Os dispositivos oficiais de proteção cultural que incidem sobre Paraty se referem ao conjunto arquitetônico da cidade e ao município. O primeiro dispositivo foi enunciado em 1945, quando, por meio do Decreto-lei Estadual n° 1.450, a cidade foi elevada a Monumento do Estado do Rio de Janeiro. Em 1966, todo o município foi consagrado com a categoria de Monumento Nacional pelo Decreto-lei n° 58.077. O órgão federal de proteção ao patrimônio cultural, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), por sua vez, já havia tombado, em 1958, o Conjunto Arquitetônico e Paisagístico da Cidade e, separadamente, o prédio da Santa Casa. Em 1974, o órgão tombou o Conjunto Arquitetônico e Paisagístico do Município de Paraty. Se, por um lado, os títulos de monumento nacional e estadual não criam obrigações legais referentes a modificações nos bens reconhecidos, por outro, o tombamento, instituído pelo Decreto-lei nº 25 de 1937, gera restrições às intervenções nesses bens, as quais estão sujeitas à fiscalização e às normatizações do Iphan.
Ao observarmos a atuação do Iphan no conjunto arquitetônico de Paraty, percebemos que, embora as normativas e os critérios internos de intervenção da instituição tenham sido modificados ao longo do tempo, as noções de autenticidade, homogeneidade e integridade estiveram constantes nessa trajetória.
Neste artigo, analisamos as medidas restritivas adotadas pelo Iphan para intervenções no Bairro Histórico de Paraty e as noções de autenticidade, homogeneidade e integridade presentes nos trabalhos iniciais do Instituto na cidade. Baseados na noção de autenticidade, os trabalhos iniciais do Instituto atribuíram significado cultural à homogeneidade do conjunto em detrimento da integridade de cada edificação.
As normas
A partir de 1947, por meio do Decreto-lei nº 51, que instituiu o Código de Obras Municipal, a área urbana erigida em monumento foi demarcada, sendo dividida em dois bairros: Histórico e Industrial. Esse Código permitia novas construções dentro do Bairro Histórico, desde que se “ajustassem” às antigas e que seu alinhamento fosse mantido ao das construções pré-existentes. Determinava também que os terrenos vagos não poderiam ser fechados por meio de gradis e que os projetos propostos para a cidade fossem aprovados pelo município ou pelo órgão federal de proteção ao patrimônio.
Foi nas décadas de 1960 e 1970, que o Iphan impulsionou suas atividades em Paraty, com o intuito de “restaurar e salvar a cidades das ruínas”. Em 1965, o arquiteto belga Frédéric de Limburg Stirum elaborou, sob encomenda da Unesco, um projeto urbanístico para a cidade, o Plano Diretor em Proveito da Proteção e do Desenvolvimento Urbanístico de Paraty. O projeto previa uma esplanada de grama entre o Bairro Histórico e outras áreas, separando a cidade a ser preservada da cidade prevista para expansão, contando ainda com “uma zona non aedificandi, compreendendo a grande avenida que leva a Parati, de 200 metros de largura e plantada de palmeiras imperiais” (1).
A implantação do Plano naquela época teria provavelmente desencadeado o desenvolvimento de uma normatização diversa da que hoje vigora no município, pois não perpetuaria o gabarito das edificações em dois pavimentos e suas coberturas em telha colonial por todo o município como ocorre atualmente. A expansão desordenada de edificações em dois pavimentos em áreas de proteção ambiental é um problema cada vez maior do município. Caso houvesse áreas destinadas a um adensamento de prédios com maior número de pavimentos, como previsto no Plano acima, teria essa situação sido contida?
Desde 1965 o Iphan vinha recorrendo à Unesco na reformulação de sua atuação, “visando a compatibilizar os interesses da preservação ao modelo de desenvolvimento então vigente no Brasil” (2). O objetivo do órgão era integrar o valor cultural ao valor econômico, superando sua visão anterior voltada para a preservação dos valores culturais pelo seu valor intrínseco. Segundo Fonseca essa articulação se deu em duas direções: considerando os bens culturais como mercadorias de potencial turístico e buscando nesses bens os indicadores culturais para um desenvolvimento apropriado (3). O inspetor da Unesco Michel Parent que esteve em Paraty, em 1966, comentou sobre a cidade (4):
“O principal interesse de Parati resulta da excepcional homogeneidade de sua arquitetura urbana, composta de cerca de 500 residências, algumas delas sobrados, outras casas térreas, cujas características são típicas da arquitetura brasileira do século XVIII: coberturas de telhas-canal com cornija muito proeminente, altas aberturas com lintéis curvos ou festonados, gelosias de madeira, paredes geralmente coloridas com contrastes quentes e realçadas pela coloração dos enquadramentos das aberturas, e balcões no primeiro andar dos sobrados” (5).
A descrição de Parent acerca das paredes “geralmente coloridas com contrastes quentes” não é mais percebida nos dias atuais nas ruas do Bairro Histórico. O conjunto foi ganhando formas cada vez mais homogêneas. Assim como nas cidades mineiras, em Paraty também foi adotado pelo Iphan o critério da cor branca para as fachadas das edificações coloniais, até para aquelas que, por meio do histórico dos imóveis, há registros de cores variadas. É o caso do imóvel situado à Rua Dona Geralda esquina com a Rua da Capela n° 11.
Em 1972 foi elaborado o Plano de Desenvolvimento Integrado e Proteção do Bairro Histórico do Município de Paraty (PDIPBH), contratado pelo Iphan e desenvolvido pela Companhia Nacional de Planejamento Integrado (CNPI) com a participação do arquiteto Frédéric de Limburg Stirum. O Plano regulamentava a ocupação de lotes vazios no interior do conjunto. Estabelecia que estes deveriam ser murados, admitindo apenas um vão de acesso ao interior, onde poderia ser construída uma nova edificação que não ultrapassasse a altura do muro. Segundo Cury (6), durante a elaboração desse plano os paratienses participaram ativamente dos trabalhos, sendo inclusive contratados pela CNPI. A população teria mantido até um diálogo com o Iphan, opinando nos critérios de intervenção nos imóveis.
Em 1974, foi tombado o Conjunto Arquitetônico e Paisagístico do Município de Paraty. O tombamento do município foi uma garantia à proteção do entorno paisagístico, no raio de 5 km, previsto quando da elevação a Monumento Nacional.
Na década de 1980 novos parâmetros urbanísticos foram aplicados no município, pautados na legislação municipal: a Lei n° 608/81, pela qual são fixadas normas para o zoneamento da área urbana e para a expansão urbana do município, ratificada pela Portaria Iphan n°10/81, na qual são estabelecidos critérios objetivos para aprovação pelo Iphan de quaisquer obras e edificações no município; a Lei n°609/81, na qual é regulado no município o parcelamento do solo para fins urbanos; a Lei nº 699/85, na qual é regulado o parcelamento do solo para fins urbanos; a Lei n° 720/86 que instituiu o Código Municipal de Posturas; e a Lei n° 706/99 que dispõe sobre o gabarito das edificações. Além da legislação municipal ratificada pelo Iphan, também foram desenvolvidos estudos técnicos sobre temas específicos necessários à gestão e à conservação do conjunto.
Nessa legislação foram sistematicamente abordados alguns critérios: altura das edificações, parcelamento, traçado urbano, obras novas (incluindo reconstruções) e a questão dos vazios urbanos.
A Portaria Iphan n° 10/1981 foi substituída pela atual Portaria n° 402/2012, que dispõe atualmente sobre os critérios de preservação e as regras para as intervenções na área do município de Paraty. Entretanto, para o Bairro Histórico, que ficou excluído da portaria vigente, permanecem em vigor os critérios definidos pelas leis municipais 608/81 e 655/83.
Autenticidade, homogeneidade e integridade
A tendência inicial dos arquitetos do Iphan na década de 1930, frente aos conjuntos tombados, foi desvalorizar a arquitetura eclética do século 19 e 20 e determinar como autêntica a manifestação arquitetônica do século 18, assumindo uma concepção de autenticidade próxima à postura da restauração estilística.
Essa postura foi criticada pela Carta de Atenas, considerada o primeiro documento político aceito em âmbito intergovernamental (7) e que marcou o início da formulação de diretrizes e recomendações internacionais relativas ao patrimônio cultural. Conforme o documento, as reconstruções integrais de edifícios de valor histórico e artístico, ressalvados casos específicos, deveriam ser preteridas a favor de procedimentos de manutenção regular e permanente que assegurassem a conservação dos edifícios. Quando a restauração fosse indispensável – pela deterioração ou destruição –, recomendava-se o respeito ao trabalho histórico e artístico do passado, sem a exclusão de estilos de períodos diversos (8).
A Carta marcou o fim do entendimento do conceito de conservação como restauração estilística, defendido por Prosper Merimée – inspetor geral dos Monumentos Históricos, órgão criado na França em 1830 – e por seu conselheiro para obras de restauração arquitetônica, Viollet-Le-Duc (9). Para ambos, o monumento era considerado um documento que ilustrava um período específico da história, de forma que as alterações sofridas ao longo do tempo deveriam ser eliminadas para devolver a ele o aspecto da época de seu maior esplendor; aspecto, muitas vezes reconstruído por analogia, ou até mesmo inventado, no intuito de se atingir um modelo ideal que poderia nunca ter existido. O arquiteto restaurador deveria incorporar o “espírito” do arquiteto medieval e projetar como ele, estabelecendo um mimetismo entre as partes novas e as originais (10).
Em Paraty, no Código de Obras Municipal de 1947 não haviam sido previstas reconstruções de casarios arruinados, portanto, a cidade era encarada como um bem acabado, uma “obra de arte”, composto por construções que seguiam uma tipologia próxima à existente, inclusive quanto ao alinhamento; ou seja, o preenchimento dos vazios deveria ser realizado com casas modernas que não destoassem das construções existentes, seguindo os preceitos da reprodução estilística e privilegiando a conservação do existente e a valorização do traçado.
Com o tombamento em 1958, a prática anterior da instituição desenvolvida nas cidades mineiras, de retorno dos monumentos a uma época áurea como documento de um período específico da história, foi incorporada à cidade. Segundo Cury, o Iphan seguia duas orientações principais: o conjunto tombado era considerado como uma “obra de arte”; havia duas categorias diferentes de edificações, as ditas “modestas”, que conformavam o casario e davam homogeneidade ao sítio, e as “monumentais”, consideradas obras de arte isoladas dentro da obra maior. Os critérios de intervenção eram descritos como:
“Para as modestas, o critério era o de analogia aos exemplares contemporâneos e de estilo assemelhado, com o cuidado especial aos elementos da fachada, de forma a fazer com que cada edificação se diluísse no conjunto do casario – conhecido como critério de reprodução estilística. Para as monumentais, o critério era o da obrigatoriedade do estilo modernista como forma de obter-se o contraste plano” (11).
Ao preservarem as edificações históricas brasileiras, esses técnicos removiam intervenções e adições de épocas posteriores às da construção original. Tal procedimento, entretanto, ia contra os preceitos da Carta de Atenas ao incorporar características muito semelhantes ao estilo internacional da restauração estilística, ao retirar adornos e ao “devolver” a edificação a um estado ideal, correspondente a algo próximo ao século 18, contradizendo a realidade de Paraty que data majoritariamente do século 19. Essa prática pode ser visualizada nas imagens expostas abaixo.
O conjunto recém-tombado em 1958 começou a se transformar com a venda dos imóveis para forasteiros na década de 1960. A adequação para novos usos, ou mesmo para o gosto dos novos frequentadores da cidade, foi uma demanda que surgiu a partir desse momento. Ainda nessa década outro documento internacional de bastante influência, a Carta de Veneza de 1964, já trazia em seus preceitos uma maior liberdade para a garantia da conservação e da manutenção de bens tombados; postura que se pode identificar nas práticas de preservação do Iphan dessa época, como a abertura para o potencial aproveitamento turístico do sítio.
A partir dos anos 1970, pelo Plano de Desenvolvimento Integrado e Proteção do Bairro Histórico do Município de Paraty, como vimos, foi regulamentada a ocupação de lotes vazios, permitindo uma nova edificação, desde que o lote fosse murado. Essa postura superava a visão anterior da reprodução estilística, admitindo uma edificação sem características coloniais dentro do conjunto, ainda que ela ficasse escondida (12).
Segundo o técnico do Iphan na época, Edgard Jacintho, teria sido sugestão do então diretor da instituição, Renato Soeiro, murar os terrenos vazios como solução para futuras ocupações dos lotes. Muitos desses terrenos tinham donos, de forma que “o patrimônio não poderia impedir que o proprietário, um dia, pretendesse reocupar o seu terreno. Porque para o Patrimônio impedir, teria que desapropriar. Então, a solução do muro [foi] uma solução intermediária” (13).
A construção de muros tinha a intenção de manter a ideia de um conjunto homogêneo sem lacunas, contudo se ignorava que se tratava de um bem composto por várias partes, incluindo seus vazios e sua dinâmica urbana anterior ao tombamento.
Uma das diretrizes encontrada na Lei municipal n° 655/83 reiterada pelo Iphan para o conjunto histórico de Paraty é o artigo 129 (14), que determina a proibição de novas edificações no Bairro Histórico, mas admite reconstruções. Essa prática foi incorporada aos trabalhos do Iphan na cidade para a definição das plantas e dos volumes dos edifícios arruinados: casas térreas ou sobrados não mais existentes foram reconstruídos com base em fotos antigas e em prospecções arqueológicas das ruínas dos lotes, muitas vezes realizadas por técnicos não especializados em arqueologia. Tais reconstruções dizem respeito tanto a imóveis que não existiam mais antes do tombamento, como aqueles que ruíram depois. As reconstruções se inserem no conjunto de maneira quase imperceptível a um olhar não especializado, pois não trazem referências ou marcos de sua reconstrução, podendo passar muitas vezes por restaurações feitas em imóveis antigos.
Teria a instituição, ao tentar estabelecer uma maneira de manter a ambiência e a homogeneidade do conjunto dos casarios, assim como ao permitir a utilização de terrenos vazios por seus proprietários, inevitavelmente, modificado as características iniciais às quais foram atribuídos valores culturais, alterando a significação cultural do bem tombado em 1958? O texto do artigo 129 da Lei de 1983 também nos leva a indagar sobre o que se quis privilegiar como valor a ser preservado no conjunto arquitetônico de Paraty: sua homogeneidade ou a integridade de cada edificação?
A primeira questão que se impõe na análise das transformações em um centro histórico é determinar se estamos tratando de um bem composto por várias partes, incluindo seus vazios e sua dinâmica urbana anterior ao tombamento, ou se percebemos o sítio como um conjunto que existe a partir da presença de certa quantidade de bens individuais. Ou seja, se o bem tem uma significância própria ou se é o resultado da soma de diversas unidades, cada uma com seu significado próprio. Esse questionamento não é tautológico como parece, pois serve muitas vezes para orientar os critérios de intervenção a serem adotados em sítios históricos, principalmente naqueles que se encontram em forte e rápida transformação por fatores exógenos.
Se analisarmos o Bem como o conjunto, sem nos atermos a cada imóvel individualmente, justificar-se-iam então as reconstruções (de imóveis arruinados e daqueles que existiram e agora são lotes vazios), para que a presença de um ou mais vazios no interior do conjunto não prejudique a homogeneidade do mesmo. Sob essa perspectiva se estaria seguindo a postura de que a reconstrução possibilitaria o restabelecimento ao conjunto de uma significação perdida, que, nesse caso, só estaria perdida se o arruinamento ocorresse após o tombamento. Porém se as reconstruções continuassem a ser feitas fora dessa ótica, logo teríamos grande parte da substância do bem reconstruída, uma vez que na época do tombamento os vazios existiam.
Além disso, se considerarmos cada edificação pertencente ao conjunto arquitetônico tombado, teríamos dificuldade em distinguir quais edificações passaram apenas por obras de conservação e manutenção e quais foram reconstruídas, uma vez que muitas delas “retornaram”, por indicação do Iphan, ao estilo colonial, com a retirada de alguns elementos ecléticos dos séculos 19 e 20.
Ainda em relação aos documentos internacionais, na Carta de Brasília (15), fundamentada pelos preceitos da Conferência de Nara (16), é abordado o tema da autenticidade relacionada ao da identidade, a qual é encarada como “mutável e dinâmica e que pode adaptar, valorizar, desvalorizar e revalorizar os aspectos formais e os conteúdos simbólicos de nossos patrimônios”. Nessa carta pondera-se que “em um mesmo país não há uma única identidade e podem existir identidades conflitantes. As identidades nacionais continuam em processo de formação, o que dificulta ainda mais o estabelecimento de critérios únicos e invariáveis para o ‘autêntico’”. A partir da Conferência de Nara, o “teste de autenticidade”, utilizado pela Unesco como condição para a inscrição de bens na Lista do Patrimônio Mundial, baseou-se em critérios mais amplos, que antes eram respaldados em quatro parâmetros (a forma, intenção ou desenho; o material; habilidade do artífice; e as características de implantação e organização de determinado sítio). Esses critérios passaram a adotar, segundo Jokilehto e Stovel, uma abordagem mais cultural “fundamentada na pluralidade de valores, priorizando elementos intangíveis, como função, tradição, técnica e espírito” (17).
A concepção da noção de autenticidade associada à abordagem cultural, que pressupõe a diversidade e pluralidade de valores, pode ficar mais explícita na ideia de Walter Benjamin de que, mesmo na reprodução mais perfeita de uma obra de arte, um elemento estará sempre ausente, o aqui e agora da obra de arte, sua existência única (18). A técnica da reprodução aparta o domínio da tradição do objeto reproduzido, na medida em que ela substitui a existência única da obra por uma existência serial. Segundo Benjamin, a aura do objeto está associada a sua originalidade, a sua unidade e a sua relação com o passado. As cópias não preservam as noções de singularidade e permanência e assumem um caráter de transitoriedade característico dos objetos “não-auráticos”. José Reginaldo Gonçalves explora essas ideias no contexto dos patrimônios culturais. Segundo o autor, os bens culturais em função de sua reprodutibilidade técnica tendem a perder sua “aura” e a desenvolver uma forma “não-aurática” de autenticidade (19). Poderíamos expandir essa ideia em relação à reprodução do pensamento serial, ou seja, à aplicação repetitiva de conceitos que moldam a interpretação de um determinado significante até que ele se torne o próprio conceito e não mais um objeto. Assim se faz a gestão do conceito e não mais do objeto em si, em sua transformação e experiência existencial.
A gestão do conjunto tombado de Paraty foi se transformando ao longo das décadas, a partir dos planos elaborados e das intervenções realizadas na arquitetura e no espaço físico. Atualmente, o conjunto é identificado por muitos como um cenário preservado ou até mesmo (re)criado. A atuação do Iphan é identificada pelos residentes na cidade, até certo ponto, como benéfica, na medida em que preservou o conjunto, ao contrário de outras cidades vizinhas, como Angra dos Reis e Mangaratiba. Porém, é muito criticada, atualmente por certa parcela da população, pelo desgaste de seu discurso e pela aplicação de regras consideradas muitas vezes contraditórias entre si (20).
O significado cultural (21) do conjunto tombado em Paraty parece atualmente estar em constante disputa entre moradores, historiadores locais e o Iphan. O arruinamento da cidade e a passagem do tempo não seriam justamente parte do significado cultural do bem, que havia sido apropriado pelas gerações de 1950 e 1960 como imagem do isolamento da cidade e como retrato do passado/presente. A discussão do significado cultural de Paraty é um dos temas que vem à tona quando se trata das intervenções realizadas no sítio tombado. Preservar o antigo em si não é preservar seu valor cultural, esse valor passa a ser relativo quando observado pela instituição normativa ou pela população. Não se pode ressignificar totalmente um bem, como ocorreu em Paraty, ao se estabelecer sua representatividade como um conjunto do século 18, sob o risco dele perder seu significado cultural e permanecer somente um “significado institucional”.
Hoje, ao se caminhar pelo conjunto arquitetônico, os olhares se perdem, enganados pela homogeneidade forçada a que foram submetidas tais construções. Porém, os mais antigos não se deixam enganar pelas cores e adornos das fachadas, até mesmo um antigo visitante de outras terras percebe as modificações: “É pra inglês ver!”, acusa o turista sobre a proliferação de esgrafitos nas fachadas, alegando ter caminhado pelas ruas trinta anos antes e se recordar de apenas um sobrado que exibia tais ornamentos (22).
Considerações finais
Buscamos assim problematizar a política de preservação para o Bairro Histórico. Indagamos sobre os objetivos que se queriam alcançar. O que se procurou preservar foi o cenário colonial construído para ser capaz de remeter o visitante ao passado ou à autenticidade dos elementos do conjunto arquitetônico? Poderíamos considerar as casas reconstruídas atualmente se encaixando na categoria estabelecida por Gonçalves de patrimônio cultural na era de sua reprodutibilidade técnica, e, portanto, “não-aurática”? As reconstruções, uma vez tendo sido realizadas, deveriam ter reforçadas as diferenças entre o que foi reconstruído e o que era remanescente da antiga vila histórica? Diferenças essas que deveriam estar perceptíveis aos olhos tanto de visitantes leigos quanto de especialistas e técnicos?
Apesar da lei do tombamento se aplicar tanto a bens tombados isolados quanto a conjuntos, a dinâmica de permanência de tais bens encontra níveis muito diferentes entre si. Ao passo que um determinado bem tombado isoladamente irá passar por transformações pontuais, por meio de restaurações ou ações de manutenção e conservação, um conjunto reflete uma série de modificações que estão ligadas à dinâmica de transformação de bairros e cidades inerente a esses espaços. De fato, os órgãos de preservação têm lidado com essas diferenças.
A preservação do conjunto arquitetônico de Paraty pelo Iphan sempre tendeu a considerar a relevância do todo, da homogeneidade dos casarios, como representante da arquitetura do século 18. Sobre isso, pensamos ser necessária uma reflexão, que considere certas questões, como, por exemplo, a preservação da volumetria na paisagem e a individualidade de cada edificação, como norteadoras em propostas de normatização. Atualmente, o que ocorre é que, com a falta de uma categorização entre as edificações, têm-se dúvidas quanto à datação de certas edificações, sobre o que seria recente ou não, levando a uma atuação que necessariamente analisa os imóveis caso a caso, entrando em conflito com uma legislação que generaliza as edificações do conjunto. A análise das transformações do conjunto arquitetônico de Paraty inclui determinar se estamos tratando de um bem composto por várias partes, incluindo seus vazios e sua dinâmica urbana anterior ao tombamento, ou se percebemos o sítio como um conjunto que existe a partir da presença de certa quantidade de bens individuais; ou seja, se o bem tem uma significância própria ou se é o resultado da soma de diversas unidades, cada uma com seu significado específico.
Preservar o antigo em si não é preservar um determinado valor cultural, pois esse valor é relativo à atribuição de significados de sujeitos diversos, em épocas diferentes. A autenticidade do conjunto, também fica posta à prova diante desses olhares distintos. A visão do conjunto como um todo homogêneo deve ser revista para que se identifiquem entre as edificações quais ainda mantêm preservadas as características que se procurou ressaltar com o tombamento, para não acabar sendo preservados os critérios de intervenção do Iphan e não as edificações em si.
As normativas e os planos de preservação da cidade de Paraty foram se alterando ao longo dos anos de cuidados do Iphan ao conjunto tombado. A normativa atual não é atualizada há mais de trinta anos, criando lacunas em alguns critérios utilizados. Continuar investindo em projetos para obtenção de mais um título ou retornar um pouco, rever, consolidar e principalmente preservar o patrimônio cultural que ainda caracteriza o Conjunto responsável pelos títulos já obtidos deve ser o objetivo presente nessa reflexão.
notas
1
LEAL, Luís Carlos. Presente não perdoa passado de Parati. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19 set. 1965. Apud Processo de tombamento de Paraty, p. 30. Arquivo Escritório Técnico II Costa Verde/ Seção Bairro Histórico.
2
FONSECA, Maria Cecília Londres. O patrimônio em processo – trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro, Editora UFRJ/Minc-Iphan, 2005, p. 142.
3
Ibidem.
4
Michel Parent, consultor da Unesco, escreveu o relatório “Protection et mise en valeur du patrimoine culturel brésilien dans le cadre du développement touristique et économique”, referente a duas visitas ao Brasil em 1966 e 1967 publicado em francês pela Unesco em 1968.
5
PARENT. Apud LEAL, Claudia F. (org.). As missões da Unesco no Brasil: Michel Parent. Rio de Janeiro, Iphan, 2009, p. 70.
6
CURY, Isabelle. A evolução urbana e fundiária de Parati do séc. XVII ate o séc. XX, em face da adequação das normas de preservação de seu patrimônio cultural. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2002.
7
JOKILEHTO, Jukka. A history of Architectural Conservation – the contribution of English, French, German and Italian though towards an international approach to the conservation of cultural property. Tese de doutorado. York, Institute of Advanced Architectural Studies, 1986.
8
SOCIEDADE DAS NAÇÕES. Carta de Atenas. Escritório Internacional dos Museus: Atenas, outubro de 1931.
9
Eugène Emmanuel Viollet-Le-Duc (1814-1879) foi um arquiteto, historiador e restaurador francês, responsável por muitas obras de restauração de igrejas góticas francesas.
10
KÜHL, Beatriz Mugayar. Arquitetura do ferro e arquitetura ferroviária em São Paulo – reflexões sobre a sua preservação. São Paulo, Ateliê Editorial; Fapesp; Secretaria da Cultura, 1998, p. 188.
11
CURY, Isabelle. Op. cit., p. 182-183.
12
A referência ao uso de muros como um dispositivo para controlar a ocupação do espaço protegido está presente nas normativas da década de 1970, que previam duas situações: em caso de remembramento permitia-se a construção de uma edícula, e em caso de lote vago, uma nova construção. Um terceiro dispositivo permitia reconstruções, em caso de haver documentação e fotografias do imóvel ruído.
13
SILVA. Apud SPHAN/PRÓ-MEMÓRIA. Depoimento de Edgard Jacintho. Rio de Janeiro: Sphan/Fundação Nacional Pró-Memória, 1988 (Sphan Memória Oral, 4).
14
Art. 129 – Será terminantemente proibida a construção de novas edificações no Bairro Histórico, seja a qual fim se destinarem e mesmo aquelas que por artifícios técnicos tentem, na cópia dos detalhes construtivos, se integrar no conjunto arquitetônico tombado.
Parágrafo 1º - Em caráter excepcional será permitida a reconstrução de imóvel demolido ou ruído, desde que por documentação hábil e desenhos arquitetônicos se possibilite a recomposição fiel da primitiva edificação [...]. Grifo nosso. PARATY. Lei n° 655, de 16 de novembro de 1983.
15
CONE SUL. Carta de Brasília - Documento regional do Cone Sul sobre autenticidade. Brasília, 1995.
16
UNESCO; ICCROM; ICOMOS. Conferência de Nara – Conferência sobre autenticidade em relação à convenção do Patrimônio Mundial. Nara/Japão, 1994.
17
JOKILEHTO; STOVEL. Apud ZÁRATE, Diana Lira; MOREIRA, Fernando Diniz. Conservação da autenticidade em centros históricos: um estudo sobre o polo alfândega no Recife. Olinda, Ceci, 2010, p. 2.
18
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª edição. São Paulo: Brasiliense, 1994.
19
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Autenticidade, memória e ideologias nacionais: o problema dos patrimônios culturais. In GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e patrimônios. Rio de Janeiro, Garamond, 2007, p. 117-138.
20
Conforme resultado de entrevistas realizadas com moradores do Bairro Histórico por PRIESTER, Mariana Freitas. Os olhares sobre o Bairro Histórico de Paraty/RJ: análise de intervenções na arquitetura civil e no espaço público. 2015. 193f. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Mestrado Profissional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, 2015.
21
A Carta de Burra traz uma série de definições conceituando os diferentes termos empregados no campo da preservação: por Significado cultural entende-se o valor estético, histórico, científico, social ou espiritual para as gerações passadas, presentes ou futuras, sendo sinônimo das expressões significado patrimonial ou valor cultural. ICOMOS. Carta de Burra. Burra/Austrália, 1999.
22
Olhar de um estrangeiro apreendido em uma das visitas técnicas realizada por Mariana Freitas Priester em Paraty para o levantamento fotográfico das fachadas, realizado entre 2013 e 2014.
sobre as autoras
Mariana Freitas Priester é arquiteta formada pela UFSC; mestre em Preservação do Patrimônio Cultural pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, PEP-MP. Chefe do Escritório Técnico de Mariana – MG.
Analucia Thompson é historiadora formada pela UFF; mestre em Antropologia Social pelo Museu Nacional da UFRJ; doutora em Museologia pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias de Lisboa. Técnica pesquisadora do Iphan e professora do Curso de Mestrado Profissional em Preservação do Patrimônio Cultural do Iphan.