Preâmbulo
Inegavelmente, um dos maiores problemas urbanísticos de Campo Grande MS são os vazios urbanos existentes em seu território.
Desde os primórdios dos planos diretores, diversas diretrizes tentaram regular a produção do espaço urbano, levando em conta sempre a necessidade de urbanizar os vazios, de sorte a permitir que a mancha urbana fosse contínua. A partir da década de 1970, a cidade recebeu contingentes populacionais em função de sua futura condição de capital de Mato Grosso do Sul em 1979 e, com isso, acelerou-se a urbanização descontrolada e os limites do perímetro foram sendo ampliados e os parcelamentos novos surgindo, disputando espaço com os conjuntos habitacionais públicos e com as ocupações irregulares em curso. Resultado ao fim da década, a cidade teve quase 200 favelas, mais de 10 mil novas casas construídas e uns 120 mil lotes vazios ao fim dos anos 1990.
Campo Grande, em 1995, parou para repensar seu planejamento e, no Plano Diretor daquele ano, decretou a prioridade de combater os vazios urbanos com políticas de habitação e de urbanização. Mas, os instrumentos de controle não tinham uma base de dados que revelassem a real situação da cidade naquele momento e, sem essa informação precisa, as diretrizes expressaram-se, apenas, nas zonas de uso e nos índices urbanísticos em vigor.
Em 2006, com a discussão da revisão do Plano Diretor, foi que o tema “vazios urbanos”, retomou seu protagonismo. Mesmo assim, o plano não expressou as diretrizes fundamentais para o tema e apenas o mapa de uma divisão da cidade em macrozonas (exigida pelo Estatuto da Cidade) e zonas especiais, contextualiza a necessidade de urbanização prioritária nas Macro Zona 1 e Macro Zona 2. Naquele momento da revisão não havia dados de nenhum levantamento consistente de toda a cidade para delimitar os necessários encaminhamentos de planejamento para a discussão dos vazios urbanos.
A cidade caminhava para um perímetro urbano de quase 360 km2em 2014, mais de 130 mil lotes vazios e, à olho nu, muitas glebas e áreas livres quando tomamos a decisão, por meio do Observatório de Arquitetura e Urbanismo da UFMS, de procurar parceiros para a realização de uma ampla pesquisa em todo o território urbano, visando mapear e identificar os vazios urbanos em nossa cidade.
Este trabalho apresenta a síntese do Relatório Final, depois de quase dois anos de intenso trabalho técnico e urbanístico, com uma equipe de acadêmicos do Curso de Arquitetura e Urbanismo lideradas pelo autor (1).
1. Quem é Campo Grande?
De acordo com as projeções estatísticas, Campo Grande deve ter um milhão de habitantes em 2027. No entanto, a capital de Mato Grosso do Sul, fundada em 1872 e emancipada em 1899, segundo o IBGE, tem hoje pouco menos de 900 mil habitantes e um pouco mais de 35 mil hectares de perímetro urbano. O crescimento médio anual gira em torno de 1,72% e a quantidade de pessoas por domicílio é 3,12, ou seja, a família média campo-grandense, atualmente é de um casal e menos de dois filhos. No ano de 2015 o município tinha uma população estimada em 853.622 habitantes, segundo o IBGE.
Campo Grande é um município urbano. Quase 99% de sua população (776.242 habitantes em 2010) residem na cidade enquanto pouco mais de 10 mil pessoas residem na área rural e nos distritos de Anhandui e Rochedinho. A área do município é equivalente ao tamanho de alguns países como Porto Rico, Cabo Verde, Brunei, Luxemburgo e um pouco maior que o Líbano e Jamaica.
Já a área urbana é imensa. Tem capacidade para abrigar quatro milhões de habitantes. A área urbanizada (170km²) é menos da metade do imenso perímetro urbano (359km²). Maior que Porto Alegre (160km²); Salvador (159km²) ou Recife (121km²).
De acordo com o Instituto de Planejamento Urbano de Campo Grande – Planurb, a cidade possuía em 2015, um perímetro urbano com área total de 35.903,52 hectares abrigando uma população estimada 2015 de 853.622 habitantes, o que dá uma densidade de 23,77 hab./ha, muito pouco expressiva para uma capital. Ou seja, os dados sobre a cidade apontam um perímetro urbano pouco denso e por consequência, com possibilidades de muitas áreas ainda não urbanizadas ou desocupadas.
O Plano Diretor de Campo Grande, aprovado pela Lei complementar n. 94/2006 que sofreu inúmeras alterações nesses últimos anos especialmente em 2011, instituiu a política de desenvolvimento de Campo Grande e a Lei complementar n. 74/2005 e suas alterações, dividiu a cidade em 07 (sete) regiões urbanas e cada região está dividida em bairros, para fins de planejamento da cidade. A cidade possui hoje 74 bairros e 793 parcelamentos que formam o poliedro de Campo Grande.
1.1. Densidade urbana e demografia
Com relação à densidade urbana bruta por cada uma das regiões e bairros da cidade, Campo Grande, segundo dados do Planurb, tem variação de 0,65 hab./ha até 63,68hab/ha, ou seja, bairros como Caiobá, Los Angeles, Mata do Segredo ou Maria Aparecida Pedrossian, com densidades muito baixas – menores que 10,00hab/ha, até os mais densos como Guanandy, Taquarussu ou Estrela Dalva, mas com taxas nunca maiores que 100,00hab/ha.
Por outro lado, a evolução demográfica verificada nas últimas décadas aponta para uma taxa decrescente desde os anos 1980, apresentando uma média de 1,72% ao ano nos últimos cinco anos, conforme se verifica abaixo.
2. Vazios urbanos em Campo Grande
A discussão dos vazios urbanos em Campo Grande não é recente. O Plano Diretor da cidade de 1968, elaborado pela empresa Hidroservice Engenharia, já mapeava os locais de uma cidade com menos de 250 mil habitantes na época e apontava a necessidade de planejar o solo para a sua ocupação futura.
Anos depois, em 1977, o arquiteto e urbanista Jaime Lerner, ao estudar a cidade e o seu modelo de ocupação, indicava que os fundos de vale, áreas vazias deixadas às margens dos diversos córregos da cidade, devessem ter um controle de uso para atividades de recreação e lazer e com isso, preservar para o futuro.
Em 1987, quando o Planurb elaborou a revisão da Lei de Ordenamento de Uso e de Ocupação do Solo Urbano de Campo Grande, se procedeu a levantamento inédito de uso do solo e percebeu os vazios existentes no interior do perímetro urbano e, ao calcular a população para o ano 2000, indicava que nem todos os vazios deveriam ser ocupados, visto a necessidade de reservar áreas estratégicas para a cidade no futuro.
A questão da ocupação socialmente responsável dos vazios urbanos entrou fortemente na agenda política da administração das cidades brasileiras com a Constituição de 1988 e, mais importante, com o Estatuto da Cidade, em 2001 (2). No entanto, muita coisa mudou nas cidades brasileiras entre as primeiras propostas, na década de 1970, e as possibilidades concretas de intervenção que se desenham hoje.
Nesse sentido, cabem algumas reflexões, mais como propostas para uma agenda de estudos e de pesquisa que possam orientar os atores sociais nas suas ações. Em primeiro lugar, em muitas cidades já não parece ser realidade a ideia, vigente nos anos 1970, de vastas extensões de terra infraestruturada e desocupada à espera da valorização. Nossas cidades são hoje mais densas e compactas do que eram nos anos 1970, com a redução do ritmo da expansão periférica e com o aproveitamento de oportunidades de valorização que abertas pelo deslocamento das fronteiras da atuação do capital imobiliário em relação aos mercados de comércio, serviços e residências de média e alta renda.
Neste segmento, é hoje mais importante do que nunca que se qualifiquem os terrenos vazios em Campo Grande, em função da sua situação real de disponibilidade jurídica e de possibilidades físicas para ocupação.
Uma boa parte destes vazios, por exemplo, pode ser formadas por lotes de pequenas dimensões, de pequenos proprietários (de renda baixa ou média baixa) que, além de serem pouco adequados para pensarmos uma ampliação efetiva da oferta de moradias, não se constituem exatamente como imóveis para especulação, mas como patrimônio de camadas populares ou de camadas médias empobrecidas, de defesa do capital contra a inflação (3). Existem ainda muitas áreas com problemas de titularidade jurídicos ou submetidos a regimes institucionais específicos e, portanto, inadequadas para ocupação.
Há que se considerar ainda, nas propostas de ocupação de vazios, que muitos bairros não estão com níveis altos de densidade, o que dá aos vazios existentes um papel importante na manutenção da qualidade de vida local.
O trabalho em tela se fundamentou em Iris de Almeida Rezende Ebner (4), no Estatuto da Cidade de 2001 e em Ermínia Maricato (5) como fontes expressivas e indicadoras de caminhos a serem perseguidos no mapeamento indicado para este trabalho.
2.1. Conceituação
A expressão “vazio urbano” começou a figurar como um elemento instigante no contexto da vida urbana a partir de meados do século 19, como consequência pós-industrial, quando as cidades atingem dimensões metropolitanas em razão do crescimento tanto físico quanto populacional, decorrente do êxodo rural (6).
Para Nuno Portas, vazio urbano é uma expressão ambígua, “até porque a terra pode não estar literalmente vazia, mas encontrar-se simplesmente desvalorizada com potencialidade de reutilização para outros destinos, mais ou menos cheios” (7). Segundo Sérgio Magalhães (8), o conceito de vazio urbano é bastante amplo, envolvendo termos como terrenos vagos, terras especulativas, terras devolutas, terrenos subaproveitados, relacionando-se com a propriedade urbana, regular ou irregular, ao tamanho e à localização.
Flávio Villaça (9) utilizou a definição de vazio urbano como uma grande extensão de área urbana equipada ou semi-equipada, com quantidade significativa de glebas ou lotes vagos. Atualmente esse conceito se expandiu, pois surgiram diversas tipologias de vazios urbanos em estudos variados.
Vazio urbano para fins deste trabalho é qualquer área privada, desocupada ou subocupada (ocupação menor que 25% de sua área), localizada no interior do perímetro urbano, independente de possuir, ou não, infraestrutura e serviços públicos. As demais áreas vazias públicas foram classificadas como espaços livres ou áreas de domínio público, conforme gráfico abaixo (10).
3. Vazios urbanos em Campo Grande: dados gerais
Analisando os 793 parcelamentos dos 74 bairros das sete regiões urbanas de Campo Grande, o trabalho identificou um expressivo número de áreas privadas com nenhuma ocupação, ou seja, um quarto de todo o perímetro urbano da cidade, algo em torno de 25,74 % que correspondem a 9.241,61 hectares que, somados aos mais de 4,246 hectares que tinham ocupação de até 25%, totalizam 13.488,46 hectares, ou seja, 37,57% do perímetro urbano são de áreas privadas consideradas vazios urbanos.
Já as áreas de domínio público somam 1.701,08 hectares (4,74%) e outros 2.785,36 hectares (7,76%) de espaços livres que totalizam 12,50% ou 4.486,44 hectares. Se totalizarmos as áreas privadas com ocupação de até 25% com as áreas de domínio público e os espaços livres tem-se algo em torno de mais de 50% do perímetro envolvido com uma pequena ocupação territorial, conforme a Tabela 1.
O que é mais significativo nessa Tabela 1 são as áreas privadas com taxa de ocupação de 0%. Esses 9.241,61 hectares, conforme imagem abaixo, estão localizados em sua maioria expressiva, nas bordas do perímetro urbano, e constitui uma área maior do que todas as sete regiões urbanas: mais de quatro vezes o tamanho da região do Centro e mais de duas vezes a dimensão da região do Segredo.
Essas áreas privadas vazias, sem uso, constituem enorme estoque de terra urbana disponível para a urbanização futura, seja de novos parcelamentos, condomínios, ou até de novos empreendimentos habitacionais ou ainda áreas destinadas a parques, praças, urbanizações integradas ou serem necessárias para a drenagem urbana futura. De qualquer forma, esse estoque precisa ser mais estudado com o fim de identificar suas condições econômicas e urbanísticas. Grande parte dessas glebas e áreas está nas Zonas Z1, Z2 e Z6, com baixos coeficientes de aproveitamento.
Como podemos observar nos mapas abaixo, os vazios urbanos estão muito localizados nas bordas do perímetro urbano, em lotes, áreas e glebas muito distantes da urbanização e dos centros de emprego e, do ponto de vista do zoneamento em vigor, as suas localizações, em sua maioria, vincula-se às zonas de uso Z1, Z2, Z5 e Z6, especialmente. Essas são zonas de uso com baixo poder de ocupação e restrições de usos diversos e pouco atraentes nos coeficientes urbanísticos e indicam um estoque de áreas para o futuro da urbanização da cidade, muito embora com enorme pressão da própria urbanização em curso na cidade. Essas zonas correspondem às antigas Zonas de Transição (ZT) da Lei municipal n. 2.567/1988, que foram criadas como áreas de estoque da urbanização futura. Distantes da urbanização e desprovidas de infraestrutura, essas áreas assistiram, nos últimos 30 anos, a urbanização chegar bem próxima delas e com isso, há uma enorme capacidade de uso das mesmas em curto espaço de tempo e que dependem da capacidade de investimento do mercado imobiliário e das normas dos planos da cidade para elas.
A Tabela 2 nos mostra outra radiografia dos vazios urbanos, agora por meio da tipologia dos lotes e das unidades não parceladas (glebas). O estoque de lotes não ocupados –sejam eles comuns ou especiais - somam-se mais de 3.334 hectares e correspondem a mais de 9,2% do perímetro da cidade. Se considerarmos o lote médio com 360,00 m2 de área (essa é a dimensão do lote de Campo Grande que mais foi produzido nos últimos 70 anos), teremos mais de 92 mil lotes vagos na cidade.
Já as unidades não parceladas totalizam 5.906,72 hectares ou 16,45% do perímetro urbano e, quando colocadas no processo de urbanização pela tipologia parcelamento de gleba, são suficientes para produzir mais de 200 mil lotes. O total de lotes e unidades não parceladas existentes em Campo Grande é de 13.488,56 hectares, que correspondem a 37,57% do total do perímetro urbano. Esse estoque de propriedades privadas, existentes na cidade, é importante indicador de elaboração de diversos projetos e ações públicas, que podem contemplar o planejamento urbano.
Fundamentais para o desenvolvimento urbano futuro, essas áreas – lotes e glebas –, sinalizam e evidenciam a necessidade de cuidados e acompanhamento de sua urbanização. Por um lado pela quantidade: mais de 1/3 do perímetro de Campo Grande com nenhum ou pouco uso, para qualquer finalidade. Por outro lado, os custos da urbanização social podem ser minimizados com algumas definições estratégicas de ocupação, sejam com equipamentos sociais ou de lazer ou ainda de infraestrutura.
Essas áreas interessam ser estudadas com a finalidade de proteção e desenvolvimento, olhando para o futuro de Campo Grande e sua evolução.
Já a Tabela 3 nos apresenta outros dados sobre o detalhamento do uso dos espaços livres, conforme metodologia do trabalho. Ao todo, como vimos, a cidade tem 2.785,33 hectares e, de acordo com a tabela supra, estão divididos assim: 150,46 hectares de praças que correspondem a 0,42% do total da cidade e 5,38% do total dos espaços livres; 793,87 hectares de parques, ou seja, 2,21% do total da cidade e 28,47% do total dos espaços livres; 265,05 hectares de canteiros de avenidas que correspondem a 0,74% de todo o perímetro e 9,51 % do total dos espaços livres; 599,68 hectares de áreas de terminais e leitos ferroviários, ou seja 1,67% do total e outros 845,62 hectares de áreas militares que somam 2,36% do total das áreas da cidade, em suma.
Se somarmos as três primeiras categorias, teremos um olhar sobre o estoque de áreas públicas destinadas ao lazer ativo e passivo. Elas não são o total desse campo de discussão mas nos remete a uma forma de ver os dados. Elas somam 1.208 hectares que, divididos pela população da cidade em 2014 (época dos dados da pesquisa), nos dava 14,32m2 de área verde organizada por habitante quando a ONU indica 15,00 m2 de áreas verdes por habitante. Já as áreas militares, fazem parte da história e da cultura da cidade e estão presentes no território urbano desde o começo do século 20 e são e foram importantes para o desenvolvimento de Campo Grande e sozinhas, somam mais de 845 hectares, utilizadas pelas forças militares do Exército, da Aeronáutica e das policias civil, militar e federal.
Por fim a Tabela 4, que nos demonstra o total e o estoque de áreas de domínio público municipal. Sem nenhuma ocupação (0%), eram 868,92 hectares ou 2,42% do total das áreas da cidade e ainda havia outros 832,16 hectares com uma subocupação de menos de 25% da área, que somam 2,32% do perímetro.
Essas são áreas públicas de enorme interesse para o futuro da urbanização e que devem ser preservadas e quando utilizadas que sejam para benefício coletivo, da comunidade, com obras de equipamentos sociais e comunitários e equipamentos de lazer e recreação ativos e passivos.
Já as áreas de domínio público com alguma ocupação de 0 a 25%, são consideradas pelo trabalho como subocupadas, constituem uma categoria de áreas que, embora tenham algum uso, possuem espaço físico seja para ampliar as atividades existentes, ou seja, para incorporar outras atividades sociais no mesmo terreno.
De qualquer forma, elas somam 1.701,08 hectares somadas, constituindo 4,74% de todo o perímetro urbano, disponíveis no estoque da municipalidade para construção de equipamentos sociais e comunitários, obras de infraestrutura e de recreação e lazer, voltados para a cidade do futuro. Essas áreas de domínio público existentes no levantamento deveriam receber do Poder Público, atenção especial, no que tange a desafetações, doações para o setor público estadual e federal ou mesmo para a realização de parcerias. Elas são estratégicas para o desenvolvimento urbano.
Considerações finais
A discussão de vazios urbanos em Campo Grande é inerente à sua própria condição urbanística. A cidade é uma colcha de retalhos de lotes e glebas há décadas e convive com esse tema, no dia a dia. A partir da década de 1940, a população urbana de Campo Grande passou a dobrar de tamanho a cada 10 anos. Em 1991 o Censo Demográfico do IBGE acusou 526 mil pessoas, um crescimento menor que nas últimas cinco décadas. Em 2000 o Censo acusou 663 mil habitantes e o crescimento médio geométrico anual que era de mais 8% nas décadas de 70/80, passa para 6% de 80/90 e agora para pouco mais de 2%. Em 2010 foram contados 786 mil pessoas. Hoje, em 2016, somam mais de 865 mil pessoas.
Esta velocidade de crescimento urbano e de urbanização acelerada ocorridas nas décadas passadas em Campo Grande, não correspondia com a base econômica do Estado, ainda centrada na agropecuária e mais recentemente na agroindústria. A cidade de Campo Grande assistiu, durante mais de 50 anos, a elaboração de leis e normas urbanísticas, especialmente de uso, ocupação e parcelamento do solo sem que houvesse, nem a participação da comunidade técnica, empresarial, política ou popular.
O processo de planejamento ocorrido foi puramente tecnocrático: contratava-se uma empresa para elaborar planos para a cidade crescer e se desenvolver calcada nos ideais obreiros da época: planos havia para dar sustentação às obras que seriam executadas com dinheiro público, a fundo perdido.
A cidade foi crescendo e sem acompanhamento ou monitoramento para corrigir as distorções geradas pelas normas urbanísticas, mudanças foram feitas na legislação, atendendo a interesses já citados. Ao mesmo tempo, já na década de 1980, os índices de crescimento demográfico batiam nas nuvens (8,02% a.a.); a migração se intensificara com a nova situação de capital de Mato Grosso do Sul; novo governo estadual se instala na cidade, aumentando a procura por imóveis e áreas.
Com este quadro, era possível prever o que aconteceu na década de 1980: favelas surgiam da noite para o dia, em várias partes da cidade; não havia transporte coletivo para todos, muito menos energia e água potável; a rede de educação e de saúde não estava preparada para atender esta demanda.
Toda esta situação exigia, do setor público e da iniciativa privada, muita ação. Ao contrário, começou o caos urbano. O Governo do Estado, através da Companhia de Habitação Popular – Cohab, desrespeitando qualquer norma urbanística municipal determinou a construção de gigantescos conjuntos habitacionais, localizados na mais distante periferia e um deles, as Moreninhas, fora do perímetro urbano. Somente entre 1980 e 1985, o setor público estadual, construiu mais de 15.000 habitações populares, ou seja, 25% do total de habitações existentes em 1985.
O caos urbano citado deveu-se, de um lado à localização dos conjuntos habitacionais distantes do centro urbano e do outro a inexistência de infraestrutura básica e de equipamentos sociais, tais como escola, posto de saúde, posto policial etc. contribuindo para, ao invés de resolver o problema habitacional criar mais problemas para a administração municipal, aumentando investimentos em transporte urbano, pavimentação etc. e jogando a população para locais distantes do centro de emprego.
Ora, se a cidade já tinha um perímetro de 28.500 hectares suficientes para abrigar mais de quatro milhões de pessoas e na década de 1980 só tinha 300 mil, porque alterar o perímetro para implantar o maior conjunto habitacional do Estado – as Moreninhas –, com quatro mil casas? A Câmara Municipal aprovou a mudança. Esse foi um episódio de um tempo sem discussão no planejamento. As raízes dos vazios urbanos no planejamento urbano de Campo Grande estão presentes na história e na sua trajetória de desenvolvimento, apontados. As nossas heranças culturais e urbanísticas são intensas e muito presentes em todos os momentos da cidade.
Esse trabalho ajuda e construir o debate de cidades compactas, sustentáveis, adensadas, melhor distribuição dos benefícios da urbanização, dentre outros temas caros ao nosso país.
notas
1
Este trabalho apresenta uma síntese do Relatório Final do trabalho técnico-científico realizado pelo Observatório de AU da UFMS e entidades Secovi-MS e Planurb, com prefácio da professora Ermínia Maricato, que pode ser baixado no website www.observatorio.ufms.br. Colaboradores: Arquiteto e urbanista Paulo Abreu (UFMS) e Poliana Padula (Sindarq-MS); acadêmicos do Curso de Arquitetura e urbanismo da UFMS Leon Matos, Regina Scatena, Júlia Andrade, Felype Chamorro, Laura Cella, Millene Macellani e Anna Zamai; pessoal técnico do Instituto de Planejamento Urbano de Campo Grande (Planub), do Sindicato da Habitação de Mato Grosso do Sul (Secovi-MS). Relatório final com prefácio da professora Ermínia Maricato. O download do trabalho integral pode ser feito em: Observatório de Arquitetura e Urbanismo, Programa de Extensão da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Coordenação de Ângelo Marcos Vieira.
2
Sobre o tema do vazio na cidade, ver: JANEIRO, Pedro António Alexandre. {Cheios inúteis} A imagem do vazio na cidade. Artitextos, n. 8, Lisboa, CEFA/CIAUD, 2009, p. 181-193 <www.repository.utl.pt/bitstream/10400.5/1488/1/Pedro%20Janeiro.pdf>.
3
SAUER, Leandro; CAMPELO, Estevam; CAPILLE, Maria Auxiliadora Leal. O mapeamento dos índices de exclusão social em Campo Grande MS: uma nova reflexão. Campo Grande, Oeste, 2012.
4
EBNER, Iris de Almeida Rezende. Vazios urbanos: uma abordagem do ambiente construído. Orientador Marcelo de Andrade Roméro. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 1997.
5
MARICATO, Ermínia. Brasil Cidades: alternativas para crise urbana. Petrópolis, Vozes, 2001; MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis, Vozes, 2011; MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo. São Paulo, Expressão Popular, 2015.
6
BORDE, Andréa de Lacerda Pessôa. Vazios urbanos: perspectivas contemporâneas. Orientadora Denise Pinheiro Machado. Tese de doutorado. Orientadora Roberto Segre. Rio de Janeiro, FAU UFRJ, 2006.
7
PORTAS, Nuno. Do cheio ao vazio. Publicações da pós-graduação da Faculdade de Arquitectura e Urbanismo da Universidade de Brasilia, 2000. Disponível em <www.cidadeimaginaria.org/eu/Dovazioaocheio.doc>.
8
MAGALHÃES, Sérgio Ferraz. Ruptura e contiguidade, a cidade na incerteza. Orientadora Denise Pinheiro Machado. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, FAU UFRJ, 2005.
9
VILLAÇA, Flávio. As ilusões do Plano Diretor. São Paulo, Edição do autor, 2005. Disponível em <www.flaviovillaca.arq.br/pdf/ilusao_pd.pdf>.
10
Para uma visão mais histórica da questão urbana, ver: LAMAS, José Manuel Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade. Lisboa, Fundação para a Ciência e Tecnologia, 2000.
sobre o autor
Ângelo Marcos Vieira de Arruda é professor da UFMS e coordenador do Observatório de Arquitetura e Urbanismo.