Em 1968, Donald Judd adquiriu um edifício de cinco andares na esquina das ruas Spring e Mercer, no distrito industrial ao sul da Houston Street, em Manhattan, para sua residência e estúdio. A área, que ficou conhecida pelo acrônimo “SoHo” (South of Houston), se transformava em zona residencial, a medida que os artistas se mudavam para os imóveis vagos previamente ocupados pela indústria têxtil e por armazéns. A arquitetura industrial de ferro fundido oferecia grandes espaços isentos de divisões internas, bem iluminados e com pés-direitos altos, a preços baixos.
A razão do bairro ter sido ocupado unicamente por artistas e dos imóveis serem baratos são questões que exigem um breve relato da história da área a partir de meados do século 19. Os edifícios que compõem as vinte e seis quadras contidas entre as ruas West e East Houston (ao norte), Canal (ao sul), Crosby (ao leste) e West Broadway (a oeste), foram construídos, na sua maioria, na segunda metade do século 19 para uso comercial e industrial, constituindo “a maior concentração de fachadas inteiras ou parciais em ferro fundido no mundo” (1). Algumas residências da primeira metade do século 19, anteriores à transformação da área em zona comercial, e edifícios construídos no início do século 20, como o Little Singer Building (1903-4), complementam o conjunto arquitetônico. Mesmo após a designação do SoHo como Cast Iron Historic District em 1973, estruturas novas foram edificadas dentro do perímetro do bairro, sobre estacionamentos: a sede da editora Scholastic, projetada por Aldo Rossi e concluída postumamente em 2001, ou os apartamentos da 40 Mercer Street (2004-8), de Jean Nouvel.
A partir de 1850, teatros, hotéis e lojas de departamentos instalaram-se na Broadway, entre a Canal e a Houston, transformando-a no “centro de entretenimento da cidade” (2). Pequenas manufaturas abriram na vizinhança, como fábricas de porcelana, vidro, marcenarias e fundições. A área também abrigava diversos bordéis (3). O Haughwout Building (1857) é dessa época, apresentando duas fachadas de ferro fundido com função estrutural e o primeiro elevador de passageiros em funcionamento (1857), projetado por Elisha Graves Otis. Após a Guerra Civil (1861-1865), no entanto, a área se tornou definitivamente industrial com a instalação do ramo têxtil. A utilização do ferro fundido nos edifícios das fábricas atingiu então o ápice nos anos de 1870 e nas duas décadas seguintes: o material permitia não só aberturas maiores nas fachadas, em relação às estruturas de alvenaria, mas também liberava o andar da necessidade de paredes divisórias para apoio estrutural, com o emprego da coluna de ferro. O uso do material também agilizava a construção, incorporando detalhes que tomariam mais tempo e recursos se executados em pedra.
No início do século 20 a indústria têxtil começou a se mudar para a vizinhança da Penn Station e os imóveis da área foram ocupados por empresas que negociavam descartes de papel e tecido, fabricantes de roupas íntimas femininas e infantis, ou gráficas (4). Até a década de 1960 a área abrigou estas atividades econômicas, bloqueada por caminhões durante o dia e completamente deserta a noite (5). Com o declínio da atividade industrial, muitos edifícios passaram a ser usados como arquivo morto, uma vez que o valor de locação anual havia baixado, em 1962, por exemplo, para US$0,75 por square foot (aproximadamente US$8 por m²) (6). Incêndios eram frequentes (7). O projeto de uma via expressa elevada que passaria sobre o bairro, a Lower Manhattan Expressway, proposto em 1941 e somente cancelado em 1969, contribuiu para a desvalorização da área. No estudo econômico sobre o “South Houston Industrial District”, elaborado para o Departamento de Planejamento Urbano da Cidade de Nova York, Chester Rapkin concluiu, no entanto, que a maioria dos prédios da área era usada “para atividades produtivas e não para armazenamento” empregando “quase treze mil pessoas” (8). Seu relatório é creditado como fator decisivo para a não demolição do bairro (9).
Morar em distritos industriais era ilegal. Porém, no início dos anos sessenta, a pedido da Artists Tenants Association, a prefeitura de Nova York permitiu que edifícios que não possuíssem um “C of O” (Certificate of Occupancy) residencial fossem habitados por artistas. Cada prédio poderia abrigar dois estúdios, que seriam sinalizados na entrada pela expressão “A.I.R.” (artist in residence), seguida do número do andar. Isso alertaria os bombeiros, em caso de incêndio, da prioridade do resgate. Poucas unidades localizavam-se no SoHo então (10). Em 1964, o Department of Cultural Affairs passou a conceder permissões de moradia para artistas no campo das artes visuais, pois seu trabalho poderia ser considerado como light manufacturing (11). Os candidatos tinham de provar sua atividade perante um comitê. Como observou Richard Kostelanetz:
“Limitando os edifícios industriais do SoHo apenas a atacadistas ou indústrias leves, que eram raros, e artistas, que eram mais numerosos (enquanto desencorajava legalmente outros potenciais residentes), a cidade tornou os espaços do SoHo artificialmente baratos [...]. Apenas quando aqueles que não eram artistas quiseram viver no SoHo, apesar das restrições que os proibiam disto, os preços subiram, no fim astronomicamente. Poucos notaram, então e agora, que este modelo contemporâneo de “renovação urbana”, para lembrar um slogan de ‘planejamento’ popular na época, custou à Cidade de Nova York pouco mais que o preço excessivo da substituição do pavimento de paralelepípedo das ruas" (12).
O zoneamento de Nova York ainda mantém as designações M1-5A e M1-5B para o SoHo, com “M” significando Manufacturing District (13). Os moradores ainda precisam obter do Department of Cultural Affairs a licença para viver no bairro (14). Enquanto Sharon Zulkin apontava, conforme estudo de 1977 da New York City Planning Commission, que apenas 8,5 por cento das transformações dos espaços industriais em residências eram legais em Manhattan (15), estima-se que hoje a situação de ilegalidade se mantenha (16). Um pioneiro do SoHo, Judd afirmava em um artigo publicado em 1971: “os moradores – cidadãos – têm o direito de viver e permanecer onde estão. Não é um direito a ser concedido pela cidade ou qualquer instituição política [...]. Não se pode transformar uma área em gueto. Não se pode dizer quem é e quem não é um artista” (17). Com cinco pisos de 7,60 m de frente por 22,85 m de profundidade (aproximadamente 173 m²) e dois subsolos, a residência da Spring Street excedia o tamanho máximo de 3500 square feet (325 m²) designado pela legislação para os lofts residenciais (18). Tamanho a parte, Judd comprou o prédio por 68 mil dólares (19). Após o seu falecimento em 1994, uma fundação foi estabelecida com seu nome dois anos depois e em 2001 iniciou-se um estudo para o restauro do prédio, realizado entre 2010 e 2013. Custeado inicialmente pelo National Trust for Historic Preservation, o restauro de 23 milhões de dólares (20), preserva não apenas o edifício de 1870, mas também as alterações empreendidas por Judd que serão discutidas a seguir.
Duas leituras podem ser feitas do número 101 da Spring Street. A primeira diz respeito às obras de arte que ele encerra; a segunda ao prédio em si. Para Judd, o edifício deveria servir como moradia e local de trabalho, e mais importante que isso, ser um espaço para a instalação de suas obras e de outros artistas (21). Judd acreditava que o posicionamento da obra de arte no ambiente era fundamental para o sentido da obra e, assim sendo, esta deveria ser instalada permanentemente:
“A instalação do meu trabalho e de outros é contemporânea com sua criação. A obra não é desvinculada do espaço, da sociedade, do tempo, como na maioria dos museus. O espaço que envolve meu trabalho é crucial para ele: a instalação foi tão considerada quanto a obra em si. As instalações em Nova York e Marfa são um padrão para a instalação do meu trabalho em outros lugares. Tanto o meu trabalho quanto o de outros é frequentemente mal exibido e sempre por curtos períodos. Em algum lugar deve haver um local onde a instalação é bem feita e permanente” (22).
Os cinco pisos do prédio abrigam duzentas peças entre mobília e obras de arte. Aberta à visitação desde 2013, a residência se transformou em um museu: não apenas pelos objetos de arte expostos, mas também pela qualidade arquitetônica do espaço. A segunda leitura que pode ser feita do projeto é a transformação deste espaço industrial em casa e estúdio, que Donald Judd empreendeu a partir de 1969. Vários lofts no SoHo foram convertidos em moradia, como foi dito anteriormente, mas o edifício do número 101 da Spring Street é o único que restou no bairro com um ocupante único (23), sem que o prédio e os andares fossem subdivididos.
Uma questão fundamental da reforma no prédio, executada por Judd, é aquilo que foi preservado e não o que foi modificado. Judd encontrou um edifício com lajes abertas, sem paredes divisórias, apropriado para a instalação de máquinas e para espaços de armazenagem, para o qual tinha sido projetado. As diversas funções de uma residência poderiam exigir a compartimentação das lajes, mas Judd conseguiu mantê-las livres de obstáculos visuais com o artifício de instalar separadamente em cada andar um único ambiente:
“Eu concluí que o edifício deveria ser reparado e não alterado basicamente. É um edifício do século XIX. Era certo que cada andar tinha sido aberto, já que não havia sinais de paredes prévias, o que determinou que cada andar deveria ter um propósito: dormir, comer, trabalhar.
As circunstâncias dadas eram muito simples: os andares deveriam ser abertos; o ângulo reto de janelas em cada andar não deveria ser interrompido; e qualquer modificação deveria ser compatível. [...] Ao invés de deixar o prédio em paz, um ato altamente positivo naquela época e agora, minhas invenções principais são os pisos do quinto e terceiro andares e os planos paralelos formados pelo piso e teto idênticos do quarto andar” (24).
Assim sendo, Judd posicionou no térreo (1st floor) um showroom; no primeiro andar (2nd floor), a cozinha, aberta para a sala de estar; no segundo andar (3rd floor), um estúdio; no terceiro andar (4th floor), uma sala de jantar; e no último piso (5th floor), um dormitório. A distribuição e uso destes ambientes não foi fixa, no entanto, ao longo dos anos. Judd ocupou inicialmente o térreo do prédio com seu estúdio, como mostram as fotografias do espaço nos anos setenta. No quarto andar (5th floor), uma partição baixa delimitava o quarto dos filhos, transferido posteriormente para o porão do prédio, iluminado pelo piso de vidro da calçada, onde hoje funcionam os escritórios da Judd Foundation. O terceiro andar (4th floor) funcionava também como sala de reunião, onde Judd recebia colecionadores de arte. Não existe uma sala de estar convencional no primeiro andar (2nd floor), com assentos almofadados, mas sim um sofá projetado por Judd em madeira, assim como uma mesa com dez cadeiras.
No térreo (1st floor), ao lado da entrada da Spring Street, Judd posicionou uma escultura de Carl Andre, Manifest Destiny (1986), formada por uma pilha de oito tijolos. A fragilidade da peça era acentuada pela proximidade da porta – e da circulação das pessoas. Hoje, no entanto, entra-se no prédio pela Mercer Street. Duas obras de Judd e uma escrivaninha, são os únicos objetos além da peça de Andre. O piso de madeira e o teto de estanho são originais. As paredes lisas são pintadas de branco. O espaço “vazio” não é monótono: através das janelas e portas de vidro pode-se observar o movimento constante da rua.
No térreo e no primeiro andar, a escada se desenvolve entre paredes. O lance que parte da entrada da Spring Street chega a um patamar que dá acesso ao primeiro andar (2nd floor). Judd locou a cozinha no fundo do espaço, compartilhando as prumadas de hidráulica com o banheiro. O pé-direito alto permite um jirau, que começa sob o lance da escada para o segundo andar e continua sobre o banheiro posicionado ao lado do elevador. Prateleiras e refrigerador ficam sob o jirau. A cozinha tem uma bancada encostada à parede do banheiro e uma ilha com duas cubas. Kostelanetz observa que a cozinha aberta para o ambiente era típica dos lofts do SoHo (25). A porção central do andar é uma área de estar, como foi dito anteriormente, com uma lareira entre um sofá e mesa de jantar projetados por Judd. A última porção da planta, junto à fachada da Spring Street é deixada vazia, permitindo a tomada de distância necessária para a visualização do afresco (1970) de David Novros. Posteriormente, Judd adicionou ao espaço uma tela de Ad Reinhardt, Red Painting, de 1952.
A partir do segundo andar (3rd floor), a posição da circulação vertical na parte posterior do edifício libera toda a largura do prédio em seis dos dez vãos da planta. No piso do estúdio, a escada, contida em um hall fechado, ocupa parcialmente mais três módulos do andar, formando um nicho no último vão do pavimento que foi transformado por Judd em uma pequena biblioteca. Uma janela guilhotina na divisa lateral do prédio ilumina o espaço, com mobília de Alvar Aalto. Bancos, mesa e poltronas do arquiteto finlandês se unem no estúdio a duas obras de Judd, em madeira e metal. As formas orgânicas da madeira curvada dos móveis de Aalto se contrapõem perfeitamente à geometria estrita das peças de Judd. Uma escultura em acrílico de Larry Bell e uma mesa de trabalho, com réguas e esquadros – que remetem ao trabalho de um arquiteto e não ao de um artista plástico – completam o arranjo espacial. Judd instalou um piso de madeira novo no espaço, ao contrário das tábuas originais que foram mantidas nos pavimentos inferiores. As paredes e o teto tem um acabamento texturizado. Não há rodapé: as tábuas de madeira terminam um pouco antes do plano da parede, formando um recesso no piso junto desta. Não há cor neste espaço, além dos tons da madeira, do cinza das esculturas e do acabamento preto da poltrona Paimio (1932). Um tapete sobre o qual Judd se deitava e uma linha de soquetes e lâmpadas expostas no teto expõem o caráter completamente despojado do estúdio. O vidro dos caixilhos é pontilhado, dissolvendo um pouco a presença e as distrações da cidade, neste espaço destinado ao trabalho.
No terceiro andar (4th floor) a sala de jantar tem assoalho de madeira envernizado que se repete como forro no teto. O comprimento uniforme de três metros das tábuas forma na junção destas uma linha em ziguezague contínua no piso (e espelhada no teto). Este é o pavimento mais aberto da casa. Uma sala de prumadas, ao lado do elevador, e uma parede solta, que separa parcialmente a escada do espaço, são as únicas divisões da planta. Uma mesa desenhada por Judd abriga quatro cadeiras Zig-Zag (1932-34) de Gerrit Rietveld, que evocam o Neoplasticismo, quando conjugadas ao plano de alvenaria ao lado do lance da escada e aos dois planos paralelos do piso e forro. O tampo da mesa foi ajustado para coincidir com a altura do espaldar das cadeiras, como ocorre naquelas do primeiro andar. Judd também desenhou uma mesa cujo tampo deslizante revela um compartimento interno para louças e cristais. A cor retorna aqui nas pinturas de Frank Stella e em duas obras de Dan Flavin.
Se o prédio for encarado como uma narrativa, com cada piso correspondendo a um capítulo, o gran finale foi reservado para o último piso (5th floor). Aqui, ao contrário dos outros andares, a interferência da escada é mínima: ela termina em um patamar diminuto de onde se acessa um corredor com sala de banho de um lado e lavatório e guarda-roupa do outro. Nestes Judd desenhou cubas ovais em aço inox e os armários. Essa passagem termina em outra circulação estreita ao lado da fachada para a Mercer Street, de onde parte paralelamente uma escultura de Dan Flavin. Os requadros iluminados da obra, reproduzindo o formato retangular dos caixilhos, vão se sobrepondo um na frente do outro, formando uma curva suave que conduz quem percorre o espaço para o centro do quarto. Uma plataforma de madeira abriga a cama, incorporando pontos elétricos e de telefonia. Uma partição baixa separa o quarto de um pequeno espaço que era utilizado como dormitório dos filhos do casal. À noite, quando acesas, as lâmpadas tubulares da escultura de Flavin colorem o espaço e as peças expostas de Chamberlain, Judd, Oldenburg e Samaras. As obras de arte superam a quantidade de móveis, pois além da cama, só há um pequeno sofá do século 19.
Espaços residenciais totalmente abertos já existiam antes do fenômeno do SoHo, como a Glass House (1949) de Philip Johnson. Mas a escala da conversão dos lofts industriais em moradias, tanto na área de piso, quanto na quantidade de exemplos foi maior. As conversões não foram um fato restrito ao SoHo em Nova York, ou aos Estados Unidos. Armazéns e fábricas ganharam novos usos também em cidades como Berlim, em Kreuzberg, por exemplo; em Londres, nas Docklands, entre 1981 e 1998; em Paris, na operação urbana ZAC Rive Gauche, no 13º arrondissement, a partir de 1991; ou em Buenos Aires, em Puerto Madero (26). Dentro deste cenário, o edifício do número 101 da Spring Street constitui um exemplo de união bem sucedida de arte e arquitetura. Este novo modelo de morar, onde as barreiras físicas e disciplinares foram eliminadas, ultrapassou o envelope dos edifícios industriais.
Na Inglaterra da década de 1980, os arquitetos John Pawson e Claudio Silvestrin transformaram edifícios residenciais da época vitoriana com a mesma postura posta em prática nos lofts. Em um apartamento de dois pavimentos (27), concluído em Londres, em 1987, eles aproveitam o espaço sob o telhado – um loft no sentido original da palavra – para criar um espaço aberto com sala e cozinha. Tábuas de madeira longas revestem todo o espaço, unificando-o. Duas poltronas MR brancas de Mies van de Rohe fazem o papel de sofá e são os únicos móveis da sala. A televisão fica dentro de um armário. Fechado, suas portas sem puxadores apresentam o mesmo tom branco do teto e das paredes. A cozinha tem uma bancada monolítica de mármore que incorpora a cuba e o fogão. Seu volume opaco dialoga com os parapeitos de vidro translúcido do vão da escada que desce para o andar dos dormitórios. Nestes não há móveis além dos armários, cujas portas, quando fechadas, repetem o efeito de invisibilidade daquelas da sala. Dorme-se no chão, sobre um colchão de enrolar. Todos os elementos do loft do SoHo – e em especial do de Judd – se repetem aqui: um único piso de madeira em todo o andar, a cozinha aberta para o “estar”, que no entanto carece de móveis que o identifiquem claramente como tal, a cama no chão, a neutralidade das paredes, prontas para abrigar objetos artísticos, a mobília escassa, mas com caráter de peça de coleção. Se este apartamento não contém obras de arte, presentes no edifício da Spring Street, em outro projeto de Pawson, como o apartamento para a galerista Hester van Royen, também em Londres (1984-86), nota-se em uma sala vazia, com piso de tábuas de madeira e paredes brancas, uma das “Swiss pieces” do próprio Judd (28).
A falta de mobília dos lofts do SoHo, que condizia com um espaço industrial adaptado para residência e compartilhado com um estúdio de trabalho, tornou-se um modelo projetual. O espaço “vazio” suplantou a importância dos objetos contidos nele, a não ser que esses poucos itens fossem obras de arte ou móveis dignos desta conotação, em ambos os casos, cuidadosamente posicionados. A abertura dos ambientes passou a ser acompanhada pela presença de armários, desenhados para guardar e tirar de vista todo tipo de objeto funcional desprovido do status de arte.
Em uma foto de Diana Walker (29), tirada em 1982, vê-se Steve Jobs sentado no chão de tábuas de madeira de sua sala de estar vazia, “mobiliada” por equipamentos profissionais de som (30), discos de vinil e uma luminária ar nouveau Tiffany. Para Walter Isaacson, seu biógrafo, Jobs “só queria ter em volta de si coisas que admirasse” (31). Esta postura que prioriza a qualidade sobre a quantidade foi associada ao minimalismo, termo que Judd, no entanto, desaprovava (32). Ela parece ganhar importância na atualidade: nos espaços habitacionais cada vez menores nas grandes cidades, reduzidos a unidades de até 23 m² (33), saber viver com poucos objetos e unir ambientes para ganhar espaço – ar e luz – se tornou uma questão de necessidade e não mais uma decisão estética.
notas
NA – O autor visitou o edifício do número 101 da Spring Street em julho de 2014.
1
CITY OF NEW YORK. Landmarks Preservation Commission. SoHo-Cast Iron Historic District Designation Report. New York, 1973. p. 9. Disponível em: <www.nyc.gov/html/lpc/downloads/pdf/reports/SoHo_HD.pdf>. Acesso em: 23 jul. 2015. Tradução do autor.
2
Idem, ibidem, p. 6. Tradução do autor.
3
Idem, ibidem, p. 6-7.
4
RAPKIN, Chester. The South Houston Industrial Area: A Study of the Economic Significance of Firms, the Physical Quality of Buildings, and the Real Estate Market in an Old Loft Section of Lower Manhattan. New York: Department of City Planning, 1963. p. 12-16. Disponível em: <https://archive.org/details/southhoustonindu00rapk>. Acesso em: 23 jul. 2015.
5
KOSTELANETZ, Richard. SoHo: the rise and fall of an artists’ colony: a critical memoir. New York: Routledge, 2003. p. 1.
6
Idem, ibidem, p. 3.
7
Rapkin afirma que apenas nos anos de 1960 e 1961 ocorreram trinta incêndios na área. In: RAPKIN, Chester. Op. cit., p. 154.
8
RAPKIN, Chester. Op. cit., p. 282.
9
HEVESI, Dennis. Chester Rapkin, 82, Urban Planning Theorist. The New York Times, New York, 3 Feb. 2001. Disponível em: <www.nytimes.com/2001/02/03/nyregion/chester-rapkin-82-urban-planning-theorist.html>. Acesso em: 23 jul. 2015.
10
KOSTELANETZ, Richard. Op. cit., p. 11.
11
Segundo Richard Kostelanetz (op. cit, p. 15) a legislação excluía as atividades de desenho gráfico, moda, fotografia e arquitetura, mas incluía cenógrafos, coreógrafos e diretores de teatro.
12
KOSTELANETZ, Richard. Op. cit., p. 19. Tradução do autor. Texto original: “By limiting SoHo’s industrial buildings only to wholesalers or light manufacturers, who were scarce, and artists, who were more plentiful (while legally discouraging other potential residents), the city had made SoHo spaces artificially cheap [...]. Only when nonartists wanted to live in SoHo, the restrictions forbidding them notwithstanding, did the prices rise, eventually astronomically. Few have noticed, then or now, that this model for contemporary ‘urban renewal’, to recall a ‘planning’ slogan popular at the time, cost New York City little beyond the excessive price of cobblestone replacement.” Além da legislação como fator que desencadeou a ocupação residencial do SoHo pelos artistas, Kostelanetz (op. cit., p. 21) cita a iniciativa de George Maciunas que comprou e reformou vários prédios do SoHo transformando-os em cooperativas para artistas, as “Fluxhouses”.
13
CITY OF NEW YORK. City Planning Commission. Zoning Map 12c. New York: Department of City Planning, 2012. Escala: 1"=1200'. Disponível em: <www.nyc.gov/html/dcp/html/zone/zh_zmaptable.shtml>. Acesso em: 23 jul. 2015.
14
CITY OF NEW YORK. City Planning Commission. Zoning Resolution: Article IV: Manufacturing District Regulations: Chapter 2 – Use Regulations. New York: Department of City Planning, 2013. Disponível em: <www.nyc.gov/html/dcp/html/zone/zonetext.shtml>. Acesso em: 23 jul. 2015.
15
ZUKIN, Sharon. Loft living: culture and capital in urban change. New Brunswick, NJ: Rutgers University Press, 1989, p. 11.
16
SWALEC, Andrea. Group Hunts Non-Artists Wrongly Living in SoHo and NoHo Lofts. DNAinfo, New York, 17 Apr. 2012. Disponível em: <www.dnainfo.com/new-york/20120417/greenwich-village-soho/group-hunts-non-artists-wrongly-living-soho-noho-lofts>. Acesso em: 23 jul. 2015.
17
JUDD, Donald. Greater Westbeth. In: JUDD, Donald. Complete Writings 1959-1975. Halifax, Nova Scotia: The Press of the Nova Scotia College of Art and Design, 2005; New York: New York University Press, 2005, p. 204-205.
18
KOSTELANETZ, Richard. Op. cit., p. 16.
19
JUDD FOUNDATION. Fact Sheet: 101 Spring Street, New York, NY. New York, 2013. Disponível em: <www.juddfoundation.org/generalinformation>. Acesso em: 23 jul. 2015.
20
JUDD FOUNDATION. Fact Sheet: 101 Spring Street Restoration. New York, 2014. Disponível em: <www.juddfoundation.org/new_york>. Acesso em: 23 set. 2015.
21
JUDD, Donald. 101 Spring Street. In: JUDD, Donald. Architektur. Münster: Westfälischen Kunstverein, 1989. p. 18-19.
22
JUDD, Donald. In defense of my work: Donald Judd, December 1977. Disponível em: <www.juddfoundation.org/generalinformation>. Acesso em: 19 set. 2014. Tradução do autor. Texto original: “The installation of my work and of others is contemporary with its creation. The work is not disembodied spatially, socially, temporally, as in most museums. The space surrounding my work is crucial to it: as much thought has gone into the installation as into a piece itself. The installations in New York and Marfa are a standard for the installation of my work elsewhere. My work and that of others is often exhibited badly and always for short periods. Somewhere there has to be a place where the installation is well done and permanent.”
23
JUDD FOUNDATION. Fact Sheet: 101 Spring Street, New York, NY.
24
JUDD, Donald. 101 Spring Street. Tradução do autor. O térreo é considerado na descrição como primeiro andar (first floor). Texto original: “I thought the building should be repaired and basically not changed. It is a 19th century building. It was pretty certain that each floor had been open, since there were no signs of original walls, which determined that each floor should have one purpose: sleeping, eating, working. The given circumstances were very simple: the floors must be open; the right angle of windows on each floor must not be interrupted; and any changes must be compatible. […] Other than leaving the building alone, then and now a highly positive act, my main inventions are the floors of the 5th and 3rd floors and the parallel planes of the identical ceiling and floor of the 4th floor”.
25
KOSTELANETZ, Richard. Op. cit., p. 139.
26
Richard Kostelanetz (op. cit, p. 142) cita exemplos de lofts similares aos do SoHo em Berlim e Paris. Também Zukin (op. cit, p. 1) reconhece o fenômeno dos lofts residenciais em Amsterdam, Londres e Boston. Antigos armazéns de Puerto Madero, em Buenos Aires, também foram convertidos para o uso residencial, ainda que este caso faça parte de um plano geral de renovação urbana empreendido pela prefeitura da cidade e executado a partir dos anos de 1990.
27
ROMANELLI, Marco. J. Pawson, C. Silvestrin: in un interno vittoriano. Domus, Milão, n. 695, jun. 1988, p. 1-2.
28
PAWSON, John. van Royen Apartment. Disponível em: <www.johnpawson.com/works/van-royen-apartment/>. Acesso em: 23 jul. 2015.
29
WALKER, Diana. In a Private Light: Diana Walker’s Photos of Steve Jobs. Time, New York, 6 Oct. 2011. Disponível em: <http://lightbox.time.com/2011/10/06/in-a-private-light-diana-walkers-photos-of-steve-jobs/#4>. Acesso em: 23 jul. 2015.
30
CHUN, Rene. We Pieced Together Steve Jobs’ Long-Lost Stereo System. Wired, San Francisco, 29 Apr. 2014. Disponível em: <www.wired.com/2014/04/steve-jobs-stereo-system/#slide-id-782501>. Acesso em: 23 jul. 2015.
31
ISAACSON, Walter. Steve Jobs: a biografia. São Paulo, Companhia das Letras, 2011. p. 291.
32
JUDD, Donald. Complaints: part I. In: ______. Complete Writings 1959-1975. p. 197-199.
33
O designer canadense Graham Hill, com projetos em Nova York e São Paulo (a metragem citada é de um empreendimento lançado em 2013, na Vila Olímpia, do qual é coautor) defende a ideia de que uma casa com menos objetos torna a vida mais fácil para os seus moradores. In: HILL, Graham. Living with Less. A Lot Less. The New York Times, New York, 9 Mar. 2013. Disponível em: <www.nytimes.com/2013/03/10/opinion/sunday/living-with-less-a-lot-less.html?pagewanted=all&_r=0>. Acesso em: 23 jul. 2015.
sobre o autor
Décio Otoni de Almeida é arquiteto formado pela FAUUSP em 1999 e Mestrando do Programa de Pós-Graduação “Stricto Sensu” em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.