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architexts ISSN 1809-6298


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Jogando com tempos de linguagem, Josep Quetglas entrelaça tempos de arquitetura, expondo o desafio de fazer arquitetura no aqui e agora de um mundo que, sob novas roupagens, mantém as velhas estruturas do poder hegemônico.


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QUETGLAS, Josep. Em tempos irregulares. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 184.01, Vitruvius, set. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.184/5714>.

“Não podemos ser melhores que o nosso tempo, mas também não estamos obrigados a ser tão ruins quanto ele”.
Jaime Semprun, Dialogues sur l’achèvement des temps modernes, 1993

O livro Casas del mundo, com mais de 2 mil fotografias multicoloridas, é, de longe, o mais vendido na livraria do Colégio de Arquitetos de Barcelona neste ano, até agora. O triplo em volumes vendidos se comparado ao que lhe segue na segunda colocação. As casas estão organizadas por tipo de localização. No livro não aparecem plantas nem cortes das edificações, somente fotografias externas e de interiores.

O responsável pelas vendas justificou-me o sucesso. Aparentemente, os arquitetos o compram como catálogo para mostrar aos clientes: “Como quer a casa? Esta cobertura lhe agrada? E o terraço? É este o que lhe agrada? A cozinha, como qual? Viu algum sanitário que lhe resultasse atrativo? Como este, mas com o piso daquele? Certo”. Há quem compre a caixa inteira com vários volumes. “Pode levar para sua casa, pense bem e assinale suas fotos preferidas. Nos vemos nesta sexta-feira”.

Tudo isso por 2.400,00 pesetas (14,42 euros). São vendidos como água.

Sei que vivemos numa época sem arquitetura. Isto pode parecer paradoxal, já que talvez em nenhuma outra época se tenha mencionado, mostrado e manifestado tanto a arquitetura. Mas aqueles que agora falam de arquitetura parecem entender com essa palavra o mesmo que por “cultura” entende uma instituição tal como, por exemplo, a prefeitura de Barcelona. “A Prefeitura e os promotores pretendem preencher o vazio cultural de Barcelona em agosto”, foi esta a manchete de abertura do caderno local no último 26 de agosto no jornal das direitas atuais. “Tanto o setor público – a prefeitura de Barcelona – como o privado − promotores, produtores e o setor hoteleiro − concordam com a conveniência de aproveitar o filão turístico da cidade para dar andamento a uma programação específica para os meses de verão. O mais pertinente seria apresentar uma temporada pensada para os turistas”. “Esta temporada” − assinala o concejal da cultura − “deveria ser realizada em colaboração com o setor privado e de hotelaria”.

Sem dúvida existe um modelo de arquitetura apropriado a essa mercadoria conjuntural, atento às mudanças de gostos, ao que se está usando, ao que se vai usar, que lota as prateleiras das lojas comerciais, colocado em liquidação ao final de cada temporada para ser substituído por outra nova pacotilha, já que isso é a cultura para os serviçais do regime totalitário do mercado. Uma arquitetura homologada como produto atraente, novo, diferente, exclusivo, que se consome enquanto imagem de si mesma, que se visita para comprovar que é idêntica à das fotografias e que estivemos ali, e que não deixa outra satisfação a não ser a de retornar pedindo mais, quando for anunciada a chegada de novos modelos. Uma arquitetura tão delicada que não presta atenção no sequestro da cidade e do território por parte dos empresários, nem no seu uso publicitário a serviço da sobrevivência das instituições da dominação. Mas sabemos que em outra parte, em outro tempo, houve outra cultura e outra arquitetura.

Há uma arquitetura da leveza. Móvel e adaptável como birutas, indica obediente o vento que corre, inclina-se diante de cada nova ordem e esquece tudo o que um momento antes repetia convencida. Mas houve outra arquitetura infranqueável, que se levanta como reprimenda à paisagem ruim de seu entorno, à qual enfrenta e detém: como um breve fragmento de maior densidade própria, que emerge sobre a arbitrariedade e a desordem de uma inundação que tudo submerge.

Há uma arquitetura que se produz como exercício de estilo, como sequência de operações superficiais, onde o projeto responde a regras inventadas, que só existem no papel e podem ser trocadas dos pés à cabeça na seguinte jogada, por curiosidade. É, etimologicamente, uma arquitetura imoral, visto que não produz nem procede do cotidiano, da comunidade. Mas houve outra arquitetura com as mãos atadas pelo ofício, na qual quem compreende o projeto se sente ligado à obra das gerações anteriores, e quem usa o edifício se sente parte de um grupo de iguais.

Há uma arquitetura do jogo, fantasiada com os restos do armário daquela que fora, meio século atrás, uma das táticas da prática insurgente: a reivindicação do jogo como trabalho livre, insubordinado. Agora, essa mesma roupagem é a farda da renuncia ao sentido, da absoluta disponibilidade a cada novo gesto do mercado, da obediência servil à atualidade. “Cheguei a pensar que, pelo andar da carruagem, seria preciso que fizéssemos uma revolução para poder realmente trabalhar. [...] Seria urgente voltar a produzir algo que valesse a pena” (1). Poucas coisas levam tanto à indignação quanto ver operários da construção, pessoas adultas, levantando com suas mãos aquilo que está sendo o jogo divertido de algum arquiteto. Mas houve outra arquitetura onde o engenho e a inventividade do arquiteto encarnam imediatamente o sentido de um modo de trabalho que qualquer um pode compartilhar, onde o esforço e o rigor por adquirir maestria é, ao mesmo tempo, a atualização da propriedade coletiva da obra das gerações anteriores e a identificação pessoal, a caracterização própria de cada um.

Há uma arquitetura que assegura descrever o mundo por meio de inesperadas analogias oriundas das matemáticas, da geografia, da biologia, da medicina, da navegação a vela ou de qualquer território nômade, fronteiriço, escorregadio ou adventício. Houve outra arquitetura que não explica nada, lacônica, que parte “desse sentimento universal de que já resulta inútil tentar compreender de uma maneira mais científica e detalhada o funcionamento da sociedade mundial. Fora aqueles que são remunerados para oferecer simulações teóricas, não interessa a ninguém saber exatamente como anda a sociedade; em primeiro lugar porque ela já não anda. Não se faz a anatomia de uma carniça cuja putrefação apaga as formas e confunde os órgãos [...] Verdade, nenhum organismo vivo pode chegar a ser tão surpreendente, tão inédito e tão labiríntico quanto o é, por um tempo, ao apodrecer” (2).

Há uma arquitetura que justifica sua presença com imagens prévias ao projeto − verbais ou visuais − vindas de qualquer fonte: o currículo do arquiteto, o nome do lugar, leituras, viagens, a consulta ao I Ching... Mas houve outra arquitetura, que responde a necessidades humanas concretas, para a qual um projeto é o reconhecimento e a resposta a dificuldades coletivas, e na qual o arquiteto não é senão um – o primeiro – entre os usuários do edifício, que reconhecem, somente graças ao engenho e ao esforço do que foi construído, a possibilidade de gestos novos que superem as insuficiências do presente, que incitem a reencontrar a naturalidade perdida das relações entre as pessoas.

Há uma arquitetura que existe no clarão da atualidade mais instantânea. Aparece e se apaga como fogo-fátuo. Quanto maior for o impacto visual da sua imagem, tanto menos suscetível será a mudanças, transformações, acumulações, usos: não aparece senão como caricatura imutável de si mesma, ao ponto já de ser substituída pelo novo clarão que faça flutuar por um instante a atualidade de outra nova imagem. Mas houve outra arquitetura cujo tecido guarda toda a espessura da memória. Frente ao autismo amnésico da arquitetura disponível, intercambiável, a serviço imediato do presente, houve outra arquitetura que contém uma muito dilatada memória − capaz assim de não encaixar neste presente, de desencaixar deste mau presente.

Há uma arquitetura que proclama seus antecedentes familiares, como reserva de nobreza, como capital amealhado como tique de classe: e os coleciona e exibe como citações de mestres ou de edifícios famosos. Mas houve outra arquitetura, que não torna público o que contém. Frente à arquitetura verborrágica e tagarela da exibição de ideias, houve outra arquitetura que rememora o passado, integralmente dissolvido na própria consistência do edifício.

Há uma arquitetura deste tempo, moderna até o absoluto, até não ser mais que superfície ondulante carente de massa e espessura − quem sabe somente a da gramatura do papel que a publica −, pura atualidade. Mas houve outra arquitetura que, quando chega, parece proceder de um tempo que está fora do calendário. “Evocávamos outro dia o fato de que, à vezes, era preferível não ser do seu tempo, para vê-lo chegar. Nestas épocas tão movediças que a humanidade não avança mais, devemos saber não nos mover, para guardar uma direção. Aqueles que conseguem manter-se assim firmes e fixos aferram-se ao passado, mas é para lançá-lo na cara do presente” (3).

Há uma arquitetura que domina o gosto do público, uma arquitetura que se visita em roteiro turístico − que se oferece, portanto, como mercadoria do seu próprio consumo enquanto imagem verificada −, que se imita, que se pratica, que se publica. É a arquitetura do gosto dominante, do gosto útil aos dominadores. “Já quase não contamos com que a própria produção de mercadorias esgote, por meio da acumulação de resultados desastrosos, a paciência daqueles que são cotidianamente suas vítimas. Isso provavelmente seria esperar demais, posta a evidencia de que, ao mesmo tempo em que se produz aquilo que ainda ontem parecia insuportável, produzem-se igualmente as pessoas capazes de suportá-lo” (4).

Há uma arquitetura resultante das escolas de arquitetura. As escolas, agora simples empresas prestadoras de serviços, não só oferecem aos seus clientes produtos variados com os quais entreter os anos de inatividade produtiva que qualificarão seus diplomados como membros das classes altas, como também, no vazio absoluto de toda formação profissional, substituída pelo acúmulo de ‘créditos’ intercambiáveis entre si, pela estridência individual original ou pelo adesionismo diligente às modas − tanto faz uma como o outro, engrossadores todos do book curricular pessoal −, a escola produz a ausência de caráter, a disponibilidade amoral, a obediência própria do serviçal. As escolas de arquitetura produzem agora serviçais.

“A dominação moderna, que tinha necessidade de servidores intercambiáveis, destruiu precisamente – aqui reside provavelmente sua maior conquista − as condições gerais, o meio social e familiar, as relações humanas necessárias para a formação de uma personalidade autônoma. Aqueles que tinham ‘um ofício em suas mãos’, como se dizia, eram evidentemente menos intercambiáveis que aqueles que não possuem mais do que um monitor diante dos olhos. Por seu histrionismo e por muitos outros traços estes caracteres esvaziados de tudo quanto houvesse podido conferi-lhes consistência evocam as diversas formas de desestruturação da personalidade que em outro tempo pôde descrever a psiquiatria. Sem se deter nas condições psicopatológicas, que evocariam desse modo como a doença de ontem transformou-se na normalidade de hoje, é fácil compreender que seres tão inconsistentes e necessitados de uma personalidade emprestada [...] serão por força instrumentos dóceis de todas as manipulações que se julgará úteis” (5).

Há uma arquitetura em que cada autor aspira freneticamente à exclusividade de seu carimbo pessoal e acredita que não ser confundido com outro é uma qualidade de caráter ou, simplesmente, acredita que produzir-se a si próprio com exclusividade garante sua boa comercialização no mercado. “A destruição dos antigos ofícios e a desaparição do critério de competência somente têm reforçado o princípio da concorrência entre indivíduos vendedores cada um da sua força de trabalho. Abrir caminho entre o arbitrário da hierarquia é vivenciado como uma aventura cheia de riscos, e é na técnica do ‘arrivismo’ que se têm refugiado a competência e o saber-fazer. Ninguém pode sentir-se seguro, visto que nenhuma promoção se apoia sobre nada além da capacidade de adaptação às necessidades, sempre renovadas, do desenvolvimento econômico: é a igualdade sob ameaça. E quando todo mundo é, ao mesmo tempo, tão irresponsável e tão dependente, o ilogismo expande-se como uma epidemia” (6). Mas houve outra arquitetura, que avança em grupo, na qual os acertos de um são patrimônio de todos e na qual a obra pessoal aproxima, mais do que afasta, a obra dos anteriores. A excepcionalidade não é sinal de talento individual, mas, pelo contrário, como ensinou Eliot, a individualidade é construída com a máxima atenção à obra das gerações anteriores, emprestando sua voz àqueles que já não estão vivos. O caráter criador manifesta-se na delicadeza de memória em relação à obra dos nossos maiores, em sua compreensão.

Estas duas arquiteturas – a do que há e a do que houve – opõem-se de uma forma tal que não resta espaço possível para o diálogo ou o debate, a partir do momento em que uma existe apenas como imediato serviço à atualidade, enquanto a outra voltou seu rosto na direção do passado e o carrega nas costas sobre a sua consciência. Mas a inatualidade de qualquer diálogo efetivo não significa ausência de enfrentamento, muito pelo contrário: “Fala-se muito em modernidade, mas de fato é sempre a mesma velha ordem, que opera como nova porque avança sobre novas muletas, nunca antes vistas em outro lugar, e exala novos fedores de decomposição, nunca antes sentidos em outro lugar. É simples e bastante dialético: o passado segue, destruindo o passado, com suas novas armas e seus novos venenos” (7). Há uma arquitetura que necessita da arquitetura e trata de destruí-la.

Tanto quanto se opõem estas duas arquiteturas, opõem-se seus autores. Uns estão a serviço do presente, ou seja, fazem parte do séquito dos donos do presente. Outros indicam a possibilidade de outro mundo, de outro modo de ser, que não está em nenhum outro lugar nem em nenhum outro tempo – “Daqui em diante, a utopia pertence integralmente à dominação” – (8), mas em todos eles, juntos ao mesmo tempo − passado cheio de futuro e futuro cheio de passado.

Nossa época não possui arquitetura, é verdade, mas continua sendo possível, como no tempo dos mestres, separar entre si dois campos, que não se diferenciam já bizantinamente pelo uso das paredes de carga ou do concreto armado, das molduras ou das janelas em fita, do telhado em duas águas ou da laje plana, mas por uma separação mais sutil e, ao mesmo tempo, mais elementar: a que distingue entre o mercado e o mundo − quando precisamente a tática do mercado é recobrir e representar o mundo, impedir que este fale com sua própria voz. Há uma arquitetura posta à disposição do mercado − de seus proprietários, de seus capatazes, de seus serviçais −, e houve outra arquitetura que encarna − encarnou, há de encarnar − o mundo e seus habitantes.

notas

NT – Sobre o título “Em tempos irregulares”, o autor esclarece: “em algumas frases, os tempos verbais não são os regulares. Esta incorreção também é voluntária.”

NE – Publicação original: QUETGLAS, Josep. El Croquis, n. 106-107, “Arquitectura española: en proceso II”, Madri, 2001, p. 8-15. Tradução ao português de Susana A. Olmos, em agosto de 2015.

1
SEMPRUN, Jaime. Dialogues sur l’achèvement des temps modernes, 1993.

2
SEMPRUN, Jaime. L’abîme se repeuple, 1997

3
SEMPRUN, Jaime. Dialogues (op. cit.).

4
Encyclopédie des Nuisances, 1, 1984.

5
SEMPRUN, Jaime. L’abîme (op. cit.).

6
SEMPRUN, Jaime, Dialogues (op. cit.).

7
Idem, ibidem.

8
Idem, ibidem.

sobre o autor

Josep Quetglas é professor catedrático da Escola de Arquitetura da Universidade Politécnica da Catalunha e autor de numerosas publicações de teoria e crítica da arquitetura. É autor de diversos livros, dentre eles La casa de Don Giovanni (1996), El horror cristalizado: imágenes del Pabellón de Alemania de Mies van der Rohe (2001), Pasado a limpio I (2001), Pasado a limpio II (2002) y Oiza, Oteiza: línea de defensa en Altzuza (2004), Artículos de ocasión (2004), Le Corbusier et le livre (2005). É um dos principais especialistas do mundo sobre Le Corbusier, também editor de suas obras completas de Espanha.

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