Introdução
Ainda que se perceba a necessidade latente de nos tornarmos atentos às relações entre o sujeito e as extensões que ele cria para si, as ciências sociais têm, frequentemente, estudado isoladamente o indivíduo e os fenômenos a ele relacionados. Em arquitetura, o mesmo tem ocorrido e, neste caso, o isolamento dá-se entre o indivíduo e os lugares construídos (1).
Apesar de tais divórcios, tanto as ciências sociais quanto a arquitetura incluíram desde sempre paradigmas relacionais e não-individualísticos. Na arquitetura observamos um deslocamento da ênfase na análise de aspectos técnicos do edifício, sejam eles estéticos, funcionais ou econômicos, para o estudo das relações entre o indivíduo e a intervenção arquitetônica, propiciando a elaboração de propostas arquiteturais centradas no usuário e nas suas relações sociais, bem como nas implicações ecológicas das interferências realizadas.
A Psicologia, por sua vez, tem ampliado consideravelmente a própria concepção de sujeito, construindo-o de maneira a incluir suas relações com o mundo social e seus ambientes, assim redesenhando seu objeto de estudo, a exemplo das vertentes da psicologia cultural e do desenvolvimento, da psicologia social e da psicologia ambiental.
A abordagem histórico-cultural de Vygotsky (2), por exemplo, corrobora com a ideia de um sujeito que produz sentidos enquanto atravessado por ambientes interativos, responsivos e participativos, num processo permanentemente dinâmico de relação sujeito-ambiente. Nos cenários interacionais onde a vida se desenrola, construir em arquitetura deve significar, igualmente, buscar uma compreensão das relações entre fatores como o dimensionamento dos ambientes e a possibilidade de regulação da privacidade, por exemplo, ou ainda a relação entre a organização de tarefas cotidianas e a ordenação dos elementos arquitetônicos que as viabilizam. Observar tais processos deve ainda implicar que privacidade, por exemplo, é um aspecto intrínseco da vida e do cotidiano de pessoas reais, de cuja perspectiva a arquitetura não pode abrir mão.
Assim, cada elemento arquitetônico desempenha um papel singular em sua articulação com outros elementos e com a vida das pessoas para quem a arquitetura se oferece como linguagem e instrumento e, portanto, cada edificação revela-se como obra única no sentido das conexões que realiza entre os indivíduos que a habitam e o meio – condição para sua existência como arquitetura.
Nesse ponto emergem algumas questões cruciais para o planejamento arquitetônico, e que serão tratadas neste artigo: De que maneiras um conjunto qualquer de elementos arquitetônicos interage com os sujeitos que o experienciam? (3) De que formas uma organização espacial qualquer pode funcionar como reguladora da apropriação do espaço? (4) Como os sujeitos interagem com os espaços? De que maneira essas interações interferem na constituição do próprio sujeito?
Enquanto produto cultural, o espaço é constituído a partir de práticas sociais concretas que indicam a possibilidade de um fazer compartilhado e significativo. De fato, o espaço construído é lugar do sujeito, feito por e para sujeitos. As análises sobre as articulações de sentido acerca do espaço possibilitam, então, a compreensão de como este foi estruturado, como os indivíduos organizam sua sociedade e como a concepção e uso que se faz do espaço sofre mudanças, tendo em vista que um “autor” o constrói para um “usuário” que recria o espaço a partir de seus próprios processos de produção de sentidos.
Destaca-se, portanto, as várias dimensões que envolvem o conceito de arquitetura, definido como um “modelo de comportamento humano”, e como tal não poderia se restringir a obras realizadas apenas por arquitetos, fato que nos leva ao reconhecimento da complexidade do conceito de arquitetura.
Claro, não se espera responder às questões listadas acima. Este texto oferece algumas frentes aos muitos divórcios historicamente produzidos entre sujeito e espaço construído.
Para refletir sobre este processo de organização espaço-temporal do habitante, na relação deste com o espaço, consideramos um espaço planejado para controlar e promover ações, objetivando a transformação do comportamento – tal como instituições sociais de regulação de necessidades ou comportamentos – considerando sempre que esta regulação necessita obter a “colaboração” dos sujeitos nela inseridos.
O espaço como objetivação do discurso
Tradicionalmente, a arquitetura é concebida enquanto uma tentativa de impor ordem à movimentação do sujeito. Qualquer projeto arquitetônico visa a ordenação dos eventos cotidianos que emergem em contextos específicos: o quarto para dormir, a cozinha para cozinhar, e assim por diante. A arquitetura pode ser considerada como o resultado do trabalho (cultural) de qualquer agrupamento humano, fato evidenciado na etimologia da palavra, arkhitektôn, de origem grega, que designa as construções (tectônicos) que contém arché, ou seja, os princípios da construção, e, nesse sentido, os vestígios da história que deram origem a uma comunidade. Nesse sentido, a arquitetura é expressão e representação cultural de uma dada sociedade e, portanto, a partir das características de uma arquitetura é possível especular acerca das características da sociedade que a produziu. Assim, podemos identificar para cada época histórica um conjunto mais ou menos estável de representações sociais do qual decorrem ideias, artefatos e arquiteturas.
Os espaços construídos, portanto, são muito mais que proteção às intempéries do ambiente natural, tornando-se manifestação típica de uma determinada coletividade, ou seja, um produto cultural. Assim, cada elemento arquitetônico pode desempenhar papel singular dependendo da sua articulação com outros elementos, e, portanto, cada edificação revela-se como obra única no sentido das conexões que realiza entre os indivíduos que a habitam e o meio – condição para sua existência como arquitetura.
Aqui, cabe destacar a presença de uma voz – encapsulada no discurso técnico do projeto e posteriormente objetivada no espaço construído – que é a voz do cliente-usuário, na preconcepção do espaço, através de conversas iniciais, regulando a construção de diagramas espaciais, programa de necessidades etc., até o período de concepção arquitetônica, com discursos presentes nos desenhos, na aceitação ou ajustes da proposta arquitetônica, a qual representa a linguagem do discurso aceito.
Não se pode, contudo deixar de considerar que a responsabilidade técnica sempre recairá sobre o profissional, mas a autoria pode ser compartilhada por ambos, afinal, o que está por trás da ideia do autor tem a ver com a questão da criação, que, neste caso, acaba sendo conjunta. O encapsulamento das ideias, representado pelo projeto arquitetônico, atua como regulador das expectativas durante a prescrição do espaço. Esta função reguladora abre possibilidades, ao tempo em que limita escolhas de projeto. Os projetos que complementam as informações do projeto arquitetônico (elétrico, hidráulico etc.), por sua vez, dialogam – ainda que não realizados durante o momento da concepção – com os processos intrasubjetivos dos projetistas. Sua concordância/discordância se apresenta no uso que se faz do espaço, bem como na sua transformação/apropriação.
Sendo assim, o espaço planejado pode ser pensado como um espaço marcado pelo encapsulamento polissêmico de “diversas vozes” vindas de discursos específicos – o discurso de arquitetos, engenheiros, clientes, postos em cena pelo espaço construído ou o discurso encapsulado no espaço construído, colocando-se em cena como um outro social, a partir da relação com o indivíduo que o ocupa. Nesse sentido, este outro traz em si, resumidamente, todas as análises que o antecederam, um mundo que já foi articulado, compreendido diferentemente. Nesse sentido, o espaço arquitetônico é produto e, ao mesmo tempo, resultado de um processo de criação e de avaliação de possíveis usos, ou performances futuras (ou ainda “desempenhos”) (5).
O contraste entre um ambiente idealizado e um ambiente vivenciado, parece expor uma questão fundamental na arquitetura: enquanto arquitetos, não projetamos para um hipotético homem ideal ou homem médio, enquanto protótipo de sujeito ideal, com ações prototípicas, planejadas e homogêneas, que eliminem a emergência de novas ações, mas sim para o homem comum, com sua individualidade e, portanto, dotado de subjetividade: um sujeito. Aproximar-se deste ser, bem mais complexo, é condição para fazer arquitetura.
Se for assim, o espaço construído, enquanto síntese, coloca em cena concretamente, com sua história, seus conflitos etc., as vozes que o analisaram previamente como um outro social.
A apreensão de significados ou emergência de novos sentidos para o espaço, por outro lado, está notadamente relacionada ao uso que se faz do espaço construído, e à sua dinâmica na experiência humana. O sentido não é anexado ao uso do espaço, muito pelo contrário, o uso é a dimensão pela qual e na qual o sentido do espaço se atualiza, e aqui concordamos com Coutinho (6), que defende a atualização do espaço pela “experienciação”, entendendo que essa experienciação, aqui assumida como “uso”, também promove modificações no espaço, gerando um novo espaço simbólico, muitas vezes morfologicamente diferente, implicando em mudança da realidade, fenômeno atualmente nomeado “moldagem do lugar” (7).
É preciso atentar para o fato de que o sujeito que se abriga no espaço é autônomo e está em constante processo de desenvolvimento. Suas ações no espaço acontecerão em interação com este espaço, podendo modificá-lo. Ao modificar o espaço, seus atributos arquiteturais também são modificados, emergindo da relação deles com o sujeito, o que parece produzir uma dinâmica bidirecional de autorregularão entre sujeito e espaço, regulando, de algum modo, o próprio sujeito e o curso de seu desenvolvimento.
A construção de uma obra arquitetônica resulta de uma política arquitetural que apresenta argumentos repletos de efeitos de sentido desencadeadores de interpretações para o uso do espaço. Uma produção arquitetônica não é ingênua; pelo contrário, ela coloca-se, de certo modo, como um elemento importante que constrói um campo de canalização cultural que regula, orienta, limita e ao mesmo tempo empodera o cotidiano daqueles que ela abriga.
A distribuição espacial dos elementos arquitetônicos, sua circulação, sua continuidade ou contrastes, sua modernidade ou monumentalidade, são manifestações de uma intenção, de uma provocação, que canalizam – mas não determinam – seus modos de produção de sentido. As análises sobre as articulações de sentido acerca do espaço possibilitam, então, a compreensão de como este foi estruturado, como os indivíduos organizam sua sociedade e como a concepção e usos que se fazem do espaço sofrem mudanças, tendo em vista que um “sujeito” o constrói para outro “sujeito” que recria o espaço a partir de seus próprios processos de produção de sentidos.
Isto posto, devemos atentar, no entanto, para o fato de que o sujeito do espaço é autônomo e em constante desenvolvimento. Suas ações no espaço acontecerão em interação com este espaço, podendo modificá-lo. Modificando-o, os “argumentos arquiteturais” do espaço também são modificados, produzindo uma dinâmica de co-regulação entre sujeito e espaço.
O espaço, então, é uma realidade relacional entre coisas e pessoas, não sendo, portanto, como nas definições clássicas de geografia, o resultado de uma interação entre o homem e a natureza bruta, porque são inseparáveis as participações de certos arranjos de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais de um lado e a vida que os preenche e os anima, ou seja, a sociedade em movimento, de outro lado.
Todos os espaços que frequentamos significam: eles significam algo para quem os planeja e significam algo para quem os vivencia. A definição de lugar funda-se a partir da forma como o designamos e sobre ele falamos. O lugar é, então, um recorte do espaço, construindo daí um mundo ordenado e com significado histórico.
Os lugares não são dotados de limites reconhecíveis no mundo concreto, porque, sendo uma construção subjetiva, que engloba o somatório das dimensões simbólicas, emocionais, culturais, políticas e biológicas, e, ao mesmo tempo tão incorporada às práticas do cotidiano, as próprias pessoas envolvidas com o lugar não o percebem como tal. Assim, ao contrário dos ambientes delimitados para fins de planejamento, plenamente reconhecíveis em projetos, desenhos e registros dessa natureza, dar nome aos lugares é dar seu explicito reconhecimento, isto é, reconhecê-lo no nível da verbalização (8) como lugar de produção de sentidos.
Assim, o arquiteto – assim como todos os demais projetistas – ao demarcar as fronteiras e limites do indivíduo no espaço construído, quer sejam limites concretos ou mesmo a utilização da própria linguagem para nominar os ambientes, opera de forma globalizante na relação espaço-tempo do sujeito que o habita e age ativamente sobre a sua mobilidade corporal, a exemplo do que trata a Sintaxe Espacial (9), mas também produz um Campo de Canalização Cultural que possibilita a produção de sentidos emergentes em cada contexto. Não se pode, contudo, afirmar que o movimento humano é um ato de comunicação instalado através de seus deslocamentos e efetivado pelos seus trajetos no ambiente delimitado pela obra arquitetônica, uma vez que a arquitetura não se restringe a enviar mensagens e nem sua essência se revela na comunicação, à maneira de um modo estruturalista de ver o espaço. Ao contrário, na medida em que tomamos o espaço como objeto de análise e o aplicamos na consideração do contexto, fixamos o discurso no substrato material e sócio-cultural que o determina enquanto espaço que sugere ações específicas de uso.
Isto posto, cabe ao sujeito que ocupa o espaço acatar as “sugestões espaciais”, adaptando-se a ele, ou rejeitá-las, transformando-o de acordo com suas necessidades particulares. Assim, podem ocorrer transformações de aspectos funcionais, simbólicos, econômicos, entre outros, para que sua relação com o espaço existente se constitua enquanto apropriação do lugar.
Por essas definições, o espaço não age em resposta à ação do indivíduo isoladamente, nem este imprime ao espaço modificações isoladas. O espaço construído, enquanto síntese, funciona como Campo de Canalização Cultural (10) uma vez que pretende ordenar as ações do sujeito e este, ao mesmo tempo em que é ordenado, modifica o espaço, reorganizando-o, atividade que dispara enorme variabilidade na ordenação das ações do próprio sujeito.
Com estes recursos, cada sujeito tem a possibilidade de ter reservado para si próprio um certo grau de liberdade sobre o contexto. É desta forma que podemos investigar como se dá a construção social da identidade do sujeito no espaço que o abriga: tanto influenciando como sendo influenciado pelos componentes arquitetônicos presentes nos diversos contextos em que se insere.
A construção objetiva x a construção da subjetividade
A vida social caracteriza-se por processos profundos de reorganização das temporalidades e espacialidades do cotidiano, que modificam historicamente os significados das práticas culturais. Sujeitos e artefatos se inter-relacionam nas atividades que compões a vida social, de modo que a ação humana é analisável como distribuída entre os sujeitos, e entre os sujeitos e seus artefatos num tempo histórico específico (11).
Em vista das transformações de toda ordem que os sujeitos implementam em seus lugares de residência, trabalho, lazer e outras atividades, podemos considerar estas modificações como “respostas” ao espaço construído, entendendo-se a relação espaço-sujeito como dialógica, onde os “discursos” se reorganizam dinamicamente eem co-autoria. Assim, não apenas o sujeito, mas a própria arquitetura dos lugares é construída em processos de co-autorias pelos sujeitos que a ocupam e por aqueles que a projetam.
A construção da obra como um diálogo coloca o autor na posição de organizador e também participante do diálogo, dada a inconclusibilidade e dialogicidade da própria obra.
Os caminhos para algum lugar são, num sentido geral, o código psicológico universal da vida psicológica humana. A construção humana de ambientes é resultado de alguma primeira jornada além do conhecido (para os primeiros construtores de artefatos culturais), e segundamente, artefatos estabelecidos para fazer jornadas possíveis. Assim, o espaço é um artefato culturalmente construído pelas culturas pessoal e coletiva.
O sujeito em interação com o espaço, por sua vez, é marcado espaço-temporalmente, sendo essencialmente histórico. Sua fala é produzida a partir de um determinado lugar e tempo, logo, não está solto. Antes pertence a quadros sócio-históricos, cenários. Há vestígios observáveis que são apreendidos nos acontecimentos.
Na abordagem co-construcionista (12), são enfatizados os mecanismos de mediação semiótica (ou de construção de significados) presentes na configuração da identidade ou, em outras palavras, na construção de uma cultura pessoal. O processo social de construção da personalidade em contextos culturais é compreendido como um processo bidirecional de interdependência, cuja compreensão vai além de modelos causais lineares sujeito/ambiente. O ambiente social possibilita ao sistema da personalidade rearranjar-se de forma singular em cada sujeito, de acordo com sua cultura pessoal (13).
“Seres humanos são espantosos – eles criam mundos subjetivos de grande complexidade – e fazem isto ser realidade objetiva. Eles organizam seus reinos mentais continuamente criando hierarquias de planos de mediação semiótica. Seus planos regulam suas relações com seu ambiente imediato, dando significado para suas extra-ações, que transformam o ambiente, e intra-ações, que transformam seu próprio mundo subjetivo” (14).
As pessoas criam subjetividades abstraídas dos significados da vida imediata. Portanto, pessoas constroem os significados que as direcionam a reconstruir o mundo objetivo (ou seja, observável), e o mundo reconstruído guia essas mesmas pessoas para suas próximas construções de significados, num processo dialético e dinâmico.
Sendo assim, o indivíduo se constitui como sujeito histórico nesse processo de subjetivação-objetivação. Isso não se dá de forma idêntica de sujeito para sujeito. Varia em função de múltiplas determinações – no momento histórico, referências culturais, posição do indivíduo no interior das relações sociais etc.
Valsiner (15), ampliando tal perspectiva na direção de incluir o papel do sujeito ativo e construtivo, assegura que o desenvolvimento psicológico é social, relacionado às – mas não determinado pelas – interações sociais que o indivíduo estabelece ao longo do seu desenvolvimento. O desenvolvimento consiste na transformação de uma organização, em um processo através do qual novas formas de organização surgem das que as precederam no tempo. Dessa forma, as influências ambientais e as condições internas do organismo participam do processo de desenvolvimento, possibilitando-o ou dificultando– o, a depender das interações específicas de tais condições em cada momento.
Complementando este raciocínio, Peres (16) diz que “Reflexões recentes sobre contexto permitem-nos evidenciar que o contexto é tanto condição da enunciação como condicionado por ela, transformando-se mutuamente. Os acontecimentos discursivos redefinem a situação, sendo a relação linguagem-contexto dinâmica e permeada de intrínsecas transformações dialéticas”.
Se avaliar a arquitetura fosse apenas uma questão de sair perguntando às pessoas sobre sua satisfação quanto a edifícios e cidades, seria muito simples. A arquitetura “funciona” porque satisfaz expectativas humanas, mas estas expectativas mudam ao longo do tempo, e muda-se também a arquitetura, sendo estas expectativas e a arquitetura constitutivas de sociedades específicas.
Ao observar as transformações de toda ordem ocorridas no espaço, percebe-se a possibilidade de considerar estas modificações como respostas ao espaço construído, entendendo-se a relação espaço-homem como dialógica, onde os “discursos” se reorganizam dinamicamente.
Essa reflexão nos leva à questão de coautorias proposta por Bakthin (17), considerando aqui que não apenas o sujeito, mas a própria arquitetura é construída em processos de coautorias pelos sujeitos que a ocupam.
A construção do todo da obra como um grande diálogo coloca o autor na posição de organizador e também participante do diálogo, dada a inconclusibilidade e dialogicidade deste todo. O sujeito em interação com o espaço, por sua vez, é marcado espaço-temporalmente, sendo essencialmente histórico. Sua fala é produzida a partir de um determinado lugar e tempo, logo, não está solto. Antes pertence a quadros sócio-históricos, cenários. Há vestígios observáveis que são apreendidos nos acontecimentos.
Considerando o Espaço como a síntese de outros sociais, configurando-se assim num Campo de Canalização Cultural que regula as ações do sujeito que o habita, conclui-se que a unidade de análise para a compreensão deste fenômeno deve se pautar na relação de autorregulação semiótica entre o sujeito e o espaço. A partir da teoria de Campos Semióticos (18), então, entende-se que a interação entre o sujeito e o espaço pode estar encapsulada no discurso, no uso de artefatos, nos gestos e nos registros, formando configurações contextuais.
Investigar a ação em termos de Configurações Contextuais é entendê-la como constituída por diversos relacionamentos integrados semioticamente, que não podem ser estudados de forma isolada, pois pressupõem a cognição como um fenômeno situado, coletivo e inserido em um ambiente social e material compartilhado.
As configurações contextuais transformam-se no curso das ações, alterando-se com as diferentes ênfases e evidências com que são empregados os recursos semióticos. Altera-se, portanto, o inter-relacionamento entre fala, gesto, registro e artefatos.
O termo ação assume uma ligação estreita com a ideia de um processo interativamente organizado, de reconhecimento coletivo, público. Os significados dos eventos estão ligados à realização seguinte desse mesmo evento, através do uso de campos semióticos dentro de um horizonte temporal em transformação.
Os componentes arquitetônicos orientam a interação, geram novas necessidades e até criam problemas, embora também gerem recursos para sua solução e são, muitas vezes, fundamentais para que determinadas interações venham mesmo a ocorrer. Esses instrumentos surgem num campo dentro do qual certas atividades, provavelmente, emergem ou venham a emergir e outras, provavelmente, não apareçam e nem venham a aparecer.
Isto posto, decorrente da colaboração e negociação de significados pelos autores da obra (arquitetos, engenheiros, administração pública, entre outros), uma enorme orquestração de vozes, diálogos e ações coordenadas se formam gradualmente em torno de vários tópicos tais como configuração espacial do partido arquitetônico, engessamento do fluxo de pessoas, definição de espaços necessários, etc. entre outros temas que permitem ao planejador a construção de um espaço adequado ao seu objetivo institucional.
Situado em outro tempo e espaço, o sujeito que o ocupa só tem acesso a este espaço, que o remete à concretização dos argumentos e objetivos de seu autor, concretamente sintetizados neste ambiente. Todo o percurso de negociações, ocorrido entre a equipe de desenvolvimento do planejamento do espaço(autores), agora se encontra abreviado em componentes arquiteturais encapsulados no espaço concreto.
Isto posto, enfatiza-se que, do momento de concepção do projeto até o momento em que a obra está construída, ocorreu uma mudança espaço-temporal da realidade, fato que, por si só, possibilita novas soluções e novos problemas, i.e., a emergência de novas configurações contextuais determinantes do espaço, surgindo a necessidade de adaptações outras, antes da ocupação pelo usuário.
A atividade propriamente dita do ocupante (coautor também dos significados no ambiente), por seu turno, acontecerá em um momento posterior no tempo, a partir de interações estabelecidas com o espaço construído, que carrega em si as vozes de um autor original.
Por outro lado, há uma reestruturação do sujeito que ocupa o espaço, em termos intra e intersubjetivos, a partir da regulação de suas ações pelo ambiente, que necessariamente o forçam a um processo de adaptação criativa (19). Quaisquer condutas baseadas em ordenações – dentre estas as espaciais – são organizadas com a internalização/externalização de campos semióticos, ainda que não haja nenhum controle social direto, pois alguma instituição social que tenta “controlar necessidades da mente humana” precisa obter a “colaboração” destas mentes nelas mesmas.
A Adaptação Criativa se define no momento em que o ambiente, enquanto necessariamente adaptável, ao ser transformado e transformador da realidade, em constante mudança, permite a continuidade do processo de desenvolvimento da apropriação do espaço, firmando-se enquanto lugar.
Sendo assim, podemos contextualizar a arquitetura a partir da análise de como o individuo constrói e, ao mesmo tempo, se constrói no ambiente e, ainda mais, como esta construção é influenciada por este mesmo ambiente, apreendendo-se que determinadas especificidades ambientais tornam possíveis algumas condutas, enquanto inviabilizam outras.
Prever ações consiste no planejamento do futuro que foi percebido pelas experiências do passado, ou na imaginação de um novo grupamento, no tempo, em uma nova ordem de elementos já anteriormente percebidos, mas que nunca está sendo percebido. O que é ao mesmo tempo simples, é necessariamente imprevisível.
Estas colocações se pautam nas palavras de Vygotsky (20), guiado pelos seguintes princípios: os fenômenos são compreendidos em processo e vistos, portanto, em movimento e transformação; o ser humano transforma a natureza e a si mesmo pelo uso de instrumentos; as condições sociais da vida historicamente formada são a origem dos movimentos individuais; o conhecimento deve apreender, a partir do aparente, as determinações constituintes do objeto.
Não seria, portanto, diferente, na relação ambiente/sujeito. Isto posto, à condição humana necessariamente impõe-se uma condição sócio-histórica. O indivíduo é construído nas ações sobre a realidade e nas relações sociais, num movimento dialético.
Autores e ocupantes são, portanto, dois polos de um fenômeno dentro do qual entrecruzam seus papéis e, em ambos os polos, temos um autor que é também usuário, e um usuário que é também autor, uma vez que a apropriação de ambas as atividades encontra-se inserida nesta rede histórico-social mais ampla.
Pensamos em indivíduos e espaço como indissociáveis e, portanto, concebemos que o conhecimento não está nem nas pessoas, nem nos objetos, mas na relação entre eles, consideramos que os processos de coautorias acima discutidos se fundamentam nos processos de co-arquitetura, transformando o usuário em coautor do ambiente.
Conclusão provisória
A estabilidade do mundo social não decorre de uma estrutura, mas são as ações situadas que criam e sustentam o entendimento compartilhado sobre ocasiões específicas de interação. Há, segundo essas idéias, limites sociais sobre os quais seriam as ações apropriadas a um conjunto de circunstâncias, as regras para agir que são aprendidas implícita e explicitamente através da tipificação de situações e ações similares.
Desse modo, os significados culturais são vistos como mutuamente constituídos nas relações entre sistemas de atividades e pessoas agindo, tendo um caráter relacional. A ideia de que seres humanos constroem significados a partir das práticas em que suas atividades ocorrem, as quais já são saturadas de significados, indica-nos que o terreno para a compreensão desses indivíduos é a observação dos mesmos durante a participação em tais atividades.
A mudança de foco para uma perspectiva situada e distribuída diminui o peso da proposição de que haveria um ser universal, adotada pelo planejador do espaço, que aprenderia da mesma forma em qualquer tempo e lugar, e de que as relações entre sujeitos e ambiente seriam, do mesmo modo, universais. Do outro lado da balança, ganha peso o contexto – tanto em níveis mais amplos (social) quanto em níveis mais restritos (próprio ao ambiente de ação ou experimentação). Então, o estudo das situações em que os sujeitos estão inseridos é o que melhor permite a compreensão dos significados que são aí produzidos em interação, e que continuamente são transformados na dinâmica de relações entre pessoas, grupos e espaços.
Isso nos levaria, inevitavelmente, enquanto arquitetos, a uma nova postura de planejamento, onde o cliente ocuparia um outro papel no processo de criação do espaço, o de Coautor. Uma vez que todas as ações humanas acontecem no espaço, estabelece-se um relacionamento inseparável entre homem e espaço, caracterizando a existência humana como espacial e, simultaneamente, funcional, racional e simbólica, incorporando as necessidades, expectativas e desejos dos sujeitos.
A arquitetura nos convida a realizar uma síntese pessoal envolvendo subjetividade e objetividade em nossas análises. Arquitetônica é a relação, não a coisa em si, e portanto se estabelecerá também uma relação (arquitetônica) quando o ser humano interagir com o ambiente.
notas
1
RIVLIN, Leanne G. Olhando o passado e o futuro: revendo pressupostos sobre as inter-relações pessoa-ambiente. Estudos de Psicologia, Natal, v.8, n.2, 2003.
2
VYGOTSKY, Lev. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo, Ícone, 1988.
3
BRANDÃO, Ludmila de L. A casa subjetiva: matérias, afetos e espaços domésticos. São Paulo, Perspectiva, 2002.
4
Jaan Valsiner considera que as fronteiras visualizadas não são, necessariamente, as mesmas redefinidas no processo de apropriação e adaptação criativa de um lugar particular, sendo estas oriundas de um investimento simbólico que, necessariamente, é regulado pelo espaço existente. VALSINER, Jaan. The Street. Ment, Territori i Societat, Barcelona, Universitat Politecnica de Catalunia, 2004.
5
RITTEL, Horst. Der Planungsprozess als iterativer Vorgang von Varietätserzeugung und Varietätseinschränkun. Karl Krämer Verlag, Stuttgart, 1970.
6
COUTINHO, Evaldo. O espaço da arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 1977.
7
DUARTE, Cristiane Rose; VILLANOVA, Roselyne de (Org.). Novos olhares sobre o lugar: ferramentas e metodologia. Rio de Janeiro, Faperj, 2013.
8
TUAN, Yi-Fu. Place: an experiential perspective. Geographical Review, 65, v 2, 1975, p. 151-165.
9
HILLIER, Bill; HANSON, Julienne. The social logic of space. Cambridge: Cambridge University Press, 1984.
10
VALSINER, Jaan. Culture and Human Development. An Introduction. London, Sage publications, 2000.
11
SCRIBNER, Sylvia. Mind in action: a functional approach to thinking. In COLE, Michael; ENGESTROM, Yrjo; VASQUEZ, Olga. Mind, Culture and activity: seminal papers from the laboratory of comparative human cognition. Cambridge, University Press, 1997.
12
VALSINER, Jaan. Culture and the Development of Children’s Action. A cultural-Historical Theory of Develomental Psychology. Chichester, Hohn Wiley e Sons, 1987.
13
Por cultura pessoal (Valsiner), entende-se os processos mentais internos e também a externalização imediata desses processos.
14
VALSINER, Jaan. The Street (op. cit.).
15
VALSINER, Jaan. The Guided Mind: a Sociogenetic Approach to personality. Cambridge, Harvard University Press, 1998.
16
PERES, Flávia. Diálogo e autoria: do desenvolvimento ao uso de sistemas de informação. Tese de doutorado. Departamento de Psicologia, Curso de Pós-graduação em Psicologia Cognitiva. Recife, UFPE, 2007.
17
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
18
O sujeito se constitui através dos campos semióticos (fala, gestos, uso de artefatos e registros).
19
CORDEIRO, Suzann. De perto e de dentro: A relação entre o indivíduo preso e o espaço arquitetônico penitenciário a partir de lentes de aproximação. Maceió, Edufal, 2009.
20
VYGOTSKY, Lev. Formação social da mente. São Paulo, Martins Fontes, 1987.
sobre a autora
Suzann Flavia Cordeiro de Lima é arquiteta e urbanista, mestre em arquitetura e urbanismo (UFAL), doutora em Psicologia Cognitiva (UFPE), professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Universidade Federal de Alagoas (UFAL), coordenadora do Núcleo de Pesquisa sobre Projetos Especiais (NuPES/UFAL) e pesquisadora associada da Faculty of Law, Katholique University of Leuven, BE (KULeuven).