“Não faria assim porque sou duro, sou pesado. É engraçado, vocês brasileiros. Vocês são delicados, vocês são quase femininos. O Rodrigo [Melo Franco de Andrade] o Lúcio [Costa], o Oscar [Niemeyer]. Até você, Ítalo, é muito delicado. Eu sou bruto; aqui: eu não teria feito dessa forma, não teria feito tão delicado, as colunas do Oscar são muito delicadas, o chão é muito delicado. Eu teria feito a Praça dos Três Poderes com grandes placas de concreto armado e juntas de asfalto, como dos aeroportos” (1).
Le Corbusier
O comentário oral acima foi registrado quando da última viagem de Le Corbusier ao Brasil, em 1962, por Italo Campofiorito, chefe do Serviço de Urbanismo Metropolitano de Brasília (1961-63). Encarregado em 1960 de projetar a Embaixada da França no país, Le Corbusier viera conhecer a nova capital e o terreno (2). O projeto elaborado (1962-1964) não se executou, em parte pela morte do arquiteto, em 1965, mas foi publicado na Oeuvre complète 1957-65, e logo analisado, como o Hospital de Veneza contemporâneo, por Alan Colquhoun, em artigo de 1966; a análise substancia o artigo subsequente e mais famoso deste autor, “Typology and design method”, de 1967, que defende a persistência e a legitimidade da referência ao precedente e do recurso à tipologia no processo de projeto (3).
Colquhoun nota a opção corbusiana por um partido dual, em que dois edifícios isolados de volumes simples mas contrastantes abrigam os dois setores básicos do programa, minimizando a expressão de suas interações funcionais. Para o autor, a atitude evidencia as tendências classicizantes de Le Corbusier, sem notar o débito de sua composição com a tradição acadêmica que o discípulo Lúcio Costa nunca teve problema em admitir (4). A chancelaria constitui um cilindro de oito andares, voltado para a cidade a leste. A residência do embaixador é uma barra, voltada para o lago a oeste.
O cilindro é formado por uma grelha quebra-sol estruturalmente autônoma, na qual se inscreve um volume retangular recortado e envidraçado, prolongado por balcões voltados para sul de alturas diversas, flanqueando o acesso ao terreno e ao edifício. A grelha cobre só três quintos de círculo, deixa os balcões e as esbeltas colunas térreas aparentes do exterior; interrompida no último andar, deixa emergir o volume interno com os escritórios. A barra de quatro andares e empenas cegas comporta dois elementos justapostos da mesma largura. O pórtico monumental de entrada a sul tem tripla altura, permitindo que os andares inferiores da chancelaria possam ver o lago. O volume retangular vizinho tem coroamento cego e dois andares inferiores envidraçados. O coroamento cego corresponde ao apartamento privado do embaixador, que se abre para pátios internos. Os andares inferiores contém apartamentos de hóspedes e salas de altura normal e salões de recepção de dupla altura, protegidos em ambos os lados por grelha quebra-sol avançada análoga à da chancelaria. A base é constituída por rampas em terrapleno em lados opostos das duas pontas que introduzem uma simetria diagonal, apartamento de serviço sob o pórtico, e prolongamento até o chão da estrutura quebra-sol, delimitando um pilotis aberto para estacionamento.
Colquhoun aponta quatro tipos de referências na sua aproximação ao entendimento da composição. Primeiro menciona “os estudos de simples sólidos”, ou seja, as referências geométricas exemplificáveis com a lâmina de L'Esprit Nouveau observando que “tudo (em arquitetura) são esferas e cilindros”. Logo menciona as fotos de silos em Vers une architecture, referências utilitárias. “Os desenhos de Pisa” remetem a precedentes históricos eruditos, particularmente sugestivos enquanto registra de composição que separa torre e igreja. Enfim, Colquhoun aponta precedentes da lavra do próprio Le Corbusier. O pórtico corresponde ao terraço de dupla altura na ponta da Vila Stein-de Monzie em Garches, reaparecendo na Suprema Corte de Chandigarh. A grelha independente feita quebra-sol remonta também à experiência indiana, segundo Colquhoun. O coroamento cego como lote murado remete ao apartamento do diretor no Pavilhão Suíço. Colquhoun não assinala que as rampas em simetria diagonal já eram elementos compositivos primários no projeto do Pavilhão de Exposições para Liège ou San Francisco de 1937, mas não invalida sua pesquisa genealógica, que reitera a relevância da abstração matemática, do vernáculo e da tradição culta como matérias primas da invenção corbusiana, incluindo na tradição culta a própria obra do arquiteto.
Mas a abstração matemática tem referências biológicas, e Colquhoun o nota, embora de passagem. Le Corbusier reconhece a associação tradicional da arquitetura com o corpo humano cujas feições representa e cujas funções amplia. Contrapõe o corpo edificado na vertical, ereto, a corpo horizontal deitado, sugestivamente espelhados nas figuras das secções e plantas do hospital que Colquhoun examina junto. Articula corpos penetrantes e corpos penetráveis. Explora as conotações de elevação e baixeza tanto em termos de ciência e folclore, céu e terra, quanto em termos de gênero ou sexo, masculino e feminino, obelisco e tolos abobadado. No projeto da embaixada, a torre fálica é o local de trabalho, e a barra estirada serve de residência, ecoando tanto a divisão de tarefas por gênero que é convenção na sociedade patriarcal, quanto a sua complementaridade, sem que se possa falar em subordinação da residência à chancelaria ou vice-versa. A hierarquia se assinala na chancelaria pelas sacadas de pé-direito variável junto às salas dos conselheiros no lado da entrada e pela sala do embaixador – ou embaixadora – no topo, emergindo acima da grelha. Na residência, a hierarquia decorosamente corresponde ao pórtico de pé-direito triplo e aos salões compridos de pé-direito duplo, mediados por passagem que configura um túnel entre dois teatros. O contraste das sacadas com a repetição estratificada dos gabinetes de trabalho da chancelaria se acentuaria com a vegetação proposta, que mudaria em pouco tempo os balcões em pórticos verdes, não desprovidos de colorido doméstico, diferenciados fortemente do pórtico cerimonioso na residência. Por assim dizer, Le Corbusier feminiza a torre e masculiniza a barra num jogo de inflexões cruzadas. A parte do feminino convencional nesse latifúndio é afinal restrita ao lote murado acima, a única intimidade real que a arquitetura admite- como a parte do masculino convencional cabe à sala do embaixador fronteira, a cabeça de transparência exaltada, contraposição complementar de esfera pública e privada. Mais que de gênero e sexo, fala-se de instituições e papéis sociais.
De outro lado, as referências geométricas podem se juntar a referências arquetípicas. Em outra lâmina de L'Esprit Nouveau, a Torre de Pisa ladeia uma coluna dórica. Cilindro e barra se podem tomar também por coluna e parede aumentadas e habitadas, elementos técnico-construtivos primários transformados em volumes puros, embora erodidos e alveolares. Ao mesmo tempo, sugerem vestígios de praça-forte, com torre e muralha, as rampas em terrapleno evocando pontes levadiças abaixadas, memória sutil da condição de embaixada como país dentro do país, sujeito à hostilidade (e eventual agente de intimidação), tudo memória da série histórica que leva do castelo fortificado ao solar senhorial. Chenonceau é um dos exemplos mais brilhantes, edifício ponte, com uma galeria de recepções comprida de 60m. Que a vida diplomática não prescinde de sedução e fausto, como de dissimulação e parlamentação. O cilindro, bem observado, não é o corpo do edifício, é uma máscara perfurada, e concorre para evocar a Torre de Babel em construção de Breughel, que traz à memória a ambição do príncipe construtor e a confusão de línguas a superar para o bom entendimento entre os povos.
A sedução e o fausto se reiteram através do vínculo da residência do embaixador com outra série histórica, a vila-belvedere que comporta numa só estrutura, não a torre e a barra, mas seus homônimos, o tambor e a caixa. A redundância faz sentido. A máscara é um elo entre os dois edifícios. A residência do embaixador é local de trabalho também, e de importância inconteste. O brilho palaciano e mundano lubrifica os negócios. “Deem-me bons cozinheiros, eu me encarrego do resto”, dizia Talleyrand, o astuto diplomata. A série em questão começa pelo Casino Pio, avança pela Rotonda e pela Malcontenta, passa por Vaux-le-Vicomte, desemboca no hôtel particulier neoclássico. Palladio, mostrou Colin Rowe, está por trás da Vila Savoye – a caixa quadrada – e da Vila Stein-de Monzie – a caixa alongada (5). Último teórico da Beaux Arts, Julien Guadet não via problema em pensar que o classicismo francês tinha por raiz a inflexão nacional de inventos originariamente italianos. Em outro nicho programático, mas não desconectado de propósito com a embaixada, edifício de governo, se encontra a Assembléia de Chandigarh, onde a sala de assembléia é um hiperbolóide perfurando a caixa que a serve. Le Corbusier não esquece que a representação da nação é uma de suas tarefas. A residência exibe monumentalidade severa, mais despojada, concisa e precisa que a Assembléia, clímax de uma coreografia de acesso que leva da relativa informalidade da entrada à enorme piscina em frente ao lago.
Colquhoun não nota referências ligadas à vivência sul-americana de Le Corbusier, ou melhor, não as explicita como tais. Os silos ilustrados que menciona são de fato silos portenhos, e o primeiro brise-soleil grelha aparece não na Índia mas na Argentina, na casa do Dr. Curutchet em La Plata (1948-1953). Quanto a torres e barras, elas estão presentes nos projetos para Buenos Aires e Montevideo feitos na viagem de 1929, os arranha-céus verticais (mas não cilíndricos) e os arranha-mares acachapados (mas desprovidos de pórtico monumental na ponta), sem mencionar a descrição do Palácio Salvo montevideano como “girafa”, acasalamento monstruoso de torre e barra (6). São referências de algum interesse, porque mostram que Le Corbusier vê verticalidade e horizontalidade como intercambiáveis. O arranha-mar é um arranha-céu deitado, como o arranha-céu é um navio de pé, a analogia entre arquitetura naval e arquitetura civil prezada por Le Corbusier, quem vê a arquitetura como arca de Noé, dispositivo de salvação. Mas não há esquecimento de Colquhoun quanto a referências brasileiras. Nenhuma está evidente. Aliás, a saga da Casa do Brasil em Paris (1953-1959) concluíra pela deformação do delicado projeto original de Lúcio Costa em expressão bruta da nova maneira brutalista corbusiana, dissecada por Marcelo Puppi (7).
No entanto, o partido corbusiano ecoa a distinção entre residência presidencial e palácio de despachos feita por Niemeyer após uma primeira versão conjunta, o Palácio da Alvorada e Palácio do Planalto programaticamente afins à Chancelaria e à Residência do Embaixador, os primeiros acolhendo o primeiro mandatário da nação, os segundos o seu representante. A horizontalidade domina nas caixas de vidro de Niemeyer, mas a verticalidade se introduz através dos peristilos colossais que as rodeiam, de apelo monumental mais óbvio que a torre e a barra de Le Corbusier. O Alvorada tem um pavimento semi-enterrado e dois acima; o Planalto, um pavimento térreo e três acima. As referências utilitárias estão ausentes, mas as geométricas incluem o desenho dos perfis das colunas do Alvorada e do Planalto como equações polinomiais do 4º grau (8), e o tambor comparece. Contraponto opaco e envolvente à residência transparente, o tambor integra uma composição cuja referência imediata é a casa de engenho do século 19 e sua capela, exemplificadas na sede da Fazenda Columbandê, afirmando brasilidade vernácula e latinidade de raiz. Reaparece como tribuna na Praça dos Três dos Poderes, combinada com as referências do Planalto à Basílica de Vicenza, palácio de governo defrontando lado de praça, com arcada no térreo, e galeria acima. Nas palavras dum amigo zombeteiro, o presidente presta contas a Deus na intimidade, e ao povo em praça pública (9). As referências na própria obra tem Pampulha como marco, em especial o seu Cassino. Apresentado como vila-belvedere, o tambor da sala de espetáculos mordendo a caixa da sala de jogos, com episódio vertical de entrada assente no chão, o Cassino amplia a série antes mencionada que vai de Pirro Ligorio e Palladio à Le Corbusier, passando também, no Rio imperial, pelas casas de Grandjean de Montigny na Gávea, e da Marquesa de Santos por Joseph Pézérat em São Cristóvão. É uma quinta composição que se vem somar aos quatro exemplos corbusianos (10).
Apesar do parentesco, as estratégias de Niemeyer e Le Corbusier são inversas, como outrora nos projetos do Ministério da Educação no Rio e da sede das Nações Unidas em Nova York. Em terreno único, Le Corbusier, parte da diferença para mostrar similaridades. Em terrenos separados, Niemeyer mostra similaridades para evidenciar diferenças. A caixa de vidro rodeada por peristilos é comum aos dois palácios, como a elevação do andar nobre e a suspensão de vãos estruturais para demarcar um vazio descentrado intermediário (como no Ministério executado, em quadra interna na Esplanada do Castelo), ao invés do vazio de ponta na embaixada (que reitera a opção de Le Corbusier no seu projeto de Ministério à beira-mar). O Planalto tem rampa protuberante saindo do vazio. Nenhum dispositivo se soma ao degrau no Alvorada. Stamo Papadaki comparou as colunas do Alvorada a cariátides, porque figuras estáticas, bojudas, dobradas, barrigudas (11). Na mesma linha, vale comparar as colunas do Alvorada a atlantes retesados e esbeltos como dançarinos minóicos. Feminino e masculino são inflexões de um mesmo elemento, como as ordens na Antiguidade, e só se entendem em correlação. A inflexão cruzada se faz com linhas, à retidão interior do Alvorada correspondendo as curvas no mezanino do Planalto. Surpreendente e infelizmente, nenhum dos palácios vem equipado com quaisquer dispositivos de proteção solar. Mas a leveza exacerbada contribui para a graça que Lúcio Costa entendia ser a contribuição brasileira à arquitetura moderna (12), contrastando com a ênfase arcaica que Le Corbusier promovia no pós-guerra, processo que se insinuava na Casa Curutchet e culminara na Casa do Brasil em Paris, com a Unidade de Habitação de Marselha, as casas Jaoul, o convento de La Tourette e a capela de Ronchamp de permeio. Não há balanços no Alvorada e no Planalto, mas as colunas fora estão como que na ponta dos pés. Enquanto a chancelaria e a residência arrancam do chão – salvo na ponta da composição, quando cai a máscara cilíndrica junto à entrada.
Não é despropositado pensar que é a graça que Le Corbusier chama de delicadeza quase feminina dos brasileiros e sua arquitetura, oposta ao caráter bruto e pesado de sua obra e personalidade. O irônico é que essa delicadeza exacerba, em última instância, a leveza da obra do próprio Le Corbusier nos anos 1920, desafiadora da gravidade, e ambas se distinguem em grau da materialidade mais substancial da obra corbusiana da década de 1930 e da arquitetura moderna carioca da década de 1940, de paleta mais ampla. De outro lado, se a Casa Curutchet é peça de transição no caminho do arcaísmo brutalista, a Embaixada, se reaproxima da Curutchet na sua fatura, mais próxima de seu predecessor imediato, o Carpenter Center de Artes Visuais para a universidade de Harvard (1961-1964) que das realizações em Marselha ou Chandigarh.
Le Corbusier dá outra pista sobre o comentário em questão no epílogo de Le Modulor escrito no contexto da reconstrução européia do pós-guerra (1948). Ele distingue aí arquitetura máscula de feminil:
“L’esprit de géométrie conduit aux formes saisissables, expression des réalités architecturales: murs debout, aires perceptibles entre quatre murs, angle droit signe de l’équilibre et de la stabilité.
Je dirai: esprit placé sous le signe du carré, et ma désignation se trouve confirmée par l’appellation traditionnelle allantica donnée à l’art architectural méditerranéen, antique par conséquent, basé sur le carré.
Ou alors, l’esprit de géométrie conduit aux tracés d’épures étincelantes, dirigeant des rayons en tous sens, ou se repliant en triangles ou autres polygones, ouvertes à l’amplitude spatiale comme à la symbolique subjective et abstraite.
Je dirai: esprit placé sous le signe du triangle et du pentagone convexe ou étoile et de leurs conséquences volumétriques: l’icosaèdre et le dodécaèdre. L’architecture sous le signe du triangle, qualifiée à la Renaissance: allagermanica.
Ici, forte objectivité des formes sous la lumière intense d’un soleil méditerranéen: architecture mâle.
Là, subjectivité illimitée occupant des ciels tamisés: architecture femelle” (13).
Le Corbusier fala da primeira como província dos mestres da régua (em francês règle, com o duplo sentido de régua e regra), apoiados na medida, e da segunda como província dos mestre do compasso, buscando o ilimitado. Le Corbusier se pergunta qual dessas arquiteturas é a culminação da arte, colocando-se – naquele momento, ele sublinha – do lado da régua porque sente o compasso como perigoso, levando à evasão.
Le Corbusier segue Jacques-François Blondel, que no Cours d'Architecture (1771) dá à arquitetura gótica como exemplo de arquitetura de caráter delicado, aproximando-a da ordem coríntia. Blondel associa a ordem dórica com o homem e a solidez, como Vitruvio; da ordem jônica com a mulher, da mesma forma, mas também com o “termo médio” e a recreação; das ordens coríntia e compósita com a delicadeza e a gracilidade mas também com a magnificência e os palácios reais, sem dar muita atenção à associação original com moça virgem, que introduzia o tema da representação de estágios diferentes do ciclo vital (14). Em outro momento, Blondel trata de distinguir a delicadeza da elegância e da leveza com exemplos na ordem coríntia, assim como distingue o másculo (mâle, como em Le Corbusier), do firme e do viril; o másculo e o firme correspondem a arquiteturas sem colunas e o viril a exemplos na ordem dórica. Blondel não nomeia a delicadeza, a elegância e a leveza como atributos forçosamente femininos, embora creditando sua expressão a ordens associadas à representação da mulher. Mas a ordem jônica não lhe desperta interesse, ao contrário de Vitrúvio, e Blondel deixa claro o seu preconceito a favor da arquitetura de caráter masculino (15).
A definição do que é caráter masculino ou feminino é escorregadia, e um mesmo traço dá margem a interpretações e avaliações contraditórias. Se a gótico é feminino, então a espiritualidade é feminina, e a sensualidade masculina. Mas foi – e continua sendo – igualmente corriqueiro ligar a mulher à sensualidade, quando não ao excesso de sensualidade, e pensar no homem como ser espiritual. Para Henry Wotton, tradutor de Vitruvio, o coríntio era lascivo, próprio de cortesã engalanada. Segundo John Summerson, o jônico é mais ou menos assexuado, algo assim entre um sábio ancião e uma matrona serena e afável, e Serlio estava certo em recomendá-lo para uso em igrejas consagradas a santos e santas matronais e homens cultos (16). Não obstante, sexo ou gênero, referência biológica ou cultural, a polaridade masculino-feminino não deixou de informar a arquitetura moderna e o discurso sobre ela, como assinala Adrian Forty (17). A caracterização da arquitetura de Niemeyer como feminina (ou próxima do feminino) e a extensão do epíteto à arquitetura brasileira não foi inventada por Le Corbusier. As palavras usadas eram outras, fantasiosa e barroca, aceitas pelo arquiteto pelo menos desde a publicação da monografia de Papadaki sobre sua obra, em 1950. O tom era às vezes de condenação e desprezo, às vezes de elogio, incluindo a identificação com o gênio nacional. Summerson foi uma voz pioneira nesse último sentido, correlacionando a fantasia do barroco com a fantasia do funcionalismo na resenha de 1944 sobre Brazil Builds (18).
Le Corbusier é ambíguo na descrição do gênero do caráter brasileiro, e igualmente ambíguo na avaliação da arquitetura “nacional” que ele considerava sua. Como mostra Le Corbusier e o Brasil, as relações entre Le Corbusier e os brasileiros foram mais complexas e turbulentas do que costuma assumir-se (19). O ato de pura vingança na saga da Casa do Brasil foi precedido de reivindicações indevidas de autoria do Ministério de Educação, e declarações ressentidas quanto ao sucesso profissional dos seus discípulos brasileiros (1949). Não devia ter-lhe agradado a comparação entre a Vila Savoye e a casa Tremaine de Niemeyer, e a presença de Burle Marx no MoMA, enfatizando o uso brasileiro das linhas ondulada e serpentina, as linhas da beleza e graça mais plenas na mulher segundo William Hogarth (20). A rivalidade está presente desde a constatação de que o Ministério da Educação se construiu com projeto que não era seu, no máximo usava em partido novo elementos de sua promoção. Ernest Gombrich e George Kubler observaram que a rivalidade artística estimula a invenção ao obrigar a “fazer diferente”, na fórmula de Niemeyer (21). Não garante acuidade ou generosidade no julgamento da obra rival.
No caso, a rivalidade acontecia em família, mestre e discípulo consagrado mestre. Apesar da afirmação implícita de virilidade do caráter francês feita por Le Corbusier, ele e Blondel não ocupam o mesmo nicho. De um lado, porque a caracterização bruta e pesada é aplicável a uma fase específica da obra corbusiana, nunca ao purismo que lhe deu fama. De outro, porque em qualquer momento de sua trajetória, a obra sempre esteve aberta à polifonia, ao debate entre princípios e pressões polares e complementares. O mesmo se aplica, mutatis mutandis, a Niemeyer. A delicadeza dos seus anos 1940 é relativa, a abertura à polifonia é uma constante. E se Niemeyer contribuiu decididamente para a postulação e constituição de uma arquitetura moderna inclusiva e diversa na expressão, com e como seu mentor Lúcio Costa, o exemplo veio de Le Corbusier. Os três rejeitaram crenças simplórias dando a aplicação de princípios fordistas à arquitetura por prova de modernidade, embora Niemeyer e Le Corbusier o fizessem em Brasília divergindo na convergência.
Subversivas da severidade monumental tradicional, a leveza, delicadeza e graça dos palácios de Brasília protestavam contra o arcaísmo corbusiano, cristalizando uma atemporalidade evanescente. Le Corbusier retrucou via embaixada, conservador, reafirmando com menor veemência a substância grave dos palácios de Chandigarh. No entanto, malgrado a diferença de pontos de partida, palácios e embaixada trabalham polaridades similares, mostrando alteridade antes que radical oposição. Tornaram-se páginas no repertório tipológico moderno, a seu turno referência, ou promessa de referência. Le Corbusier, afinal, não construiu a embaixada, e a demonização de Brasília já estava em curso quando de sua morte. As opiniões de Simone de Beauvoir em La force des choses são sintomáticas (1963), como as de C. Ray Smith, editor de Progressive Architecture (1966) (22). Com boa dose de desconhecimento e má-fé, a cidade virou emblema de tudo que estava errado no urbanismo moderno, e corbusiano. The death and life of the great American cities, lançado em 1962, é contemporâneo da visita à Brasília. Le Corbusier não escapa da crítica mordaz de Jane Jacobs, mas sai como herói em Complexity and contradiction in architecture, o manifesto gentil de Robert Venturi, de 1966. Quanto a Niemeyer, sua reputação cai entre os bem-pensantes, mas não carece condoer-se: não lhe vão faltar clientes, militares e comunistas incluídos. Seu mantra seguirá sendo a beleza, e a beleza, todo mundo sabe, é coisa afeminada. Ou não?
notas
NE – O IV Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – Enanparq (Porto Alegre, julho de 2016) teve como objetivo apontar, no cenário nacional, os principais caminhos que tem coordenado os esforços para a ampliação e o aprofundamento dos saberes disciplinares – o estado da arte. Atendendo a esta chamada, e considerando a importância de levar à debate as questões relativas ao campo disciplinar da preservação e do restauro, foram propostas e aceitas pela coordenação geral do evento essas duas sessões: “Novas fronteiras e novos pactos para pesquisas e projetos situados em área de preservação e patrimônio cultural” (coordenadora Cecilia Rodrigues dos Santos, FAU Mackenzie) e “Projeto contemporâneo e patrimônio edificado” (coordenadores Nivaldo Vieira de Andrade Junior, FAUFBA, e Claudio Varagnoli, Università degli Studi “G. d’Annunzio” Chieti-Pescara). Por inciativa dos coordenadores, as duas sessões centralizaram um único debate direcionado às referências conceituais e aos fundamentos teóricos do campo da preservação e do restauro, assim como à prática e à reflexão contemporâneas que têm direcionado a intervenção sobre o patrimônio edificado. Por inciativa dos dois coordenadores, as sessões centralizaram um único debate direcionado às referências conceituais e aos fundamentos teóricos do campo da preservação e do restauro, assim como à prática e à reflexão contemporâneas que têm direcionado a intervenção sobre o patrimônio edificado. A convite de Abilio Guerra, editor do Portal Vitruvius, os coordenadores selecionaram seis dentre os 14 trabalhos participantes das duas sessões para compor um editorial que pudesse oferecer um quadro de referência deste debate: Fabiola do Valle Zonno, Juliana Cardoso Nery e Rodrigo Espinha Baeta, e Guimarães Andréa da Rosa Sampaio (seleção de Nivaldo Vieira de Andrade Junior); Fernanda Fernandes, Eneida de Almeida e Marta Bogéa e José Pessôa (seleção de Cecilia Rodrigues dos Santos). Foram selecionados pelo editor do portal outros três artigos, dos seguintes autores e sessões do encontro: Carlos Eduardo Comas (painel “O moderno no contemporâneo”); Eline Maria Moura Pereira Caixeta e Ângelo Arruda (sessão temática “Cidades novas, preservação do patrimônio e desenvolvimento regional”); e Fausto Sombra (sessão aberta d comissão organizadora). Complementando o número dedicado ao evento, temos o artigo de Fernando Guillermo Vázquez Ramos, apresentado no evento como texto introdutório para a Sessão Temática “O redesenho como prática de pesquisa histórica em arquitetura”, que foi submetido à avaliação da revista e aprovado por um dos pareceristas ad hoc. São os seguintes os artigos que formam o número especial de Arquitextos sobre o Enanparq 2016:
ZONNO, Fabiola do Valle. O valor artístico na relação passado-presente. Modos de interpretação do lugar. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.00, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6171>.
NERY, Juliana Cardoso; BAETA, Rodrigo Espinha. Interação, sobreposição e ruptura. Os Edifícios Niemeyer e Rainha da Sucata e a Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.01, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6172>.
SAMPAIO, Andréa da Rosa. Reabilitação urbana e patrimônio arquitetônico em Portugal. Contribuições das experiências do Porto e Guimarães. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.02, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6174>.
FERNANDES, Fernanda. História, preservação e projeto. Entre o passado e o futuro. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.03, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6173>.
ALMEIDA, Eneida de; BOGÉA, Marta. Patrimônio como memória, memória como invenção. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.04, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6175>.
PESSÔA, José. Entre o singelo monumentalizado e o simbólico, reflexões sobre o patrimônio cultural brasileiro. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.05, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6176>.
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Le Corbusier e a Embaixada da França em Brasília. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.06, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6178>.
CAIXETA, Eline Maria Moura Pereira; ARRUDA, Ângelo. Goiânia e Angélica. Duas cidades modernas no centro-oeste. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.07, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6179>.
SOMBRA, Fausto. O pavilhão da I Bienal do MAM SP. Fatos, relatos, historiografia e correlações com o Masp e o antigo Belvedere Trianon. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.08, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6177>.
VÁZQUEZ RAMOS, Fernando Guillermo. Redesenho. Conceitos gerais para compreender uma prática de pesquisa histórica em arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.09, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6181>.
1
SEGAWA, Hugo. Entrevistas e depoimentos: a viagem de Le Corbusier ao Brasil, em 1962. Projeto, n. 102, São Paulo, 1987, p. 113.
2
Para os antecedentes do encargo e a correspondência relativa ao mesmo, ver SANTOS, Cecilia Rodrigues dos; PEREIRA, Margareth da Silva; PEREIRA, Romão da Silva; CALDEIRA, Vasco. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Projeto/Tessela, 1987, p. 253-262; 284-301. Ver também carta de 29 nov. 1960 a Lúcio Costa em: JENGER, Jean (ed.). Le Corbusier. Choix de lettres. Boston/Basel/Berlim, Birkhauser, 2002, p. 281.
3
COLQUHOUN, Alan. Formal and functional interactions: a study of two late buildings by Le Corbusier. Architectural Design, n. 36, maio 1966, p. 221-234. COLQUHOUN, Alan. Typology and design method. Arena, n. 83, jun. 1967. Ambos os artigos foram reproduzidos mais tarde em: COLQUHOUN, Alan. Essays in Architectural Criticism. Modern Architecture and historical change. Cambridge, Mass, MIT Press, 1981, p. 31-41; p. 43-50.
4
COSTA, Lúcio. Razões da nova arquitetura. In COSTA, Lúcio. Sobre arquitetura. Porto Alegre, CEUA, 1962.
5
ROWE, Colin. The Mathematics of the ideal villa and other essays. Cambridge, The MIT Press, 1976. Ver também: COMAS, Carlos Eduardo. Précisions brésiliennes sur un état passé de l'architecture et de l'urbanisme modernes. Tese de doutorado. Orientador Philippe Panerai. Paris, Université Paris 8 – Vincennes-Saint-Denis, 2002.
6
COMAS, Carlos Eduardo. Le Corbusier and the Brazilian landscape. In: MUÑOZ, Maria Dolores; ATRIA, Maximiano; PÉREZ,Leonel; TORRENT, Horacio (ed.). Trayectorias de la ciudad moderna. IV Seminario Docomomo CL 2012. Concepcion, UDEC, 2012, p. 13-17.
7
PUPPI, Marcelo. Espaços inacabados: Le Corbusier, Lúcio Costa e a saga da Casa do Brasil. Arqtexto, n. 12, 2008, p. 160-203.
8
SILVA, Elcio Gomes da. Os palácios de Brasília. Brasília, Câmara dos Deputados, 2015, p. 218.
9
O arquiteto Juliano Dors dos Santos.
10
Ver capítulo 6 da obra: COMAS, Carlos Eduardo. Précisions brésiliennes sur un état passé de l'architecture et de l'urbanisme modernes. Op. cit.
11
PAPADAKI, Stamo. Oscar Niemeyer. Nova York, George Braziller, 1960, p. 19.
12
COSTA, Lúcio. Imprévu et importance de la contribution des architectes brésiliens au développement actuel de l’architecture contemporaine. L’Architecture d’aujourd’hui, n. 42-43, ago. 1952, p. 4-7.
13
LE CORBUSIER. Le modulor. Boulogne, L’Architecture d’Aujourd’hui, 1950, p. 224, partindo de comentário sobre a peça de Paul Claudel, L'annonce faite à Marie.
14
Segundo Summerson, Sebastiano Serlio pensava que a ordem dórica deveria ser empregada em igrejas dedicadas a santos mais extrovertidos, a ordem jônica a santos mais tranqüilos e a ordem coríntia para igrejas de virgens, em especial à Virgem Maria considera, ainda, a ordem toscana adequada para prisões e fortificações e não aponta nenhum emprego específico para a compósita. SUMMERSON, John (1963). El lenguaje clásico de la arquitectura. Barcelona, Gustavo Gili, 1974.
15
BLONDEL, Jaques-François. Cours d'Architecture. De la décoration, distribuition et construction des bâtiments. Tome 1. Paris, Desaint, 1771. Architecture mâle, ferme, viril, p. 411-413; architecture légère, élégante, délicate, p. 413-417; architecture du genre féminin, p. 419-421.
16
Sobre os comentários de Henry Wotton, ver: SUMMERSON, John. El lenguaje clásico de la arquitectura. Op. cit.
17
FORTY, Adrian. Masculine, Feminine or Neuter? In MCCORQUADALE, Duncan (ed.). Desiring Practices – architecture, genres and the interdisciplinary. Londres, Black Dog Publishing, 1996, p. 141-155.
18
SUMMERSON, John. The Brazilian Contribution. The Architectural Review, maio 1943, p. 135; NIEMEYER, Oscar. Problemas atuais da arquitetura brasileira. Módulo, Rio de Janeiro, n. 3, dez. 1955, p. 19-22. Apud: ZEIN, Ruth Verde. Oscar Niemeyer. Da critica alheia à teoria própria. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.04, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4608>.
19
SANTOS, Cecilia Rodrigues dos; PEREIRA, Margareth da Silva; PEREIRA, Romão da Silva; CALDEIRA, Vasco. Op. cit.
20
From Le Corbusier to Niemeyer. Villa Savoye 1929; Tremaine House, 1949 (Exposição no MoMA); William Hogarth, o autor de The analysis of beauty (1753), foi um dos artistas homenageados na antiga Escola Nacional de Belas Artes, logo Museu Nacional, de Adolpho Morales de los Rios.
21
GOMBRICH, Ernst. The sense of order. A study in the psychology of decorative art. Ithaca, Cornell University Press, 1979, p. 54-56; KUBLER, George. The shape of time. New Haven/Londres, Yale Univeristy Press,1962.
22
BEAUVOIR, Simone de. La force des choses. Paris, Gallimard, 1963; SMITH, C. Ray. South America: after Corbu what's happening. Progressive Architecture, set. 1966, p. 141.
sobre o autor
Carlos Eduardo Dias Comas, arquiteto, professor titular da FAU UFRGS, é mestre pela University of Pennsylvania (1977) e doutor pela Université de Paris VIII (2002).