Introdução
Quando assumi a presidência do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado –Condephaat em fevereiro de 2013, tomei como ponto de partida duas afirmativas. A primeira reconhecia o patrimônio cultural como um campo eminentemente político. Das relações entre memória e esquecimento às inevitáveis restrições ao direito de propriedade estabelecidas pelo tombamento são múltiplas as mediações, interesses, posições e, inescapavelmente, os debates e conflitos que envolvem a procura de construção dos consensos possíveis. Essa complexidade envolve posições e expectativas de diversos atores e grupos sociais: dos interesses individuais às políticas de governo; das competências e posições técnicas aos debates acadêmicos, das diretrizes do Conselho às práticas do corpo técnico; das articulações e confrontações com os outros órgãos de preservação, com outras instâncias e órgãos públicos e privados, com as expectativas da sociedade.
A outra se referia ao andamento do próprio órgão de preservação que tem sua trajetória pontuada por compreensões e posições acerca desses múltiplos aspectos. Ao longo de suas décadas de existência. o Condephaat, e agora também a UPPH, produziu uma ampla ação em relação às práticas relacionadas ao patrimônio cultural. Basta mencionarmos, a título de exemplo, as renovações e ampliações da noção de bem cultural que procuraram dissociá-lo da noção estrita de monumento histórico, resultando em atribuição de valor a bens e situações tradicionalmente excluídas da ação patrimonial. Importante também qualificar a permanência de uma relação sistemática com a sociedade, estabelecida, dentre outras, pela possibilidade de qualquer cidadão protocolar uma solicitação de tombamento ou registro de patrimônio imaterial.
Nessa dupla perspectiva propus algumas diretrizes para o trabalho a ser desenvolvido:
1. consolidar o papel do Condephaat como propositor de políticas públicas estabelecendo suas interfaces com outros órgãos e instituições relacionados à gestão do patrimônio cultural.
2. estimular as conexões entre reflexão, crítica e prática como atribuições intrínsecas e inescapáveis do órgão.
3. responder adequadamente às demandas apresentadas pela sociedade, mas ser simultaneamente capaz de pautar os debates afetos ás suas áreas de competência
4. consolidar e produzir legislação que enfrente o tema do patrimônio como política pública intrinsecamente relacionada à política urbana e ambiental
5. pensar sobre novos instrumentos e práticas de ação para além do tombamento
6. consolidar e aprimorar instrumentos existentes tais como o registro do patrimônio imaterial, as penalidades e os incentivos, implementando processos de fiscalização, promoção e fomento construindo uma agenda positiva para o patrimônio cultural.
Ao apresentar uma síntese das atividades desenvolvidas durante o período em que permaneci na Presidência do Condephaat, pretendo explicitar as ações empreendidas para atingir as metas propostas em fevereiro de 2013 e as limitações e restrições de ação.
O Condephaat
O Egrégio Colegiado do Condephaat – Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado – é formado por 26 membros, nomeados pelo Governador do Estado, que se reúnem para discutir e deliberar sobre questões relacionadas à preservação do patrimônio cultural.
Nos anos de 2013 a 2015, o Egrégio Colegiado deliberou sobre mais de 5000 processos, conforme tabela abaixo:
Estes processos são instruídos por qualificado corpo técnico que compõe a Unidade de Preservação do Patrimônio Histórico – UPPH. A CAAC, apoio administrativo do Conselho, realizou suas atribuições a partir de uma reorganização interna de tarefas, uma maior aproximação com a UPPH e uma ampliação de seu quadro funcional.
Ao longo de minha gestão foram feitas revisões e alterações de procedimentos administrativos que tiveram por objetivo garantir maior eficiência e agilidade nas deliberações, ampliando as condições de realização de discussões qualificadas que fundamentam as decisões do Conselho. Dentre essas ações destacamos a reformulação do regimento interno e uma maior aproximação na organização dos trabalhos entre UPPH e Condephaat.
O objetivo destas alterações foi, garantindo a qualidade das discussões e deliberações, agilizar, sempre que possível, os trâmites das deliberações e ampliar as interlocuções entre os diversos interesses mobilizados nas decisões do Condephaat. As alterações realizadas mantêm o regramento de que todos os processos sejam deliberados pelo Conselho, independentemente de seu objetivo e grau de complexidade. As principais mudanças implicaram em:
- facultar a realização de audiência pública para debates, antes da deliberação de casos mais complexos;
- permitir a deliberação, sem a necessidade de relatoria, de projetos de menor complexidade referentes a conservação e manutenção em bens tombados ou em estudo de tombamento e projetos em áreas tombadas ou em áreas em estudo de tombamento. Manteve-se o regramento que exige parecer técnico da UPPH para qualquer deliberação do Conselho;
- estabelecer prazos para o andamento dos processos;
- garantir maior transparência nas discussões e deliberações do Conselho;
- suprimir o sigilo das reuniões garantindo que todas as sessões fossem públicas;
- institucionalizar a participação dos técnicos nas reuniões do Conselho.
- alterar os critérios de estabelecimento do quorum para deliberação
O Condephaat como formulador de política pública
O reconhecimento do Condephaat como Conselho de Estado responsável pela elaboração e gestão de políticas públicas impôs como ação central dar maior publicidade a seus procedimentos e deliberações a partir das seguintes práticas:
1. As sessões do Conselho são públicas e as pautas devem ser divulgadas e publicadas no DO com cinco dias de antecedência.
2. A reorganização dos trâmites internos permitiu maior agilidade na divulgação das deliberações.
3. Todas as oitivas solicitadas foram concedidas de forma que os interessados nos processos pudessem expor ao Conselho seus pontos de vista, introduzindo assim mais um elemento a fundamentar as deliberações. Foram concedidas 65 oitivas sendo 30 em 2013, 17 em 2014 e 18 em 2015
4. Realização, em iniciativa inédita, de audiência pública relacionada à revisão de tombamento do Hospital Matarazzo.
5. Realização, também inédita de consultas públicas referentes à propostas de tombamento do Complexo Ferroviário de Bauru e de Sorocaba. As centenas de sugestões e comentários integram os processos de tombamento e serão consideradas na definição dos mesmos. Estes novos procedimentos ampliam e dão novo significado á relação com a sociedade.
6. Reuniões técnicas com prefeitos, empreendedores, organizações da sociedade civil e Estado foram sistematicamente realizadas. (Aterro Sanitário em Caraguatatuba/ Intervenção na Bacia do Rio Itapanhau-Sabesp/ Parada de ônibus na Praça das Bandeiras- Ribeirão Preto/ Atividade de Mineração no Vale do Ribeira) Vale destacar alguns processos. O primeiro se relaciona ao Jockey Club e resultou na elaboração de um plano diretor para a área, contemplando como uma de suas diretrizes fundamentais a temática do patrimônio cultural. O segundo se refere ao dossiê preliminar visando o tombamento da Serra da Mantiqueira e resultou em reunião com Prefeituras envolvidas, com a presença do Secretário do Estado do Meio Ambiente e do Secretário da Cultura, para estabelecer diretrizes e questões a serem aprofundadas no andamento do processo. Por fim o trabalho desenvolvido junto a mineradoras do Vale do Ribeira traduzindo-se em nova compreensão sobre a ação ambiental.
7. Formação de Grupos de Trabalho para temas complexos: 1 - a revisão do tombamento do núcleo urbano de Amparo; 2 - a Resolução de Tombamento dos Bairros Jardins; e 3 - Patrimônio Imaterial, com elaboração de propostas de resoluções para regulamentar o registro de bens de natureza imaterial, bem como encaminhar os processos de registro.
8. Participação em reuniões e audiências públicas sempre que convidada. Vale destacar a ocorrida em 2013 no Teatro Oficina e em 2014 na Câmara dos Vereadores sobre as ciclovias e em 2015 na Câmara Municipal de Santos, referente ao processo de tombamento dos chalés de madeira.
9. Realização de reuniões ordinárias do Egrégio Colegiado nos municípios:
- Amparo, em virtude da revisão do tombamento do núcleo urbano desse município em 25 de maio de 2015;
- Santos, para conhecimento das ações de preservação desenvolvidas no município pela Prefeitura e pelo Condepasa em 09 de novembro de 2015;
- Reunião ordinária do Egrégio Colegiado em 05 de outubro de 2015 para apresentação dos resultados dos projetos de pesquisa fomentados pelo convênio entre Fapesp e Condephaat.
10. Criação em 07 de outubro de 2014 da página do Condephaat no Facebook como mecanismo de divulgação de ações e incremento de diálogo com a sociedade.
11. Realização de entrevistas, matérias e artigos sobre ações relacionadas ao Condephaat assim como realização de seminários envolvendo prefeituras do estado de São Paulo
12. Produção de livros referentes ao patrimônio cultural paulista e elaboração e publicação de cartilha de orientações para moradores da Vila Maria Zélia (Dezembro/2015) e da “Vila Economizadora - Cartilha de Orientação aos moradores para reforma, restauro e conservação”, em parceria com o DPH/Conpresp, disponibilizada no site da SEC (Junho/2013)
Processos
A quantidade de processos analisados deve também ser considerada a partir da diversidade e complexidade dos temas tratados. Muitos processos referem-se a temas consolidados, cujas deliberações estão lastreadas por anos de decisões e trocas com a sociedade. Podemos, por exemplo, inserir neste grupo os processos relacionados às Escolas da República e aos monumentos individuais do período colonial e imperial.
Outro conjunto de processos remete aos estudos temáticos de tombamento realizados pelos técnicos da UPPH. Nessa categoria, podemos destacar os complexos ferroviários, os asilos, os fóruns e cadeias, o conjunto da obra do arquiteto Vilanova Artigas, industrial textil e os núcleos urbanos. Aqui se trata de constituir uma visada sobre os objetos de memória, vistos em conjunto. O objetivo é realizar, por um lado a identificação de elementos recorrentes que configurem uma tipologia específica e por outro, reconhecer, no conjunto identificado, elementos específicos e excepcionais que permitam selecionar os bens a serem tombados. Portanto, a análise dos conjuntos temáticos permite estabelecer diversos níveis de aproximação em relação ao bem em estudo. Uma escala é aquela que constitui o conjunto, reconhecendo e qualificando os múltiplos bens a partir de perspectiva que estabelece parâmetros iniciais de reconhecimento. Outra escala de análise permite estabelecer relações entre os bens, identificando as recorrências e excepcionalidades. Por fim, foca-se na pesquisa de cada bem em particular.
O Conselho assumiu como procedimento discutir os critérios que orientaram a elaboração dos pareceres técnicos, contribuindo para seu aprimoramento. Após esse momento de reflexão, os processos eram analisados e deliberados. Dessa forma, procurou-se qualificar a reflexão tanto da área técnica, como do conselho, fazendo-a operar em duas escalas: uma do estabelecimento de critérios e parâmetros, outra da análise processual. Vale destacar que ao longo desses anos estabeleceu-se o compromisso de analisar os processos de tombamento apenas quando acompanhados das minutas de resolução, de forma a garantir uma mais efetiva capacidade de salvaguarda dos bens que integram o patrimônio cultural. Os processos relacionados à industria têxtil e aos asilos colônias de hanseníase, foram concluídos em 2015 dando conta de um universo de 12 estudos de tombamentos. As indústrias texteis reiteram a importância do patrimônio industrial para São Paulo, estado que transfigura sua trajetória e inserção nacional a partir de diferenciada presença industrial. Os asilos/colonias de hanseniase expõem aspectos de trajetórias pessoais e institucionais que lidavam com a doença e com o doente a partir da reclusão e exclusão. Está memória difícil mais uma vez revela, como no processo do DOI CODI, a necessária articulação entre práticas materiais e imateriais para a ampliação do olhar sobre o patrimônio cultural para além do monumental e do excepcional.
Um terceiro conjunto de processos remetiam a novos objetos e problemas do patrimônio cultural e sobre como fazer, ou não, incidir sobre eles a chancela do tombamento. Temas e objetos que operam nas fronteiras do patrimônio material e do registro do patrimônio imaterial como, por exemplo, o tombamento do DOI CODI. Não só tratava-se de enfrentar o reconhecimento de uma memória difícil, mas, de perceber a imperiosidade de sua base material, sabendo que seu valor decorria das práticas realizadas. Questões semelhantes incidiram sobre a abertura de estudo de tombamento dos clubes de associativismo negros. O reconhecimento do significado das práticas envolvidas nestes clubes não podem ser objeto de registro do patrimônio imaterial posto que elas não são mais praticadas. Por outro lado a materialidade remanescente não traz em si nenhum dos valores relacionados à excepcionalidade e/ou boa arquitetura que tradicionalmente justificam os tombamentos.
A abertura de estudo de tombamento dos chalés de Santos traz a luz um novo tema: a habitação popular problematizando a idéia da arquitetura excepcional como a única merecedora de proteção. Ao mesmo tempo recoloca desafios históricos sobre como associar políticas urbanas com políticas de preservação cultural e educação patrimonial de forma a envolver positivamente a população nos processos de patrimonialização.
Um conjunto refere-se a processos com histórico de tramitação complexo que foram solucionados como, por exemplo, o Bairro Campos Elíseos, cujo tombamento foi homologado em 2013, após 27 anos de tramitação, ou ainda o Hospital Matarazzo e o Bairro de Higienópolis. Em relação à Fazenda Tenente Carrito, no Município de Itapetininga, tratava-se de encaminhar solução para um bem tombado que não mais existe, levando à discussão sobre seu destombamento. Foi apresentada solução técnica que viabilizou a manutenção da proteção sobre a área, por considerar que esforços foram envidados em estudos e levantamentos, registros foram feitos em livros publicados pelo Condephaat, de modo que a memória deste bem, não deveria ser simplesmente apagada da historicidade dos tombamentos realizados pelo órgão, inclusive por se tratar de um sítio bandeirista, cuja proteção remete ao período heróico de atuação do Iphan em São Paulo. Neste sentido, propôs-se a manutenção do tombamento, que passou a incidir sobre a área onde existia o bem tombado, com indicação de instalação de placa explicativa no local, exposição em outros prédios existentes na mesma área, mantendo-se a obrigatoriedade de que as intervenções na área sejam previamente analisadas pelo Condephaat, considerando a possibilidade de realização de pesquisa arqueológica no local.
Por fim, propostas de tombamento incidindo sobre lugares em uso explicitam as tensões entre o desejo da preservação com a necessidade de intervenção. Ou seja, como permitir a coexistência de múltiplas temporalidades no bem tombado; como problematizar a noção de origem que apaga o tempo e nega a vitalidade ao bem tombado? Hospitais, escolas e áreas naturais foram de forma recorrente analisados a partir destes problemas resultando em decisões que, por exemplo, autorizaram a duplicação da Rodovia dos Tamoios na Serra do Mar, a construção de UTI no Hospital das Clínicas ou ainda a revisão de muitas em áreas envoltórias.
As questões que fundamentam a qualificação dos bens culturais problematizando as razões da proteção patrimonial a ser estabelecida também foram mobilizadas nas reflexões acerca dos bens naturais. Na questão ambiental procurou-se avançar nas conexões entre a noção de paisagem e ambiente como valores culturais e, simultaneamente, aprofundar as especificidades em relação a outras formas de proteção existentes em relação a áreas naturais para além daquelas estabelecidas pelo Condephaat.
Vale destacar os novos sentidos e usos que foram agregados e mobilizados em relação aos instrumentos existentes. As novas possibilidades de compreensão da noção de tombamento concretizadas no tombamento de Higienópolis e dos núcleos históricos. O estudo de tombamento de Higienópolis tramitava no Condephaat desde os anos 1990 sem que se encontrasse uma solução adequada. Não se tratava de tombamento de bairro, nem de edifícios isolados, nem de mancha urbana. Entretanto reconhecia-se no bairro a existência de um conjunto de referências sobre as formas do morar que mereceriam proteção efetiva. O resultado introduz a ideia de percurso e processo. Definiu-se um tema/problema a ser reconhecido como objeto de proteção, em processo similar àquele que orienta os estudos temáticos. A partir desta premissa, a saber: os modos de morar das elites paulistanas, estabeleceu-se um eixo de reconhecimento e objetos foram nomeados para explicitar este processo espacial e temporal. O tombamento incide, portanto, em um percurso e introduz a possibilidade de inclusão e exclusão de elementos a partir dos critérios que constituíram o reconhecimento.
Os núcleos históricos estão tendo seus estudos de tombamento revisados. Os princípios que orientam as novas diretrizes resgatam a especificação de níveis de proteção dos imóveis listados a partir do valor temporal gerador do tombamento. Para, além disso, introduz nos procedimentos a obrigatoriedade de realização de audiências públicas prévias à decisão de tombamento. A revisão dos estudos de tombamento dos núcleos históricos impôs a realização de uma visita técnica do Conselho a Amparo e a constituição de um grupo de trabalho composto por técnicos da UPPH e Conselheiros. Este grupo reuniu todas as informações e estudos constantes do processo, problematizou o tombamento a partir do histórico de solicitações de intervenção na área tombada do município de Amparo e a partir do confronto com bibliografia contemporânea sobre o tema apresentou seus primeiros resultados na última sessão de 2015. Os trabalhos em andamento indicam inovadora perspectiva de análise que reconhece as múltiplas temporalidades do bem tombado e analisam os edifícios em relação e conexão com a cidade e a paisagem operando com a categoria de morfotipos e não mais níveis de proteção. Os resultados finais devem ser entregues no primeiro semestre de 2016.
Destaca-se também a deliberação do Colegiado do Condephaat favorável ao Registro do Samba Paulista como patrimônio imaterial do Estado de São Paulo. Trata-se do primeiro processo de registro concluído pela UPPH e deliberado pelo Conselho. A finalização deste processo foi possível pela adequação do regramento que instituiu o registro do patrimônio imaterial em São Paulo. A operacionalização do mesmo, o estabelecimento de adequadas ações de salvaguarda são desafios colocados e que revelam a noção central do patrimônio cultural como processo social e político
Novas práticas novos instrumentos
Os desafios relacionados à ampliação dos sentidos e significados da noção de patrimônio cultural traduziram-se também na construção de novos instrumentos e práticas de atuação. A constituição do Escritório Técnico de Gestão Compartilhada através de um convênio firmado com Iphan e DPH/Conpresp para ações conjuntas no âmbito do município de São Paulo é exemplo fundamental de construção de uma articulação entre as três instâncias de patrimônio cultural. As ações concentraram-se em discussões e encaminhamentos referentes a áreas envoltórias e planos de ação integrada. Vale destacar que o esforço empreendido refere-se à criação de um fórum de discussão sobre temas comuns que, em nada retira da autonomia de compreensão e decisão do Iphan, Condephaat e DPH/Compresp.
A procura de trabalhar com contrapartidas expressa o reconhecimento do patrimônio cultural como política pública. Contrapartidas podem e devem ser utilizadas como mecanismos de viabilizar a salvaguarda dos bens patrimoniais. Neste sentido podemos destacar as decisões relacionadas aos projetos no Valongo (Santos) para conservação do Sistema Funicular de Paranapiacaba; no Corredor metropolitano em Sumaré, além do caso do Sobrado de Marília, onde houve conciliação do uso econômico do terreno e recuperação do bem.
As multas foram regulamentadas e começaram a ser aplicadas. Instrumento largamente utilizado em outros setores do estado que penaliza o cidadão e/ou instituição que, apesar de prévios avisos, não reconhece a importância e os valores relacionados aos bens culturais. A aplicação das multas reafirmam a atribuição constitucional do Condephaat como órgão fiscalizador.
Audiências e consultas públicas constituíram em ações inéditas de aproximação e escuta com a sociedade. Definiu-se que processos de tombamento que envolvam escala urbana e incidam sobre novos temas e atribuições de valor devem, necessariamente, mobilizar algum dos instrumentos disponíveis para ouvir diversos atores sociais: do cidadão aos movimentos organizados. As consultas e audiências publicas protagonizadas pelo Condephaat tiveram importante participação da sociedade. A escuta e aproximação decorrente destas ações qualifica e aprimora as decisões e contribuem para distanciar o patrimônio cultural de práticas autoritárias e auto-referidas.
Por fim é fundamental destacar a criação de um novo instrumento de proteção. No intuito de desenvolver ações de preservação de forma mais pactuada com a sociedade, foi discutido e formulado um novo instrumento: a Declaração de Lugar de Interesse Cultural – DLIC. Esse instrumento pressupõe a possibilidade de colocar em diálogo, operando em um mesmo registro, o patrimônio material e o imaterial. Pressupõe ainda a adesão daqueles que estão cotidianamente envolvidos com os bens, o que propicia um efetivo reconhecimento e distinção daquilo que se pretende patrimonializar.
Este instrumento foi institucionalizado por meio da Resolução SC-12, de 06/02/2015, publicada no DOE de 07/02/2015. Infelizmente ainda não foi utilizado na extensão de suas possibilidades seja ao articular o material e o imaterial seja ao introduzir a possibilidade do reconhecimento do valor cultural e suas práticas sem as restrições do tombamento colocando-se como instrumento eficaz a partir do compartilhamento de sentidos e significados.
Conclusão
Podemos afirmar que em todas estas ações há uma recorrente aproximação entre as bases materiais e as práticas sociais que constituem os bens tombados e/ou protegidos aproximando as noções do material e do imaterial.
É importante destacar que em todos os processos as ações do Conselho primaram pela transparência e por maior diálogo com diversos setores da sociedade. Exemplo disso é o expressivo número de oitivas, reuniões técnicas e participações em eventos e fóruns de discussão, além das consultas e audiências públicas. A deliberação conjunta de tombamento e suas minutas de resolução integram estes novos procedimentos que resultam em maior transparência das ações e decisões do Condephaat. De maneira geral, uma compreensão mais ampla do patrimônio se fez presente nas ações de identificação e valoração, com a preservação não apenas de bens monumentais, mas de edificações e práticas alusivas a diversos contextos sociais, econômicos e políticos. Foram enfrentados temas da memória relacionados à ditadura, com o tombamento do antigo DOPS e DOI-CODI; às formas de tratamento de doenças que geraram confinamento, exclusão e desmonte de estruturas familiares, assim como práticas sociais e culturais relacionadas a diversos grupos étnicos como os do associativismo negro; memória dos imigrantes, habitação popular. Superando a prática de tombamentos isolados, avançou-se na preservação de grandes conjuntos, principalmente ferroviários, industriais e residenciais.
Evidencia-se no conjunto das ações empreendidas a consolidação de uma noção de Patrimônio e Bem cultural mais alargada e não restrita ao instrumento do tombamento.
A aproximação com a sociedade seja na ampliação dos objetos e temas de salvaguarda, seja na consolidação de práticas e procedimentos ou ainda em maior eficiência administrativa foi efetivamente realizada. Os prazos de tramitação dos processos foram reduzidos de forma a que não tem-se mais registros de reclamações e nem de ausências de deliberações pelo Conselho. A realização de audiências e consultas públicas; oitivas; participação de debates e a garantia de que todas as sessões do Conselho sejam efetivamente públicas assim como a construção de uma página no facebook expressam esta preocupação cotidiana com a construção de diálogos com a sociedade e seus diversos interesses e percepções sobre as ações no campo do patrimônio cultural. A redefinição de critérios, estabelecendo com clareza o que se entende por conservação, reforma, restauro, etc e a documentação necessária para a abertura de processos e estudos de tombamento foi feita. Sua implementação depende de trâmites da Secretaria da Cultura que escapam ao funcionamento do Condephaat.
A ampliação dos contatos, trocas, discussões e debates com diversos setores e segmentos da sociedade foi preocupação cotidiana desta gestão. Muito se avançou. Algumas propostas como a realização de um programa de rádio "Conversas de Patrimônio"; a constituição de circuitos culturais a serem realizados em parceria com Museus e órgãos da própria Secretaria da Cultura não foram implementadas apesar da existência de projetos detalhados e que ao envolverem estruturas existentes e serem produzidos a partir de saberes consolidados pelos técnicos da UPPH e conselheiros não demandariam custos de realização. A ocupação do espaço da Secretaria da Cultura na Av. Higienópolis, 758 como lugar de patrimônio que abrigaria exposições, debates e ações do órgão e da sociedade não pode ser efetivada por ausência de recursos financeiros.
A elaboração de novo instrumento de reconhecimento de valor – Declaração de Lugar de Interesse Cultural – expressa a compreensão de que o patrimônio cultural deve ser valor efetivamente partilhado entre os órgãos técnicos e estatais e a sociedade civil. A construção de significados e valores partilhados é o que garante a permanência dos lugares de memória. Infelizmente a implementação deste instrumento criado em 2015, inovador em sua compreensão dos sentidos da preservação e da constituição de uma obrigatória aproximação entre sociedade e Condephaat, não foi realizada pela Secretaria da Cultura. Os desdobramentos e ampliações deste reconhecimento ficaram obstados.
Além da elaboração do novo instrumento, que supõe para sua efetividade o compartilhar de significados e sentidos da memória, finalizamos o regramento do Registro do Patrimônio Imaterial e o primeiro processo referente ao Samba Paulista. Os avanços nas reflexões sobre paisagem cultural/paisagem natural, tema central para a sociedade, e que coloca renovados desafios ao Condephaat não foram expressivos. Caminhamos na redefinição de áreas envoltórias, na compreensão dos mecanismos de conectividade, na consolidação da compreensão de que toda paisagem é cultura. Mas apesar das muitas discussões, seminários e processos deliberados não conseguimos consolidar novos documentos e diretrizes para enfrentar este tema. Entretanto a problematização da reflexão sobre tombamento e preservação de núcleos/centros históricos e bairros avançou de forma expressiva, a partir de trabalho conjunto de técnicos e conselheiros, e resultará e novos e inovadoras diretrizes que deverão estar concluídas em 2016.
Ao concluir três anos de trabalho na Presidência do Condephaat posso afirmar que as metas apresentadas em 2013 e reafirmadas em 2015 efetivamente orientaram o trabalho realizado e sinalizam processos de transformação significativas do órgão de patrimônio. Permanecem dificuldades de reconhecimento pelo Estado do patrimônio cultural como parte de políticas públicas e o seu papel democrático na implementação de políticas culturais.
nota
NE – Relatório da gestão 2013/2015 da Presidente do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado – Condephaat, arquiteta Ana Lucia Duarte Lanna.
sobre a autora
Ana Lucia Duarte Lanna, ex-presidente do Condephaat, é professora titular do departamento de História da Arquitetura da FAU USP.