O equilíbrio da conservação do patrimônio edificado em relação às demandas contemporâneas de cada época oscila em limiares que perpassam diferentes graus de intervenção – do reuso, reabilitação, renovação, restauração até a reconstrução – norteados por concepções e finalidades variáveis em suas temporalidades. É preocupante perceber que chegamos ao século 21 contando com respaldo em significativo aparato tecnológico, em experiências paradigmáticas e em arcabouço normativo para a conservação do patrimônio cultural e, contudo, são observadas intervenções no patrimônio alheias às teorias da conservação, que tampouco, atendem às demandas sociais locais.
Partindo desses pressupostos, esse trabalho promove uma discussão sobre os casos dos sítios urbanos protegidos do Porto e de Guimarães, em Portugal, ambos centros históricos designados como Monumentos Nacionais portugueses e inscritos na lista do Patrimônio Mundial da Unesco e que se notabilizam por suas experiências de reabilitação de conjuntos urbanos antigos precarizados, no âmbito de políticas urbanísticas e habitacionais.
Tais experiências podem ser consideradas pioneiras e paradigmáticas em termos de conservação integrada (1) ao conjugar as dimensões social e urbanística como condicionantes do projeto de reabilitação urbanística. A qualificação dos conjuntos urbanos do Porto e Guimarães repercutiram em suas classificações como Patrimônio Mundial em 1996 e 2001, respectivamente, e ensejaram suas designações como capitais culturais europeias, sendo o Porto em 2001 e Guimarães em 2012.
Contudo, a conjuntura atual diferencia-se da anterior em termos de dinâmica urbana, de gestão urbanística, e sobretudo, de modelo de cidade, traduzindo-se, consequentemente, em critérios e resultados das ações de reabilitação urbana sobre o patrimônio edificado e seu tecido social. Merece destaque o caso do Centro Histórico do Porto, no qual se pode considerar as intervenções das décadas de 1970 e 1980 mais respeitosas ao bem cultural, do que os questionáveis resultados de ações recentes na área inscrita como Patrimônio Mundial, que confrontam o alcance social da reabilitação urbana e o legado da conservação integrada implementado pelas políticas anteriores. O caso de Guimarães atua como contraponto e traz à luz a importância da gestão pautada em critérios projetuais referenciados no quadro local, mais do que na existência de um arcabouço normativo.
Qual a ressonância daquelas intervenções exemplares no contexto atual? Essa questão motiva a presente reflexão, que vai ao encontro do alerta de Aguiar sobre “a amnésia propositadamente lançada sobre as práticas e os resultados de duas décadas de experiências de reabilitação urbana” (2).
Sob a ótica do patrimônio como elemento contemporâneo, busca-se empreender uma leitura urbanística do patrimônio edificado em questão, considerando seu papel ativo na cidade contemporânea, como elemento ancorador das dimensões socioculturais e morfológicas do espaço urbano. Adota-se como recorte analítico o patrimônio urbanístico, conceito defendido por Rossa como o “sistema de relações formais estáveis sobre o qual a urbe se cria e recria”, que garante “as caraterísticas centrais da identidade urbanística de um conjunto urbano”, num contínuo recurso à arquitetura, como articuladora, das permanências e transformações morfológicas (3).
Assume-se a historicidade da cidade em que seu todo – formado por partes antiga e moderna – é histórico e com isso, o termo centro histórico é questionável (4). Contudo, emprega-se aqui o termo centro histórico, tendo-se como referência a designação dos sítios pela Unesco e pelos órgãos de tutela portugueses, e ainda considerando que tais sítios correspondem aos núcleos originais das cidades.
A noção contemporânea de salvaguarda do patrimônio compreende a dinâmica relativa ao potencial de intervenção sobre o patrimônio, transpondo a ideia da preservação para a da conservação dos atributos de significação cultural. Verifica-se o deslocamento conceitual de preservação para a ideia de conservação, que considera a inevitabilidade da mudança e a sua gestão (5). Em termos de patrimônio urbanístico, essa distensão conceitual vem sendo correntemente reinterpretada através do conceito-ação de Paisagem Urbana Histórica, concebido pela Unesco para consubstanciar a mudança como inerente da condição urbana, buscando assegurar que as novas intervenções sejam integradas harmonicamente aos sítios de valor patrimonial e estes à cidade contemporânea (6).
A problematização dos casos tem como premissa a cidade como bem cultural, nos moldes dos argumentos de Meneses, que a compreende a partir de três dimensões, intimamente imbricadas, que atuam solidariamente: a dimensão do artefato, já que a urbanização é um produto próprio da sociedade; a dimensão do campo de forças, em cujo espaço se desenvolvem tensões e conflitos na economia, na política, na vida social, nos processos culturais e, finalmente, a dimensão das significações, que dotam de sentido e inteligibilidade o espaço (7).
Sobre a política portuguesa de reabilitação urbana
Primeiramente, cabe enquadrar as políticas de salvaguarda e reabilitação urbana em seus contextos socioeconômicos e político-administrativos. A democratização deflagrada pela Revolução dos Cravos em 1974 alavancou a pauta social e as primeiras intervenções de reabilitação urbana nas áreas empobrecidas das áreas centrais, que em geral coincidiam com seus núcleos antigos das cidades. O novo Governo priorizou investimentos na demanda habitacional, através de ações inovadoras com foco na produção e recuperação de moradias e de equipamentos públicos, com o processo participativo do SAAL (8), depois ampliado pelos Gabinetes de Apoio Técnico – GAT e os Gabinetes Técnicos Locais – GTL, reunindo teoria e práxis (9).
Entre os protagonistas do ideário da época merecem menção os arquitetos e professores universitários Fernando Távora e Nuno Portas (10), que imbuídos de profunda preocupação social, fizeram a diferença no processo ao conceber, alavancar e gerir políticas urbanas, materializadas em intervenções arquitetônicas e urbanísticas. A atuação de Fernando Távora é particularmente determinante para o êxito dos casos do Porto e de Guimarães.
A década de 1960 marca um ponto de inflexão na noção de patrimônio no âmbito internacional, com a atribuição de valor também ao patrimônio urbano, às arquiteturas modestas e rurais, preconizada na Carta de Veneza, publicada pelo Icomos em 1964. Até então, a salvaguarda do patrimônio em Portugal pautava-se na classificação de Monumentos notáveis e suas Zonas de proteção, em normas datadas do início do século 20. Já na virada da década de 1970 emergem políticas urbanísticas portuguesas afinadas com a conservação integrada, em função da pauta social da reabilitação urbana ter sido o fio condutor de políticas públicas através de programas específicos, para solucionar a demanda habitacional e as más condições das unidades existentes, sobretudo no casario histórico.
Aguiar arrisca afirmar que nos anos 1970 Portugal estaria na vanguarda da Europa na temática da reabilitação urbana. Em meio à conjuntura política democrática, após 1974, é criado um inovador programa de reabilitação urbana descentralizado, que implanta gabinetes técnicos nos municípios, conforme investigado por Pinho. Essa política inicia-se com os Gabinetes de Apoio Local, em meados da década de 1970, e desdobra-se, em 1985, nos Gabinetes Técnicos Locais – GTL, especialmente dedicados à recuperação de áreas precarizadas e de áreas históricas, no âmbito do Programa de Reabilitação Urbana – PRU, uma primeira e significativa ação nacional. Esse modelo de reabilitação destaca-se por uma atuação parcela a parcela, socialmente cautelosa, com processos de governança baseados na participação social. Tais gabinetes são de crucial importância para os casos do Porto e de Guimarães (11).
A entrada na União Europeia, em 1986, inaugura novos aportes de recursos e a necessidade de equalização com o contexto europeu. Se por um lado observa-se um esvaziamento progressivo de políticas de cunho social, com a ascensão da globalização e de lógicas econômicas dirigidas pelo mercado, num contexto de crise econômica, por outro, verifica-se um estímulo de políticas de reabilitação e de investimentos na regeneração urbana dos centros urbanos, por parte da União Europeia. O turismo passa a despontar como um importante propulsor, tanto de revitalização, como de descaracterização dos sítios urbanos históricos. As ações públicas priorizam mais ainda a requalificação do espaço público, agora investidas na construção de uma imagem de cidade globalizada. Verificam-se sucessivos programas voltados para a reabilitação urbana e para a reversão do esvaziamento dos centros, sendo o quadro atual marcado por grandes transformações urbanas, geralmente com financiamento da União Europeia (12).
Desde 2004 a reabilitação urbana conta com um regime jurídico próprio, que dispõe sobre as zonas de intervenção das Sociedades de Reabilitação Urbana (13), num contexto de desregulação, de menor investimento público, pautado em parcerias público-privadas. A crise econômica e a liberalização dos aluguéis agrava a situação, abrindo espaço para os investidores estrangeiros no mercado imobiliário dos centros históricos, induzindo processos de gentrificação.
O centro histórico do Porto: de laboratório à vitrine
O centro histórico do Porto tem sido um verdadeiro laboratório das práticas de atuação sobre o patrimônio urbanístico em Portugal - tanto as exemplares, quanto aquelas que podem ser consideradas predatórias. Interessa examinar e reavaliar os resultados da dita cultura de reabilitação urbana do Porto, iniciada com as propostas para recuperação de unidades habitacionais no Plano de Renovação da Ribeira-Barredo, em 1969, de caráter paradigmático para a conjuntura da época, seguidas das propostas do Comissariado para a Renovação Urbana da Área de Ribeira/Barredo – Cruarb, de 1974 a 2003 (14). Tais intervenções, norteadas por questões sociais, conservaram as relações morfológicas e o tecido social, enquanto que muitas das atuais intervenções no Centro Histórico, promovidas pela Sociedade de Reabilitação Urbana (SRU) Porto Vivo, resultam em intervenções cenográficas e descaracterizadores, pautadas no estímulo à reocupação dos imóveis vazios, na requalificação dos imóveis e espaços públicos e na promoção do turismo. Regidas pela financeirização da produção imobiliária, tais estratégias de revitalização ameaçam a autenticidade da Paisagem Urbana Histórica e o alcance social da reabilitação urbana, resultando em gentrificação.
O centro histórico reúne um mosaico de paisagens contrastantes: nos circuitos turísticos, observam-se edificações em obras e conjuntos renovados, destinados a hotéis e outros meios de hospedagem, servidos por comércio, bares e restaurantes sofisticados; fora das ruas principais, despontam edificações abandonadas, em ruínas, conjuntos edificados e espaços públicos mal conservados, bem como moradias populares em conjuntos reabilitados, através dos referidos programas, nos morros de tecido urbano medieval e na área da Ribeira-Barredo. Nesse tecido urbano intrincado ainda se verificam muitas moradias populares, pontuadas por alguns imóveis renovados e convertidos em flats e meios de hospedagem.
O “Estudo de Renovação Urbana do Barredo”, coordenado pelo arquiteto Fernando Távora, em 1969 (15), pode ser relacionado ao modelo de conservação integrada do patrimônio urbano, no qual as propostas de reabilitação arquitetônica e urbanística buscam conciliar valores históricos e artísticos com os sociais. O Plano do Barredo propõe um novo desígnio – “uma reabilitação cautelosa, socialmente atenta”, como alternativa ao arrasamento deste bairro insalubre (16).
Para Távora, a essência da proposta de renovação do Barredo seria um “continuar-inovando”, com espírito global e aberto (17). Gonçalo Canto Moniz, e Luís Miguel Correia e Adelino Gonçalves assinalam a cooperação acadêmica propiciada pelo estudo, que se beneficiou de inquéritos detalhados sobre as graves condições de moradia, bem como de levantamentos das habitações pelos alunos do curso de Arquitetura da Escola Superior de Belas Artes do Porto – Esbap (18).
Concebido como um modelo para reabilitação de outras áreas críticas da cidade, o plano do Barredo foi um projeto piloto para a área da Ribeira-Barredo, integrando-a humana, social e paisagisticamente na vida do Porto. Távora defendia “não mais um gueto nem um monte de ruínas, mas um centro vivo e um belo elemento da paisagem urbana” (19). Associando a ação física à intervenção social, reforçando os processos participativos, o cuidado na conservação do que tem valor, conciliada com a necessidade de dotar de condições para vidas contemporâneas.
Em relação aos critérios de intervenção na arquitetura, Távora propõe uma nova atitude que viria a fazer doutrina: a compreensão pelo conjunto e pelo pormenor tanto em relação às edificações existentes quanto na utilização de linguagens contemporâneas nas novas construções, desde que seja respeitado o caráter ambiental. Sobre as intervenções, Távora, preocupado na renovação não significar destruição, postula que não devem ser conduzidas “dentro de orientação purista de restauro” e que se trata de “um trabalho de extrema delicadeza” (20).
No contexto pós-revolução de 25 de abril de 1974, a reabilitação da área fica a cargo do Comissariado para a Renovação Urbana da Área de Ribeira/Barredo – Cruarb, criado em resposta às reinvidicações da população local para solucionar o agudo problema habitacional. O Cruarb segue os objetivos propostos anteriormente por Távora, que atua como consultor. São tomadas medidas de reabilitação urbanística, provendo equipamentos urbanos então inexistentes, essenciais para a fixação da população local, notadamente entre 1976 e 1982.
Os atributos do patrimônio urbanístico do centro histórico do Porto legitimaram sua candidatura ao título de Patrimônio Mundial pela Unesco, iniciada em 1993 e aprovada em 1996, respaldada pela existência de uma gestão qualificada de reabilitação urbana. A partir de então, amplia-se a abrangencia territorial das operações de reabilitação do Centro Histórico (21), que corresponde a área originalmente intramuros e a ribeira do Douro, e reforça-se a exigência qualitativa das intervenções, que deixam de se concentrar na questão da moradia. Nesse âmbito, foi estabelecida a “Área Crítica de Recuperação e Reconversão Urbanística”, em 1994 e a Zona histórica da cidade do Porto em 1997 (22). Até então, vigorava a proteção estabelecida por Zonas de proteção dos Monumentos Nacionais no início do século 20 – Sé, Muralha Fernandina e Praça da Ribeira.
Em obra comemorativa dos 25 anos do Cruarb, Loza assinala a existência de uma cultura da reabilitação urbana no Porto e destaca o mérito das intervenções arquitetônicas e urbanísticas, cujos projetos de habitações e equipamentos sociais receberam uma série de prêmios (23). Contudo, mudanças administrativas e dificuldades operacionais levam à extinção do programa em 2003, em meio à transição de paradigma da reabilitação com o surgimento das Sociedades de Reabilitação Urbana – SRU.
A atual política instituída pela Sociedade de Reabilitação Urbana da Baixa Portuense SA – SRU Porto Vivo – para a área do Centro Histórico, a partir de 2009, vem empreendendo renovações fachadistas, em que são demolidos os interiores dos edifícios, e mantidas as fachadas, sendo frequentemente alterados os revestimentos de azulejos por imitações questionáveis. Tais obras são justificadas pelo alto custo de recuperação e respaldadas em Manuais sobre o desempenho energético das edificações (24).
A SRU Porto Vivo atua na mediação dos proprietários e investidores através da “Loja de Reabilitação Urbana” – denominação que denota em si o modelo instaurado, balizado por interesses imobiliários. Os resultados das intervenções sob esse modelo vem sendo questionado pelo Icomos e nos meios acadêmico e profissional. Aguiar infere que “o que efetivamente hoje se promove como “reabilitação” está muito longe de corresponder ao seu significado, conformando uma gigantesca fraude”. Sobre o fachadismo, o arquiteto critica que a exceção se tornou regra e, mais do que isso, é proposta pelo mercado imobiliário como o modelo a seguir (25).
Um dos projetos mais emblemáticos é o Passeio das Cardosas, em local de grande centralidade, no qual a quadra foi inteiramente renovada para incorporação de unidades residenciais e instalação de um hotel de luxo, em antigo palacete. Foi demolido o miolo da quadra para implantação de estacionamento subterrâneo e um pátio de lazer. São questionáveis a falta de qualidade arquitetônica da linguagem pastiche, o resultado cenográfico – seja devido aos materiais e proporções, além da gentrificação decorrente (26).
Entre os paradoxos das atuais intervenções predatórias realizadas em larga escala, verifica-se a utilização de materiais construtivos inapropriados, a critério dos construtores, sem empregar o material autêntico disponível, não só proveniente das próprias edificações, como do Banco de Materiais da Câmara Municipal (27).
O centro histórico de Guimarães: coesão e identidade
O caso de Guimarães interessa como um contraponto em relação ao do Porto. A situação do seu centro histórico notabiliza-se pela coesão e conservação do conjunto urbano, fruto de uma política integrada continuada, que conduziu à sua inscrição na Lista do Patrimônio Mundial da Unesco em 2001, e mais recentemente, à Capital Europeia da Cultura em 2012. Em função do evento de 2012, houve a criação de espaços culturais na cidade, melhorias no espaço público para acolher o grande fluxo de turistas, bem como uma série de publicações sobre o Centro Histórico.
Guimarães é conhecida como o berço da nacionalidade portuguesa, o que parece arraigar um sentimento de identidade e pertencimento na população local, representado pela Associação Muralha criada em 1981 para a defesa do patrimônio da cidade. A apropriação social do patrimônio cultural contribui para legitimar as boas práticas da conservação e reabilitação de patrimônio, que tornam esse centro histórico uma referência nacional e internacional.
Segundo Aguiar, o caso de Guimarães distingue-se de outros portugueses por manter extensiva e coerentemente as boas práticas de conservação, de acordo com os princípios da intervenção mínima, aliando um desenho criativo e contemporâneo às singularidades patrimoniais, considerando os moradores e evitando os realojamentos (28).
Os princípios adotados na gestão do centro histórico de Guimarães inspiram-se no Plano do Barredo, particularmente devido à assessoria de Fernando Távora. Uma das especificidades do caso de Guimarães é a gestão continuada em prol da salvaguarda do centro histórico, norteada pela permanência dos moradores antigos e na conservação dos sistemas construtivos tradicionais (29). A cultura construtiva é referenciada como um dos valores primordiais da própria arquitetura e são evitadas renovações radicais e propostas fachadistas. Enquanto no Porto os materiais construtivos predominantes – granito, azulejos e balcões em serralheria – são perenes, em Guimarães as construções são em alvenaria e taipa roliça, balcões em madeira, o que as torna mais vulneráveis.
A gestão da recuperação do centro histórico próxima à comunidade local realiza-se a partir de 1983, com o Gabinete do Centro Histórico, e a partir de 1985, Gabinete Técnico Local – GTL, que atuou até 2008, sob a direção da arquiteta Alexandra Gesta, norteada em critérios projetuais pactuados caso a caso, e numa estratégia global de desenvolvimento da área. A legislação de tutela consiste no Regulamento de Intervenção no Centro Histórico Urbano – RICUH, editado em 1994.
Sendo um polo industrial, Guimarães conta também com um significativo patrimônio industrial, concentrado na Zona de Couros, para a qual há intenção de candidatura a Patrimônio Mundial. Essa área recebeu recente requalificação do espaço público e teve galpões industriais reconvertidos em espaços de ensino e de serviços.
Embora o discurso norteador da reabilitação de Guimarães tenha sido conservar o patrimônio vivo para os moradores, não somente para os turistas, percebe-se uma tendência atual de capitalização do potencial de mercantilização do centro histórico, ao divulgar no site da Câmara Municipal de Guimarães que o centro histórico “é o investimento mais reprodutivo e duradoiro na cidade. O mais rentável para a cidade é o que de único ela tem, e o Mundo reconhece” (30). Espera-se que a tradição vimaranense seja resiliente em relação à sua própria atratividade como destino turístico.
Contribuições para reflexão
Os legados dos casos do Porto e Guimarães evidenciam que a conservação de um patrimônio vivo se sustenta na intervenção criteriosa em casos de reuso e adaptações, tanto em termos de definição do programa associado às demandas sociais em questão, bem como em termos de conservação da paisagem urbana histórica.
Em relação aos critérios projetuais, é interessante verificar que a proposta de Távora, há quase meio século, estava à frente de seu tempo, podendo-se associá-la às recentes interpretações da teoria da restauração por Muñoz Viñas. Para o teórico espanhol, a Restauração é feita para os sujeitos que identificam valores no objeto, seus usuários atuais ou futuros e não para os próprios objetos (31).
A qualidade da reabilitação urbana da Ribeira-Barredo repercute até os dias de hoje, como um foco de resiliência de moradia no centro histórico, não obstante as pressões especulativas. Pode-se inferir que aquelas propostas se afinavam aos objetivos propostos por Gracia de que a nova intervenção deva contribuir em transferir ao futuro os valores da cidade antiga sem renunciar a própria sincronia histórica (32).
Já o caso de Guimarães é paradigmático, por conseguir chegar à teoria e ao método integrando princípios próprios da ética da conservação, afina-se com as doutrinas de conservação e restauração em termos de intervenção mínima e distinguibilidade do novo, da conservação integrada, de respeito à autenticidade e aos valores imateriais locais (33). Enquadra-se, portanto, efetivamente na acepção de cidade como bem cultural, nos termos de Meneses (34).
Uma das importantes lições dessas experiências portuguesas é a ampliação da pauta da reabilitação urbana, no sentido de conceber o espaço da moradia não só em termos de unidades habitacionais, mas de espaço público e equipamentos urbanos. Os processos de participação social também são referenciais, contribuindo na conscientização sobre os valores patrimoniais e, consequentemente, conservação em longo termo.
Os casos aqui apresentados coadunam-se com a crítica visão de Choay sobre o os sítios patrimoniais dinamizados pelo turismo cultural. A autora enfatiza a necessidade de tomada de consciência das ameaças sobre a identidade humana e lança um combate em prol do patrimônio a partir de três frentes de luta: a) educação e formação; b) utilização ética de nossas heranças edificadas; c) participação coletiva na produção de um patrimônio vivo. Para tanto, a autora defende a adaptação do patrimônio às demandas da sociedade contemporânea, procedendo as transformações necessárias, “associando o respeito ao passado e a aplicação de técnicas contemporâneas de ponta” (35).
Os casos de Guimarães e do Plano Barredo no Porto distinguem-se, no contexto português, por se contraporem ao que Gonçalves aponta como um dos traços caracterizadores dos processos de reabilitação urbana em Portugal: a prioridade dada à intervenção, em detrimento da teoria. Já as intervenções recentes no Porto se encaixam no quadro geral discutido por Gonçalves (36). A Declaração do Porto, de 2013, sintetiza o debate sobre as práticas de reabilitação urbana consolidadas ao longo de décadas e afrontadas com o resultado desastroso do quarteirão das Cardosas, que deveria servir de lição, ao invés de modelo para o mercado (37).
Os desafios da reabilitação urbana exigem uma cuidadosa orquestração de interesses e integração de perspectivas para alcançar a conservação integrada e a sustentabilidade dos sítios culturais, bem como a qualificação da paisagem urbana histórica.
notas
NE – O IV Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – Enanparq (Porto Alegre, julho de 2016) teve como objetivo apontar, no cenário nacional, os principais caminhos que tem coordenado os esforços para a ampliação e o aprofundamento dos saberes disciplinares – o estado da arte. Atendendo a esta chamada, e considerando a importância de levar à debate as questões relativas ao campo disciplinar da preservação e do restauro, foram propostas e aceitas pela coordenação geral do evento essas duas sessões: “Novas fronteiras e novos pactos para pesquisas e projetos situados em área de preservação e patrimônio cultural” (coordenadora Cecilia Rodrigues dos Santos, FAU Mackenzie) e “Projeto contemporâneo e patrimônio edificado” (coordenadores Nivaldo Vieira de Andrade Junior, FAUFBA, e Claudio Varagnoli, Università degli Studi “G. d’Annunzio” Chieti-Pescara). Por inciativa dos coordenadores, as duas sessões centralizaram um único debate direcionado às referências conceituais e aos fundamentos teóricos do campo da preservação e do restauro, assim como à prática e à reflexão contemporâneas que têm direcionado a intervenção sobre o patrimônio edificado. Por inciativa dos dois coordenadores, as sessões centralizaram um único debate direcionado às referências conceituais e aos fundamentos teóricos do campo da preservação e do restauro, assim como à prática e à reflexão contemporâneas que têm direcionado a intervenção sobre o patrimônio edificado. A convite de Abilio Guerra, editor do Portal Vitruvius, os coordenadores selecionaram seis dentre os 14 trabalhos participantes das duas sessões para compor um editorial que pudesse oferecer um quadro de referência deste debate: Fabiola do Valle Zonno, Juliana Cardoso Nery e Rodrigo Espinha Baeta, e Guimarães Andréa da Rosa Sampaio (seleção de Nivaldo Vieira de Andrade Junior); Fernanda Fernandes, Eneida de Almeida e Marta Bogéa e José Pessôa (seleção de Cecilia Rodrigues dos Santos). Foram selecionados pelo editor do portal outros três artigos, dos seguintes autores e sessões do encontro: Carlos Eduardo Comas (painel “O moderno no contemporâneo”); Eline Maria Moura Pereira Caixeta e Ângelo Arruda (sessão temática “Cidades novas, preservação do patrimônio e desenvolvimento regional”); e Fausto Sombra (sessão aberta d comissão organizadora). Complementando o número dedicado ao evento, temos o artigo de Fernando Guillermo Vázquez Ramos, apresentado no evento como texto introdutório para a Sessão Temática “O redesenho como prática de pesquisa histórica em arquitetura”, que foi submetido à avaliação da revista e aprovado por um dos pareceristas ad hoc. São os seguintes os artigos que formam o número especial de Arquitextos sobre o Enanparq 2016:
ZONNO, Fabiola do Valle. O valor artístico na relação passado-presente. Modos de interpretação do lugar. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.00, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6171>.
NERY, Juliana Cardoso; BAETA, Rodrigo Espinha. Interação, sobreposição e ruptura. Os Edifícios Niemeyer e Rainha da Sucata e a Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.01, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6172>.
SAMPAIO, Andréa da Rosa. Reabilitação urbana e patrimônio arquitetônico em Portugal. Contribuições das experiências do Porto e Guimarães. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.02, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6174>.
FERNANDES, Fernanda. História, preservação e projeto. Entre o passado e o futuro. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.03, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6173>.
ALMEIDA, Eneida de; BOGÉA, Marta. Patrimônio como memória, memória como invenção. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.04, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6175>.
PESSÔA, José. Entre o singelo monumentalizado e o simbólico, reflexões sobre o patrimônio cultural brasileiro. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.05, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6176>.
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Le Corbusier e a Embaixada da França em Brasília. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.06, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6178>.
CAIXETA, Eline Maria Moura Pereira; ARRUDA, Ângelo. Goiânia e Angélica. Duas cidades modernas no centro-oeste. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.07, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6179>.
SOMBRA, Fausto. O pavilhão da I Bienal do MAM SP. Fatos, relatos, historiografia e correlações com o Masp e o antigo Belvedere Trianon. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.08, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6177>.
VÁZQUEZ RAMOS, Fernando Guillermo. Redesenho. Conceitos gerais para compreender uma prática de pesquisa histórica em arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.09, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6181>.
1
A noção de conservação integrada articula as políticas de patrimônio e de planejamento urbano, conforme postulados na Declaração de Amsterdam, no Congresso de Patrimônio Europeu (1975). Ver: CASTRIOTA, Leonardo B. Patrimônio Cultural: conceitos, políticas, instrumentos. São Paulo, Annablume/IEDS, 2009.
2
AGUIAR, José. Reabilitação ou fraude. Revista Património, Lisboa, n. 2, 2014, p. 63 <https://www.researchgate.net/publication/284188346>.
3
ROSSA, Walter. Urbanismo ou o discurso da cidade. In: ROSSA, Walter. Patrimónios de Influência Portuguesa: modos de olhar. Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2015, p. 497.
4
ARGAN, Giulio Carlo (1993). História da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes,1993. Giulio Carlo Argan tece essa crítica, corroborada por ROSSA, Walter. Op. cit.
5
Cf. CASTRIOTA, Leonardo B. Op. cit.
6
Vide Recommendation on the Historic Urban Landscape (HUL), adotada na 36ª sessão da Conferência Geral da Unesco, em 2011, e considerações a respeito do conceito nas obras: BANDARIN, Francesco; OERS, Ron Van. The Historic Urban Landscape: managing heritage in an urban century. Oxford, Wiley-Blackwell, 2012.
7
MENESES, Ulpiano T. B. de. A cidade como bem cultural: áreas envoltórias e outros dilemas, equívocos e alcance na preservação do patrimônio ambiental urbano. In MORI, Victor Hugo et alli. (Org.) Patrimônio: atualizando o debate. São Paulo, 9ª SR. Iphan, 2006, p. 33-76.
8
Serviço de Apoio Ambulatório Local, instituído entre 1974 e 1976. Ver: PORTAS, Nuno. O Processo SAAL: entre o Estado e o poder local. Revista Crítica das Ciências Sociais, Coimbra, n. 18/19/20, 1986, p. 635-644 <www.ces.uc.pt/rccs/index.php>.
9
Sobre as políticas portuguesas de reabilitação urbana, ver: PINHO, Ana Cláudia da C. Conceitos e Políticas Europeias de Reabilitação Urbana. Análise da experiência portuguesa dos Gabinetes Técnicos Locais. Tese de Doutoramento em Planeamento Urbano. Lisboa, Universidade Técnica de Lisboa, 2009; GONÇALVES, Adelino. Património Urban(ístic)o e Planeamento da Salvaguarda. Tese de doutorado. Coimbra, FCT-UC, 2012.
10
Nuno Portas foi Secretário de Estado de Habitação e Urbanismo nos 3 primeiros anos do novo Governo e implantou o SAAL e outras políticas urbanas de grande alcance social.
11
Ver: PINHO, Ana Cláudia da C. Op. cit.
12
Cf. GONÇALVES, Adelino. Op. cit.
13
Instituído pelo Decreto-Lei nº 104/2004, o Regime Jurídico de Reabilitação Urbana (RJRU) teve a legislação revista e complementada sucessivamente por legislações que regulamentam as Áreas de Reabilitação Urbana (ARU).
14
Loza refere-se a uma cultura da reabilitação urbana do Porto. LOZA, Rui Ramos (Org.). Porto Património Mundial. CRUARB 25 anos de reabilitação urbana. Porto, Câmara Municipal do Porto, 2000.
15
CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO – CMP. Estudo de Renovação Urbana do Barredo. Porto, CMP, Direcção de Serviços de Habitação,1969.
16
Cf. GONÇALVES, Adelino. Op. cit.
17
CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO – CMP. Op. cit.
18
Gonçalo Canto Moniz, e Luís Miguel Correia e Adelino Gonçalves discutem a importância desse trabalho, em parceria com o curso de Serviço Social, para inovar o ensino de Arquitetura na Escola do Porto, onde Távora era professor. MONIZ, Gonçalo Canto; CORREIA, Luís Miguel; GONÇALVES, Adelino. O estudo de renovação urbana do Barredo: a formação social do arquitecto para um território mais democrático. Estudos do século XX, Coimbra, n. 14, 2014, p. 315-337 <http://hdl.handle.net/10316.2/36842>.
19
CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO – CMP. Op. cit.
20
MONIZ, Gonçalo Canto; CORREIA, Luís Miguel; GONÇALVES, Adelino. Op. cit.; CÂMARA MUNICIPAL DO PORTO – CMP. Op. cit., p. 40.
21
Operações nas áreas da Ribeira Barredo, Projeto Piloto da Sé, Miragaia e Vitória. Ver: LOZA, Rui Ramos (Org.). Op. cit.
22
Decreto Regulamentar n. 14/1994 de 17 de junho e Decreto n.º 67/97, de 31-12-1997, designando IIP – Imóvel de Interesse Público, abrangendo as freguesias de Massarelos, Miragaia, Santo Ildefonso, São Nicolau, Sé, Vitória.
23
LOZA, Rui Ramos (Org.). Op. cit.
24
Ver: SRU PORTO VIVO. Reabilitação de Edifícios do Centro Histórico do Porto – Guia de Termos de Referência para o Desempenho Energético-ambiental. Porto, SRU Porto Vivo S.A., 2013 <www.portovivosru.pt>.
25
AGUIAR, José. Op. cit., p. 64.
26
Conforme críticas do geógrafo Álvaro Domingues em Seminário do Icomos, 2013 <https://ssru.wordpress.com>; José Aguiar relata que houve denúncia do Icomos-Portugal à Unesco e que o caso gerou a Declaração do Porto. AGUIAR, José. Op. cit.; ver: ICOMOS PORTUGAL. Declaração do Porto. Seminário Porto Património Mundial: boas práticas em reabilitação urbana. Porto, Icomos, 2013 <www.icomos.pt/images/pdfs/dec25.10.pdf>.
27
Vinculado ao Pelouro da Cultura, a iniciativa de coleta de materiais é anterior à abertura do Banco de Materiais. Vide <http://balcaovirtual.cm-porto.pt/PT/cultura/patrimoniocultural/bancodemateriais/Paginas/bancodemateriais.aspx>.
28
AGUIAR, José. Op. cit.
29
Ver: PINHO, Ana Cláudia da C. Op. cit.
30
Vide site da Câmara de Guimarães, menu Património Mundial: < www.cm-guimaraes.pt/pages/921>.
31
VIÑAS, Salvador Muñoz. Contemporary Theory of Conservation. New York, Routledge, 2011.
32
GRACIA, Francisco de. Construir en lo construido: la arquitectura como modificación. Guipuzcoa, NEREA, 2001.
33
AGUIAR, José. A experiência de reabilitação urbana do GTL de Guimarães: estratégia, método e algumas questões disciplinares. In Dossier da Candidatura de Guimarães a Patrimônio Mundial. Website pessoal, 2000. Disponível em <www.cm-guimaraes.pt/uploads/writer_file/document/837/470419.pdf>.
34
MENESES, Ulpiano T. B. de. Op. cit.
35
CHOAY, Françoise. O patrimônio em questão: antologia para um combate. Belo Horizonte, Fino Traço Editora, 2011.
36
GONÇALVES, Adelino. Op. cit.
37
ICOMOS PORTUGAL. Op. cit.
sobre a autora
Andréa da Rosas Sampaio é professora Associada do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF). Arquiteta e Urbanista (UFF), Mestre em Desenho Urbano (University of Nottingham) e Doutora em Urbanismo (Prourb/UFRJ). Pós-Doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, com bolsa Capes.