurso vertical escalar; o segundo, é em função da formação já consolidada, pois no fim do quarto ano os alunos já completaram seus créditos obrigatórios, ou seja, é aquele que coloca o projeto final como a primeira resposta profissional do discente a uma problemática. Vale explicitar, que no caso brasileiro, as universidades formam o aluno e o habilita profissionalmente em Arquitetura e Urbanismo, diferente de outros países, onde existe um “Exame de Ordem”.
Para elucidar a escolha do segundo percurso, o qual remonta uma experiência pessoal como aluno do trabalho coletivo de finalização de curso, conduzido na Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas no ano de 1991 (1), e reproduzida sob minha coordenação no âmbito do TFG do curso da Unesp, campus de Bauru, costumo utilizar algumas indagações a partir do filme Inception, do cineasta Christopher Nolan, traduzido para o português como Origens. O filão comparativo com o mundo arcaico e clássico, que aparece na figura do labirinto e da estudante de arquitetura Ariadne, faz emergir imediatamente as questões relativas à leitura, ao projeto e ao papel do arquiteto e urbanista no projeto da cidade contemporânea.
Perder-se na desordem ou aceitá-la passivamente, procurar na confusão um sentido ou uma estrutura submersa em grau de orientar o projeto, eis o papel assumido por Ariadne, e talvez seja esse o mote para pensarmos o papel do trabalho final de graduação dentro de um quadro mais complexo dos cursos de Arquitetura e Urbanismo. A cidade contemporânea é o resultado de tempos sobrepostos e também, de espaços descontínuos (como retrata muito bem o filme), que entrecruzados com grande complexidade dão vitalidade à metáfora do labirinto. O fio de Ariadne reúne cruzamentos explorados e conhecidos, torna-se uma conexão de pontos nodais, como um traçado que visualiza o percurso e igualmente, assegura o retorno. É a partir dele, entendido como uma estratégia de ação e reflexão, que Ariadne pode revelar, isto é, tornar visível o segredo do labirinto e consequentemente, de sua travessia.
A história da cidade contemporânea, que se problematiza pari e passu com a consolidação do projeto urbano como disciplina, restitui-nos uma história que fala de fundamentos e de camadas de tempos – a cidade como palimpsesto, de transformações e de interpretações infinitas, onde as permanências históricas são pontos fundamentais de reflexão e de interlocução para os novos projetos urbanísticos, arquitetônicos e paisagísticos: história de expansões e adensamentos, de exclusões e inclusões, de inovações e de perdas.
Se a cidade pode ser lida como um texto, o projeto do fragmento, nesse âmbito, é capaz de dialogar com profundidade na sua superfície, nos seus diversos ciclos de vida, conformados em estratos verticais sobrepostos, colocando-se como hipótese de transformação em potencial. É a cidade como lugar revestido de sentido e de valor simbólico, político, social e econômico, na qual cada tentativa de comunicação estabelece uma hierarquia temporal e uma espacial, a partir de uma relação escalar. Dessa forma, a história da cidade é escrita no tempo e em um espaço circunscrito, mesmo que estes sejam fluídos e mutantes, em grau de viver, de se regenerar e de absorver novos significados.
Nesse cenário, o arquiteto e urbanista é um profissional capaz de ler os tempos da cidade, e esta, passível de ser lida, é também aquela apta a ser escrita, em virtude dos seus sinais progressivamente inscritos, identificados e reinterpretados. A habilitação de arquiteto e urbanista para o desempenho das atividades profissionais, não deve ser em hipótese alguma, confundida como um mero treinamento. Para além do desenvolvimento de competências técnicas, a formação profissional envolve a produção de um discurso projetual crítico e transformador da prática, que relaciona os aspectos instrumentais e pragmáticos aos especulativos e ideais; associa a inovação de padrões normativos, quer sociais, técnicos ou plásticos; e dialoga com as temporalidades da cidade existente, com o novo.
Assim, ao invés de induzir os alunos a articular conteúdos compartimentados, os quais atingem o ápice em uma sequência vertical e coloca o projeto como “espinha dorsal”, prefere-se trabalhar o conceito da produção como hipótese de transformação, baseada em uma acurada investigação que coloca o desenho como gerador de conhecimento e de inovações, não apenas um instrumento ou representação. Elimina-se assim, a contradição entre teoria e prática, a diferença entre análise e projeto, apostando na formação de profissionais com capacidade para compreender um acontecimento, reconstruí-lo e reinventá-lo a partir de suas próprias estruturas, dando-lhes a possibilidade de formular e confrontar suas próprias hipóteses.
Quatro projetos – quatro travessias
Os quatro projetos que tenho prazer em vos apresentar constituem-se em quatro travessias, das quais fui o interlocutor nas discussões e na construção de um itinerário de investigação a partir do desenho.
No primeiro trabalho intitulado Um olhar mais para o tempo que para o espaço, Ana Beatriz Giovani, após sua experiência de intercâmbio na Europa, coloca como preocupação basilar do projeto, não mais a relação entre Tempo e Espaço, mas a ideia de “projetar o tempo”. No segundo trabalho, de Ana Carolina Semenzato Pinto, denominado Intervenção na zona periférica de São José do Rio Preto: construindo uma identidade, emerge como discussão uma nova relação entre as cidades e suas articulações urbano-territoriais e entre centro e zona periférica, a partir da implantação de um equipamento de impacto regional – um shopping center.
Eixo Sé – Arouche é o título do trabalho de Júlia Dourado, aluna que também passou pela experiência de intercâmbio durante um ano na cidade de Évora, em Portugal, tombada pela Unesco como Patrimônio Mundial. Já o quarto trabalho, intitulado Intervenção urbana no centro de São Paulo: um percurso e situação urbana, de Sofia Natsuko, elaborado a partir de uma acurada vivência da cidade de São Paulo e que detecta descontinuidades, descompassos e excesso de superfícies fragmentadas.
O debate sobre a construção de cada itinerário e em toda travessia, requer um distanciamento quase artificial para ajudar no embasamento da hipótese, sem tropeçar-nos em posturas individualizadas.
Travessia 1
A ideia de “projetar o tempo” levou-nos a um diálogo sobre as efemeridades conexas a processos contemporâneos no projeto do espaço público, que pressupunha a necessidade de estratégias operativas e programáticas.
No meu entender, o primeiro diálogo com o aluno que possui um objeto definido e circunscrito deve ser na própria área, a fim de explorar a relação corporal com seu alvo, nas suas relações mais próximas e naquelas mais amplas, isto é, deixar-se absorver pelo espaço na sua dinâmica mais imediata e naquela mais complexa. O debate in loco com Beatriz, na Praça Portugal da cidade de Bauru, objeto central de sua reflexão, levou-nos a uma estratificação escalar da área, na qual facultou o delineamento de um tipo específico de levantamento que levasse em conta a possibilidade de modificações a partir das hipóteses de alterações do tráfego e do entorno, do ponto de vista espacial e programático.
Dessa forma, as variáveis temporais dentro do processo projetual poderiam emergir como principal material para elaboração de um cenário hipotético do espaço, a partir de um novo gabarito programático previsto em uma temporalidade mediana, a começar da consolidação de um perímetro ativo, com um fluxo circular de calçadas que fosse capaz de propor uma nova tipologia para a área, incentivando restaurantes e comércios, que estariam localizados na parte basal dos prédios, a exemplo do edifício tripartido Vila Real, localizado no próprio perímetro. A ligação do tráfego com os dois eixos urbano-territoriais, ou seja, a Avenida Getúlio Vargas e Avenida Comendador José da Silva Marta com a Avenida Rio Branco, dar-se-ia em dois níveis explorando o desnível topográfico já existente.
As duas hipóteses desenvolvidas, seja a programática ou a espacial, visariam estabelecer uma nova relação entre tempo – espaço – lugar, a partir da indagação de duas possíveis declinações do fator tempo: evento e duração, que são dois instrumentos dinâmicos de controle dos territórios contemporâneos. A nova relação volumétrica criaria um fechamento visual na praça a partir da relação entre cheio (de prédios altos) e vazio (da praça-rotatória), reafirmaria o seu centro como espaços para maiores eventos, seguido de uma superfície contínua que, de um lado, se articularia em duas direções: ascendente – rumo à Avenida Getúlio Vargas até a pista de corrida do aeroporto, perseguindo a ideia de “re-enervamento” de calçadas; e descendente – que exploraria por conectividade vegetal a linearidade da Avenida Comendador José da Silva Marta, que seria integrada a um futuro parque de fundo de vale. O programa da quadra esportiva preexistente, em um movimento contrário, pulverizaria o espaço dilatado da praça com eventos menores. A resolução espacial da praça em patamares lineares e em movimento descendente, seguindo a topografia na direção da Avenida Comendador Joaquim da Silva Marta, consubstanciaria uma resolução técnica de drenagem urbana com a finalidade de atenuar, por cascatas, o movimento das águas pluviais.
O tempo como duração, internalizado em um processo projetual, é capaz de postular um movimento aberto, de introjetar as condições mutáveis da cidade e dos eventos que acontecem na área, ele intervém durante o processo da produção da hipótese projetual, principalmente quando confrontado com os dados das transformações de uso do entorno e da sua capacidade de conversão espacial. Nesse sentido, do ponto de vista metodológico, propôs-se o alargamento do horizonte da problemática a partir de consolidados exemplos na própria cidade, em outras do Brasil e do exterior, isto é, intentou-se o estabelecimento de um diálogo com a referência literária e espacial, baseado em linhas de investigações que emergiram durante a construção do próprio cenário.
Dessa maneira, foram explorados dois eixos analíticos: praças distribuidoras de fluxos, resultado de um desenho rodoviário; e a noção de eventos em espaços públicos. No primeiro, é importante explorar o repertório do projetista/ investigador, os espaços vivenciados por ele; e no segundo, o entendimento das diversas concepções de tempo no espaço provenientes de soluções projetuais, contemporâneas ou não. Com isso, levar o arquiteto a entender, por exemplo, que os eventos podem ser ferramentas de legitimação do projeto urbano a partir da instrumentalização dos espaços e das ocorrências temporárias, como também, eles permitem a expressão do espaço temporal de múltiplos atores, são ferramentas de gestão territorial, demarcação diferenciada de abordagens espaciais e temporárias. Os eventos também funcionam como controle dos tempos urbanos, como forma de revelar a história do lugar e da cidade. O domínio do tempo pode ser justificado como ferramenta de controle do espaço; e o evento, como elemento de concretização da visão da cidade.
Nesse sentido, “projetar o tempo” para Beatriz, aconteceu como possibilidade de sondar novos horizontes hipotéticos e criativos de uma adequada transformação, plasmando diversos conteúdos que abrem as portas para um projeto futuro para a cidade de Bauru.
Travessia 2
Eixo urbano-territorial e a construção de uma “nova identidade” na cidade de São José do Rio Preto foi o percurso projetual trilhado por Ana Carolina.
O projeto passou por dois momentos temporalmente distintos: o primeiro, que compõe sua parte inicial, compreendeu a busca de referências projetuais a partir de três categorias: tema, escala e programa; e o segundo, foi o enfrentamento dimensional da aluna com a área a partir de uma prancha impressa na escala 1:200.
Os projetos selecionados pela Ana Carolina na primeira fase passaram por um processo analítico, a começar pela construção de lâminas gráficas que puderam embasar e justificar sua escolha em uma das categorias supracitadas. Assim, a aluna elencou uma série de projetos em que o Tema emergia como elemento principal; da mesma forma, outros em que a Escala coloca-se como centro da concepção projetual; e por fim, o Programa assumindo a preponderância na articulação do projeto com a cidade.
A exigência de serem projetos experienciados in loco, que em certa medida substitui a visita à área, foi embasada pela vivência da própria aluna com outras paisagens e também, da sua participação no curso internacional de extensão universitária: A dimensão paisagística no projeto da cidade contemporânea: um itinerário de estudo nas cidades de Paris, Veneza e Roma.
O passo seguinte foi o confronto direto com a área na sua extensão, explorando as diversas possibilidades de articulações urbanas e territoriais a partir do centro da cidade até a região mais periférica do município de São José do Rio Preto. O desnível entre o centro – parte mais baixa e a área periférica – mais alta, deu a exata escala para a resolução projetual: o território como material operável na construção da paisagem de um eixo urbano-territorial.
A ideia de paisagem possível na geração de uma identidade assumiu uma dupla acepção derivada de diferentes pressupostos, às vezes quase antitéticos: a primeira refere-se à concepção estético-perceptiva, ligada à compreensão visível da paisagem histórica e às sensações que essa provoca na consideração de formas perceptíveis em ângulos dantes invisíveis; a segunda deriva-se das inferências da geografia física, da conformação da avenida e na resolução técnica relativa, tanto à mobilidade como a drenagem urbana. O projeto agencia a sobreposição das duas acepções a partir da criação de um perímetro, dentro do qual, vários eventos são disseminados em diversas escalas, respeitando as relações e demandas do tecido adjacente e da constituição física da área.
A sequência de croquis da aluna, que introduz a segunda parte do seu trabalho, elucida claramente sua concepção projetual, na qual a paisagem como um território é desenvolvida na sua axialidade e absorve múltiplos eventos, que ao serem desenvolvidos em tridimensão, tanto em altura como em depressões côncavas e convexas, explorariam a visão urbana e territorial em uma relação pictórica. Nessa construção, a paisagem é a imagem do território artificializado, com a finalidade de revelar um processo histórico de consolidação urbana do centro para a periferia, em uma unidade orgânica, como um contínuo espaço-temporal.
Esses eventos, ora expressões espontâneas do cotidiano, ora dos esportes, deslocamentos diários, ou mesmo práticas urbanas ligadas à escala regional, às condições climáticas, foram pensados de forma a criar uma sequência temporal e escalar para a ordenação do território. O registro definitivo desses eventos imersos na paisagem é aquele da dimensão temporal narrativa, o qual tornar-se constitutivo para uma nova identidade da cidade, excede o tempo do efêmero e coloca-se na perspectiva da sua reorganização através de um fornecimento adicional de legitimidade à identidade.
Interessante seria imaginar que esses eventos da cidade e região poderiam ser concebidos como múltiplas estruturas, envolvendo diferentes níveis de gestão, demonstrando envolvimento de atores públicos distintos.
Travessia 3
O percurso adotado no Projeto Final de Graduação da aluna Júlia partiu da sua observação atenta ao ordinário, às relações travadas entre os espaços abertos e os construídos, às transformações cotidianas e suas metamorfoses morfológicas, seus usos, como também, à apropriação desses espaços e suas relações em cada camada do tempo.
O olhar cuidadoso na reconstrução dessas camadas, as quais tem um rebaixamento escalar no Eixo Sé – Arouche, evita a queda na clássica (e já anacrônica) evolução urbana, além de explorar as mudanças dos usos nos vários níveis da morfologia do construído, da estrutura viária, dos alargamentos e contrações das calçadas, das mudanças nos lotes e das fachadas, incorporando desde a fase analítica à escala complexa da paisagem urbana.
Essa postura minuciosa, que é em si uma narrativa, explora o fato ordinário, elevando-o às consequências de sua metamorfose. A análise nesse sentido não se distancia da sua mutação, pelo contrário, absorve-a como elemento fundamental da criação do novo cenário. Como então, damos conta da nossa vida comum, da nossa rotina? De que maneira interrogamos nosso cotidiano? De que forma descrevemo-lo?
Todos esses questionamentos levaram-na a imaginar contextos e ritmos do viver cotidiano como o centro da metrópole de São Paulo, em uma descoberta quase antropológica da cidade e seus espaços multiplicados e distendidos, divididos e diversificados. Esse olhar, então, se deposita na cidade como parte constitutiva da identidade narrativa dos seus habitantes, dos itinerários de seus movimentos e deslocamentos. E assim, mira e observa, organiza, interpreta a cidade e seus territórios, para lançar-se na estética poética de um relato que aciona categorias projetuais. Nele, a cidade desponta como um tecido complexo de deslocamentos e percursos da sua população, herdeiros de tempos narrados e espaços construídos pela comunidade urbana ao longo do tempo, ela exprime-se na trama das resistências e das contestações dos grupos às suas transformações.
A partir dos anos de 1980, as administrações e os arquitetos e urbanistas começam a rediscutir os espaços centrais sob a ótica de um re-enervamento, o qual pudesse articular o casco histórico dilacerado pela ação imperativa dos carros, das suas necessidades de fruição e também, com uma ação política de retorno das habitações para os centros das cidades.
O projeto da travessia aqui apresentado, incorpora de forma plena essas diretrizes e propõe um cenário com o mesmo recorte extensivo de uma proposta pretérita da administração. Ao invés de um Plano Estrutural amplo, prefere qualificar a estrutura espacial do percurso a partir da construção de uma superfície contínua, que absorve os materiais urbanos existentes na área. Assim, a calçada, a faixa de segurança, o canteiro central, a guia de escoamento e a própria rua fazem parte de um mesmo plano acessível, que gradualmente constrói uma gramática urbana da dimensão pública àquela coletiva.
O plano e a análise do sítio, nesse cenário, são instrumentos fundamentais para projetar a boa qualidade urbana, porque não produz um quadro de imposições, em negativo, mas trabalha as possibilidades da forma e do espaço como material do projeto de cidade. Essa abordagem projetual atenta à dimensão ambiental do tecido urbano, à qualidade do espaço público, requer uma investigação que garanta a valorização da dimensão estética e da morfológica-funcional.
Esse urbanismo que pretende repercorrer seus objetivos baseando-se na qualidade das transformações do espaço físico e ambiental, radica-se internamente no novo contexto social e econômico, como também, tenta criar um valor agregado que converge em múltiplas estratégias de ações individuais e coletivas, públicas e privadas, a partir de três conceitos: o primeiro põe atenção à cidade e suas partes construídas, que são decompostas e perderam a articulação de outrora, ou seja, entre os espaços públicos e os edificados e entre a própria imagem urbana e o seu limite; o segundo funda-se na tentativa de recompor a cidade mediante uma nova ideia de revitalização ambiental urbana, que se estabelece na correta declinação dos aspectos arquitetônicos e paisagísticos em relação às formas, materiais, equipamentos, percursos, elementos naturais e à copresença de agregações sociais, culturais, recreativas e lugares de memória; e o terceiro instaura-se a partir da qualificação de novas regras para a qualidade ambiental do espaço residencial, perdido ao longo dos tempos.
Tal urbanismo, mais que problematizar e colocar grandes hipóteses, almeja ajudar as administrações locais a governar, quer apontar modos possíveis às cidades na economia contemporânea.
Travessia 4
O trabalho da aluna Sofia Natsue, pela sua experiência cotidiana na metrópole paulista, suscitou um debate teórico-reflexivo sobre a descontinuidade urbana, levando-nos a pensar sobre o sentido e significado do que seria um projeto que pudesse minimizar a excessiva fragmentação dos espaços da cidade, da embriaguez e do excesso de estímulos, da experiência do shock até aquela dos fluxos, das manifestações urbanas teorizadas desde o fim do século 19 até o 21, postuladas por George Simmel (2), Walter Benjamin (3), Siegfried Kracauer (4), Jean Baudrillard (5), Zygmunt Bauman (6) e Paul Virilio (7).
Em outras palavras, o itinerário da Sofia rediscute as formas de investigação do “dinamismo” metropolitano no horizonte contemporâneo. “city collage”, “città generica” ou “junkspace” são alguns conceitos colocados em pauta ao pensar a discussão ontológica da sua estrutura, sobretudo, da sua transformação, que atualiza tradicionais teorias e práticas estético-interpretativas à luz de novas formas experimentais e sensoriais, perceptivas e cognitivas, as quais o tecido metropolitano produziu e ainda produz na vida cotidiana individual.
No contexto mais específico da área escolhida para intervenção, repassa-se os conceitos como o de conservação, renovação urbana, qualidade ambiental, patrimônio, das intervenções feitas em nome da regeneração ou da simples adição de objetos arquitetônicos independentes, conduzindo o olhar naquilo que Vittorio Gregotti (8) denomina de spazio tra le cose.
O percurso que a autora nos propõe é aquele do fotógrafo, que em certa medida, foi escolhido como primeira aproximação de seu objeto e que a conduziu para um recorte físico, a partir do qual começou a expor fraturas, descontinuidades na fruição do esquema espacial do tecido da área central da metrópole de São Paulo.
A abordagem adotada é de uma trama ideal, que ao se sobrepor na cidade real, isola alguns elementos urbanos e ao mesmo tempo, promove uma reinserção urbana do Largo do Arouche, do Calçadão, do Terminal da Bandeira e do Parque do Anhangabaú. Ao superar o conceito “insular” dos lugares, revela uma rede orgânica e sinérgica, recuperando a relação entre conservação e inovação no âmbito do projeto.
Nos exemplos escolhidos, perpassa diagonalmente as noções de acessibilidade e de reconexão urbana que orbitam entre duas polaridades e que revelam o percurso projetual da autora: a descontinuidade e recomposição. Este procedimento que põe como objetivo a recolocação conceitual e operativa do tecido urbano, permite avançar em hipóteses que pressupõem a qualificação do espaço para estimular a renovação da escala arquitetônica e a recuperação do centro como lugar possível de ser habitado, em grau de conferir à cidade existente, uma regeneração de natureza social. Assinala-se dessa forma, uma dimensão estratégica para a própria trama urbana, onde é possível realizar projetos em diversas escalas que acionariam diferentes formas de regulação, exprimindo particularidades e iluminando peculiaridades, tanto no entorno imediato como no tecido mais dilatado.
Logo, a chave reflexiva durante o levantamento é na sua natureza projetual imediata, que se baseia em uma eficaz estrutura cognitiva e interpretativa, pois durante o próprio percurso emerge o ato da delineada experimentação, a partir da indagação de novas formas que poderiam gerar originais pressupostos e parâmetros de intervenção na cidade existente. A taxonomia da trama, a fim de operar uma recolocação na paisagem, aparece na forma de “rua sem saída”, “eixo com problema de circulação”, “espaços subutilizados”, “com pouco uso”, na “rua degradada” e na “rua interrompida”.
Através dessa catalogação, torna-se visível uma série de operações projetuais em diversas escalas e com diferentes normativas, das quais a aluna desenvolve três. Enfim, nessa travessia são investigadas as estratégias regenerativas pelas quais se analisa as transformações do existente, que poderiam se concretizar em ações de reuso, renovação e reciclagem, da menor escala àquela mais ampla e, além disso, poderia refundar a relação entre demolição e conservação relativas às preexistências históricas e contemporâneas, que poderiam influir positivamente no assentamento morfológico. E assim, na tentativa de articular os elementos de descontinuidades, poderia recompor a trama a partir da recomposição de memórias.
São justamente os valores duráveis dos espaços, particularmente iluminados na ação projetual individualizada pelos três projetos escolhidos, que se poderia produzir valorização capaz de enraizá-los no tempo histórico da própria cidade e na ideia benjaminiana de metrópole, entendida como arquétipo do presente.
notas
1
Professores orientadores no tema Habitação Social no Trabalho de Graduação Interdisciplinar da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUC-Campinas, ano de 1991: Abilio Guerra, Ricardo Marques e Spencer Pupo Nogueira.
2
SIMMEL, George. A metrópole e a vida mental. In VELHO, O. (org.). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1976, p.11-25.
3
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo. Tradução José Martins Barbosa e Hermerson Alves Batista. Obras escolhidas, volume 3. São Paulo, Brasiliense, 1989.
4
KRACAUER, Siegfried, The mass ornament: Weimar essays. Cambridge, Harvard University Press, 1955.
5
BAUDRILLARD, Jean. Simulacres et simulations. Paris, Galilée, 1981.
6
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2009.
7
VIRILIO, Paul. O espaço crítico. São Paulo, Editora 34, 1993.
8
GREGOTTI, Vittorio. Architettura e postmetropoli. Milão, Einaudi, 2011.
sobre o autor
Adalberto da Silva Retto Júnior é professor de Urbanismo na Unesp – Bauru, responsável pelo Consórcio da Universitè Paris I Panthéon-Sorbonne do Doutorado HERITECHS. Com Pós-Doutorado e Doutorado Sanduíche no Departamento de História da Arquitetura do IUAV di Venezia, e Doutor pela FAU USP.