Na virada dos anos 1980 aos 1990, Silvia Arango, ao levantar a questão sobre qual seria a estrutura essencial da arquitetura latino-americana, destacava apenas dois aspectos como comuns à produção recente do subcontinente: a aproximação às características do contexto urbano e o binômio enraizamento/devaneio. Se este último aspecto ecoava, em sua defesa do “espaço da poesia e do mistério”, tanto as discussões sobre Regionalismo em arquitetura e quanto o Realismo Fantástico na literatura latino-americana; o primeiro era justificado pelo fato de as cidades latino-americanas “terem sido construídas sob os designo do Movimento Moderno” (1).
“É frequente que os projetos se expliquem a partir de análises dos traçados convencionais, da importância social de certos espaços tradicionais (como a rua, a praça, o parque ou a travessa), das características do ambiente físico circundante ou ainda da paisagem urbana de modo geral” (2).
Ao ser publicado nos Cadernos Summarios, o texto ao qual nos referimos (Estructura esencial y estructura contingente), apresentado originalmente no IV SAL, em 1989) era ilustrado pelas elevações urbanas de Rob Krier que compunham seu livro Stadtraum. A escolha de tal ilustração, a princípio, poderia parecer contraditória, visto que o argumento da autora colombiana baseava-se em uma postura claramente latino-americanista. Contudo, a evocação do livro de Rob Krier neste contexto não era nem arbitrária nem gratuita; fazia apelo a uma das principais fontes dos arquitetos latino-americanos na abordagem da relação edifício-cidade e ia de encontro à exposição de Arango no III SAL, na qual destacava a significativa penetração das contribuições de Rossi e dos irmãos Krier no subcontinente (3).
De fato, ainda que a reverberação dos irmãos luxemburgueses não seja observável em revistas brasileiras com a pungência descrita por Arango (4), observa-se que, entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1990, o espaço dedicado a estes em periódicos argentinos e colombianos foi semelhante ao destinado a textos sobre Rossi. Apesar da discrepância na cobertura similar de personagens que possuem uma importância distinta na revisão do Movimento Moderno e na construção do debate sobre a tipo-morfologia, a frequência com que os irmãos Krier constaram nos debates arquitetônicos não é exclusiva ao subcontinente.
Ambos luxemburgueses tiveram uma penetração significativa na cultura arquitetônica europeia entre os meados dos 1970 e início dos anos 1980. Para além do fato de dominarem diferentes línguas – o que facilitou seu trânsito por diferentes países – a grande difusão das ideias dos irmãos Krier explica-se, também, pela habilidade que possuíam em expressá-las em forma de desenho (5) e pelo nível de simplificação das noções e conceitos relativos à tipo-morfologia que se verifica nessas. De um lado, o catálogo de espaços urbanos de Rob Krier, de outro, as lições e receitas, como as definiu Montes, que Léon divulgava em publicações diversas; as ideias de ambos, representadas em forma de desenhos, viajavam sem sofrer as barreiras das traduções e tornavam-se mais passíveis de assimilação que debates teóricos aprofundados.
Neste contexto de difusão das ideias dos irmãos luxemburgueses, deve-se salientar que o livro Stadtraum in theorie und praxis de Rob Krier, publicado originalmente em alemão em 1975, foi traduzido logo no ano seguinte para o espanhol e publicado pela Gustavo Gili em 1976. Esta edição ocorria após apenas cinco anos da primeira tradução de Archittetura dela Città, publicada por aquela mesma casa editorial em 1971. Soma-se a este cenário o fato de que as versões do livro de Rob Krier para o inglês e para o francês antecederam aquelas do livro de Rossi nestes mesmos idiomas (7). A capacidade de Léon Krier de congregar arquitetos no Norte e no Sul da Europa e de motivar eventos e publicações diversas, por outro lado, não deve ser menosprezada. No final dos anos 1970, Léon Krier lecionava em Londres na Architectural Association e no Royal College of Art, era colaborador frequente na École La Cambre, em Bruxelas, e era militante, juntamente com Maurice Culot, da chamada “Resistência antiindustrial”. Dentro deste contexto, Léon Krier organizou a exposição internacional Rational Architecture, em 1975, em Londres e congregou arquitetos europeus de distintas nacionalidades em torno da elaboração de dois manifestos em prol da reconstrução da cidade europeia – a Declaração de Palermo e a Declaração de Bruxelas, ambas redigidas em 1978 –; em suma, suas ideias encontravam bom trânsito no debate arquitetônico da Inglaterra, Bélgica, França, Itália e nos EUA (8).
A associação entre as ideias dos dois irmãos – a despeito das diferenças na forma de compreender a destruição da cidade e na definição do contexto em que sua reconstrução seria possível, visto que para Léon não era possível construir dentro do sistema capitalista (9) – também não foi uma singularidade da América Latina. Além de frequente, esta vinculação foi buscada, por diversas vezes, como forma de retroalimentação. Rob, por exemplo, mencionava as contribuições de Léon Krier em Stadtraum: “Meu irmão, que leciona em Londres, me ajudou a esclarecer estas noções teóricas essenciais” (10).
Ora, ainda que se reconheça frequentemente a penetração que as ideias dos irmãos Krier em países Latino-americanos no contexto da revisão do Movimento Moderno e que esta não seja efetivamente exclusiva ao subcontinente, coloca-se a questão de quais foram meios através dos quais estas encontraram ressonância regional. Como já alertava Chartier “não há compreensão de um escrito que não dependa das formas nas quais ele chega a seu leitor” (11); deve-se, portanto, buscar os vínculos e os percursos por meio dos quais as ideias de Léon e Rob Krier chegaram até os arquitetos latino-americanos. O presente artigo interessa-se, portanto, por questões pertinentes à circulação de ideias, atentando, em específico, ao papel de personagens que, neste contexto, parecem ampliar a possibilidade de diálogo entre estes dois mundos. Pretende-se demonstrar ao longo do texto dois aspectos: o papel que alguns arquitetos chilenos em trânsito na Europa tiveram no estabelecimento de pontes entre a cultura arquitetônica local e o debate europeu sobre a tipo-morfologia entre o final dos anos 1970 e o início dos anos 1980, bem como o fato de que a reverberação das ideias dos Krier na América Latina neste momento foi facilitada pelo fato de que este contato foi majoritariamente mediado pelo ambiente londrino.
Urbans transformations
Ao buscar definir a morfologia como um dos métodos do Desenho Urbano, Vicente del Rio (1992) destacava as contribuições do chileno Rodrigo Perez de Arce publicadas na AD Profile 12, em 1978. Naquele momento, o arquiteto brasileiro reconhecia no chileno uma via alternativa aos Krier que demonstrava a “importância de estudarmos os processos de transmutações de edificações históricas” (12). Ao destacar o papel de Perez de Arce em meio às contribuições sobre a morfologia, Vicente del Rio não estava sozinho: em 1979, o então jovem arquiteto chileno assumia uma posição de destaque na II Bienal do Chile, sendo um dos convidados forâneos, ao lado de Bohigas, Portas, Tarragó e outros, na seção Encuentro (13). Sete anos mais tarde, quando já regressava ao seu país natal, organizou-se uma exposição de seus desenhos de transformações urbanas na Faculdade de Arquitetura da UFRGS (14). Apesar da relativa autonomia intelectual com que seus trabalhos eram recebidos na América Latina, a inserção de Pérez de Arce no ambiente cultural londrino deu-se mediada por seu contato próximo com seu tutor, Léon Krier.
Rodrigo Perez de Arce graduou-se pela Universidad Católica de Chile, em 1972 e ainda recém-formado foi a Londres a fim de complementar sua formação. Foi aluno de Léon Krier durante a pós-graduação de dois anos que realizou na Architectural Association (AA). No ano letivo de 1978/79, começou a lecionar nesta mesma escola, dividindo a disciplina com outro chileno, René Davids, que havia chegado em Londres em 1976 e tinha acabado de completar sua pós-graduação na Royal College of Arts (15), local em que fora, também, aluno de Léon Krier. A disciplina ministrada por Pérez de Arce e Davids buscou dar continuidade ao programa neorracionalista – nomeado “A cidade possível”– e a abordagem didática que caracterizou o atelier que fora coordenado por Krier durante os três anos (16) em que este lecionou na AA (17).
Além do atelier na AA, relação com o mestre luxemburguês permitiu, também, que as investigações em forma de desenho de Rodrigo Pérez de Arce a respeito do que identificava como a terceira forma de crescimento urbano, ou seja, as “transformações aditivas (...) nas quais o núcleo original era transformado por um processo de incremento e sedimentar de adição de novas partes” (18) fossem publicadas na edição da AD Profiles organizada por Léon Krier em 1978, intitulada “Urban Transformations”.
Na introdução que escreveu para esta edição, Krier associava as transformações urbanas ao trabalho docente que desenvolvera junto à AA e às críticas da Resistência Antiindustrial, apontava Rodrigo Perez de Arce como parte da nova geração que buscava uma alternativa para a destruição das cidades e afirmava que seus desenhos analíticos permitiam a formulação de poderosos manifestos (19). Sobre a transformação urbana que o arquiteto chileno propunha para Chandigarh, Krier afirmava que ele “demonstrava que o Capitólio podia tornar-se uma verdadeira cidade”, visto que revelava que este tinha “aproximadamente o tamanho exato de uma cidade pré-industrial ou de um bairro tradicional” (20).
Rational architecture e Santiago Poniente: conexões entre o coletivo CEDLA e Léon Krier
Criado no mesmo ano de realização da primeira bienal chilena de arquitetura, em 1977 – e idealizado em 1975, durante a estadia de Cristián Boza e Humberto Eliash na Inglaterra (21)– o coletivo de arquitetos chilenos nomeado CEDLA foi, juntamente com aquelas mostras bienais, um dos agentes responsáveis pela introdução da revisão do Movimento Moderno no Chile (22). Por intermédio deste coletivo elaboraram-se publicações e projetos, organizaram-se seminários e exposições que, juntos, permitiram as primeiras aproximações – e traduções culturais – à produção teórica de Aldo Rossi, de Léon e Rob Krier, entre outros (23).
A amizade entre Léon Krier e Cristián Boza esteve na origem da constituição do CEDLA e foi fundamental para a legitimação de sua atuação inicial. Segundo, Cristián Boza, o contato com Léon Krier se estabeleceu por meio da Architectural Association, durante o período em que o arquiteto chileno foi assistente do atelier Sue Rogers (24). Logo se tornaram amigos próximos e passaram a frequentar o mesmo círculo de arquitetos, no qual estavam James Stirling, Robin Nicholson, Rodrigo Perez de Arce, e outros (25). Na ocasião da realização da exposição Rational architecture, organizada por Léon Krier na ART-NET, Humberto Eliash ainda não havia chegado a Londres; Boza, no entanto, não somente estava presente, como, também, auxiliou em sua montagem (26). Mesmo após seu retorno ao Chile, a amizade com Krier foi mantida por cartas e reafirmada em curtas viagens posteriores de Boza à Inglaterra (27).
Este contato direto com Léon Krier seria destacado logo nas primeiras aparições públicas do CEDLA. Na primeira edição de sua revista, a ARS, em julho de 1978, publicou-se um artigo que resumia as ideias de Léon Krier. Salientava-se que o material apresentado havia sido selecionado em conjunto por Boza e Krier – o qual era, em sua maior parte, composto por excertos do texto originalmente publicado na revista A+U complementados pelo arquiteto luxemburguês (28). A introdução ao artigo vinha acompanhada de uma fotografia de Cristián Boza ao lado de Léon Krier – sem especificação de data e local – e da seguinte apresentação do arquiteto luxemburguês: “Sua posição é veemente e precisa, nela não cabem equívocos” (29).
A proximidade entre Léon Krier e Boza, testemunhada pela fotografia, e somada à afirmação assertiva da importância e do valor de suas posturas defendidas, cumpria um papel distinto dos compêndios da obra de Rossi (30) e de Gregotti (31) que haviam constituído a primeira publicação do coletivo, o encarte nomeado CEDLA. Naquele primeiro momento, tratava-se de introduzir um debate à cultura arquitetônica chilena. Na nova edição, no entanto, buscava-se afirmar a filiação direta do CEDLA àquele. Neste sentido, ainda no primeiro número da ARS, publicava-se também um trecho de uma carta de Léon Krier a Boza, no qual o luxemburguês agradecia o envio da publicação e dos desenhos do grupo (32). O contato com Léon Krier, portanto, servia para ratificar que o grupo chileno não estava sozinho nas ideias que defendia e que seu trabalho era conhecido por um arquiteto com projeção no continente europeu.
Léon Krier esteve, também, parcialmente envolvido no que foi o evento fundador do CEDLA: a elaboração de uma proposta de intervenção urbana para o bairro Santiago Poniente (1977), apresentada na primeira Bienal de Arquitetura do Chile, que além de sintetizar as ideias defendidas pelo grupo, constituiu seu mito fundador. Segundo Eliash (33), o diálogo com Krier durante o desenvolvimento deste projeto foi fundamental. Ao final do processo, o resultado foi submetido à sua avalição (34).
Esta estratégia de legitimação, no entanto, ocorria nos dois sentidos; para Léon Krier, o grupo chileno representava a repercussão de suas ideias na América Latina. Compreende-se neste contexto que, apesar de o projeto para Santiago Poniente ter sido elaborado após a exposição Rational Architecture em Londres, Krier tenha decidido incluir seus desenhos (35) em no catálogo daquela mostra, publicado em 1978. Nesta publicação, Krier apresentava o projeto do CEDLA entre os exemplos de propostas estruturadas a partir do conceito de building-block, ou seja, do quarteirão como elemento-base da composição urbana, e complementava o memorial do projeto com sua interpretação pessoal, destacando a recuperação de aspectos que caracterizavam-no como exemplo de sua concepção de cidade tradicional.
“Nos últimos 150 anos, o interior das manzanas foi explorado por um sistema de passagens, de galerias, de mews e de pátios públicos, etc. A continuidade das construções permitia uma solução coerente e econômica para as habitações populares, nas quais a principal preocupação era a conformação do espaço público. [...] Este sistema foi abalado pela importação do bungalow norte americano bem como das ideias do CIAM, que se tornaram influentes a partir dos anos 1930” (36).
Diálogos com Fernando Montes e o Inventario de una arquitetura anónima
Para além desta legitimação da atuação inicial do coletivo CEDLA e do projeto que o lançou publicamente, por intermédio de Léon Krier estabeleceu-se, igualmente, o contato com outro arquiteto chileno que permitiria pontos de encontro, em diferentes ocasiões, entre o debate europeu e aquele que se iniciava na América Latina no final dos anos 1970 e princípio dos anos 1980. Trata-se de Fernando Montes que, naquele momento, lecionava na chamada Unité Pedagogique 6, juntamente com Antoine Grumbach e Roland Castro, e estava engajado no debate sobre o “retorno à cidade” na França (37). Neste contexto, Montes foi um dos responsáveis por organizar a retomada da exposição da Bienal de Veneza de 1980 (StradaNovissima) em 1981 em Paris, na capela Salpêtrière, sob o título “La présence de l’histoire. L’après-modernisme” (38).
Sem conhecer Cristián Boza, Montes aproveitou uma visita particular que fazia ao Chile, em 1976, para encontrá-lo, visto que Léon Krier havia recomendado que o fizesse (39). Boza afirma que não esperava por sua visita, no entanto, quando o conheceu “começa[ram] a conversar e não para[ram] de fazê-lo por dois dias” (40). Na ocasião, combinaram que Fernando Montes faria duas conferências no escritório de Boza a fim de introduzir a revisão do Movimento Moderno no Chile (41). Em sua revisão sobre a cultura e a prática profissional no Chile nos anos 1970, Perez Oyarzun destacaria a importância destas conferências de Montes:
"Em 1976, o escritório de Boza, Lührs e Muzard, considerado entre os de vanguarda no meio local, convidou um conjunto de profissionais e acadêmicos para assistir duas conferências do arquiteto chileno residente na França, Fernando Montes. [...] Em suas conferências, Montes propôs apresentar algumas das novas tendências que desde meados dos anos sessenta estavam se desenvolvendo na Europa e nos Estados Unidos. Foi assim que aproximadamente uns cinquenta assistentes puderam se aproximar à obra de Rossi ou dos irmãos Krier na Europa e de Robert Venturi nos EUA" (42).
Segundo Boza, o número de assistentes ultrapassou, em muito, o que se esperava inicialmente e, como resultado, “as pessoas se penduravam nas janelas” (43) de seu escritório. Após este evento, “Montes se transformou em uma espécie de guru para este grupo [de arquitetos que viria a fundar o CEDLA] e passou a vir seguidamente ao Chile” (44). Dentre suas visitas, destaca-se a sua participação na III Bienal de arquitetura do Chile, em 1981, na qual Montes proferiu duas palestras e participou da seção “Encontro” de arquitetos estrangeiros ao lado de Charles Moore e Fernando Alba, entre outros (45).
No ano seguinte, Fernando Montes voltaria à América Latina, porém desta vez à Bogotá, à convite da Universidad de Los Andes e de Revista PROA, a fim de participar do evento “Espacio Público Urbano” ao lado de Aldo Rossi, Oriol Bohigas e Álvaro Siza (46). O evento, realizado em março de 1982, envolvia, além da realização de conferências noturnas, a coordenação de um workshop de projetos para “La Candelaria” (47), núcleo histórico de Bogotá que se encontrava deteriorado neste período. Nesta ocasião, Montes foi apresentado ao público colombiano como “parte da nova elite intelectual da arquitetura profissional” (48) e em sua breve súmula curricular destacavam-se aspectos que o vinculavam ao meio londrino e à escola La Cambre de Bruxelas: “professor convidado no Royal Collegeof Arte em Londres e na Ecole pour la Reconstruction de la Ville Européenne em Bruxelas” (49).
Para além do fato de representar mais um chileno mediando o contato entre o debate europeu e a revisão do Movimento Moderno na América Latina, a figura de Fernando Montes teve particular importância nos primeiros anos do coletivo CEDLA. Este papel exercido por Montes é verificável na análise longitudinal do encarte CEDLA e dos primeiros números da revista ARS. Entre 1977 e 1984, há apenas um único número – o de dezembro de 1978 – em que não foi publicado nenhum texto de sua autoria (50). No terceiro número da ARS, Montes chegou a constar entre os colaboradores permanentes da revista, ao lado de membros do CEDLA.
As citações a Montes eram frequentes e o diálogo que este arquiteto estabeleceu com o grupo o motivou em diferentes empreitadas. Dentre estas, a que obteria maior fortuna crítica seria a elaboração da investigação sobre a arquitetura anônima de Santiago – que, ao fundo, ressonava no Chile as polêmicas geradas na cultura arquitetônica francesa pelos textos em que de Bernard Huet defendia a prática ordinária e denunciava o “mito da criatividade” (51). Segundo Boza, a pesquisa que resultou no livro “Inventario de una arquitectura anónima”, publicado em 1982, teria sido sugerida por Montes:
“Durante uma estadia de Fernando Montes, ele nos disse: o que vocês têm que fazer é demonstrar aos arquitetos chilenos o que estamos transmitindo. [Ao iniciar a investigação] nós mesmos nos surpreendemos, porque nos demos conta que não conhecíamos Santiago da Praça Itália para baixo. [...] Ninguém nos havia recomendado ir à Praça Brasil ou à Praça Yungay, ir ao bairro da Av. Matta. Entender o tecido urbano, a trama urbana, entender as cités, as travessas, a arquitetura eclética, ninguém nos havia ensinado nada disto” (52).
Ao longo de quatro anos, Cristián Boza e Hernán Duval coordenaram um levantamento tipo-morfológico de quarteirões e cités de bairros de Santiago e Providencia constituídos entre 1850 e 1940. O levantamento e a classificação inicial foram feitos informalmente, percorrendo-se a cidade. Em um segundo momento, 400 obras foram fotografadas e desenhadas. Dentre estas, fez-se uma seleção de 133 obras apresentadas no livro e agrupadas em 12 bairros históricos de Santiago e Providencia (53). O prefácio do livro, escrito por Fernando Montes, inseria o inventário realizado pelo CEDLA dentro do debate sobre o mito da criatividade:
Anos depois, havendo completado a formação e conhecido as inacreditáveis destruições e os tristes resultados que trouxeram consigo as teorias urbanas e arquitetônicas modernas, reconhecemos humildemente que a arquitetura é algo muito mais difícil e muito mais simples do que acreditávamos. Muito mais difícil, porque é uma arte acumulativa. Nunca se parte do zero e se chega ao infinito. (...) Muito mais simples, porque a arquitetura, assim como o xadrez, é uma arte de variações, de novas combinações com receitas ancestrais. A criatividade arquitetônica é raramente sinônimo de inovação e de originalidade (54).
Considerações finais
O diálogo entre o CEDLA e Fernando Montes, no entanto, parece ter esmaecido a partir de meados dos anos 1980 (55). Suas contribuições na ARS praticamente desaparecem (56) quando os membros fundadores deste coletivo – Cristián Boza, Pedro Murtinho, Humberto Eliash e Manuel Moreno – passaram a se engajar no debate sobre a identidade latino-americana e na construção dos Seminários de Arquitetura Latino-americana (57). De forma semelhante, as referências aos irmãos Krier e às contribuições forâneas sobre a tipo-morfologia foram reduzindo progressivamente.
Neste novo momento, os contatos com países vizinhos parecem mais importantes que aqueles com a Europa e a construção de bricolagens é mais procurada do que a realização de traduções e compêndios. Se antes tradução cultural tinha sua validade reconhecida pela proximidade com o debate ultramarino, a estratégia que marca as bricolagens é justamente a oposta: parte-se da afirmação da distância, da impossibilidade de transposição ao contexto regional de debates e conceitos gestados em contextos estrangeiros (58). Contudo, as contribuições dos irmãos Krier e do debate sobre a tipo-morfologia mediado pelo ambiente londrino, ainda que negadas, permanecem latentes nos textos destes arquitetos e reverberam na cultura arquitetônica latino-americana dos anos 1980, notadamente, na predileção do bairro como escala de intervenção (59).
notas
NA – Este artigo foi apresentado no III Enanparq e publicado originalmente em seus anais: SOUZA, G. B. . Ecos londrinos via chilenos: Conexões entre Léon Krier, Fernando Montes, Rodrigo Perez de Arce e o Coletivo CEDLA. In: III ENANPARQ – Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo, 2014, São Paulo. Anais do III ENANPARQ – Arquitetura, cidade e projeto: uma construção coletiva. São Paulo/ Campinas: Universidade Presbiteriana Mackenzie/Puc Campinas, 2014.
1
ARANGO, S. Estructura Esencial y Estructura Contingente. In: Summarios. Buenos Aires: Ed. Summa, n.134, mar/abr 1990, p.4-7.
2
Idem
3
ARANGO, Silvia. Siete anotaciones para pensar la arquitectura latinoamericana. In: III Encuentro de Arquitectura Latinoamericana. Buenos Aires: CAPBA D III, 1988. p.68-69.
4
Idem
5
A qualidade do desenho destes arquitetos era frequentemente destacada em textos da época, veja-se a título de exemplo: Waisman e Grumbach.
6
MONTES, Fernando. Depoimento. [20 de dezembro de 2011]. Santiago do Chile: Arquivo digital da gravação (1hora e 28min.). Entrevista concedida a Gisela Barcellos de Souza.
7
O livro “Arquitetura da Cidade”, de 1966, foi publicado pela primeira vez em francês em 1981 e em inglês em 1982, enquanto o “Espaço Urbano” Rob Krier foi publicado em inglês em 1979, simultaneamente pela Rizzoli (EUA) e pela AcademyEditions (Grã Bretanha) e em francês em 1980 pela AAM (Bélgica).
8
SOUZA, Gisela Barcellos. Tessituras híbridasou o duploregresso: encontroslatino-americanos e traduçõesculturais do debate sobre o retorno à cidade. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2013.
9
Idem
10
KRIER, Rob. Urban Space. New York : Rizzoli.1979.
11
CHARTIER, Roger. El mundo como representación. Estudios sobre história cultural. Barcelona: Gedisa, 1992.
12
DEL RIO, V. Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento. São Paulo: Pini, 1990.
13
SOUZA, G. B., op. cit., 2013.
14
OLIVEIRA, Rogério. Depoimento. [30 de março de 2011]. Porto Alegre: Arquivo digital da gravação (1hora e 8min.). Entrevista concedida a Gisela Barcellos de Souza.
15
OYARZÚN K., Armando. Arquitectos chilenos extramuros: Dos Proyectos de René Davids. In: ARS, Santiago de Chile: CEDLA, n.4, ago 1981, p.80-84.
16
Léon KrierfoI professor da Architectural Association entre 1974 e 1977.
17
HIGGOTT, Andrew. Mediating Modernism.Architectural cultures in Britain.Nova York: Routledge. 2007.
18
PEREZ DE ARCE, Rodrigo. UrbanTransformations&TheArchitecture of Additions. In: KRIER, Léon (org.) Urban Transformation. AD Profiles.v.48, n.4, 1978, p. 237-266.
19
KRIER, Léon (org.). Urban Transformation.AD Profiles.v.48, n.4, 1978.
20
Idem
21
ELIASH, H. La arquitectura de Cristián Boza: un eclecticismo apasionado. Santiago, Chile : Ediciones ARQ, 1993.
22
LIERNUR (org) PortalesdelLaberinto. Arquitectura y Ciudad en Chile, 1977-2009. Santiago de Chile: Universidad Andrés Bello, 2009.
23
SOUZA, G. B. op. cit., 2013.
24
BOZA, Cristián. Depoimento. [10 de agosto de 2011]. Santiago do Chile: Arquivo digital da gravação (23min.). Entrevista concedida a Gisela Barcellos de Souza.
25
ELIASH, H. La arquitectura de Cristián Boza : un eclecticismo apasionado. Santiago, Chile : Ediciones ARQ, 1993.
26
BOZA, loc. cit., 2011.
27
Idem
28
BOZA, C.; KRIER, L. LéonKrier. Su pensamiento frente a la ciudad. In: ARS. Santiago de Chile: CEDLA, n.1, julho 1978, p.35.
29
BOZA, C.; KRIER, L., loc. cit., 1978.
30
MURTINHO, Pedro. Conceptos teóricos en Aldo Rossi. In: CEDLA. Santiago: CEDLA, ago. de 1977, p. 8-11.
31
CONTRERAS, Ricardo. Vittorio Gregotti, la arquitectura de sus ideas. In: CEDLA. Santiago: CEDLA, ago. de 1977, p. 11-14.
32
Ver seção Cartas na ARS número 1, julho de 1978.
33
ELIASH, op. cit., 1993.
34
BOZA, loc. cit, 2011.
35
Idem
36
KRIER, Léon (org). RationalArchitecture :The ReconstructionoftheEuropeancity/ArchitectureRationnelle: La Reconstruction de laVilleEuropéenne, Bruxelles, A.A.M, 1978.
37
MONTES, Fernando. Depoimento. [20 de dezembro de 2011]. Santiago do Chile: Arquivo digital da gravação (1hora e 28min.). Entrevista concedida a Gisela Barcellos de Souza.
38
JENCKS, Charles et al. Presents of the past – revisiting the 1980 Venice Biennale. In: Architectural Design. Londres: Architectural Design, vol. 52, no. 1/2, 1982, p. 2-24.
39
MONTES, loc. cit., 2011.
40
BOZA, loc. cit, 2011.
41
Idem
42
PÉREZ OYARZUN, Fernando. Arquitectura, cultura y práctica profesional en Chile 1930-1980. In: LIERNUR (org). Portales del Laberinto. Arquitectura y Ciudad en Chile, 1977-2009. Santiago de Chile: Universidad Andrés Bello, 2009.
43
BOZA, loc. cit, 2011.
44
Idem
45
MONTES, Fernando. Charlas. In: CA. Santiago de Chile: Colegio de Arquitectos, n.31, dez 1981, p. 39.
46
SALDARRIAGA. Alberto. Arquitetura, Espacio Urbano y Latinoamérica. In: Proa. Bogotá: Ed. Proa, n. 305 abril 1982.
47
MONTES, loc. cit., 2011.
48
SALDARRIAGA, loc. cit., 1982.
49
Idem
50
Conferir: MONTES, Fernando. Santiago Poniente: en torno a su remodelación. In: CEDLA. Santiago: CEDLA, ago. de 1977, 24-25; MONTES, F. Modernidad e Inibición. In: ARS. Santiago: CEDLA, n.1, jul. 1978, p.67-69; MONTES, F. Hacia una arquitectura convencional. . In: ARS. Santiago: CEDLA, n.3, jul. 1979, p.4-9; MONTES, F. 157 Departamentos, Ciudad Nueva de Cergy-Pontoise, Paris, 1980. In: ARS. Santiago: CEDLA, n.4, ago 1981, p.85-87; MONTES. F. Santiago no es una ciudad fácil. In: ARS. Santiago: CEDLA, n.5, jul. 1984, p.59-61.
51
Referimo-nos aos textos em que Bernard Huet retoma o conceito de “imitação”, tal qual definido por Quatremère de Quincy, e opõe-se à ideia da necessidade da originalidade – Cf. HUET, 1981.
52
BOZA, loc. cit., 2011.
53
BOZA, Cristián; DUVAL, Hernán. Inventario de una arquitectura anónima. Santiago, Chile : Lord Cochrane, 1982.
54
MONTES, Fernando. Prólogo. In: Boza, Duval. Inventario de una arquitectura anónima. Santiago, Chile : Lord Cochrane, 1982.
55
Fernando Montes confirma a existência de um distanciamento a partir de meados dos anos 1980 (MONTES, 2011).
56
Há apenas um projeto de Montes para a Casa-atelier de Le Corbusier, na ARS número 8, de setembro de 1987.
57
Cf. SOUZA, op. cit., 2013.
58
ELIASH, Humberto. Dimensión Arquitectónica de la Periferia Urbana. In: III Encuentro de Arquitectura Latinoamericana. Buenos Aires: CAPBA D III, 1988.
59
BOZA, Cristián. El Barrio: Punto de partida para reurbanizar la ciudad latinoamericana. In: III Encuentro de Arquitectura Latinoamericana. Buenos Aires: CAPBA D III, 1988, p.79.
sobre a autora
Gisela Barcellos de Souza é arquiteta e urbanista (Universidade Federal de Santa Catarina, 2002), mestre em Projet Architetural et Urbain (Université de Paris VIII, 2004) e doutora em História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo (FAU-USP, com período sanduíche em Pontificia Universidad Católica de Chile, 2013). Atualmente é professora adjunta da Universidade Estadual de Maringá.