Introdução
Nas cidades coexistem arquiteturas da presença e do esquecimento. Há arquiteturas que persistem na atualidade e que remetem a tempos passados. Mas há também arquiteturas do esquecimento que embora possam perdurar no tempo, praticamente desaparecem diante do presente e quase nada remetem ao passado. Mas mesmo assim os espectros das suas presenças insistem em permanecer. De certa forma essas arquiteturas permitem que se alcancem outras histórias não reconhecidas, presentes e passadas (1).
O presente texto pretende tratar dessas arquiteturas da presença e do esquecimento de Salvador na primeira metade do século 20, durante o processo de modernização da cidade. Aborda um tipo arquitetônico específico que aparece durante esse período e que se relaciona diretamente com a modernização soteropolitana: o cinema. A presença desse tipo de edificação supõe não apenas transformações dos antigos teatros e a introdução de uma nova modalidade de recreação, mas também a difusão de uma série de comportamentos que afetam os cidadãos dentro e fora das salas de cinema, supostamente condizentes com as circunstâncias da modernidade e com a modernização locais.
Essas arquiteturas dos cinemas soteropolitanos são retomadas a partir dos seguintes procedimentos: do reconhecimento das pistas voluntárias e dos rastros involuntários.
Pistas voluntárias são aquelas deixadas com a intenção de perdurar e que pretendem indicar determinados relatos dos acontecimentos que devem ser repetidos indefinidamente, tendendo a apontar sempre as mesmas interpretações da história.
A arquitetura estabelece uma forte conexão com as pistas voluntárias porque usualmente se realiza com amplos recursos e porque supostamente tem uma maior capacidade de perdurar no tempo. Torna-se assim um meio oportuno para a transmissão de conteúdos referentes àqueles que detêm o poder e os meios para suas possíveis manifestações e consolidações. Entretanto, é sempre importante ter em mente quem são os produtores de tais pistas, situá-las para que se possam identificar seus posicionamentos diante das circunstâncias apresentadas.
Os rastros involuntários são constituídos por elementos precários, dispersos, casuais, que não são criados com intenção de perdurar e de relatar nada. São aqueles que constantemente passam sem serem notados e que estão permanentemente ameaçados de desaparição. A utilização de um olhar atento e apurado é fundamental para possibilitar que a partir do reconhecimento desses rastros aconteça a reconstituição de histórias que tendem a permanecer esquecidas (2).
Há ainda outra possibilidade: das pistas voluntárias se transformarem em rastros involuntários. Trata-se de uma situação que acontece quando os elementos deixados intencionalmente passam a ser lidos a partir dos seus contrapontos, destacando outros elementos existentes que não foram inicialmente previstos para aparecerem e transmitirem informações. São elementos incontrolados que despontam, tornando possível rastrear traços de outras histórias existentes por detrás das histórias mais notórias que pretendiam ser contadas. Desta forma, para o historiador Carlo Ginzburg, é possível chegar às experiências recalcadas da história a partir das suas próprias manifestações dominantes, que são justamente aquelas que têm maior possibilidade de perdurar no tempo. Ginzburg afirma que “ao escavar os textos, contra a intenção daqueles que o produzem, vozes incontroladas podem emergir” (3). A partir do exame dessas arquiteturas dos cinemas soteropolitanos pretendem-se extrair tais pistas e rastros que possam permitir o acesso às suas múltiplas facetas e àquelas da cidade que os recebe.
As fontes para tratar dessas arquiteturas são periódicos, documentos encontrados em arquivos e os próprios edifícios remanescentes na cidade. Há que se recordar que a maior parte das fontes está vinculada aos detentores de poderes e é, portanto, parcial. Trata-se assim de usar essas fontes também para acessar outras histórias, extraindo delas também as potencialidades dos elementos silenciados, tal como assinala Walter Benjamin. Para o filósofo, “nunca houve um monumento de cultura que não fosse ao mesmo tempo um monumento de barbárie”. Trata-se assim de usar essas fontes também para acessar a história à contrapelo, extraindo suas múltiplas facetas (4).
Pistas voluntárias
No princípio da década de 30 do século 20 acontece a demolição de uma das principais salas de cinema em Salvador, o Teatro Polytheama. Esse fato é contestado pelos periódicos, que anunciam que a cidade ficará sem um teatro à sua altura, fato que só será remediado posteriormente com o aparecimento do Teatro Castro Alves. Mas a demolição do Teatro Polytheama também supõe a consolidação na cidade de uma das suas principais funções: a de cinema. De fato, é nesse local onde ocorre a primeira exibição de cinematógrafo da cidade, no final do século 19 (5). O cinema passa a ser o principal uso de muitas das salas da cidade, embora perdurem durante algum tempo outras utilizações, como peças teatrais, musicais, espetáculos circenses, bailes de carnaval, eleições de misses etc. (6).
A arquitetura do Teatro Polytheama relaciona-se mais com o século anterior, assim como aquela do Teatro Guarany. Esses edifícios adotam características ecléticas que introduzem certas melhorias nas condições dos edifícios, mas que ainda não se relacionam de modo direto com as características da modernização e da modernidade soteropolitanas.
Entre o final do século 19 e princípio do século 20 salas de cinema passam a existir em muitos outros locais da cidade (7). Durante a década de 1930, parte desses cinemas passa por transformações modernizadoras e parte é construída na capital baiana, tanto em bairros centrais quanto nos mais periféricos, atendendo tanto as elites, camadas médias e populares. Tal como afirmam os documentos consultados, a intenção dos filmes e das suas instalações não é apenas proporcionar aos cidadãos recreações condizentes com os tempos modernos, mas também educá-los para que possam se situar de um modo adequado nesse momento. Ao adentrar nos cinemas os espectadores são seduzidos pelas cenas frenéticas capazes de transportá-los para todos os tempos, mas mais especificamente para a modernidade (8). É essa supostamente a missão das salas de cinema locais, que para tanto pretendem se colocar nos mesmos patamares de outras existentes em “centros avançados”, tanto nacionais como internacionais.
Alguns dos cinemas da cidade são administrados por ordens religiosas. No caso dos cinemas Excelsior, Itapagipe e Aliança a coordenação é da Ordem Mariana de São Luiz. Os cinemas Santo Antônio, Pax e Roma são administrados pelas Obras Sociais Franciscanas (9). Em certas ocasiões os edifícios recebem outros usos além de acomodar as salas de cinema. Adotam também outras salas de recreação, salas de administração e de assistência social, médica e dentária. É o que acontece nos edifícios dos cines Pax e Roma, conformando potentes estruturas na cidade para a assistência à população mais carente. Em algumas circunstâncias a renda de bilheteria se destina à população pobre da cidade (10). A exibição de uma seleção seleta de filmes nessas salas espera contribuir para a difusão dos bons costumes e precaução da transmissão das más atitudes, principalmente aquelas do operariado da capital baiana (11). A adequação aos bons costumes não exclui a inserção de cartazes que fazem as mulheres se abandonarem “nos braços musculosos desses “specimens” que Hollywood coleciona para o encanto das moças românticas de todo mundo.” Apesar disso, cenas mais picantes são sumariamente censuradas pelos exibidores (12).
Outras salas são conduzidas por empresários do ramo cinematográfico e pretendem oferecer à cidade equipamentos apropriados para uma urbis que está em progresso e que precisa se equiparar a outros centros civilizados. Espera-se também oferecer às pessoas espetáculos nos quais possam desfrutar grandes companhias e filmes, além de ser uma ocasião propícia para estabelecer relações sociais. Essa situação pode acontecer tanto nas plateias quanto nas demais dependências dos cinemas.
A modernização dos cinemas afeta aspectos tecnológicos, com alterações nos sistemas de projeção e na utilização das telas. Há uma especial atenção para os efeitos luminosos das salas, que pretendem estimular os sentidos dos espectadores. Tais efeitos podem ser “feéricos” produzidos por “milhares de lâmpadas acendendo por alternativas automáticas espargindo em todo o anfiteatro, dá ao espectador a impressão de uma miragem das cores do arco-íris” (13).
Mas também se modernizam as suas características internas e externas. O conforto interno das salas é constantemente mencionado com a presença de poltronas acolchoadas, sistemas de ventilação potentes, aparelhos de ar-condicionado, revestimentos acústicos etc. (14).
O interior do Cine Jandaia é descrito como moderno, contando com capacidade para 2.200 pessoas. Da sua torre soa uma sirene que chama os espectadores para as sessões que estão prestes a serem iniciadas, sendo que o público mais rico acomoda-se nas plateias e o mais carente nas gerais (15). No seu interior as janelas existentes são fechadas pelos próprios frequentadores (16). Sua decoração é considerada singela, com a utilização de mármores de diferentes cores, contando com estátuas moldadas em alto relevo com portes de “graça e candura” (17).
No “luxuoso” interior do Cine Excelsior o hall é revestido de mármore português com um lustre aparatoso; a sala de exibição possui poltronas “automáticas com amortecedor de borracha”.(18).
O “aristocrático” Cine Glória possui “as linhas arquitetônicas magníficas, a beleza sóbria da pintura no interior, a suavidade da luz emergindo da corola das grandes flores de simbolização do Teatro Grego” (19).
Os cinemas construídos antes de 1930 passam por transformações durante essa década. São “modernizados” e passam constantemente a adotar as características do art déco. Isso acontece no caso dos cines Jandaia, Excelsior e Aliança. Suas novas arquiteturas são sempre descritas com amplas qualificações.
O “magnífico” Cine Jandaia é reformado e aberto para o público em “estilo moderno” em 1931 (20). O edifício se destaca no cenário urbano. “As fachadas são compostas por uma série de frisos verticais ritmados, arrematados por elementos escalonados. Na esquina há uma torre que reforça a percepção de verticalidade predominante no edifício. Na fachada principal, demarcando o acesso, há uma marquise sobre a qual desponta um grande vitral colorido” (21).
O Cine Excelsior se transforma e passa a ter uma “imponente” fachada, revestida com granito “verdadeiro e emolduradas de metal cromado e cristal puríssimo” (22). Também possui características do art déco: “apresenta na sua fachada principal uma composição escalonada simplificada com corpo, base e coroamento. A base é demarcada por uma marquise e possui acabamentos decorativos que remetem a capitéis clássicos. O corpo apresenta dois planos diferenciados, sendo que o central é recortado por três janelas trabalhadas com motivos florais. No coroamento aparece o nome do edifício com caracteres tipográficos” (23).
O Cine Aliança substitui o antigo Cine Olympia, modernizando sua fachada e tornando-a art déco, também ganhando destaque no local onde se situa.
Outros cinemas são construídos na cidade, muitos utilizando as características do art déco. O Cine Glória (dentro do Edifício A Tarde), o Cine Casa de Santo Antônio, o Cine Itapagipe, o “moderno” Cine Liberdade, o Cine Oceania (dentro do edifício Oceania), o Cine São Caetano, o Cine Amparo adotam características como o escalonamento da fachada, tratamento diferenciado das esquinas, inserção de elementos decorativos geométricos e colocação de caracteres tipográficos nas fachadas (24).
Dois cinemas se destacam na elaboração das soluções do art déco. Durante os anos 1930 é construído o “majestoso” PAX, também denominado o “gigante da rua Dr. Seabra” (25) O edifício (que contém outras funções de assistência social além de cinema) é composto fundamentalmente por dois blocos, um prisma alongado e achatado e outro prisma mais compacto e mais alto, que é recortado com um volume circular na esquina. Nesse segundo bloco desponta o principal elemento da composição arquitetônica, a superfície escalonada que é arrematada pelas enormes letras PAX. Em meados dos anos 1940 é edificado o Cine Roma (que também conta com funções assistenciais). Trata-se de um edifício impactante que se situa na parte dianteira do seu lote, no ponto de conexão de duas importantes vias. Sua solução é monumental: “uma torre quadrada escalonada disposta diagonalmente é circundada por dois corpos curvilíneos escalonados. A torre recebe frisos verticais e os corpos laterais frisos horizontais. Esses elementos se articulam através de uma galeria conformada por colunatas, coberta por uma marquise curva” (26).
A maior parte das notícias encontradas refere-se aos cinemas mais centrais da cidade, embora apareçam outras sobre cinemas mais periféricos. São apresentadas principalmente as arquiteturas “suntuosas” e “luxuosas” desses cinemas, que quase sempre adotam princípios relacionados com o art déco (27). Nota-se que há uma difusão pela cidade da aplicação desses princípios para a realização dos cinemas, mesmo nessas áreas mais periféricas. Usualmente esses cinemas fora do centro não recebem um tratamento tão cuidadoso nas suas características internas ou externas. Mas utilizam recursos arquitetônicos similares.
A opção pelo art déco na maioria dos cinemas soteropolitanos corresponde a uma aproximação da arquitetura com certas características da modernidade. O art déco aparece nesses edifícios a partir utilização de princípios de composição tanto clássicos quanto modernos. No primeiro caso usam-se procedimentos mais acadêmicos (adoção de eixos de simetria, axialidade, repartição tripartida, valorização do acesso) e no segundo mais vanguardistas (composição de volumes, planos e linhas). Não se excluem as referências clássicas, mas incorporam-se referências tanto materiais (carros, trens, aviões) e imateriais (velocidade, eletricidade) da modernização e da modernidade. De qualquer modo, tais elementos são inseridos nos edifícios a partir de um processo de abstração e geometrização.
Embora tais edifícios incorporem técnicas construtivas e materiais inovadores, isso não acarreta em mudanças formais, funcionais ou espaciais. Procedimentos racionalizados e padronizados são utilizados apenas para a inserção dos elementos decorativos que podem ser reproduzidos em série, em alto ou baixo relevo. Pode-se dizer que tais arquiteturas assimilam muito mais uma ideia de modernidade do que os princípios introduzidos pelo processo de modernização.
Os cinemas atuam na cidade como difusores da modernidade. Os filmes devem inspirar os cidadãos soteropolitanos, fazê-los assimilar condutas morais e modernas. Comportamentos consideradas adequados para uma cidade que se pretende moderna, mas que apenas inicia seu processo de modernização, tentando superar suas dinâmicas coloniais (28).
Rastros involuntários
As modernas arquiteturas dos cinemas locais se situam nas imediações de outras arquiteturas de caráter mais tradicional. Chamam atenção não apenas os seus contextos com as presenças de arquiteturas coloniais e ecléticas, mas principalmente as precárias e singelas arquiteturas populares. Se os cinemas centrais estão circundados principalmente pelas primeiras, os periféricos estão pelas segundas. As arquiteturas dos cinemas assinalam uma situação de transformação que contrasta com outra de persistência. Assinalam que no processo de modernização soteropolitano enquanto algumas arquiteturas se afirmam outras são progressivamente superadas e silenciadas.
Mas essa situação não se dá sem resistências. E essas aparecem principalmente nas condutas dos usuários dos cinemas, que constantemente se comportam de um modo considerado inapropriado. Isso pode ser observado em todos os cinemas da cidade, mas certamente afeta de um modo mais direto aqueles mais populares, de acordo com as notícias publicadas. Quando aparecem menções a esses cinemas usualmente elas se dão não para falar das qualidades arquitetônicas das salas, mas para apontar a má conduta dos seus usuários, muito distante de parâmetros civilizados, não condizentes com o século 20 (29). Na frente ou atrás das telas os usuários participam dos filmes ativamente, emitindo os mais variados sons; levam às salas alimentos e deixam lixo atrás de si; conduzem cenas picantes que são presenciadas pelos demais frequentadores (30).
Outro assunto que é recorrente das notícias é o uso do chapéu dentro das salas de cinema. Para o repórter seu uso é abusivo: “senhorinhas e matronas (...) num capricho bem feminil, conservam as suas exóticas concepções de modistas futuristas na cabeça durante todo o tempo da projeção. Ninguém via nada” (31).
Tais circunstâncias mostram a resistência por parte da população por aceitar alterações de conduta consideradas apropriadas dentro e fora das salas de cinema. Se os cinemas e os filmes que passam pelas suas telas se propõem a instruir a população e nivelá-la aos padrões considerados civilizados, essa nem sempre aceita tais instruções e nivelamentos sem se manifestar. Isso se torna evidente nas reapropriações que fazem desses espaços.
Das pistas aos rastros
Das descrições das sessões, das ações, das luzes e dos sons existentes naqueles cinemas soteropolitanos pouco resta. É até mesmo complicado encontrar informações sobre os locais onde estão situados na cidade. Parte dos cinemas de fato desapareceu, dando espaço para terrenos vazios ou outros edifícios; parte tornou-se local para sessões de culto ou filmes pornográficos; parte foi ocupada com lojas para colchões, materiais de construção etc.
Aqueles espaços que ainda existem têm suas fachadas depredadas e poluídas, ocultas pelo caos urbano atrás de placas, faixas, cabos, letreiros, etc. Seus interiores estão abandonados ou subutilizados, na maioria dos casos completamente transformados.
Em alguns cinemas ainda é possível perceber parte das suas características arquitetônicas. Em determinadas circunstâncias há rastros das suas características externas e internas como no caso dos Cine Jandaia, que é durante um tempo cinema pornô e depois é abandonado, encontrando-se atualmente em um estado péssimo. O Cine Pax passa por um destino semelhante. Outros cinemas têm interferências nas suas fachadas, mas mantêm em linhas gerais as suas características arquitetônicas externas, apesar de terem os interiores completamente alterados, como nos casos do Cine Amparo (e do Cine Liberdade). Outros estão atualmente desaparecidos no cenário urbano atrás de fachadas postiças, como acontece com o Cine Aliança, que já passa por um processo de degradação há algum tempo. Outros foram demolidos e substituídos por edifícios medíocres, conforme a tabela constante ao final do texto.
Inicialmente a presença desses cinemas na cidade pretende apoiar o seu processo de modernização e sua inserção na modernidade. O fazem mais representando suas características do que as incorporando de fato. Mas também usam as soluções técnicas mais recentes, pretendendo criar espaços racionais, funcionais e cômodos para os seus usuários. E tais processos relacionados com a modernização e com a modernidade implicam necessariamente em uma ideia de superação de coisas – entre elas de edifícios – que deixam de ser úteis, que perdem as suas funcionalidades no decorrer do tempo. São processos que estão relacionados com as próprias dinâmicas capitalistas, que induzem à superação e à substituição dos edifícios, que se tornam obsoletos para a cidade.
Pode parecer paradoxal que edifícios que são tão exaltados em determinado momento agora estejam em uma situação de descaso e de desuso. Mas suas melancólicas situações atuais demonstram que certos mecanismos capitalistas que permitiram suas inserções e afirmações iniciais na cidade continuam existindo. E parte de tais mecanismos também possibilita que alguns cinemas escapem da destruição e continuem sendo usados nos circuitos capitalistas, embora de modo precário. Permanecem no cotidiano da cidade como elementos úteis para outras parcelas da sociedade inseridas no sistema. Curiosamente o fato de permanecerem nesse estrato do sistema é aquilo que possibilita que os edifícios ainda existam, que não tenham sido completamente demolidos. Enquanto o mercado não perceber valor nesses edifícios, eles continuarão apenas existindo nessas camadas secundárias do capitalismo.
Em todos os casos os destinos dos cinemas demonstram a existência das facetas sinistras da modernização, que enquanto afirmam determinadas cidades, arquiteturas e modos de usá-las, permanentemente negam outras. E nesse processo parte das referências arquitetônicas da cidade vão se perdendo, afastando-se da memória dos cidadãos.
No caso dos edifícios de cinema examinados e de outros tantos prédios de arquitetura moderna existentes em Salvador, o que predomina é o esquecimento. Edifícios que atualmente são alheios aos seus cidadãos, que praticamente não relatam as suas histórias. Edifícios que embora ainda façam parte do cenário urbano são espectros de coisas passadas que praticamente não se fazem mais presentes, que não relatam partes significativas das suas histórias.
notas
1
Ver: BIERRENBACH, Ana Carolina. Arquiteturas da recordação e do esquecimento: por um reconhecimento das manifestações modernistas soteropolitanas. Salvador, Anais do IV Arquimemória, 2013.
2
Carlo Ginzburg e Jeanne Marie Gagnebin referem-se à utilização desses rastros aparentemente irrelevantes para a reconstituição de diferentes circunstâncias. Ginzburg aponta a conformação de um método histórico “indiciário” que tem seus primórdios no caçador que rastreia sua presa. Afirma que o caçador seria o primeiro a “narrar uma história, porque era o único capaz de ler, nas pistas mudas (se não imperceptíveis) deixadas pela presa, uma serie coerente de eventos.” Ver: GINZBURG, Carlo. Threads and traces: true, false, fictive. Los Angeles/Londres: University of California Press, 2012, p.152. Jeanne Marie Gagnebin também menciona a potencialidade do rastro: “é um fruto do acaso, da negligência, às vezes da violência; deixado por um animal que corre ou por um animal em fuga, ele denuncia uma presença ausente. (...) O detetive, o arqueólogo ou o psicanalista (...) devem decifrar não só o rastro na sua singularidade concreta, mas também tentar adivinhar o processo, muitas vezes violento, da sua produção involuntária. Rigorosamente falando, rastros não são criados (...) mas sim deixados e esquecidos". GAGNEBIN, Jeanne Marie. Lembrar, esquecer, escrever. São Paulo, Editora 34, 2006, p. 113.
3
GINZBURG, Carlo. Threads and traces: true, false, fictive. Los Angeles/Londres, University of California Press, 2012, p. 3.
4
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas: magia, técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1993, p. 225.
5
PENA, João Soares. Cinemas de Salvador: apogeu e decadência dos cinemas de rua. In: Olho da História, n. 1, julho de 2012. Disponível em: <http://oolhodahistoria.org/n18/artigos/joaopena.pdf. Acesso em 02/03/2015>. Segundo Pena a apresentação inicial do cinematógrafo em Salvador acontece em 04 de dezembro de 1897.
6
LEAL, Geraldo; LEAL FILHO, Luis. Um cinema chamado saudade. Salvador, Gráfica Santa Elena, 1997.
7
Vide tabela que acompanha o texto. As datas que constam nas tabelas são referentes às inaugurações dos cinemas e foram extraídas de duas fontes: MAFALDA. Relação de Cinemas antigos de rua do Brasil em atividade nos anos 60. Blogspot. Disponível em: <cinemafalda.blogspot.com.br/2010/02/salvador-ba.html>. Consulta em março de 2015. (referenciados com *) e LEAL, Geraldo; LEAL FILHO, Luis. Op. cit. (referenciados com **)
8
Tinha a attitude parada dos angulos de claustro. Uma tarde ennevoada e cinzenta que o “reporter” encheu intruso vendo os paradoxos do cinema da Rua D. Jeronymo. Diário de Notícias, 17 jul. 1940.
9
MAFALDA. Op. cit.
10
LEAL, Geraldo; LEAL FILHO, Luis. Op. cit., p. 162.
11
O trabalho tudo vence! O Excelsior será um dos grandes cinemas do Brasil. A Tarde, 19 fev. 1935. p.2; No edificio PAX foi inaugurado solenemente o “Pavilhão Waldemar Falcão”, nova séde do Circulo Operario da Bahia. In: Diário de Notícias, 05 jun. 1940.
12
Tinha a attitude parada dos angulos de claustro. Uma tarde ennevoada e cinzenta que o “reporter” encheu intruso vendo os paradoxos do cinema da Rua D. Jeronymo. Diário de Notícias, 17 jul. 1940. s/p. Texto citado com correções ortográficas atualizadas.
13
A inauguração do Theatro Jandaia – verdadeiro Pantheon da Cinematographia – ampla plateia com o maximo de conforto e segurança para um apparelho e tela modelares no Brazil. In: Diário de Notícias, 20 jun. 1931; O trabalho tudo vence! – o Excelsior será um dos grandes cinemas do Brasil. A Tarde, 19 fev. 1935, p. 2. Texto citado com correções ortográficas atualizadas.
14
LEAL, Geraldo; LEAL FILHO, Luis. Op.cit; SANTOS, Eletice. O Sistema multiplex e a crise das salas de cinema tradicionais em Salvador. Monografia. Salvador, Faculdade de Ciências Econômicas da UFBA, 2000.
15
LEAL, Geraldo; LEAL FILHO, Luis. Op. cit, p. 180.
16
Idem, ibidem, p. 209.
17
A inauguração do Theatro Jandaia – verdadeiro Pantheon da Cinematographia – ampla plateia com o maximo de conforto e segurança para um apparelho e tela modelares no Brazil. Diário de Notícias, 20 jun. 1931. Texto citado com correções ortográficas atualizadas.
18
O trabalho tudo vence! – o Excelsior será um dos grandes cinemas do Brasil. A Tarde, 19 fev. 1935.
19
O Imparcial. Apud LEAL, Geraldo; LEAL FILHO, Luis. Op. cit., p. 173. Texto citado com correções ortográficas atualizadas.
20
O Cine-Teatro Jandaia – no primeiro decênio da sua reinauguração. Revista Única. Salvador, jul. 1941.
21
BIERRENBACH, Ana Carolina. Cine-Teatro Jandaia. In: LINS, Eugênio; SANTANA, Mariely (Org.). Salvador e Baía de Todos os Santos. Sevilha: Consejería de Obras Públicas y Vivienda; Dirección General de Rehabilitación y Arquitectura, 2012, p. 329.
22
Tinha a attitude parada dos angulos de claustro. Uma tarde ennevoada e cinzenta que o “reporter” encheu intruso vendo os paradoxos do cinema da Rua D. Jeronymo”. Diário de Notícias, 17 jul. 1940.
23
BIERRENBACH, Ana Carolina. Cine-Teatro Jandaia (op. cit.), p. 206.
24
Não foram encontradas informações sobre as características arquitetônicas do Cine Liceu , Cine Itapuã, Cine São Joaquim, Cine Império, Cine Odeon, Cine Popular, Cine Bonfim, Cine-Teatro Plataforma, Cine Lux, Cine Mercúrio, Cine Rio Vermelho.
25
No edificio PAX foi inaugurado solenemente o “Pavilhão Waldemar Falcão”, nova séde do Circulo Operario da Bahia. Diário de notícias, 05 jun. 1940.
26
BIERRENBACH, Ana Carolina. Cine-Teatro Jandaia (op. cit.), p. 284.
27
Após os anos 50 acontece uma assimilação de soluções modernistas nas salas de cinema da cidade. É o caso do Cine Brasil (1952). Outras salas são construídas, mas não há muitas informações sobre suas características arquitetônicas.
28
Salvador só se torna efetivamente uma cidade moderna a partir de meados do século XX. A partir desse momento consolidam-se os processos de urbanização, industrialização e massificação. Entretanto a cidade já experimentava uma incipiente modernização com a presença de um Estado centralizador, principalmente durante o período que Getúlio Vargas está no poder.
29
Perdão, senhoritas... O delegado de costumes declarou guerra aos chapéos nos cinemas. Diário de notícias, 13 set. 1938.
30
OLIVEIRA, Miriam. Cinema Olympia. In: Recanto das Letras. Disponível em: <http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/1098257>. Acesso em março de 2015.
31
Os hábitos perduram... Nas casas de diversão é onde se nota a maior variedade de abusos! Ainda não foi resolvido o problema dos chapéus. Diário de notícias, 10 nov. 1939; Perdão, senhoritas... O Delegado de Costumes declarou guerra aos chapéos nos cinemas. Diário de notícias, 13 set. 1938.
sobre a autora
Ana Carolina de Souza Bierrenbach é arquiteta (FAU-MACKENZIE – 1993); historiadora (FFLCH-USP, 1995); mestre (PPGAU-UFBA, 2001) e doutora (ETSAB-UPC, 2006). Atualmente é Professora Adjunta III da Faculdade de Arquitetura da UFBA e Professora Colaboradora do PPGAU-UFBA