A história da restauração do patrimônio cultural brasileiro já acumula oito décadas de experiência. Iniciada com a ação da Inspetoria dos Monumentos em Ouro Preto em 1935, a restauração arquitetônica teria, a partir de 1937, o antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, atual Iphan, como o seu protagonista. Este trabalho pretende refletir sobre o possível legado que as ideias e práticas nas restaurações levadas a cabo pelo Iphan, ao longo dos seus quase 80 anos de existência, podem contribuir para a preservação do patrimônio cultural brasileiro (1).
Os técnicos do Iphan viram-se, desde o seu início, diante da necessidade da restauração dos edifícios. Afinal uma considerável parte do acervo arquitetônico encontrava-se alterada por modificações sucessivas, tendo muitas vezes a proteção, através do tombamento, visado não só a sua preservação, mas também garantir a possibilidade do seu restauro. No caso brasileiro, e ele não é único nesse sentido, vários foram os problemas implicados nessa ação e poucos eram os estudos sobre os sistemas construtivos tradicionais e a linguagem arquitetônica colonial, além de serem raríssimas as imagens documentais das nossas cidades anteriores ao século 19. O esforço inicial foi o do desenvolvimento de pesquisas que preenchessem essas lacunas. Seriam identificadas características comuns dos diferentes programas arquitetônicos – casas de câmara e cadeia, sedes de engenho, igrejas conventuais etc. – das diferentes regiões – as Minas Gerais, a região do açúcar em Pernambuco, o recôncavo baiano, a Guanabara, o planalto paulista, etc. – e dos diferentes períodos – construções dos séculos 16 e 17, construções do século 18, construções de finais do 18 e inícios do 19 e construções do século 19. As primeiras restaurações vão passo a passo constituindo-se como resultado das informações desses estudos bem como da análise dos monumentos, através do trabalho de prospecção de paredes, pisos e tetos (2).
As primeiras restaurações no Brasil serão muito semelhantes às operações de restauro que constituíram a história da disciplina no modo como ela se consolidou no mundo ocidental. Estas primeiras intervenções foram determinantes para o estabelecimento de critérios norteadores da prática do Iphan. Neste sentido a primeira restauração realizada pelo Patrimônio, a igreja jesuíta de São Francisco Xavier em Niterói, Rio de Janeiro, seria determinante para o estabelecimento destas práticas.
O pároco da igreja de São Francisco Xavier, localizada no Saco de São Francisco, na época um arrabalde da cidade de Niterói RJ, escreve em 8 de março de 1937, uma carta ao diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, solicitando o apoio deste, para a realização de obras de restauração da sua igreja. Ainda não havia sido promulgada a lei do tombamento e para amparar a sua solicitação o padre recorreu a Constituição aprovada em 1934: “o artigo 148 da Constituição Federal declara que cabe a União, aos Estados e aos Municípios proteger os objectos de interesse histórico e o patrimônio artístico do paiz” (3).
Baseando-se nesse artigo e no que ele chama de razões que levaram a criação do Sphan pelo governo federal, solicita o apoio para obras na igreja, reivindicando ser esta um monumento muito antigo, fundada pelo padre José de Anchieta e tendo servido como sua moradia no século 16. É bastante singular a solicitação do padre que não estava pedindo obras de manutenção do seu templo, mas sim da recuperação do aspecto primitivo, quinhentista/seiscentista, do edifício, como conclui na sua carta.
A igreja está localizada numa pequena colina numa enseada na baía de Guanabara. Na realidade fora construída na segunda metade do século 17, depois que os jesuítas compraram aquelas terras e ali implantaram uma fazenda de gado. Em 1937 o Iphan não havia encontrado estas referências, mas já sabia que, conforme relato do padre, o prédio havia passado por uma reforma em 1905 que havia “modernizado” em vários aspectos a fachada frontal, pisos e forros do interior. As outras fachadas mantinham o aspecto da construção primitiva.
O levantamento fica registrado numa série de desenhos a lápis, feitos pelo arquiteto Carlos Leão, em papel milimetrado. São as fachadas e a planta com as respectivas medidas e observações em relação aos materiais construtivos. No levantamento da fachada frontal, Leão rascunha uma primeira hipótese de restauração com a demolição da torre e deixando a vista o prolongamento das águas do frontão numa solução volumétrica semelhante à igreja jesuítica da Aldeia de Carapicuíba, São Paulo. A ideia de elaborar a proposta de restauração a partir de um enquadramento tipológico, no caso a arquitetura jesuítica dos dois primeiros séculos, permite a ele especular a recomposição usando como modelo um prédio similar e contemporâneo ainda intacto. Esse procedimento seria várias vezes repetido, mas não se configurará nunca como uma norma prévia, mas sim como resultado eventual a partir das condições apresentadas pelo caso.
As obras são iniciadas em 12 de junho de 1937 e serão finalizadas em 13 de dezembro do mesmo ano. São feitas prospecções nas paredes e em especial é retirada toda a argamassa de revestimento da fachada frontal. Neste momento a proposta de restauração passa a ter outro direcionamento. É descoberta a sineira primitiva e a altura original dos corpos laterais da igreja na fachada principal. A prospecção na fachada principal permite identificar em linhas gerais o feitio primitivo desejado pelo padre e pelo Sphan. Os elementos antigos descobertos e as dúvidas surgidas são registrados fotograficamente e comentados através de desenhos superpostos as fotos, inaugurando uma pratica de trabalho que perdurará nas décadas seguintes. Nas janelas reconstruídas, reproduz-se o padrão das cercaduras de pedra que ainda existiam na fachada, preocupando-se, porém, em distinguir as pedras novas introduzidas.
No frontão são retirados os elementos decorativos do início do século 20, substituídos pelo acabamento do muro liso e uma fiada de telhas assentadas diretamente sobre a alvenaria. Opta-se neste caso por uma solução que, mesmo sendo nova, contribui fortemente para a imagem de “singeleza” da arquitetura jesuítica dos séculos 16 e 17.
A igreja de São Francisco Xavier em Niterói vai inaugurar uma prática, a prospecção nas alvenarias para identificação dos elementos originais, que será repetida nos anos subsequentes nas intervenções de restauração.
A informação contida nos elementos remanescentes do monumento e na sua documentação histórica, e o recurso às características estilísticas existentes em soluções arquitetônicas de edifícios da mesma época, vão constituir a base das intervenções de restauro dos monumentos brasileiros nas décadas iniciais de atuação do Iphan.
Apesar disto, ou exatamente por isso, uma questão seria ponto fundamental na definição dos critérios iniciais da restauração no Brasil: a manutenção da pátina. Era fundamental para os pioneiros do patrimônio a ideia de autenticidade presente no material original e principalmente no desgaste que o tempo lhe deu.
Em 1945, questionando a restauração que vinha sendo feita num sobrado tombado na cidade de Diamantina em Minas Gerais, Lúcio Costa escrevia:
“À vista da orientação insatisfatória com que foram executadas as obras na casa à rua Francisco Sá n. 50, em Diamantina, há necessidade de recomendar-se aos delegados desta repartição para insistir junto aos respectivos auxiliares no sentido de tornar ainda mais claro que restaurar não é refazer. Em obras de restauração, a refação de qualquer uma das partes componentes do conjunto só deve ser admitida no caso de ser de todo impossível a sua recomposição com o aproveitamento do material original.
A remoção dos acréscimos e a consolidação da obra autentica é o que se visa na restauração” (4).
Essa belíssima definição do que seria uma restauração arquitetônica vai servir de parâmetro para uma boa parte das intervenções no Patrimônio Histórico e Artístico Nacional nas suas primeiras décadas de atuação.
Neste sentido consideramos a restauração como uma forma de reinterpretação do passado através da consolidação de uma determinada imagem arquitetônica das construções. Portanto toda restauração é uma recriação.
Os monumentos do patrimônio edificado são os testemunhos que alimentam a memória coletiva dos povos. A conservação do seu suporte material e o restauro da sua imagem são os processos que reavivam as lembranças neles contidas. Ora é necessário aqui prevenir que não podemos lembrar sem inventar. A construção de nossas memórias individuais e coletivas é devedora da invenção. A história da arquitetura escrita a partir do século 19 é devedora das informações que as intervenções de restauração e conservação trouxeram à luz.
No caso brasileiro, essas obras restauradas iriam subsidiar, às vezes de modo bastante acrítico, a história da nossa arquitetura. Um caso exemplar dessa relação entre restauração e história da arquitetura é o da capela do Padre Faria, em Ouro Preto, Minas Gerais. Considerada um dos primeiros templos erguido naquela região, encontrava-se em meados do século 20 com formas provavelmente adquiridas em inícios do 19. A opção de garantir a imagem idealizada dos primeiros templos da ocupação das Minas Gerais vai dar o aspecto atual da igreja. O restauro realizado a partir de 1945 teve como principais modificações a demolição do corpo lateral onde se encontrava a escada para o púlpito e transformação do frontão barroco numa empena simples com arremate de beira e bica. O modelo para o novo frontão arcaico é inegavelmente a capela de São João Batista, que era considerada a mais antiga de Ouro Preto e apresentava essa mesma solução. Toda a discussão ocorrerá a partir da descoberta no início de 1945, pelo representante do Serviço do Patrimônio em Minas Gerais, Sylvio de Vasconcellos, de uma foto antiga da capela, século 19, na qual o corpo lateral era apenas um telheiro e as janelas do coro eram em verga reta, ao invés do arco abatido que apresentava no momento. No edifício havia fragmentos dos antigos cunhais nas fachadas laterais, indicando que a fachada frontal atual era um avanço de 1,50 metros, construído para a criação do coro. Sylvio de Vasconcellos sustentava que a foto retratava a fachada antes da ampliação do corpo da nave. Lúcio Costa, então um dos diretores do Serviço do Patrimônio, acreditava que a foto, por já apresentar o frontão barroco, corresponderia a um período posterior à construção do avanço. O argumento de Lúcio Costa estava baseado no fato das cimalhas laterais do edifício serem de pedra, portanto, de pedra também deveriam ser, originalmente, os arremates da fachada principal, enquanto que cunhais e frontão, na fotografia antiga, eram nitidamente em massa pintada a escaiole (5).
A demolição do corpo lateral ocorreu, claramente, em razão da foto encontrada por Sylvio de Vasconcellos, já o frontão foi nitidamente uma opção tipológica, contrariando a regra geral utilizada pelo Serviço do Patrimônio nos seus anos iniciais de restauro histórico quando as recomposições eram sempre baseadas na existência de documentação iconográfica. A capela do Padre Faria, pela sua antiguidade, vai reproduzir o modelo da capela de São João Batista, sua contemporânea; o arremate do frontão em beira e bica é cópia da capela de São João.
As transformações operadas pelo restauro da capela seriam imediatamente assimiladas pela história da arquitetura. Paulo Santos ao escrever, em 1951, o livro A arquitetura religiosa em Ouro Preto, apresenta a igreja do Rosário de Padre Faria com a configuração da fachada recém restaurada, identificando-a como parte inicial de um processo tipológico de transformação das fachadas das capelas mineiras (6). Não menciona, em momento algum, que a configuração do frontão reto era resultado de uma operação recente de restauro, que retirou as curvas e contracurvas do frontão de gosto barroco que adornavam a igreja antes da intervenção.
Entre a opção pela analogia e a documentação histórica, a restauração arquitetônica no Brasil vai constituindo a base do que entendemos ser nossa arquitetura antiga. A busca da coerência estilística seria aos poucos deixada em segundo plano diante da destruição sofrida pela arquitetura do século 19. A restauração e sua prática no Iphan e no Brasil do século 20 não eram uniformes, havendo inclusive constantes divergências entre os diversos agentes na preservação. Havia, porém, a questão da autenticidade, garantida na perspectiva dos pioneiros do Iphan pela manutenção da pátina dos materiais originais.
A ideia, cara aos operadores do restauro do patrimônio arquitetônico, de que a restauração é uma ciência neutra que tem como objetivo devolver a verdade histórica dos monumentos, precisa ser urgentemente questionada. Essa ideia, que se tornou recorrente no debate brasileiro dos últimos anos – e que nunca é enunciada claramente apesar de estar sempre presente por trás de axiomas como o chamado “falso histórico” – precisa ser rediscutida diante da ideia da história como um permanente processo de interpretação do passado. Os edifícios históricos selecionados pelo Iphan eram valorizados por suas características sensoriais e expressivas, que correspondem ao valor artístico ou valor de imagem, mutável ao longo dos séculos, e que faz com que a apropriação dos monumentos históricos se dê como um processo continuado de reinterpretação desses valores artísticos.
Um caso exemplar do atual debate em torno dos critérios e decisões sobre a recuperação e restauração dos monumentos arquitetônicos é o da igreja de Nossa Senhora da Saúde no Rio de Janeiro. Empreendida a partir de 2005, duas questões de grande atualidade no Brasil, foram o cerne da discussão e da ação de restauro: a sustentabilidade, ou seja, a garantia de que o imóvel restaurado se manterá em uso e conservado depois de finda a restauração, e o problema de como restaurar imóveis que têm sido saqueados pelo furto de suas obras de arte. A igreja que fica na zona portuária do Rio de Janeiro, e foi tombada em 1938 pelo Iphan, era originalmente uma capela de chácara construída no século 18. Implantada à meia encosta de uma pequena elevação junto ao mar teve desde sempre a sua história ligada à atividade portuária dos diversos trapiches que pouco a pouco foram ali se instalando. A casa da chácara ficava acima da igreja, e logo abaixo, junto ao mar, ficava o trapiche da família. Hoje, do conjunto só resta a igreja, construída em 1742 por Manoel da Costa Negreiros, comerciante português e traficante de escravos, que se casara com uma filha da nobreza das terras cariocas. Casa, igreja e trapiche ficaram nas mãos dos seus descendentes até a virada do século 19 para o 20. No fim deste período, a casa e o trapiche são demolidos e a igreja passa a pertencer a Irmandade de Nossa Senhora da Saúde que dela tomará conta até a segunda metade do século 20.
A igreja tem, à semelhança da Igreja do Outeiro da Glória, a nave e a capela-mor cobertas com painéis de azulejos. No caso da Saúde narram a história bíblica de José do Egito. O tema escolhido provavelmente tinha relação com a atividade dos proprietários, importantes comerciantes da cidade. A talha do altar-mor e do arco cruzeiro apresenta grande unidade estilística, sendo considerada um importante exemplar do rococó fluminense. O lavabo, na sacristia, é outro elemento artístico absolutamente notável, todo executado com embrechado de conchas, contas, cacos de louça e azulejos, um exemplar notável da arte luso brasileira do século 18. Neste aspecto a trajetória do templo, na origem uma capela pertencente a uma chácara, garantiu a manutenção destes elementos artísticos setecentistas quase inalterados, ao contrário do que ocorreu com boa parte das igrejas do centro do Rio de Janeiro, que vieram a sofrer novas intervenções artísticas durante o século 19.
De fato, a igreja só virá a sofrer intervenções e modernização artística já na virada do século 19 para o 20, quando, sob a responsabilidade da Irmandade de Nossa Senhora da Saúde, foram realizadas algumas obras: inicialmente pinturas de gosto neogótico no púlpito e repintura do altar-mor e do arco cruzeiro, depois a provável substituição da grade do coro e instalação de uma grande tela de gosto rococó cobrindo todo o teto da nave bem como a colocação de quadros a óleo retratando santos nas paredes ao longo da nave, acima dos painéis de azulejos.
As inspeções do Iphan na década de 1950 indicavam a necessidade urgente de obras de restauração. Diante da impossibilidade da Irmandade, em franco processo de dissolução, de arcar com obras, o próprio Iphan irá realizar a restauração, mas lentamente, com os recursos anuais do seu orçamento, arrastando-se a obra desde final dos anos 1950 até inícios dos anos 1970. À frente dos trabalhos, o arquiteto Augusto da Silva Telles realizou uma restauração consonante com o pensamento do Iphan daqueles anos. Buscou a unidade de estilo, com a retirada de todos os acréscimos posteriores ao período estilisticamente mais expressivo do monumento, isto é, o rococó da talha e dos painéis de azulejo. Todos os elementos arquitetônicos ou artísticos das reformas acadêmicas feitas pela Irmandade – tela do forro da nave, quadros a óleo na nave e sacristia, balcões de ferro externo –, foram retirados. Ficou o interior da igreja entre a pureza do branco de paredes e tetos e o colorido das talhas rococós e dos painéis de azulejos. Neste caso, porém, procurou-se uma solução de compromisso com a manutenção dos acréscimos artísticos acadêmicos feitos na igreja. O projeto retirou tudo o que foi considerado posterior ao século 18, mas com a intenção de conservar e exibir as obras de arte da virada do 19 para o 20. Foi realizada a ampliação do corredor lateral da igreja para transforma-lo em um grande cômodo para abrigar a tela que cobria o forro da nave e os quadros a óleo da nave e da sacristia. Na realidade o novo espaço nunca cumpriu a função prevista. Os quadros foram enviados para fazer parte do acervo do Museu da Cúria, e a tela do forro enrolada durante os trabalhos de restauração da igreja, e assim vai permanecer por mais 30 anos.
Nos anos 1970, a Irmandade já havia se dissolvido e não havia interesse da paróquia local em utilizar a igreja localizada em cima do morro, já que havia outra na planície, fato que vai legar a igreja, completamente restaurada, ao abandono e a um processo lento, mas inexorável, de sucateamento, convivendo com o drama da violência relacionada ao tráfico de drogas. Fechada, a igreja passa a sofrer não só com a falta de conservação e abandono, como também com os danos dos saques que vão gradualmente rapinando os diversos elementos artísticos da talha, culminando com o furto de quatro cenas inteiras de painéis de azulejos do interior, criteriosamente retiradas. A grave situação de deterioração e depredação do monumento inviabilizava qualquer nova ação de restauração, colocando o Iphan diante de um impasse: como investir recursos em um monumento abandonado, localizado em zona de risco e de violência?
Esta situação começa a ser revertida no final dos anos 1990. O interesse de técnicos da Prefeitura, do Iphan e do Pároco pela recuperação da Igreja encontra respaldo na nova política municipal de revitalização da zona portuária. A Caixa Econômica Federal adquire o terreno em cima do morro, onde antes ficavam reservatórios de petróleo, para a construção de um conjunto habitacional. Diante da possiblidade de reutilização da área o projeto, na zona de entorno da igreja, é integralmente aprovado pelo Iphan, e o conjunto resulta num sucesso de vendas, sendo rapidamente todo ocupado. Com essa nova perspectiva de futuro uso para a igreja, Iphan e Cúria interessam o BNDES no financiamento da restauração.
A restauração da igreja saqueada propunha um desafio aos restauradores. A perda de trechos das talhas e dos azulejos, que na Igreja da Saúde assumiram uma escala nunca antes observada, modificavam a compreensão do conjunto artístico original. A preocupação que vai direcionar o partido inicial da restauração será a restituição da legibilidade artística original dos espaços do monumento distinguindo claramente, a nova intervenção dos elementos antigos. A destruição ocorrida neste caso, fora resultado direto da incúria dos homens, portanto por um lado era necessário recuperar o esplendor da igreja dos anos 1970, depois da última restauração, e de outro deixar bem marcados os sinais da rapina empreendida nos posteriores anos de abandono. Principalmente buscar uma intervenção que garantisse uma leitura temporalmente plural dos espaços internos da igreja, sem exclusão dos elementos artísticos de qualidade dos períodos mais recentes da sua história.
Para os painéis de azulejos roubados é realizada a reconstituição em afresco das imagens originais. Os novos painéis reproduzem fielmente a imagem, mas são perfeitamente reconhecíveis, inclusive para os leigos, como distintos dos originais. Quanto às talhas, procurou-se dar solução que respeitasse esse mesmo princípio. A primeira posição do Iphan foi de que deveriam ser reconstituídos todos os elementos faltantes, a partir dos exemplares já existentes e da documentação fotográfica. Mas havia duas questões práticas a considerar: tratava-se de peças artesanais únicas, a reprodução a partir de molde de uma similar não representava a recomposição dos originais; a documentação fotográfica em duas dimensões também não representava uma base suficiente para a reprodução em três dimensões.
Uma outra solução foi proposta pelos autores do projeto, os arquitetos Candido Campos e Jorge Astorga: realizar a reprodução dos elementos em placas de fibra de vidro com os mesmos contornos, porém planas, utilizando o recurso do trompe l'oeil para dar a sensação de volume aos observadores. Dois princípios norteavam esta proposta: o primeiro que o desaparecimento das peças não tinha sido resultado de uma catástrofe natural e sim da ação criminosa de ladrões de obras de arte, portanto, refazer, tal e qual, as peças, significava referendar a ação criminosa; por outro lado restaurar somente o que restou significaria de um lado a perda dos futuros usuários da compreensão do conjunto artístico da Igreja de Nossa Senhora da Saúde.
Neste sentido os restauradores propuseram a confecção de todas as peças faltantes em fibra de vidro, reconstituindo a imagem da talha original da igreja, proposta esta que gerou intenso debate, com rejeição grande por parte do Iphan. De um lado criticava a qualidade plástica das peças em fibra de vidro, que deveriam obter um maior apuro formal, de outro lado por uma rejeição a uma proposta que interviesse de maneira tão forte no monumento tombado. Infelizmente este debate resultou numa proposta mais conservadora, isto é, na restauração apenas das peças existente sem nenhuma intervenção em relação às peças roubadas. Hoje, a igreja perdeu quase toda a decoração existente na igreja primitiva. Não é claro ao fiel ou ao visitante que a igreja foi rapinada durante uma década. Como também o estudioso do rococó não tem ideia do que era este espaço religioso do rococó fluminense.
Outra questão, objeto de grande discussão, foi com relação a policromia. As cores existentes eram fruto da restauração realizada na década de 1960 pelo Iphan, sendo responsável pela obra, o restaurador Edson Motta. A busca pela homogeneização estilística foi o mote da restauração. Neste sentido foram removidas as repinturas em branco e purpurina que cobriam o retábulo e o arco cruzeiro e recuperada a policromia e douração originais. A policromia em verdes e carmim descoberta na restauração da década de 1960 distingui-a do conjunto de igrejas do mesmo período na cidade do Rio de Janeiro. Essa pintura foi recuperada procurando respeitar a pátina adquirida. Causou enorme reação nos responsáveis pela igreja, a recuperação pictórica que resultou num tratamento envelhecido, a pátina enaltecida pelos pioneiros do Iphan. Diante dos protestos da Cúria com relação ao acabamento envelhecido das talhas, o Iphan, surpreendentemente, cedeu, e no final uma parte destas talhas foi repintada para dar “melhor aspecto” a igreja.
A igreja da Saúde foi reaberta em 2007. Duas restaurações num mesmo monumento, em épocas distintas, com paradigmas distintos. O valor plástico imanente aos objetos, defendido pelos pioneiros do Patrimônio, é substituído pelo valor simbólico que a população atribui aos monumentos. É fato que essa nova perspectiva representa uma ampliação inédita do universo do que é objeto da ação de preservação, porém esta, ainda não tem, a correspondente reflexão em relação aos métodos e práticas de restauro. É neste ponto que seria importante discutirmos questões como a pátina e as práticas de intervenção de restauro à luz da participação das comunidades. Isso significa pensar o legado da ação do patrimônio no século 20 e a sua possível contribuição para a pratica atual e do grau de decisão das diversas instâncias, técnicas e comunitárias no resultado final das obras de restauração.
Afinal a quem pertence a decisão sobre os modos de intervir no nosso patrimônio cultural?
notas
NE – O IV Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – Enanparq (Porto Alegre, julho de 2016) teve como objetivo apontar, no cenário nacional, os principais caminhos que tem coordenado os esforços para a ampliação e o aprofundamento dos saberes disciplinares – o estado da arte. Atendendo a esta chamada, e considerando a importância de levar à debate as questões relativas ao campo disciplinar da preservação e do restauro, foram propostas e aceitas pela coordenação geral do evento essas duas sessões: “Novas fronteiras e novos pactos para pesquisas e projetos situados em área de preservação e patrimônio cultural” (coordenadora Cecilia Rodrigues dos Santos, FAU Mackenzie) e “Projeto contemporâneo e patrimônio edificado” (coordenadores Nivaldo Vieira de Andrade Junior, FAUFBA, e Claudio Varagnoli, Università degli Studi “G. d’Annunzio” Chieti-Pescara). Por inciativa dos coordenadores, as duas sessões centralizaram um único debate direcionado às referências conceituais e aos fundamentos teóricos do campo da preservação e do restauro, assim como à prática e à reflexão contemporâneas que têm direcionado a intervenção sobre o patrimônio edificado. Por inciativa dos dois coordenadores, as sessões centralizaram um único debate direcionado às referências conceituais e aos fundamentos teóricos do campo da preservação e do restauro, assim como à prática e à reflexão contemporâneas que têm direcionado a intervenção sobre o patrimônio edificado. A convite de Abilio Guerra, editor do Portal Vitruvius, os coordenadores selecionaram seis dentre os 14 trabalhos participantes das duas sessões para compor um editorial que pudesse oferecer um quadro de referência deste debate: Fabiola do Valle Zonno, Juliana Cardoso Nery e Rodrigo Espinha Baeta, e Guimarães Andréa da Rosa Sampaio (seleção de Nivaldo Vieira de Andrade Junior); Fernanda Fernandes, Eneida de Almeida e Marta Bogéa e José Pessôa (seleção de Cecilia Rodrigues dos Santos). Foram selecionados pelo editor do portal outros três artigos, dos seguintes autores e sessões do encontro: Carlos Eduardo Comas (painel “O moderno no contemporâneo”); Eline Maria Moura Pereira Caixeta e Ângelo Arruda (sessão temática “Cidades novas, preservação do patrimônio e desenvolvimento regional”); e Fausto Sombra (sessão aberta d comissão organizadora). Complementando o número dedicado ao evento, temos o artigo de Fernando Guillermo Vázquez Ramos, apresentado no evento como texto introdutório para a Sessão Temática “O redesenho como prática de pesquisa histórica em arquitetura”, que foi submetido à avaliação da revista e aprovado por um dos pareceristas ad hoc. São os seguintes os artigos que formam o número especial de Arquitextos sobre o Enanparq 2016:
ZONNO, Fabiola do Valle. O valor artístico na relação passado-presente. Modos de interpretação do lugar. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.00, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6171>.
NERY, Juliana Cardoso; BAETA, Rodrigo Espinha. Interação, sobreposição e ruptura. Os Edifícios Niemeyer e Rainha da Sucata e a Praça da Liberdade, em Belo Horizonte. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.01, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6172>.
SAMPAIO, Andréa da Rosa. Reabilitação urbana e patrimônio arquitetônico em Portugal. Contribuições das experiências do Porto e Guimarães. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.02, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6174>.
FERNANDES, Fernanda. História, preservação e projeto. Entre o passado e o futuro. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.03, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6173>.
ALMEIDA, Eneida de; BOGÉA, Marta. Patrimônio como memória, memória como invenção. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.04, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6175>.
PESSÔA, José. Entre o singelo monumentalizado e o simbólico, reflexões sobre o patrimônio cultural brasileiro. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.05, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6176>.
COMAS, Carlos Eduardo Dias. Le Corbusier e a Embaixada da França em Brasília. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.06, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6178>.
CAIXETA, Eline Maria Moura Pereira; ARRUDA, Ângelo. Goiânia e Angélica. Duas cidades modernas no centro-oeste. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.07, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6179>.
SOMBRA, Fausto. O pavilhão da I Bienal do MAM SP. Fatos, relatos, historiografia e correlações com o Masp e o antigo Belvedere Trianon. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.08, Vitruvius, ago. 2017 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6177>.
VÁZQUEZ RAMOS, Fernando Guillermo. Redesenho. Conceitos gerais para compreender uma prática de pesquisa histórica em arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 195.09, Vitruvius, ago. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.195/6181>.
1
Sobre o tema do patrimônio cultural, ver: CARSALADE, Flavio de Lemos A pedra e o tempo: arquitetura como patrimônio cultural. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2014.
2
Ver: PESSÔA, José. Arquitetura como documento. In ROSSA, Walter; RIBEIRO, Margarida (Org.) Patrimônios de influência portuguesa: modos de olhar. Coimbra, Imprensa Universitária, 2015.
3
Carta do Padre Francisco Arlotti à Rodrigo de Melo Franco de Andrade, Igreja de São Francisco Xavier, Arquivo Noronha Santos.
4
COSTA, Lúcio. Arquivo Noronha Santos, 9 abr. 1945.
5
COSTA, Lúcio. Lúcio Costa: registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995.
6
SANTOS, Paulo. A arquitetura religiosa em Ouro Preto. Rio de Janeiro, Livraria Kosmos, 1951, p. 159.
sobre o autor
José Simões de Belmont Pessôa é professor associado PPGAU UFF.