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research

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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
A partir da reflexão sobre o Projeto Paranapanema (1994), de José Fábio Zamith Calazans (1948/2012), discute-se o arcabouço teórico desenvolvido por meio da estruturação do pensamento dialético. O Artigo apresenta “A Hipótese”, parte 1 do texto.

english
From the reflection on Paranapanema Project (1994), by José Fábio Zamith Calazans (1948/2012), the text discusses the theoretical framework developed by structuring of dialectical thinking. The article presents "The Hypothesis", first part of the text.

español
A partir de la reflexión sobre el Proyecto de Paranapanema (1994), de José Fábio Zamith Calazans (1948/2012), el texto analiza el marco teórico desarrollado por la estructuración del pensamiento dialéctico. El artículo presenta "La Hipótesis", Parte 1.


how to quote

MANETTI, Claudio; SILVA, Jonathas Magalhães Pereira da. José Calazans: arquitetura, dialética e projeto. Parte 1 – turbulência. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 186.03, Vitruvius, nov. 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.186/5838>.

Desenho do Centro Político, croquis recentes


Introdução

Muitas coisas pesam sobre a trajetória do arquiteto José Calazans. Discute-se as implicações de seu trabalho em sua vida, da dimensão estética que perseguiu e nas possibilidades de consecução das inúmeras variações que seus projetos apontavam. Por outro lado, avalia-se a relevância de sua obra como verdadeiramente concreta, aceita como significativa, pois distante das vertentes que consideram ser Arquitetura, apenas, “obra construída”, uma vez que, dos projetos que fez, poucos foram edificados.

Importante repensar sua contribuição pela totalidade daquilo que poderia ter sido produção arquitetônica, sobretudo, pela farta abrangência reflexiva das condicionantes intrínsecas de seu trabalho, claramente observadas nos desenhos resultantes do árduo processo projetual que impunha a si mesmo.

Arquitetura transcende meias verdades. Expressa a condição histórica dos ciclos culturais de sociedades na revelação do espaço, marcado pelos elementos edificantes da técnica por estéticas que derivam profundamente das relações de reconhecimento das heranças simbólicas e das agudas ambições no aprimoramento do sentido de beleza - consciência dos percursos incansáveis nas infinitas experimentações pelo grau de maturidade que fomentam as necessidades humanas – corporizando saberes pela apropriação transitória dos ciclos de vida (1). Sua força está na reflexão do construído (presença viva e incondicional sobre territórios), do vivido (na imaterialidade da memória e na projeção das ruínas) e do imaginado (pelas provocações sedutoras das utopias).

O Projeto adquire, portanto, condição de instrumento fundamental, tanto como aprimoramento de concepção e controle da produção das materialidades evidentes, como na investigação das possibilidades inventadas, irreais ou improváveis, desdobradas do fazer arquitetônico como investigação da própria realidade que se apresenta como universo inexorável. Isso, por um lado, não retira do projeto sua dimensão concreta, histórica. Muito pelo contrário, lhe dá a pertinência da contribuição por uma nova construção estética ainda mais ampla, se considerarmos sua abrangência social e política, como uma ponta que fere a realidade herdada e cruelmente mantida, a chave que abre a caixa de pedra presumidamente intangível, como assim fazia Sant’Elia (2).

Algumas condicionantes sobre o Projeto devem ser esmiuçadas. É importante começar pelos pressupostos que o confunde como atividade puramente prática, por conseguinte, de controlada abrangência e relevância circunscrita à técnica.(3). Sua configuração aparenta ser a mediação entre a dependência dos fatores determinantes do resultado, pressionado pelo ordenamento legal, econômico e idiossincrático de seus clientes; da impossibilidade de superação da obra sujeita as intempéries das temporalidades do cotidiano vivo e mutante das cidades (das dinâmicas de transformação gerando as variações dos territórios que alteram a propriedade autoral); e da rejeição às incômodas estocadas da crítica a contragosto do criador. Para além da permanência, da amplitude existencial e da negação da obra arquitetônica, como um ciclo de vida, latência e morte, as questões do Projeto como construção de conhecimento merecem galgar outros patamares.(4) Preponderante romper com as determinações da ambiguidade entre o autor apegado a sua obra (como um cão de guarda contra todos e seus usos, que não sejam os previstos), e a contradição decorrente das outras formas de produção do espaço, brotado da riqueza na percepção do processo de decantação das grandes massas arquitetônicas que conformam a cidade dos anônimos.

Controle ou deliberação? Projeto é a preciosa resultante de um processo de constituição de parâmetros, manejo de informações e decorrências produtivas, que, se corajosamente engendrados, grita para novos rumos. Para o “fazer arquitetônico”, o Projeto se inicia com a “pergunta” constituída por fatores de indagação decorrentes da matriz resultante do cruzamento entre a realidade lida e as possibilidades invisíveis que gravitam nos contextos de intervenção. A partir daí pode-se buscar (hipóteses) as variações de ordenamento - espaço e conteúdo - na antevisão dos novos mundos sobre o mundo em transformação. Não é mera operação combinatória entre técnica e legislação balizadas por fatores econômicos, mas a gradual edificação do desejo pela negação das composições. A provocação transcende ao imediatismo das respostas do mercado e merece argumentar a pertinência do Projeto enquanto teoria e prática, mas, sobretudo, como condição vital do arquiteto (5). Tal dinâmica é produzida pelas forças que se afirmam e se negam, entre as razões submetidas às variações da realidade e das vontades de ruptura – construção de valores agrupados e demolição das verdades obtidas (antíteses). Da “gangorra” entre os movimentos de procura/negação e diversidade/consolidação surgem os resultados mais completos que apontam para possibilidades de resposta à pergunta inicial, como resultantes que fecham, se assim for, ou reabrem tantas outras, por novas inquietações devolutivas para constantes sínteses.

Mas, seria esta, uma atribuição isolada sob única regência? É nesse sentido que a distância entre “produzir” e “contribuir” se dá. A atitude projetual adquire dimensão política quando generosamente intermediada através da ferramenta do desenho. Nesse sentido o desenho se faz como um instrumento da interlocução, primeiramente como exercício prospectivo para depois incorporar um conjunto de pequenas certezas, permitindo-se à abertura pública, decorrendo possibilidades de troca entre quem provoca e quem quer compreender, discutir, se apropriar do ato criativo. Porque precisa dominar o sentido do lugar ainda intangível para acrescentar experiências de vida. Assim, se considera que o desenho, mais que revelar ou permitir a interpretação de conteúdos visuais, também contém o pensamento aberto, expressão e veículo de comunicação entre os atores distintos durante processos de concepção e maturação de ideias.

Calazans (6) temperava seus desafios pelas impossibilidades aparentes, e respondia com desobediência às condicionantes e as forças da realidade imperativa. Na verdade, a realidade como aceitação da nulidade se impõe ao universo dos mais fracos diante da impossibilidade de reversão do quadro político e social maturado pelo cotidiano desalentador e pelas discrepâncias históricas que marcam em cada um as rugas da impotência frente ao mundo. Ao contrário, e para alguns arquitetos, o Projeto guarda o germe da antecipação das outras realidades como negação da nulidade, traduzindo em materialidade a dinâmica das ondas que oscilam entre as prerrogativas que impedem e as que libertam, em embate frontal, alimentando as transgressões pelas escolhas.

A contribuição de Calazans, portanto, está na dimensão de seus projetos, na revelação das forças que operam o (e no) espaço, e na incansável atração por nadar contra a correnteza. Representa uma sociedade mais viva, ignição das veladas amplitudes revolucionárias, no contraponto das regras desafiando a camisa de força da banalidade vigente. Não há anacronismos. Quem se acostumou e se aquietou diante das “verdades temporais” do mundo perdeu a chance de viver maravilhosamente sob os riscos. Quem aceitou ser nulidade jogou fora sua maior capacidade, a de ser fundamental.

Arquitetura não pode ser o resultado “a gosto do freguês”. Sua pertinência se liberta das grades das contingências.

Inconformado pelas amarras, pelo hermetismo e pela passividade das gerações que escolheram aceitar a inércia ao invés da reação concreta, Calazans significa o incômodo e a genialidade, então, tendente ao esquecimento conveniente se não for amplamente estudado e corretamente debatido. Retomemos pequena parte de sua significativa obra, sobretudo quanto a construção do exercício projetual, daquilo que, talvez, tenha sido seu maior legado: a dialética no projeto.

Transformar para habitar

Em 1994, Calazans foi contratado por uma associação de entidades de favelas da zona sul de São Paulo, (7) para a elaboração de um projeto habitacional nos moldes dos trabalhos que o tornara uma das referências na produção de pequenas revoluções urbanas. Os princípios do trabalho derivavam da relação direta com a comunidade via grupos políticos de base, das formas de maturação de desenhos pela discussão com as famílias organizadas, do equacionamento da propriedade da terra, capacidade de financiamentos e consolidação das relações sociais por uma nova realidade. Para ele a arquitetura se fazia com todos os elementos constitutivos da sociedade, com amplas relações entre a cidade e a arte.

A proposta contratual previa o assentamento de mil famílias em área localizada no Jardim Nakamura (Região do Jardim Ângela), zona sudoeste de São Paulo. A gleba com aproximadamente 5 ha, de perímetro irregular - tal qual a um “bumerangue” - acompanha a feição da “saia” das encostas do Morro do Índio, que juntamente com outros alteamentos da região formam a linha de cumeada dividindo as bacias do córrego do “S” e as do Guarapiranga (Área de Proteção de Mananciais). Ao longo do divisor de águas está a Avenida do M’ Boi Mirim, reafirmando o antigo caminho indígena, nos domínios geográficos determinando as possibilidades dos assentamentos urbanos. A porção mais significativa da gleba faz frente para a Avenida do M’ Boi Mirim (8), e conforma parte do “anfiteatro” das cabeceiras do córrego do “S” que desagua no rio Pinheiros, a jusante do Guarapiranga. Além do trecho frontal à avenida, os limites da gleba estão demarcados pelas ruas Simão Caetano Nunes (em direção ao Campo Limpo pela estrada de Itapecerica), Dr. Felipe Cabral de Vasconcelos (bordando o sopé do morro), e a Ribeirão dos Frades (enlaçando o topo).

Imagem da gleba e região [Imagem capturada do Google Earth Pro]

A região foi ocupada sistematicamente por populações que migraram atrás de melhores condições econômicas após os anos 1960. A paisagem demonstra as sucessivas camadas de sobreposição de lajes que marcam a decantação da autonomia dos pobres pela ausência relativa do Estado. Ainda hoje os bairros daquele quadrante apresentam os mesmos problemas que foram sendo ciclicamente agravados com o tempo, tais como a ocupação irregular extensiva, a parcial infraestrutura, favelas em fundo de vales e em áreas de encostas, a incapacidade de mobilidade e acessibilidade, a ausência de áreas livres que não sejam as próprias ruas, e na concentração das zonas de conflitos socioeconômicos. A região do Jardim Ângela, apesar de aparentar a mesmice das edificações em geografia recortada, como um “manto” monótono e intimidador, revela, através do olhar cuidadoso, a riqueza das relações construídas entre as famílias que lutam pela urbanidade a cada dia.

A “Vila Paranapanema” (9), nome emprestado do lugar, tinha, além do programa e da topografia, outros desafios igualmente expressivos, como o equacionamento das formas de aquisição da terra e o processo de maturação de propostas ocupacionais que viessem a atender as expectativas das famílias envolvidas – especialmente quanto aos tamanhos das unidades habitacionais (10). Toda a área do projeto estava, e atualmente ainda está, ocupada por favelas. Não se tratava, portanto, de um desafio meramente quantitativo sobre o ordenamento do local por força contratual. O pressuposto permitia dar ao projeto a abrangência da revelação da cidade e da permanência (prevendo possibilidades de ampliações futuras das áreas privadas conforme as dinâmicas de vida das famílias) e consolidação (mantendo a organização do conjunto e a inserção de equipamentos de apoio às famílias moradoras do projeto e dos bairros lindeiros (11).

Panorâmica da região
Jonathas Pereira da Silva

A gleba destinada para as habitações estava sendo negociada para aquisição pela população, vinculando as estratégias negociais ao conjunto das ações de viabilidade para o assentamento. Os elementos orientadores do projeto buscavam algum equilíbrio entre a capacidade de pagamento das famílias, o número de unidades habitacionais (com áreas compatíveis às demandas de cada família), espaços dominiais complementares (espaços públicos, espaços comerciais, institucionais e políticos, equipamentos articulados ao conjunto), conexões (fruição e inter-relações) e infraestrutura adequada. O projeto seria o grande articulador entre os elementos da equação financeira e ocupacional (físico/financeira e político/social), da cidade e das relações humanas gravadas no espaço, num desenho de unidade contraposto a paisagem envoltória - viário em malha difusa, parcelamento de lotes mínimos, equipamentos isolados e fragmentação dos vazios sem apropriação pública. A “questão” do projeto, ou a “pergunta”, amplificou as metas do contrato, incorporando outros desafios por resoluções mais amplas, levando em conta as conquistas que poderiam surgir quando das manobras dialéticas: observação atenta da cidade e região, das relações sociais e políticas verificadas nos contextos do Nakamura, nas derivações entre a consolidação histórica dos lugares referenciais, e das possibilidades de antecipação dos futuros modos de vida.

Um lugar para o trabalho

Naquele ano, Calazans ocupava duas salas de um escritório de arquitetura na rua Braz Cubas, no bairro da Aclimação (12), Região Central de São Paulo. Os espaços das salas expressavam a disciplina de seu trabalho para o “rito” projetual.

Ele costumava estabelecer com os lugares em que trabalhava uma relação de organização e dominação dos vazios, num diálogo com as imagens que produzia, ora tomando as paredes murais que marcavam os estágios do projeto, ora evidenciando as escolhas compartilhadas, sempre em muita turbulência, aceitando ou descartando variáveis sem perder o fio. A construção do sentido nos vazios desses lugares revelava a possibilidade concreta da imersão cotidiana no espírito das procuras, das dúvidas e das perguntas, dando densidade ao ar, palpável, tangível, como uma “amálgama” densa, de onde se escavavam as perspectivas de respostas. Nesses ambientes podia-se respirar o processo de concepção gradual revelado pelos desenhos inquietantes, ao visitante eventual e desavisado, como que por dentro da cabeça e do coração do arquiteto, numa instalação mutante, viva nos “frames” dos croquis prospectivos. Numa das salas, o espaço do desenho, era marcado pelas pranchetas grandes e planas ladeadas por uma “mapoteca”, onde ficavam os croquis mais preciosos (croquis de sempre, os preferidos de todos os projetos que fez). Noutra, a maquete em surgimento, de proporções extraordinárias, concomitantemente trabalhada a luz da dureza dos materiais.

Desenhos e maquetes de estudo simultaneamente alinhavando a concepção. O cotidiano era de entusiasmo, um trabalho ininterrupto marcado por um ritmo obstinado com poucos hiatos, apenas nas interrupções para os cafés, relativamente longe o bastante para conversas pausadas, em passeios curtos para decantação dos assuntos misturados cabíveis entre intervalos.

O trabalho se iniciou formalmente com as reuniões de apresentação da equipe técnica, dos prazos e pertinências do projeto, tendo à frente as famílias contempladas juntamente com as lideranças do movimento popular, na sede da Associação. As primeiras reuniões objetivaram a consagração dos critérios elementares do programa e da agenda de encontros entre arquitetos e a população envolvida, e determinaram as possibilidades de flexibilização dos conteúdos mais rígidos do contrato diante das amplitudes do projeto, uma vez que a experiência poderia desencadear tantas outras, com desdobramentos na produção de componentes industriais, metodologias de trabalho, composição de custos, resolução de propriedades, e aprimoramento das formas de interlocução política (interna e externamente) para futuras composições de força.

A cidade das escostas

Após a elaboração dos levantamentos (topografia, morfologia da paisagem, sondagens, cadastramentos, consultas institucionais), novas questões somavam-se como contribuições às aspirações futuras da população. Provocações preliminares, aparentemente improváveis, começavam a resignificar os desafios, especialmente quanto as capacidades de financiamento sem traumas (terra/edificação/infraestrutura), compatibilização dos redimensionamentos das unidades para maiores áreas “privadas”, aumento significativo das áreas comuns e inclusão de equipamentos para uso do bairro, gestão (obras e convivência) e novos elementos de suporte econômico para equações financeiras cada vez mais adequadas às condições de cada família.

A hipótese

Os esboços preliminares (13) já refletiam a marcação das encostas do morro a serem enfrentadas como contenções vivas, vazadas somente pelos fluxos desejados das transposições entre o edifício em formação e os bairros.

O edifício original da Vila Paranapanema foi desenhado, também, para conter um grande barranco instável de uma grande pirambeira, tendo na cota alta a estrada do M’boi Mirim, na entrada do último Centro Urbano periférico da época, o Jardim Nakamura, tão ativo como o centro do Jardim Ângela, que durante muitos anos foi a fronteira entre o campo deteriorado e a cidade precária (14)

Os princípios estabeleciam a relação entre conteúdos edificados (caixas contentoras dos novos modos familiares por uma nova vida) e as necessárias ramificações (internas e externas), enunciando possibilidades de diálogos entre fluxos e lugares, numa sólida representação dos espaços estendidos da cidade em formação. Arquitetura que empresta sua condição de articuladora dos espaços e dos abrigos a favor das relações externas entre arquiteturas.

Calazans experimentava há alguns anos um desenho de habitação onde a unidade familiar, construída como “caixa oca”, configurasse a totalidade do vazio interno para serem gradualmente preenchidas pelas demandas de usos. O controle técnico das expansões (para qualquer mão de obra) estava na demarcação das esperas dos pisos futuros (lajes internas), didaticamente identificáveis nas empenas divisórias, em vãos propícios. Uma espécie de lote vertical para obras de expansão sob controle do morador, sem perder a configuração do conjunto geral – experimentava a fusão entre extremos: industrialização e autoconstrução.

Estudos para habitações ampliáveis. Casa Hotel, 1980 [Acervo família de José Calazans e publicação. Produção LIVI FAUUSP, 2010]

Estudos para habitações ampliáveis. Casa Hotel, 1980

Estudos para habitações ampliáveis. Casa Hotel, 1980

Essa estratégia resolvia, entre tantas possibilidades, as equações financeiras dos custos de produção quando aferidos nas composições de custos gerais – cota de terra por família/infraestrutura/unidade habitacional. As unidades, como que lotes cúbicos aéreos, continham, além da estrutura básica de suporte para as novas lajes, uma “torre” hidráulica que cumpriria as funções de apoio (sanitários, cozinhas e áreas de serviço) e ajudaria nos circuitos internos verticais através das escadas de ligação entre os pisos (existentes e futuros).

Calazans realizou alguns projetos denominados de “Buracos Negros”, como analogia aos buracos negros do universo que concentram matérias e ampliam o vazio. “com o universo dos espaços públicos ocupando o mesmo universo dos espaços privados” (15).

Podemos dizer que foram experimentadas duas vertentes: 1) propostas que objetivavam a ampliação das funções de moradia e trabalho em usos unificados, que rompiam com confinamentos determinados pelos arcabouços edificados, discutindo a configuração das casas ou apartamentos, rompendo a lógica das disposições em plantas alinhadas, em sobreposição (projeção das unidades). Esses projetos apresentavam a organização espacial desalinhada, em dois ou mais blocos, variando usos e extensão de áreas complementares; 2) propostas estratégicas que promoviam operações de abertura de vazios em compartimentos já ocupados densamente por favelas, onde a própria gleba seria usada para a implantação do projeto final.

Croquis para os estudos do Edifício “Buraco Negro”, 1970/80 [Acervo família de José Calazans]

Nesse sentido “Buracos Negros” seriam as ocupações mais adensadas sobre áreas vazias – removidas - reassentando um maior número de famílias em novas edificações, superando, portanto, o número de famílias ocupantes do trecho de solo disponível. Isso criaria a lógica de liberação de vazios resultantes, uma vez que o número de famílias se instalaria em menores áreas de terra, permitindo outros usos para os remanescentes ou das escolhas para o melhor uso do excedente (para aumento das áreas construídas por famílias ou para espaços complementares de uso comum). Tal qual a um buraco negro, a estratégia arquitetônica se dava na alimentação da matéria construída para a criação de sinergias pela profusão de novos espaços dentro e fora dessas ocupações.

Planos de permanência e acessos verticais internos ampliáveis com espaços externos residuais constituíam a base organizacional dos espaços decorrentes das unidades de habitação – quintais altos quando as unidades se sobrepunham às outras, ou quintais no embasamento contribuindo para as contenções distribuídas no chão.

Projeto habitacional para Granja Ito, São Bernardo do Campo. Programa de Urbanização de Favelas, CDH, 1984/1986 [Publicação, produção LIVI FAUUSP, 2010]

Os agrupamentos habitacionais determinados pelas “caixas” também contribuíam para a contenção de terra para os novos platôs externos, novos pisos planos de uso compartilhado por todos. As “torres de escadas”, além de resolver os circuitos verticais, adquiriam outras atribuições no conjunto geral, também funcionando como contrafortes (gigantes) no sistema de contenções de terra. Evitando as contenções altas e amplas, portanto, suscetíveis aos esforços sobrecarregados dos compartimentos de terra, além das indesejáveis áreas escuras e húmidas que permanecem nesses “panos”, a resposta foi o escalonamento dos anteparos dividindo os esforços em pequenas paredes externas entre os vazios e as massas de solo.

A habitação “expandida” era a semente do conjunto de arcabouços de conteúdos preenchíveis respeitando o ciclo de vida de cada história familiar sem perder a história do todo. Essa lógica permitia manejar as variações do projeto como um todo, na concepção dual entre suportes sólidos e vazios residuais, quanto às manobras da expansão dos vazios para apropriação dos excedentes, ora inserindo outros usos misturados, ora abrindo novos vãos ou passagens para inclusão das travessias.

Finalmente, o resultado dos agrupamentos habitacionais em “renques” ou blocos horizontais estabelecia o ordenamento estrutural pelas empenas divisórias de cada unidade, configurando duas fachadas externas (frente e fundo), arrematadas pelas abas (beirais) do topo, como pórticos enfileirados, onde se podia ler o enquadramento de cada habitação, encadeadas em relação ao conjunto. Um ritmo coeso e rigoroso traduzido das variações de conteúdo de cada casa em sobreposição.

Croquis para o Projeto Mercedes, São Bernardo do Campo. Programa de Urbanização de Favelas, CDH, 1984/1987 [Acervo família José Calazans]

Havia uma correlação em seus estudos arquitetônicos anteriores, da experimentação de protótipos de habitações populares desafiando compartimentos geográficos mais recortados, associando custos de produção aos valores de transformação dos lugares (16), onde os blocos habitacionais estabeleciam os desdobramentos de espaços de uso público decorrentes das áreas internas das casas. Isso permitia acessar as moradias pelas cotas mais altas das encostas (ou outros acessos sobrepostos) em contrapartida aos usos vinculados aos fundos das unidades agrupadas, nas cotas mais baixas do embasamento dos blocos, revelando externamente as longas fachadas. Essa lógica invertia a forma de tratamento do solo para construção de conjuntos habitacionais usualmente produzidos pelo poder público - construção de platôs com contenções ou taludes externos definido parcelamentos mais planos para posterior edificação das unidades - trazendo a definição de planos externos para dentro das unidades, na concentração dos platôs em cotas diferentes absorvidos pelas torres de escadas/hidráulica, como uma linha vertical de inflexão entre os patamares internos para os pavimentos da unidade, gerando espaços residuais externos com as amplitudes coletivas necessárias. Assim, pela lógica de Calazans, os desníveis seriam absorvidos pelas unidades, transformando as diferenças de alturas em patamares de ampliação de áreas no interior das habitações, e para fora das unidades, o aproveitamento dos vazios na somatória de áreas utilizáveis e integradas ao sistema de espaços livres do conjunto, em resposta à fragmentação dos recuos e envoltórias externas das edificações verificadas nos conjuntos habitacionais.

Croquis, primeiros cortes de estudo do conjunto. Bloco Habitacional Coeso [Acervo família José Calazans]

Os desenhos partiram, então, dessa organização estrutural, qual seja a de agrupamentos de blocos habitacionais sobrepostos, como um “monólito” escavado, perfilados e revelados externamente nas marcações dos pórticos. A hipótese buscou a correlação entre esses grandes monólitos assentados formando os platôs, estruturados por uma rua interna que estabeleceria um eixo de circuitos mais intensos, apoiando as circulações entre os bairros lindeiros nas encostas do morro. A rua estabeleceria uma cota intermediária de interligação longitudinal evidenciando a forma da gleba devidamente ajustada nas movimentações de terra. Paralelamente à rua principal, duas vilas foram agregadas ao sistema de caminhos internos do conjunto. Essas vilas constituiriam os percursos guardados das unidades e permitiria, além dos acessos, estender os usos internos das moradias para as trocas entre a vizinhança. O tripé viário (uma via mais intensa articuladora ladeada por duas vilas reservadas para os acessos às moradias) previa o feixe de caminhos, dando aos blocos habitacionais a pertinência inicial de se comportar como uma “barragem” de contenção das encostas para novos sentidos de usos públicos, aglutinando a cidade dentro e fora.

Croquis, primeira estrutura de ocupação do conjunto. Bloco Habitacional Coeso
Claudio Manetti

 

Calazans denominou o projeto completo como a “Cidade das Encostas”, mas poderia tê-lo chamado de “Cidade dos Interstícios” ou das grandes concentrações miscigenadas, ou mesmo de “Arquitetura das Abrangências”.

notas

NA – O arquiteto e urbanista Claudio Manetti, autor do presente artigo, é coautor do Projeto Paranapanema e agradece no texto a Carlos Alberto Barbosa, Marcelo Colaiacovo, Mariana Calazans e Renata Alves de Souza.

NE – O presente artigo é a primeira parte do artigo. A segunda e última parte está disponível em: MANETTI, Claudio; SILVA, Jonathas Magalhães Pereira da. José Calazans: arquitetura, dialética e projeto. Parte 2 – Negação. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 187.01, Vitruvius, dez. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.187/5883>.

1
MARX, Murillo. (1989). Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo: Edusp.

2
Antonio Sant’Elia (1988-1916), arquiteto italiano, autor do manifesto Arquitetura Futurista 1914, desenhou utopias - desejos por novas realidades urbanas. Ver artigo: ALMEIDA, Eneida L’Architettura Futurista: O Manifesto de Antonio Sant’Elia – tradução e comentários -Revista Arq.Urb – número 9, Mestrado em Arquitetura e Urbanismo, Universidade São Judas Tadeu USJT, 2013.

3
ABRAMO, P. (2001). Mercado e Ordem Urbana. Rio de Janeiro: Bertrand do Brasil.

4
ARTIGAS, João Batista Vilanova. (2004). Caminhos da arquitetura; São Paulo: Cosac e Naify.

5
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos, (1988). A cidade como um jogo de cartas. Niterói: Universitária.

6
José Fábio Calazans foi arquiteto urbanista. Formou-se na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo FAU USP, na década de 1970.  Foi professor do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Taubaté UNITAU, iniciado em 1978, e um dos articuladores pela reestruturação por uma nova escola até 1980. Foi um dos criadores do escritório de arquitetura denominado “Galpão” da Vila Madalena, juntamente com José Geraldo Martins de Oliveira, Antônio Carlos Barossi, André Takiya, José Sales, dentre outros importantes nomes. Seu trabalho abrangia a produção arquitetônica e assessorias técnicas aos movimentos populares que reivindicavam respostas urbanas mais concretas nos anos 70 e 80. Posteriormente foi contratado, em 1984, pelo governo do estado de São Paulo para desenvolver parte da política habitacional na Região Metropolitana de São Paulo, coordenando o Programa de Favelas de São Bernardo do Campo, na Companhia de Desenvolvimento Habitacional CDH (hoje CDHU). Foi assessor técnico de diversos grupos políticos de habitação e agências técnicas de políticas urbanas, políticas públicas e planos diretores. Além disso, desenvolveu extensa obra nas diversas vertentes de produção de cidades, combinando estratégias de planejamento, programas de desenvolvimento para populações marginais e projetos de arquitetura nas diferentes escalas.

7
O contrato entre Calazas e as entidades selou uma relação formal de trabalho para atendimento de onze Movimentos Populares, cada qual representando cerca de 90 famílias cadastradas. Segundo informações contidas no livro “Croquis de uma vida – Croqui de uma vida”, sob a curadoria de André Takiya e Antônio Carlos Barossi, 2010, reproduzindo textos e desenhos dos projetos mais importantes de Calazans, as entidades haviam discordado da resposta pública da Prefeitura Municipal de São Paulo, na gestão Luiza Erundina (1989-1992), que consideraram a área para o projeto imprópria por ter topografia tão acidentada.

TAKIYA, A., BAROSSI A.C. (cur.) José Calazans; Croqui de Uma Vida: A Habitação e a Cidade a Cidade e a Habitação. FAUUSP, 2010

8
A porção sul da gleba faz limite com a Avenida do M’ Boi Mirim, na altura do Hospital Municipal Dr. Moysés Deutsch ao lado do Terminal Jardim Ângela,

9
Para compor a equipe, Calazans chamou a arquiteta Mônica Graner - com experiência em habitação popular e em autogestão desde as organizações de política pública do governo Luiza Erundina - e também, os ainda estudantes de Arquitetura e Urbanismo, Carlos Ferrata e Vítor Bontempo Rantigueri.

10
Cálculos preliminares apontam para uma densidade habitacional altíssima com cerca de 6.400 hab./ha, considerando média familiar de 3,2 pessoas. Mas, pela composição das famílias cadastradas para o projeto, tamanhos e perfis, a estrutura familiar apontava para organizações de acomodação bastante díspares das médias adotadas, demonstrando que a dinâmica de aglutinação de pessoas por unidade familiar, contempladas pelo projeto, se mostrava muito flexível e heterogênea. Ainda que bastante alta, a densidade habitacional deveria ser equacionada levando em conta duas prerrogativas: a) Unidades para todas as mil famílias cadastradas com possibilidade de expansão interna sem comprometer a unidade do conjunto; b) Espaços livres de domínio coletivo e público predominando sobre áreas edificadas.

11
A inserção de equipamentos públicos e privados não previstos na composição do programa – como no caso do Mercado e espaços destinados à pequenos comércios e serviços – era parte da estratégia financeira do empreendimento, na relação entre os valores de negociação da área, captação posterior para os recursos de manutenção e outras formas de composição de rendas para as famílias organizadas da região.

12
Pela paisagem agradável conformada pelas belas ocupações predominantemente residenciais em consonância com a topografia recortada das encostas do espigão ao Tamanduateí, o bairro da Aclimação traduzia a ambiência das relações de uso público nos percursos de observação e nos lugares de permanência. As ruas desenhavam as amplitudes das calçadas pela extensão dos jardins particulares, configurando uma “calha viária” transcendente ao alinhamento dos recuos frontais dos lotes, transparentes pelas grades baixas, pois os muros ainda não haviam. Assim se inseria o edifício do escritório, numa das ruas amplas em declive em direção ao Parque da Aclimação, sinuosa e arborizada, tranquila e simpática. O edifício organizava-se em três pavimentos altos: térreo comercial e salas sobrepostas com terraço na cobertura, acessíveis pela escada lateral.

13
Cabe justificativa quanto à ausência de alguns dos croquis originais neste texto. Na prospecção dos desenhos e informações que pudessem registrar com maior fidelidade a qualidade e a contundência do processo projetual vivido neste trabalho, verificou-se que grandes quantidades de croquis importantes desapareceram. A mapoteca e alguns arquivos, sob a guarda da família, já não continham a produção completa de Calazans, guardando pequenos registros de cada um dos projetos que fez, além de um trabalho de organização cuidadosa dos principais projetos compilados em ordem temporal, provavelmente para o material de elaboração do livro de 2010. Juntamente com esse material foi encontrado um trabalho impresso com os principais desenhos que selecionou e textos que buscavam alinhavar todos os trabalhos que fez, como um desejo de um livro que representasse a totalidade do que produziu em sua vida, e que não foi publicado. Além dos desenhos de arquitetura, foi encontrado um conjunto de desenhos abstratos, pequenos e belíssimos. Imaginasse que Calazans tenha trabalhado arduamente revendo todos os trabalhos de sua vida como um material a ser repensado e reconfigurado, como se cada projeto, ainda que não realizado, adquirisse vida própria, matéria viva e inexorável. Muitos originais se perderam provavelmente transformados em cópias reduzidas, registros e menções. A tentativa de reproduzir parte do material perdido é uma difícil tarefa, pois retira dos originais sua condição ritual e sua representação histórica.

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CALAZANS, 2010, pág. 239

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CALAZANS, 2010, PÁG. 69

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Decorrente dessa lógica, os desdobramentos da intervenção – transformação de áreas residuais em solo plano apropriável - permitia incluir tal variação de perspectiva no cômputo financeiro, com valores associados à habitação, agregando a “mais-valia” no processo econômico de apropriação do processo de transformação das realidades regionais.

sobre os autores

Claudio Manetti é Arquiteto e Urbanista. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (POSURB PUC-Campinas) e Profo da FAU PUC-Campinas e Univ. Anhembi-Morumbi. Atuação: CDH Programa de Favelas (1985/1987), SEHAB/HABI Programa de Cortiços (1989/1992); Diretor de Planejamento/ SMDU PMS (1993); Secretaria de Meio Ambiente (1996/2000); Operações Urbanas/Meio Ambiente EMURB/PMSP (2001 – 2005/2009); CPTM (2009).

Jonathas Magalhaes Pereira da Silva é Arquiteto Urbanista. Profo Dr. da Pós-Graduação em Urbanismo (POSURB PUC-Campinas) e da FAU PUC-Campinas. Mestrado (1999) e Doutorado (2005) pela FAUUSP. Atua como consultor na MPS associados: coordenação técnica do Plano Sócio Espacial da Rocinha RJ; coordenação de 11 planos participativos da região serrana do ES; projetos urbanos dos corredores de transporte em SP e na da Área Portuária do RJ.

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