“A casa colonial do meu amigo sr. Othon Bezerra de Mello é outra casa assim: tem caracter. Recorda essas nossas casas de engenho, vastas e bôas, na sua repousada brancura de cal. Faz sentir quatrocentos annos de vida pernambucana – social e economica. Toda ella irradia uma hospitalidade ao mesmo tempo christã e senhoril” (1).
De caráter. Foi assim que o sociólogo e historiador Gilberto Freyre ressaltou sua admiração pelo sobrado tipo chácara, edificado em áreas de arrabaldes da cidade do Recife, cujas feições inspiradoras admitiram ao sobrado oitocentista a integração com os novos padrões estéticos e higienistas promovidos pelo arquiteto Giácomo Palumbo, nas primeiras décadas do século 20. A avaliação parece controversa, considerando o perfil regionalista de Freyre, embora compreensível sob o ponto de vista da preservação das características essenciais da arquitetura dita colonial, predominantes no sobrado.
Propriedade de Othon Lynch Bezerra de Mello, ilustre comerciante e audaz industrial do ramo têxtil no Recife, o imóvel foi submetido a obras de reforma e ampliação, para fins de modernização estética e de higienização dos compartimentos internos, perante às prementes demandas de saneamento, vigentes com os novos códigos de posturas municipais. Além das relações compositivas e da história da arquitetura, enquanto erudição dos modelos artísticos, que eram difundidos nas escolas europeias de belas-artes, tais preocupações também estavam amparadas nas premissas contidas no Plano de Saneamento do Recife, de autoria do engenheiro Saturnino de Brito, cujas medidas relevantes previam sistemas de abastecimento d´água e de esgotamento sanitário para a cidade e, consequentemente, para as habitações (2).
O projeto arquitetônico que definiu a nova composição formal e os hábitos de ocupação do imóvel atendia ao programa de necessidades do então proprietário, mas também refletia os padrões das famílias recifenses mais abastadas da época, principalmente aquelas residentes nas áreas afastadas do centro urbano. De autoria de Giácomo Palumbo, graduado na Academia de Belas Artes da França, o partido do projeto, ao tempo em que assemelhava o sobrado aos arquétipos europeus de conforto e beleza, dizia muito sobre os valores culturais do então comerciante de tecidos, que, determinantemente, já delineava sua postura vanguardista, a se avultar tão logo deflagrasse sua atuação como industrial, o que aconteceu poucos anos depois (3).
A antiga chácara na história da arquitetura e do urbanismo
Resgatando na história, o antigo sobrado oitocentista, que ocupava terras de sítio do loteamento da Capunga Nova e características de chácaras rurais, encontrava-se edificado em localidade menos adensada da província do Recife, onde as edificações eram soltas nos lotes e próximas às beiras do Rio Capibaribe ou aos antigos caminhos de terra. Nas imediações dos sítios de José Teixeira Bastos e de Francisco de Oliveira, próximo à igreja de São José dos Manguinhos e à residência do ilustre comerciante Visconde Loyo, edificação que posteriormente se tornaria o Palácio Episcopal do Recife, o sobrado parecia, ao seu modo, agregar valor arquitetônico à tal localidade, um tanto quanto prestigiosa nos meados do século 19 (4). A característica de boa localização também se reportava à facilidade de acesso aos caminhos ou meios de transportes que uma edificação poderia dispor. E, portanto, situando-se lindeira à antiga Estrada Ponte D´Uchoa ou Estrada Manguinho, passou a propriedade a dispor, a partir de fins do século 19, do serviço da rede de transportes, que articulou o centro da cidade até a Estação da Ponte D´Uchoa, em direção à Cruz das Almas e arrabaldes mais distantes.
Era um recanto, sem dúvida, aprazível, assim como outros contemplados também a partir das barcas fluviais, as quais evidenciavam caminhos de deslocamentos urbanos através das águas. O verde da paisagem natural, mesclado com as edificações assobradadas, ora coloniais, ora às feições do classicismo imperial, foi um retrato de paisagem que chamou a atenção de viajantes europeus ou mesmo de personalidades passageiras nessas terras. Em relatos contidos nos preciosos diários de bordo, Louis Léger Vauthier, engenheiro francês de valiosas contribuições ao desenvolvimento urbano do Recife, constatou: “Essa diversidade de construções dá vida e encanto à paisagem. E tudo é branco, alegre, realçado por cores vistosas. Sobre o conjunto, irrompe a folhagem abundante das mangueiras, as laranjeiras perfumam o ar com suas flores alvas que renascem incessantemente” (5). Assim como os relatos escritos, as paisagens natural e construída também foram objeto de desfrute e fruição estética pelos afeitos às artes, igualmente classificadas em suas qualidades arquitetônicas e representadas em pinturas, gravuras e litografias da época.
No período colonial, a arquitetura civil assumia características bem definidas: ou eram urbanas ou rurais, devendo ser edificadas obedecendo aos parâmetros construtivos e arquitetônicos de padronização física e tipológica, quando estabelecidos nos códigos de posturas municipais. As casas térreas eram, geralmente, residenciais, enquanto que os sobrados urbanos poderiam assumir o uso misto, sendo o rés-do-chão, ou o andar térreo, destinado ao armazém de comércio ou ao acolhimento de criados e animais, e os pavimentos superiores voltados para a serventia residencial das famílias (6). Quando os sobrados possuíam muitos pavimentos, podia se perceber a destinação do primeiro pavimento para uso de escritórios dos comerciantes e os demais à moradia (7).
Já as chácaras, comumente edificadas nas periferias dos grandes centros, eram as preferidas para residência das famílias mais abastadas, que, no mais das vezes, detinham o imóvel comercial no centro da cidade, enquanto se utilizavam dos arrabaldes para deleite de moradia. Suas vantagens centravam-se na facilidade do abastecimento d´água, pois que eram próximas aos cursos dos rios, e no desfrute de grandes áreas livres, geralmente destinadas ao plantio dos mais diversos pomares e hortas. Naturalmente, o distanciamento físico das chácaras aos centros urbanos era tido como situação privilegiada, haja vista a superioridade das condições de salubridade nos arrabaldes, como algo buscado por esta camada social, justificada pelas boas respostas de insolação e ventilação natural dos compartimentos internos, que então abandonavam as qualidades anti-higiênicas das alcovas, cujas soluções físicas eram recorrentes no aglomerado dos grandes centros.
Assim, no contexto da arquitetura oitocentista de sobrados do tipo chácara ou solar, eis que surge o imóvel em estudo, cujas linhas compositivas resguardavam estreita relação com a arquitetura colonial e, até mesmo, com a fase inicial do gosto classicista imperial, cuja característica se limitava ao tipo robusto e horizontal, caiado de branco e solto no lote, com coberta em quatro águas, sem calha ou platibanda (8). Poucos detalhes ornamentais nas fachadas, mas simetria e regularidade em sua composição, principalmente quanto ao posicionamento e quantidade dos vãos, são algumas das correlações que se podem estabelecer entre o sobrado recifense e tais escolas artísticas.
Esse mesmo padrão construtivo assemelha-se ao relatado por Vauthier, cujas características diferiam, eminentemente, do tipo recorrente de sobrado alto e magro definido para o centro urbano e comercial do Recife:
“Os ângulos do teto se levantam à maneira chinesa e o vermelho vivo com o que se pintam os beirais contrasta com a brancura das cornijas. [...] Em vez dos seus dois longos panos estritos, os telhados começam a apresentar rincões. A essa mudança corresponde um desenvolvimento maior da fachada principal. O número sacramental de três aberturas já não é observado; estas chegam a cinco e mesmo mais, e as paredes laterais, construídas como as fachadas, rasgam-se com múltiplos vãos” (9).
A fachada principal do sobrado, em ritmada simetria, dispõe de portas nas extremidades do pavimento térreo, o que pode sugerir o antigo uso de estribarias ou cômodos domésticos, como cozinhas ou dependências de serviçais, nestes compartimentos, referindo-se aos costumes do patriarcado colonial dos séculos 18 e 19 (10). No pavimento superior, edificado com piso em tábua corrida, a existência de compartimentos dimensionados para as salas (de estar e jantar), bem como de quartos, então arejados, configura os limites de usufruto físico reservados exclusivamente para as famílias e suas visitas sociais, como era de costume.
Do ponto de vista urbanístico, importa ressaltar o primeiro registro de existência dessa edificação: meados do século 19, comprovado em base cartográfica denominada “Planta das cidades do Recife, Olinda e seus arrabaldes”, pertencente à coleção D. Thereza Christina Maria. No mapa, verifica-se o adensamento construtivo urbano concentrado nas localidades do porto comercial e dos bairros de Santo Antônio e de São José, e com uma certa ocupação espraiada para o bairro da Boa Vista. De caráter mais rarefeito, é possível perceber construções isoladas nos arrabaldes, que diziam respeito às edificações dos antigos engenhos ou sítios, como se observa nas regiões dos futuros bairros da Madalena, Capunga, Graças, Apipucos, Monteiro, entre outras localidades, articuladas, a partir de fins do século 19, pelos antigos caminhos de ferro à teia comercial do Porto.
Nessa base cartográfica, a delimitação dos perímetros dos terrenos não está representada, não sendo possível então a precisão quanto à extensão da propriedade nesse período da história. Apenas os traçados dos caminhos e travessas, a delimitação de algumas quadras previstas em projeto e as áreas alagadas é que se podem extrair com mais clareza do documento, e mesmo o Rio Capibaribe.
Posteriormente, no início do século 20, quando as repartições municipais passaram a detalhar mais precisamente os planos de urbanização para o crescimento da cidade em direção ao subúrbio, é possível verificar a representação das quadras, dos lotes e a localização dos imóveis no interior dos terrenos. O mapa base de Douglas Fox, por exemplo, ilustra essa questão, em que o perímetro do lote que compreendia o sobrado apresentava confrontantes bem distintos dos atuais: a Rua das Graças e a própria igreja nela existente eram elementos dos limites laterais, enquanto que os limites posteriores faziam contiguidade com os fundos dos lotes das Ruas Pernambucanas.
Nesse período, já é possível observar, além do imóvel da residência principal, a existência de uma edificação voltada para a dependência de serviços, em disposição longilínea e contígua ao limite lateral direito do lote – configuração que remete ao rearranjo sócio-espacial desse tipo de residência, demonstrado pela postura de distanciamento ou separação física desse uso para com o sobrado patriarcal. Ou seja, tudo indica que nem os serviços nem os animais estavam mais alojados em compartimentos pertencentes aos limites do sobrado, pelo menos a partir do século 20. Sobre essa transformação nos costumes, cujos reflexos passaram a ser percebidos no modo de usar os sobrados do tipo chácara, retomam-se os registros de Vauthier:
“O rés-do-chão, sempre elevado de alguns pés acima do solo, não é mais desdenhado. A sala de jantar e o salão são geralmente instalados ali. O andar superior, pois raramente existe mais de um andar, é reservado às intimidades da família. Enfim, tudo o que se relaciona com o serviço doméstico sofre uma transformação. A estribaria se afasta da casa; a cozinha abandona o sótão e se instala em um apêndice que é um prolongamento da casa ou mesmo em uma pequena choupana construída nos fundos e inteiramente separada, não restando sob o teto do amo senão algum negro de confiança e as mulheres postas especialmente ao serviço da dona de casa e de suas filhas” (11).
Do modo como exposto, admite-se que as novas relações familiares, sociais e domésticas se refletiram diretamente na organização espacial dos sobrados, e adentra o século 20 ainda com transformações nos usos e costumes, as quais vão demandar alterações que ultrapassam os limites da escala do edifício e se espraiam para o meio ambiente urbano, como será demonstrado.
A intervenção de Giácomo Palumbo
O polêmico projeto de Giácomo Palumbo, aos olhos de alguns contemporâneos, objetivou apropriar o imóvel às exigências higienistas e de saneamento, ao mesmo tempo em que espelhava o repertório estético difundido nas obras de remodelação do bairro portuário do Recife. A análise das plantas do imóvel permite constatar o esquema de circulação vertical proposto, cujo volume da escada foi destacado no quadrante central do imóvel, com disposição de forma convidativa através do acesso principal do imóvel. Esquema este que também se refletia na coberta, alterada em sua volumetria: a linha de cumeeira foi extinta para dar lugar à solução de iluminação zenital através de claraboia, em projeção coincidente com o desenho da escada, tendo permanecido com as quatro águas e o beiral aparente em toda as fachadas da edificação.
Na planta do térreo, as reformas da área interna conservaram sua disposição espacial primitiva, mantendo o traçado regulador e estabelecendo algumas compartimentações necessárias à otimização dos espaços, à sociabilidade e à instalação de banheiros e da infraestrutura da cozinha, ambientes que passam a integrar o programa de necessidades do sobrado e a dispor das soluções de sanitarismo. Terraços nas fachadas principal e posterior contribuíram para o aumento da área construída e, principalmente, para alterações de ordem estética e compositiva do imóvel, conferindo uma nova roupagem às suas feições coloniais primitivas. A distribuição dos cômodos, a partir da escada central, reservou ao acesso principal a localização da sala de estar e, no mesmo eixo transversal, a disposição da sala de jantar voltada para a fachada posterior. Nas extremidades laterais foram situados demais ambientes de convívio social, com destaque para a introdução de uma sala de música, além dos ambientes necessários de banheiro, despensa e cozinha.
O pavimento superior também manteve a lógica de distribuição espacial primitiva, embora com novos usos e repetindo o esquema de circulação vertical proposto com a escada. A criação de corredores de circulação laterais à escada para acesso aos cômodos e a compartimentação de alguns ambientes foram as principais alterações desse piso, que então recebeu ladrilhos de composição diversa para cada cômodo: sala de escritório principal, quarto das filhas, quarto dos filhos, suíte principal, banheiro das filhas (este compartilhado com a suíte principal), banheiro dos filhos e terraço frontal, como extensão da área de convívio familiar e apreciação da paisagem. Há que ressaltar, ainda, a presença de um oratório, ocupando um modesto compartimento, cuja função refletia a prática religiosa, que era característica da família. Segundo Gilberto Freyre: “se às casas de engenho não faltava capella, não faltava às das cidades, oratório, onde congregavam a parentela e os pretos da casa para as rezas do terço e as cantorias do mês de Maio” (12).
O tratamento conferido à disposição da escada requalificou o espaço arquitetônico interno, principalmente valorizado com a abertura de arcadas vazadas semelhantes às introduzidas no terraço principal, como traço característico do arquiteto. Embora não tenha sido possível a identificação precisa da localização da escada primitiva até então, entende-se que a solução do arquiteto Palumbo, que permanece edificada até o tempo presente, dispõe de uma lógica de circulação vertical não tão comum aos tipos arquitetônicos de chácaras daquele porte.
Pela fachada principal, percebe-se a nova feição que adquiriu o imóvel, embora conservando o volume principal remanescente do século 19 em seus aspectos predominantes. A proposta de volumetria do terraço, com as colunatas centrais e arcadas laterais à semelhança do gosto neocolonial, é algo que se destaca no conjunto, quase que camuflando a imagem primitiva do sobrado. A platibanda, que funciona como parapeito para a varanda contínua no andar superior, é robusta e ornamentada, com cornija, volutas e folhagens, elementos também associados às linhas do neocolonial. Os antigos vãos das extremidades do pavimento superior foram vedados, sendo, em seu lugar, embelezados com candeeiros em ferro fundido. Os vãos mantidos, tanto no térreo como no pavimento superior, receberam cercaduras mais rebuscadas, salientando detalhes estéticos que, embora respeitem a arquitetura oitocentista, evocam, embora mais comedidamente, o Recife moderno, como uma feição buscada nas várias intervenções urbanísticas de início do século 20. É possível ainda perceber nas pontas das cobertas o uso do elemento como asa de andorinha, remetendo a rebuscamentos construtivos de outrora. Tais evidências, além de se manterem conservadas quando da intervenção física, ou seja, há quase cem anos, ainda podem ser observadas na representação gráfica do projeto, desenvolvido pelo próprio Palumbo e valorizado em técnica de aquarela. A fiel correspondência entre projeto e execução, salvo a proposta de aposição de um coreto, em um dos lados do imóvel, que nunca chegou a ser, de fato, construído, denota o rigor com que o mesmo foi conduzido.
As alterações de ordem de fachada também se deram nos panos laterais, com ampliação volumétrica e modificação da simetria dominante, principalmente com o novo desenho dos vãos em que prevalecem as vergas em semicírculo e a introdução de vitrais em algumas das esquadrias – traços bem característicos de Palumbo.
Apesar do atual estado de conservação do imóvel apresentar a combinação cromática com a predominância do branco nas paredes e detalhes ornamentais na cor ocre, sabe-se que as feições adquiridas com a reforma de Palumbo mantiveram a predominância do branco nas paredes embora com a tonalidade cinza nas cercaduras, cornijas e colunas das fachadas principal e posterior, o que conferia mais sobriedade ao conjunto edificado.
Dos detalhes internos, há que se reconhecer as qualidades artísticas e arquitetônicas resultantes das soluções do projeto. Desde o ladrilho do piso, com estampas e combinações diversas para cada ambiente, os vitrais das paredes, principalmente posicionados no corpo da escada principal e banheiros, e a própria escada monumental, dentre outros detalhes, pode-se aferir o esmero e o diferencial da composição projetual.
A disposição do mobiliário à época parecia criar um recanto singular em cada ambiente. As salas eram ricamente decoradas, desde o piso em ladrilho, até os lustres e os inúmeros quadros fixados nas paredes, em grande parte retratando paisagens locais e edificações culturais, tudo parecia ser delicadamente arrumado. A sala de música, convidativa às reuniões sociais e familiares, tinha no piano a figura principal, ladeado por mobiliário dourado e pela estátua da deusa da música, significando o apreço por costumes requintados.
Ao longo do tempo e pelas demandas familiares, o imóvel recebeu acréscimos de área construída no pavimento superior: ampliação de um dos quartos, que se aproveitou da estrutura acrescida da cozinha, e a criação de um escritório como uma varanda na fachada posterior, seguindo os mesmos detalhes em colunata Palumbiana. De ordem estrutural, registra-se a substituição parcial do piso do pavimento superior por laje, alteração executada em função de uma maior estabilidade, perante as trepidações ocasionadas pelo aumento do tráfego da av. Rui Barbosa. A análise comparativa do imóvel permite a constatação de tais alterações de projeto.
Transformações também foram verificadas na escala urbanística: o desmembramento de terras para abertura de artéria viária, que foi o traçado da Rua Cardeal Arcoverde, embora permanecendo o sobrado solto no lote, assim como o apoio das dependências de serviços e seus compartimentos.
Com tal delimitação física, a área livre do imóvel recebeu tratamento paisagístico que objetivou a criação de recantos, lago e jardins pitorescos, para o embelezamento da propriedade e lazer da família. Como expressão de requinte, registra-se a disposição de várias estátuas de deuses gregos, sobre bases assemelhadas aos antigos templos, no espaço livre do jardim – elementos de significado relevante na representação cultural dos gostos e costumes sociais, segundo entendimentos de Gilberto Freyre: “Comprehendido os edifícios e as estátuas, nada mais fácil que compreender os homens, no seu gosto, na sua esthetica, na sua moral, nos seus hábitos sociaes” (13). Tamanho foi o cuidado conferido ao jardim do imóvel que proporcionou sua serventia como palco para a gravação de um filme sobre os milagres da Vida de Santa Teresinha, produzido pela Vera Cruz Filmes, uma das primeiras empresas cinematográficas pernambucanas ainda na década de 1920.
Apesar da configuração urbana do terreno ainda haver resguardado, em certa medida, as relações espaciais de outrora, nos últimos anos a propriedade sofreu novo desmembramento, com a negociação de parte da área livre posterior para construção de edificações residenciais. Essa recente intervenção urbana permanece até o tempo presente, que, embora perdendo parte da área livre do terreno, preservou o antigo sobrado e suas composições estéticas, higienistas e de programas de necessidades adquiridas ao longo de sua trajetória, bem como seu caráter singular na paisagem. Nesses moldes, verifica-se a repetição de modelos de intervenções urbanísticas que, ao tempo em que mantém a arquitetura histórica preservada, contribui por alterar a relação de escala urbana entre os imóveis relevantes e o contexto da cidade, transformando significativamente a paisagem.
Considerações finais
Do ponto de vista cultural, cabe contextualizar a ação da reforma específica do imóvel no cenário do Recife da década de 1920: era o tempo em que as clamadas remodelações urbanísticas do centro portuário, pela vocação comercial e de localização geográfica da costa em direção ao continente europeu, levaram à consolidação de uma nova linguagem estética. Reformas que resultaram no arrasamento de boa parte da arquitetura civil primitiva, em detrimento dos modelos artísticos parisienses, estes orquestrados sob a administração do barão Haussmann e repetidos na capital republicana, à época, o Rio de Janeiro, por exemplo. O Recife moderno era então o Recife das edificações ornamentadas, dos projetos de ajardinamento e das grandes vias que espelhavam os boulevards franceses. Também de novos padrões construtivos de cujos arranjos se aproximavam ao gosto neocolonial, já amplamente difundido no Brasil. A evidência de tais princípios formais era a conjuntura favorável à aceitação de novas roupagens às antigas edificações coloniais.
As posturas de modernização estética, ao tempo em que evocaram manifestações contrárias, principalmente nas vozes dos regionalistas ou formadores de opinião, também representavam o fascínio da semelhança aos padrões europeus e de modernidade. Era a chamada “arquitetura de confeitaria”, tão combatida por Gilberto Freyre, o mesmo que, paradoxalmente, reconhecia caráter no imóvel específico reformado, assim como mencionado no início deste trabalho. Do lado dos que valorizavam a intervenção de Giácomo Palumbo, também se posicionava o jornalista Anibal Fernandes, cujo depoimento aponta importantes indícios históricos para a compreensão do controverso contexto:
“Numa terra em que se commettem diariamente os mais horríveis attentados à belleza, ao bom gosto e à própria dignidade da vida, em matéria de architectura, numa terra em que o architecto não existe, porque só consegue vencer o mestre de obra presumido e inconsciente, v. teve essa grande audácia, verdadeiramente inédita: mandar construir a sua habitação pelo único architecto que aqui existe. [...] Isso que v. está fazendo, meu amigo, e constitue neste pacato meio provinciano, um verdadeiro escândalo, fazem-no com applauso de todas as pessoas de gosto” (14).
Da análise do depoimento, e considerando a base iconográfica, bem como o cenário das transformações urbanísticas e arquitetônicas do Recife nas primeiras décadas do século 20, infere-se que, possivelmente, a filosofia da modernidade traduzida nos modelos ornamentados influenciou, intencionalmente, a contratação do arquiteto Palumbo como uma maneira de legitimar a ação e, até mesmo, projetar o proprietário na vanguarda do seu tempo. Muito possivelmente, a qualificação do arquiteto, amparada na escola artística francesa, tenha sido um aspecto fundamental na boa aceitação das soluções do projeto, em contraponto às demais intervenções levadas a efeito no contexto da cidade, que não detinham entre seus projetistas o caráter específico de sensibilização às artes plásticas. Eram os ecos do Recife moderno, tão preconizados nas reformas de desenho urbano da região portuária e na importação de gostos e costumes de além-mar, então traduzidos nos traços neocoloniais de Giácomo Palumbo. Nesse debate, entender em que medida a intervenção produzida corroborou na agregação de valores artísticos ou culturais ao imóvel talvez não venha a ser uma questão tão necessária no momento, nem tampouco consensual; mas situar a ação no contexto dos acontecimentos, em busca da compreensão das soluções arquitetônicas para um dado problema de projeto, circunstanciado em um determinado período da história da arquitetura no Recife, parece suscitar melhores contribuições ao conhecimento da obra.
Sob o ponto de vista cultural, a casa assobradada sempre teve a utilização relacionada ao uso residencial do proprietário e seus descendentes, sendo o principal núcleo de reunião familiar, bem como dos seus importantes eventos festivos. Recorrentemente era utilizada como cenário para as fotografias de família, principalmente as de caráter externo. Enquanto relevância social, pode-se mencionar a visita de personalidades ilustres ao imóvel, como foi o caso dos irmãos Kennedy, nos anos de 1960, em cuja ocasião receberam a bênção do Bispado, e, eventualmente, o jornalista Assis Chateaubriand, e demais representantes do campo cultural, intelectual, artístico e social da cidade (15).
notas
1
FREYRE, Gilberto. Artigo de capa no Diário de Pernambuco, datado de 30 de setembro de 1923. Ed. 226, disponível em <http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital> acesso em: fevereiro/2016.
2
DINIZ, Fernando. Saturnino de Brito e o Plano de Saneamento do Recife (1909-1915). In Um Recife Saturnino: Arquitetura, Urbanismo e Saneamento. Recife, Néctar, 2010.
3
Entre alguns dos projetos desenvolvidos por Palumbo, no Recife, menciona-se o Hospital do Centenário (situado na atual av. Rosa e Silva), o Asilo Bom Pastor, na Madalena, a Faculdade de Medicina, no Derby, todos datados dos anos de 1920. Também teve atuação extensiva às decorações de clubes e teatros nos eventos sociais e festivos da cidade, além de ter seu nome associado à autoria do projeto do Palácio da Justiça, porém com modificações.
4
Existe a hipótese de que o imóvel tenha pertencido a Luiz Duprat, à época, sócio do Visconde Loyo, embora sem comprovações documentais.
5
VAUTHIER, Louis. Casas de residência no Brasil. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 07, Rio de Janeiro, 1943, p. 181.
6
Para maior detalhamento sobre o assunto, consultar Freyre, Gilberto em “Sobrados e Mucambos”.
7
JUREMA, Aderbal. O Sobrado na Paisagem Recifense. Recife, UFPE, 1971.
8
SOUSA, Alberto. A variante portuguesa do classicismo imperial brasileiro. João Pessoa:, Editora Universitária UFPB, 2007.
9
VAUTHIER, Louis. Op. cit., p. 180.
10
A análise da disposição dos cômodos na planta-baixa do térreo também pode subsidiar tal conjectura, embora sua efetiva constatação dependa de métodos complementares de análise, a exemplo das prospecções arqueológicas, embora estas não estejam, até o presente momento, no escopo das intenções.
11
VAUTHIER, Louis. Op. cit., p. 183-184
12
FREYRE, Gilberto. Vida social no Nordeste: aspectos de um século de transição. In Livro do Nordeste. Edição Comemorativa do 1º Centenário do Diário de Pernambuco, 1925.
13
Gilberto Freyre, em artigo de capa no Diário de Pernambuco, datado de 30/09/1923. Ed. 226, disponível em <http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital> acesso em: fevereiro/2016.
14
Secção “De um e de outros” do Diário de Pernambuco, publicado em 30/09/1922, disponível em <http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital> acesso em: fevereiro/2016.
15
Em tempo, o imóvel em apreço nesse artigo será sede o evento Casa Cor 2016, no Recife-PE, comemorando trinta anos de exposições no Brasil.
sobre as autora
Juliana Cunha Barreto é arquiteta e urbanista.