A concepção contínua
Antíteses
A primeira provocação de Calazans foi a imposição ao projeto de um desafio pelo equacionamento de um número maior de unidades habitacionais, tendo em vista a possibilidade de ampliar a margem de flexibilidade entre o programa e as inéditas possibilidades não programadas. Essa condição, frequente nos projetos que fazia, estabeleceu, para o “Paranapanema”, um patamar de viabilidade de implantação acima da meta das mil unidades iniciais, como um estoque para variações a favor dos espaços abertos livres do conjunto ou para as outras possibilidades de usos relacionados às demandas da região. Não se tratava de ampliação pura e simplesmente, mas da extrusão dos vazios como conteúdo de apropriação para a correlação das vivências. Mesmo diante dessa meta, os desenhos demonstravam o cuidado com a beleza dos espaços, pela necessidade da unidade arquitetural tendendo a resultados que satisfizessem ao grupo de arquitetos primeiramente, para depois serem submetidos às reuniões com as famílias organizadas. Calazans denominou a busca por essa unidade arquitetônica de “Totalidade Perfeita”. Explica-se a relação entre a condução do projeto e as dinâmicas de discussão abertas, como um processo de idas e vindas, pertinente a qualquer constituição de produtos coletivos, contando com a contribuição de todos devidamente instruídos para o debate e proposição de novas vontades, e que alimentem as decorrentes revisões e amplitudes do desenho.
A melhor resultante dos estudos e a que foi assumida como a mais interessante hipótese de arranjo do projeto, atingiu marca superior ao número de unidades previstas e permitiu, portanto, a flexibilidade das manobras de “escavação” dos sólidos arquitetônicos.
Cabe aqui discutir a mecânica das variações do projeto segundo a ótica das operações de busca de resultados finais (quando o projeto se revela e se impõe), através das alternativas que promovam o movimento cíclico das perguntas e respostas pela consistência da unidade arquitetônica - nesse sentido, a construção da unidade de conjuntos compostos por unidades fragmentárias a favor da síntese projetual. As condicionantes que revelam as dificuldades do projeto estão no ordenamento do programa (físico, social e econômico) a ser perseguido, na ruptura das relações do programa frente às aberturas que podem nascer do processo que constituirá o conteúdo do edifício (ou do edifício de edifícios) - ciclo de combinação/ruptura/reconstrução – ou, por outro lado, da dinâmica combinatória entre a extrusão dos sólidos e vazios, numa lógica de estruturação da ruptura, para posterior expansão dos elementos inovadores do programa, visando outras tantas aberturas de frentes projetuais decorrentes. As interfaces entre a construção programática e sua repercussão no desenho - idas e vindas - significa o estabelecimento entre a “consciência” do projeto, que gradativamente vai tomando forma e força, e o diálogo com as externalidades vivas, presentes ou futuras, da dicotomia entre as grandes linhas de força.
Nesse caso, o primeiro desenho do conjunto arquitetônico incorporou a feição da gleba (Fig. 01), de maneira ainda precocemente não muito elegante, pois com os excedentes propositais das áreas e do número de unidades, embora já contivesse a gênese do projeto final. Os croquis preliminares adotaram a longitudinalidade da área relacionando-a a estrutura ocupacional (blocos e vias) do conjunto, desenhando dois compartimentos (alas) implantados ao longo dos dois trechos de gleba, ligados por uma “esquina”, onde estava uma das vertentes (talvegues) entre as encostas da M’boi Mirim e as bordas do Morro do Índio.
O argumento da expansão de unidades sem comprometimento das áreas internas permitiu o deslocamento do primeiro bloco habitacional localizado na gleba frontal a M’boi Mirim, afastando-o da confluência entre a avenida e a Rua Simão Caetano Nunes. Esse trecho, importante por conter as relações de fluxo mais intenso e, também, como ponto de referência de conexão entre estradas na região (M’boi Mirim e Itapecerica), seria a primeira revelação de um novo lugar decorrente das relações entre o conjunto em formação (contexto arquitetônico) com a cidade (contexto urbano). A proposta para o uso do novo lugar, pelo significado e pela amplitude dos fluxos, foi a de inserção de um edifício para o Mercado Regional. O Mercado como peça de conexão e ao mesmo tempo como arremate do conjunto edificado, deu outra dinâmica ao projeto e, também, às discussões (entre técnicos, e entre técnicos e a comunidade), incentivando premissas de experimentação de novas combinações entre usos e intensidades de uso. Um edifício de abastecimento como equipamento público poderia ser gerido pela comunidade, ou por outros gestores sob a fiscalização da comunidade, ou mesmo pelo poder público, em caso de desdobramentos de acordos entre as associações e os órgãos pertinentes (considerando que a linha de financiamento para execução das obras viria do poder público). Se o edifício do Mercado foi um passo importante como uso e combinação de demandas públicas e comunitárias, sua correlação com os blocos habitacionais, a rua estrutural e as vilas, permitiu a organização das cotas de altimetria nos ajustes entre as ruas do bairro envoltório (com predomínio de rampas íngremes) e os acessos internos.
O volume do Mercado, como uma “tampa”, marcaria a transição entre a turbulência dos bairros existentes e as gradações dos contextos do conjunto, das variações de silêncios e das concentrações. A descoberta do Mercado, apoiado pelas associações de moradores, permitiu o atrevimento para outras experimentações que amplificassem a compreensão sobre o “morar”, pela abrangência do lugar.
A casa é uma eventualidade de uma organização maior. Não a simples comunidade dos condôminos. O compromisso é com a cidade total (1), de natureza societária, subvertendo as meras relações comunitárias (2).
O próximo desafio deveria contrapor a força do Mercado, voltando a discussão do desenho para os vetores opostos à grande concentração de interesses, na porção mais isolada do contexto da gleba. Tratava-se da invenção da polaridade na construção da lógica pelo significado da referência. No sentido oposto à “euforia” do Mercado estava a grota (talvegue), mais escondida e dificilmente dominável pelos trajetos e pelos domínios. Localizada na vertente da inflexão das glebas (a quina do “L”), a grota ou “anfiteatro” da encosta leste da M’boi Mirim, deveria ser enfrentada, tanto por sua complexidade (linha de drenagem natural), como por sua potencialidade de reconversão. Naquele trecho os bairros vizinhos são mais imbricados, tornando a “questão” para o projeto, numa resolução de travessia por passagem transversal fortemente inclinada, juntamente com alguns usos correlatos que decorressem da irrigação dos caminhos. Ao observar o lugar, percebia-se que certos usos derivavam da pertinência entre ocupação e a feição geográfica (cabeceiras em “anfiteatro” próximas dos grandes divisores de águas). Obviamente que a proposta de um lugar que concentrasse as ocupações políticas e culturais surgiu e ganhou fôlego.
O Teatro conectado a um Pavilhão político a serviço das entidades comunitárias da região, pela relação com os acessos da avenida e pela nova passagem (bem mais calma e mais controlada que a esquina do Mercado), seria testado a exaustão nos ajustes dos desenhos de articulação entre os dois blocos longos habitacionais. Esse trecho faria a “dobra” e marcaria o alinhamento do conjunto ao longo das ruas de fora. O princípio da esquina solta entre os blocos de habitações faria do lugar uma referência na paisagem pela constatação pública de um volume articulador dos caminhos (escadarias e rampas leves), da ênfase da “dobra geográfica” e da evidência de sua construção desde as cotas mais baixas, na marcação do espigão de M’boi Mirim. A tendência do desenho seria retirar a pertinência do volume edificado como bloco articulador da esquina e consagrá-lo em vazio de força (a ausência da figura e a solidez do fundo), escavado das relações residuais. O espaço dos interstícios, das aberturas e da disciplina entre a passagem e os continentes. Se construída, hoje faria a ligação potente entre os bairros localizados nos baixios da bacia do “S” em contiguidade até o Hospital e o Terminal de Ônibus Jardim Ângela, consagrando a tese da centralidade deslocada. Uma “porta” de caráter regional.
A questão retoma a construção das dinâmicas, dos ciclos das pequenas pendularidades, da revelação dos novos momentos de convívio e das inter-relações políticas. Recoloca a condição das variáveis de maturação dos lugares, apoiada nas diversidades, entregues ao exercício experimental do cotidiano.
Os desenhos foram se consolidando na direção das linhas preliminares que enfatizavam as duas alas habitacionais articuladas pela rua central, acompanhadas pelas vilas de acesso às unidades. As alturas das edificações acompanhavam a relação com a largura das vias, conferindo espacialidades concernentes para cada caminho. As soleiras para os acessos às moradias recuavam um pouco para dentro dos blocos para garantia da singularidade das entradas, sem comprometer, no entanto, a vitalidade livre das passagens. Conforme o projeto se consolidava como resposta, novos desafios surgiam.
Com a estruturação rigorosa dos volumes habitacionais lineares, o Mercado e o Centro Político, a discussão se voltou para o desfecho norte. Naquele trecho, o mais longo das duas alas, e com maior dificuldade de definição, uma vez que a intensidade entre os bairros vizinhos se diluía perdendo força, se julgou necessário a inserção de um edifício significativo que pudesse arrematar os percursos longos, a inauguração de um novo fôlego, definindo o desfecho em transição com os lugares, até então, inacessíveis para fora do conjunto. Uma transição e um encontro onde somente as encostas do morro dominavam. Novos usos para o edifício no contraponto norte seriam adequados ao cotidiano dos bairros de fora, dando-lhes novos significados por novas dinâmicas. Com a definição dos caminhos longitudinais propostos a meia encosta, ideal para longos percursos numa região com sérias dificuldades de acessibilidade, pôde-se estudar um novo sistema de trajetos articulados pelos corredores de pedestres, desde o Mercado ao extremo norte do conjunto. Esse novo eixo ordenador das encostas do Morro do Índio permitiria incorporar as transversais significativas, antes obstruídas pelo desenho de ocupação precária e desconexa, originalmente preconizada pelo desafio das feições geográficas na consolidação das malhas de moradias incipientes.
Como se usava pela primeira vez intensivamente as ferramentas digitais para desenvolvimento de estudos, estabeleceu-se uma dinâmica de trabalho - croquis sobre bases técnicas limpas decantadas pelo CAD - na sobreposição de novas inquietações reflexivas sobre as reflexões maturadas. A cada plotagem, novas determinações superpostas em camadas de papel transparente comandadas pelo gesto do desenho. O Estudo Preliminar adquirira o conteúdo das ferramentas de desenvolvimento que garantiriam as dimensões e componentes edificantes. Questões relacionadas a infraestrutura, que perpassaram pelas discussões preliminares, agora se aplicavam ao desenvolvimento dos componentes para o Anteprojeto (execução de elementos construtivos, redes e sistemas). Novamente, e nessa etapa, as plotagens continham a maravilhosa organização entre os pequenos agrupamentos de habitações, como que bairros interligados pela rua principal e as vilas de amarração, o Mercado imponente encravado na solidez da principal esquina, o Centro Político no contraponto - como um pivô dos dois grandes blocos - e o edifício ao norte, dialogando com o entorno. O edifício norte adquirira o perfil das potencialidades da troca social para um novo espaço de educação infantil. Se impunha, portanto, como marco transformador.
O processo parecia tendente ao desfecho. As reuniões com as famílias e lideranças consolidavam as propostas e apontavam para as confirmações das novas ambições, cuja conquista, pelo olhar do arquiteto na revelação das potencialidades regionais, apaixonava e promovia a vontade de obter a cidade transformada, fundamentada nos princípios extraídos dos valores adormecidos por uma nova estética.
Todo o cenário das salas do escritório, na contemplação dos últimos desenhos plotados, respirava a limpeza dos espaços, conteúdos e determinações técnicas conquistadas depois de quase 40 dias de trabalho. As maquetes se configuravam nos relevos em quatro módulos que se juntavam numa grande apreensão do vale do “S”. Era toda branca e ocupava quase que a extensão da segunda sala. Os desenhos nas paredes foram retirados, segundo criterioso juízo. Parte ia para a mapoteca, com os desenhos de sempre. Parte amassados violentamente como que banidos, não por falta de qualidade gráfica, mas por drástica negação diante das escolhas dos rumos do projeto. Outras rotas constitutivas. O que não encadeava não sobrevivia. Aqui cabe outra consideração quanto ao rito das escolhas e das ponderações no percurso projetual, da prospecção dos caminhos do projeto, estabelecidos pelo esgotamento dos desenhos das variáveis de revisão. A cada passo dado, diante de alguma questão significativa do projeto, Calazans abria a construção de variáveis para novos caminhos, ora em busca de algo não revelado, ora para reafirmação dos percursos existentes - como que edificando as contraposições pelas diferentes amplitudes do pensamento.
Podemos dizer que ao fechar a primeira etapa, onde as perspectivas enunciadas inicialmente se consagraram num desenho síntese, viveu-se ali, diante do produto obtido um instante de contemplação e dúvida. Dentro das salas limpas, diante dos desenhos resolvidos e da espera branca da maquete, o projeto em arcabouço materializado sobre as mesas, contendo os elementos estruturadores do programa solicitado e das revelações de percurso, ainda indagava.
Síntese
As respostas básicas do contrato já estavam sanadas. Os desafios impostos, também. Por quais razões, então, a inquietação? O que poderia provocar novas rupturas? Calazans prosseguiu provocando, instigando ao projeto a coragem de subvertê-lo como um parâmetro a ser derrubado. Como se a inteligência se construísse a partir das reconquistas. Como se as conquistas fossem mais interessantes quando desonradas, duvidando das inteligências criadoras. Como se a “quebra” fosse a construção, e a construção pela construção de nada valesse, senão pelo simples fazer.
A retomada dos esforços pela organização das ideias e desenhos correspondentes, num estágio de esvaziamento das certezas do projeto percorrido, daria a atmosfera de angústia necessária para a abertura de uma nova lógica sobre a ordem projetual maturada. É um risco inevitável que vale a pena correr. Tese e antítese agrupadas, sistematizando a configuração do “problema”, da “questão projetual” pela qual o desenvolvimento deveria se dar como resposta segura, mas que aqui adquire a inversão dos fatores de edificação das razões do projeto. Como o lançamento de uma nova hipótese forte sobre a desconfiança da síntese. O contragolpe do “produto” que interfere e quer rever sua origem questionando a “linha de produção”.
Apesar de tarde e num clima de intransigência, as discussões recomeçaram tendo como primeiro ato a revisão estrutural do projeto, levando em conta suas principais virtudes. A ruptura do construído requereria a organização de um processo conceitual de identificação dos elementos estruturadores do todo, e do todo abalado pela totalidade ferida. Agora a unidade projetual ditava as questões que seriam postuladas pelas condicionantes da totalidade arquitetônica e urbanística. O novo desafio, após tantas ondas de maturação, traria a pertinência da unidade do conjunto como uma só arquitetura, sem perder todas as imbricações conquistadas. Mais tarde, Calazans revelaria que “...este edifício marca definitivamente a minha subversão da forma única” (3).
Nessa passagem há duas questões que podem explicar o sentido da busca de Calazans: Uma aponta para a discussão intrínseca ao pensamento moderno (onde a dialética está associada ao processo projetual) resultando estruturas sintetizadas, mesmo que derivadas das complexidades dos conteúdos distintos (programas variados ou extensos), diversificados. Essa premissa do projeto que representa a síntese procura resolver as implicações que aparentemente sejam dissonantes, mas que podem, segundo árduo trabalho de projeto, decorrer na definição de uma unidade arquitetônica clara e facilmente compreendida. Há quem assim compreenda a pertinência da identidade da arquitetura expressa no “partido arquitetônico”. Ainda dentro da premissa da unidade arquitetural, pode-se derivar desta para a unidade de conjuntos arquitetônicos, onde a lógica dos espaços (eixos, caminhos, redes, áreas comuns e edificações distintas) obedeça aos mesmos princípios de unidade projetual como um só objeto. Na contraposição ao pensamento uníssono, outra questão pode ser discutida pela reflexão diante da corrente modernista, que é a possibilidade de ruptura com essa organização do rigor do projeto por unidades intensas, para intervenções que estejam dialogando direta e indiretamente com os espaços da cidade envoltória e das implicações que levem a negar certos dogmas do edifício ou do conjunto de edifícios, o que poderia conduzir a uma construção lógica que esfacelaria a ideia de edifícios sobrepondo-se a contextos que pedem fragmentações e variações de paisagem.
Se na primeira questão (unidade plena) o projeto parece ser resultado de uma só mão, na segunda (fragmentação da unidade em unidades articuladas) outras tantas podem se apoderar do processo, dada as variações coexistentes. Isso pressupõe a discussão sobre a dimensão e abrangência de projetos e seus contextos.
Aqui as duas questões se sobrepõem em diálogos ríspidos. De um lado a tendência de concepção de conteúdos e seus elementos definidores em direção à uma síntese marcante, e de outro a flexibilização das derivações de espaços e conteúdo para fora da “Forma”, rompendo a “camisa de força da unidade intransigente.
Compreende-se que a “subversão da forma única” é a dinâmica entre a “unidade” produzida pelas sucessivas variações de perguntas e respostas que tendem ao rigor da forma sintética segundo princípios modernos, levando a configurar apenas um só edifício continente de todas as variáveis de usos e necessidades urbanas, e a “unidade” dos contextos interferentes, derivados da cidade e das implicações entre o lugar e as condicionantes de transformação sujeitas ao cotidiano, tendentes à libertação de estruturas tão rigorosas. Por outro lado, ainda diante do fato subversivo entre as libertações cotidianas que submetem projetos às modificações temporais e à busca de uma unidade simbólica do edifício de grande escala na paisagem predominantemente fragmentada, está a rigorosa estrutura estética de Calazans, estabelecendo a ruptura dolorosa essencial como parte do processo de reconhecimento e aceitação dos resultados em nome de um processo de conhecimento mais amplo fundamentado no fazer arquitetônico.
Nesse sentido, no calor das discussões de retomada, se iniciaram novas séries de variáveis de desenhos do conjunto arquitetônico considerando as qualidades reveladas no processo. Todo o projeto se tornou um “signo”, ou ideograma, de tão único. Gestos rápidos sobre papel manteiga tendo como anteparo a última versão limpa do projeto foram extraindo as multiplicidades. Em cada desenho de captura das principais qualidades, surgiam novas potencialidades latentes, veladas no espírito dos desenhos anteriores, mesmo as que estiveram perdidas nos suportes que foram drasticamente amassados. A revisão das rotas de colisão. Sucessivas hipóteses surgiram por variáveis ao desenho anteriormente finalizado - continham em cada uma, no espírito de cada croqui, novas sínteses próprias.
O humor mudava conforme os desenhos ganhavam fôlego e permitiam a amplitude de novas variações. Inúmeros desenhos foram produzidos em curto tempo, promovidos pela “catarse” exponencial. Todos ocupavam gradativamente as paredes vazias, como que refundando o processo, tomando o espaço da sala como um ambiente projetual expandido, registro da explosão criadora. Todas as variações denominadas como sendo únicas, significadas. Naquele momento, se o visitante desavisado entrasse novamente, compreenderia que as tensões haviam se transformado em janelas do mundo pela alma do projeto. Em seguida, iniciou-se um ciclo de constituição de parâmetros de escolha por uma só hipótese, segundo valores encadeados que seriam, a partir de agora, a nova ordem arquitetônica do “Paranapanema”. A escolha, ao invés de restringir as demais, consolidava a constituição de princípios de cada uma para a constituição de uma versão única nascida de todas as outras. Como um processo de maturação das variáveis uma nova estrutura surgiu, ainda mais rica. Brotava um novo entusiasmo com as capturas das discussões perdidas. Tudo conspirava para a estrutura interconectada entre as diversas escalas de abrangência – “o palácio de concreto...” se impunha como hipótese refletindo a síntese – a síntese indiscutível (4).
Rompendo a excessiva linearidade dos corredores longitudinais, e incorporando as transversais em marcações mais claras, o desenho revelou, com o deslocamento dos blocos habitacionais centrais, a existência de mais duas praças internas As praças seriam articuladas pelas transposições constituídas pelas passarelas, conjunto de rampas e escadas, que serviriam de acesso e travessias entre moradores e transeuntes. As linhas atravessavam os blocos habitacionais levando o térreo para as unidades de moradia mais altas, como que vielas costurando a solidez das habitações pela permeabilidade de fluxos, nas concentrações públicas dos novos espaços abertos residuais na cota da via interna. Uma nova rede de multiplicação dos chãos.
A praça mais próxima ao Mercado, de menor dimensão, agregou, também, a potencialidade de novos usos vinculados aos burburinhos. Um espaço aberto proporcional ao sentido do lugar onde estariam os equipamentos enxertados nas brechas dos blocos habitacionais, embaralhando, juntamente com as áreas comerciais, a multiplicidade de usos e significados.
A relação entre os percursos (passarelas, rampas e escadas) e os interstícios capturados no conjunto das áreas coletivas, daria a pertinência de arquiteturas roubadas do grande conjunto. Isso negaria definitivamente a lógica dos parcelamentos estanques e das ocupações de equipamentos centrados em lotes. Nessa condição, a creche, por exemplo, não seria um edifício isolado, decorrente de lógicas intrínsecas, submissa aos programas determinados pelas secretarias pertinentes (da formalização entre programa técnico e terreno), mas uma decorrência dos momentos inerentes percebidos das relações do lugar. Ao invés de agrupados, os espaços e seus usos capturados poderiam estar distribuídos pelos percursos, retirando o que há de melhor nas inter-relações do habitat em formação. O mesmo se daria para os outros usos e seus teores, buscando compreender cada sentido nos espaços que permitiriam tal flexibilidade. Os melhores contextos poderiam abrigar os melhores usos.
A praça próxima ao Mercado com a intensidade necessária ao agrupamento dos usos e atividades de concentração de ruídos. Para a outra praça, na ala habitacional mais longa entre o Centro Político e o edifício do Norte, a concentração das atividades do silêncio. A praça silenciosa receberia a biblioteca e a creche, articuladas às pontes e rampas de transposição.
Aqui se formam num edifício cidade com três grandes praças, conformadas pela retirada de blocos de edifícios e por onde pode emergir dos grandes edifícios verticais, contidos pela grande massa horizontal (5).
O projeto atingira seu estado de maturação mais potente. Manteve a riqueza das contradições e explosão de espacialidades distintas, ordenadas pelo desenho da força da unidade arquitetônica decorrente das forças cortantes da cidade. Um diálogo agudo entre situações, velocidades, sons, pertinências, iluminações e abrangências. Mais do que tudo, se fez reflexão sobre as normativas urbanas e suas ordens determinantes, tais como diretrizes, distinções e legislações restritivas.
Calazans intencionava aliar a produção de estruturas de suporte (pórticos de concreto vazados) que dariam a marcação das unidades e a definição das parcelas familiares. Havia uma discussão recorrente que compunha o conjunto de experiências de outros projetos desde as primeiras casas “debruçadas” sobre as encostas; a relação dos “renques” habitacionais agrupados e a relação de contenção de terra para novos platôs como surgimento de novos pisos de apropriação da comunidade diretamente das portas das casas; a possibilidade de ampliação das unidades internas as marcações dos “lotes verticais”; a implementação de processos de implantação de habitações novas em áreas densamente ocupadas (Buracos Negros) e a otimização dos componentes de madeira ou elementos construtivos de propriedade das famílias a serem atendidas – o enchimento dos elementos da casa dentro dos pórticos. Para o desafio da produção de baixo custo, em virtude das possibilidades de apropriação dos ganhos da arquitetura expandida, a dicotomia entre a feição da estrutura externa do conjunto e os conteúdos particularizados pela história acumulada de cada um, faria a paisagem das incoerências. Para a obra, Calazans idealizou um processo de construção e montagem como uma linha de produção em deslocamento, cujo canteiro faria a marcação do caminho central executando as bordas de habitação. A ocupação gradual abriria, portanto, o espaço necessário para as outras fases de produção no alinhamento do canteiro em deslocamento até as etapas finais localizadas ao Norte. Começando pelo trecho do Mercado - a melhor forma de implantação de equipamentos e habitações -, em contraponto a usina de pré-moldagem de peças médias e menores (no extremo Norte), como apoio gradual ao processo de maturação das unidades no tempo.
A nova ordem do projeto, além de otimizar custos na produção (edificações e redes infraestruturais), novos pavimentos e platôs de apropriação coletiva, disciplina dos caminhos (pedestres, veículos e águas pluviais), e dignidade de moradias, pressupunha a inauguração da paisagem reveladora misturando as diferentes escalas e teores sobre a complexidade histórica do lugar.
Turbulência e negação
"Renova-se a visão de croquis e de minha ação revolucionária na periferia. O croqui novamente não é um símbolo do real. Mas uma hipótese de um objeto que vai lentamente se definir por intercâmbio de croquis, que vão construindo, num determinado projeto, com o processo de criação do projeto, caminhando para a capacidade de, em determinados projetos, os croquis poderem ser o movimento da totalidade que nasce construída através de um processo de tentativa e erro que vai descobrindo o desenho que já contém o Todo e a existência das partes" (6).
Pensemos no que o desenho pode representar se tratarmos a sua dimensão concreta como inegável. Para processos de projeto o rigor e a constância cíclica das passagens de desvelamento - entre o que constitui as premissas de inserção de usos e atividades gradualmente tendentes a ordenamentos espaciais – pressupõem disciplina (improvisação e respeito) e obstinação (dúvida e teimosia). O desenho é o êmbolo, o provocador que revela aos olhos a determinante imagem ambígua, ou por incontestável definição, ou por subliminares desdobramentos por signos derivados de sua mensagem duvidosa – as armadilhas do pensamento pregadas pela sedução da beleza. Dialogar entre as variantes dos desenhos edificando razões, sobretudo as razões da arquitetura e suas inter-relações com a cidade, implica numa outra forma de compreender o saber pelas resultantes concretas do projeto.
Foi um processo de projeto instigante. Concretamente aqui, sua contribuição: fica a contundente busca pela materialidade idealizada entre a simplicidade e o rigor. Sua maior obra, a obstinação pela verdade e a beleza em extrema autofagia. A arquitetura do território.
Ficam as lições do projeto:
- A construção dos vazios no tratamento dos espaços entremeados entre os volumes concretos, nas resultantes e na captura dos fragmentos decorrentes das relações de ocupação – variação entre os pisos e as edificações – simultaneamente concebidos, dentro e fora. O vazio aberto escavado moldado como espaço arquitetônico.
- A multiplicação dos térreos na construção das possibilidades de acessos intensos multiplicando as relações de conexão, por permeabilidades e difusão do chão, diversificando as entradas e quebrando com as hierarquias deterministas das frentes e dos fundos - ou dos térreos únicos afastados dos demais pavimentos. A possibilidade de abertura de outras tantas portas.
- A ruptura das organizações monofuncionais na dissolução das fragmentações do parcelamento, dos loteamentos organizados por setores ou zonas de usos restritos, mesmo as implantações de equipamentos ou determinação de usos específicos, pela mistura das lógicas circunscritas e do pensamento excludente. A pulverização dos elementos programáticos na ruptura dos invólucros únicos do corpo edificado.
- As interrelações escalares na percepção dos vetores componentes dos espaços e suas inter-relações com as órbitas (abrangência de usos e intensidade de usos), nos carregamentos de fluxo e concentração de atividades emanadas das ondas de ressonância interacionais, mesclando escalas de significados locais, setoriais, regionais e metropolitanos. A compreensão das forças que atuam sobre o lugar.
- A compreensão das lógicas contextuais no reconhecimento das pertinências dos lugares existentes e suas estruturas de vida, identificando as diferenças e as similaridades, sobretudo as riquezas, por uma mescla de sentidos observados no cotidiano dos diversos entornos, envoltórias das áreas de interesse. A descoberta das multimodalidades ativas da vida urbana presentes no âmbito do projeto.
- A percepção dos lugares na compreensão dos momentos de caracterização dos espaços potenciais não previstos pelo programa prévio, eclodindo no projeto por decorrência das percepções dos contextos externos e das escalas apreendidas nas leituras territoriais, identificando novas oportunidades de uso e de espacialidades agregadas à concepção. A descoberta do que já estava lá.
Posfácio
A execução das obras dependia das manobras de desenvolvimento do projeto nas articulações políticas com organismos públicos. Sua escala e multiplicidade de usos necessitavam de um pacto institucional para realiza-lo em fases distintas e gradativas. Uma interdependência multifacetada e singela demais para uma proposta que pudesse revolucionar as relações produtivas dos bairros periféricos na antevisão de uma nova cidade. Mais do que a imponderabilidade das ações, o projeto demonstrou a impertinência entre concretização de potencialidades e temporalidades distintas. A urgência das famílias pela conquista dos novos valores urbanos em mudar o jogo político e econômico não se fez tão forte, a julgar apenas pelos apaziguamentos das reações de luta em gestos submissos, acatando as regras vigentes. O descompasso entre a possibilidade da materialização do lugar, que represente a vontade efetiva de mudar, frente às tramitações legais e econômicas, escamoteadas em roupagem institucional, é, por enquanto, a resposta mais concreta que o país tem dado às suas reformas essenciais. Programas habitacionais, de desenvolvimento urbano, das outras formas de desenvolvimento social e econômico, travestidos de política pública, continuam sendo parte de um ardiloso sistema de repasse e manutenção de poder e dinheiro, portanto, de continuidade das forças operativas sobre territórios domináveis.
Naquele momento, em 1994, diante de tantas possibilidades e com tantos mais elementos estruturadores para além do discurso de reformulação das forças de produção da cidade, a questão se perdeu na intolerância dos movimentos sem a reflexão necessária sobre a real ausência de adesão pública, sobre as responsabilidades governamentais, suas âncoras partidárias e suas manobras de campanha.
Para Calazans, ficou mais uma vez a fragilidade da ambição revolucionária pela ausência de um exército mais amplo e capacitado para discutir as relações do país e as implicações do valor da consciência estética, tomada como estrutura fundamental das forças reativas em nome das ambições éticas e das mudanças necessárias. O contrato foi gradualmente esvaziado. Sobre as rupturas, não nos cabe discutir, até mesmo porque não teríamos possibilidades e nem elementos para tanto.
Ainda assim, sua contribuição é concreta. Viva e transcendente, capaz de apaixonar gerações pela totalidade de sua obra e pelas peculiaridades de cada gesto representado arduamente em cada resposta obtida.
Todo o trabalho de uma vida revela, embora esconda duas pontas contundentes: a síntese como resultado incansável consagrando longo processo ritual de busca obstinada, com dor e sofrimento, levando até as últimas consequências às descobertas do que cada projeto poderia conter de mais forte em seu íntimo; e a ideia de que a vida traduz-se como produto único, somatória de todos os fatos e objetos entrelaçados em sólida tessitura, uma só obra condensada, encadeada pelas passagens de cada desafio, reflexiva e oscilante, desdobrada das determinações escolhidas e das circunstâncias surpreendentes.
notas
NA – O arquiteto e urbanista Claudio Manetti, autor do presente artigo, é coautor do Projeto Paranapanema e agradece no texto a Carlos Alberto Barbosa, Marcelo Colaiacovo, Mariana Calazans e Renata Alves de Souza.
NE – O presente artigo é a segunda e última parte do artigo. A primeira parte está disponível em: MANETTI, Claudio; SILVA, Jonathas Magalhães Pereira da. José Calazans: arquitetura, dialética e projeto. Parte 1 – turbulência. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 186.03, Vitruvius, nov. 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.186/5838>.
1
Ainda que possa haver alguma analogia ou derivação do termo Cidade Total com a GESAMTKUNSTWERK, (obra de arte completa ou total), teoria proposta pelo compositor alemão Richard Wagner (1813-1883), desconheço tal derivação ou proximidade conceitual desse pensamento em Calazans, ainda que com relativa semelhança pela busca de uma totalidade da arte considerando as integridades e suas peculiaridades.
2
TAKIYA, André, BAROSSI Antonio Carlos (cur.). José Calazans; Croqui de Uma Vida: a habitação e a cidade a cidade e a habitação. São Paulo, FAU USP, 2010, p. 240.
3
Idem, ibidem.
4
Calazans costumava relacionar seus projetos habitacionais multifamiliares a castelos e palácios populares.
5
TAKIYA, André, BAROSSI Antonio Carlos (cur.). Op. cit., p. 240.
6
Idem, ibidem,
sobre os autores
Claudio Manetti é Arquiteto e Urbanista. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Urbanismo (POSURB PUC-Campinas) e Profo da FAU PUC-Campinas e Univ. Anhembi-Morumbi. Atuação: CDH Programa de Favelas (1985/1987), SEHAB/HABI Programa de Cortiços (1989/1992); Diretor de Planejamento/ SMDU PMS (1993); Secretaria de Meio Ambiente (1996/2000); Operações Urbanas/Meio Ambiente EMURB/PMSP (2001 – 2005/2008); CPTM (2009).
Jonathas Magalhaes Pereira da Silva é Arquiteto Urbanista. Profo Dr. da Pós-Graduação em Urbanismo (POSURB PUC-Campinas) e da FAU PUC-Campinas. Mestrado (1999) e Doutorado (2005) pela FAUUSP. Atua como consultor na MPS associados: coordenação técnica do Plano Sócio Espacial da Rocinha RJ; coordenação de 11 planos participativos da região serrana do ES; projetos urbanos dos corredores de transporte em SP e na da Área Portuária do RJ.