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architexts ISSN 1809-6298


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BRITTO, Alfredo. Por uma arquitetura contemporânea enraizada. A arquitetura popular nas trajetórias de Fernando Távora (Portugal) e Lúcio Costa (Brasil). Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 207.01, Vitruvius, ago. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6661>.

sA partir de meio século atrás, nos meados doa anos sessenta do século passado, começa a se espraiar pelo mundo ocidental uma insatisfação com os resultados produzidos pela arquitetura moderna. Foram apontados, principalmente, conflitos gerados pela falta de integração com ambiente urbano, a exigir mudanças conceituais que favorecessem uma indispensável integração arquitetura/ cidade. Exigiam-se, também, um olhar mais consistente para com os condicionantes e as consequências sociais. E acusavam as edificações modernistas de sofrerem de uma homogenia plástica, denominada de International Style, acusada de lhes retirar a indispensável criatividade.

Ao longo desses cinquenta anos foram surgindo centenas de ensaios, críticas e estudos e projetos propondo novas fontes de busca de resposta ao “que fazer com a arquitetura moderna”. Destacam-se nesse quadro, inicialmente, uma tentativa de revisão do modernismo que mais tarde ficou sendo cunhada como Regionalismo Crítico, e uma radical negação de caráter historicista conhecida com pós-modernismo. Questões relacionadas com o lugar, a história, as raízes, a identidade nacional, a tradição, a participação popular, a disponibilidade tecnológica do local foram assumindo papéis preponderantes nas contestações e projetos do final do século 20 e nessas primeiras décadas do século 21. Os conflitos e debates foram se aprofundando e se estendendo para fora dos limites ocidentais com incorporação de territórios árabes e asiáticos, com destaque para China, Cingapura e Japão.

Países de economia periférica como Brasil e Portugal retardaram-se em sentir e a ingressar na discussão dessa crise que permanece até o presente.

Busca-se com essa comunicação uma compreensão da crise atual e qual o papel e contribuição da arquitetura popular para o futuro de nossos dois países.

Constantes de sensibilidade

Ao longo dos três séculos de colonização e ainda na primeira metade do século 19 do período imperial, a relação entre Brasil e Portugal foi estabelecendo um conjunto de identidades comportamentais fortemente consolidadas nas mais diferentes manifestações culturais populares e eruditas.

Nos três primeiros séculos de história brasileira na condição de colônia (16, 17, 18) é explícita a intensidade dessa troca e a absorção em linha direta pelos brasileiros das diretrizes trazidas pelo colonizador. Além das mais diversas contribuições de indígenas, africanos, imigrantes europeus e asiáticos, foi Portugal quem imprimiu presença marcante em todos os aspectos da vida brasileira.

A formação das cidades e a técnica construtiva aplicada as edificações traduziam a sabedoria e regras trazidas pelos mestres colonizadores.

Um dos mais proeminentes pensadores da arquitetura no Brasil no século 20, o professor Paulo Ferreira Santos apresentou ao 1º Colóquio do Comitê Nacional de História da Arte, realizado no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo nos dias 29 e 30 de agosto de 1975, uma comunicação (chamada na ocasião de tese) com o título Constantes de sensibilidade do brasileiro na arquitetura (paralelos com as do português).

O recorte temporal da comunicação chega até 1930 e nela estão abordadas com grande perspicácia três questões – o popular, a tradição e a identidade nacional.

Arquitetura popular, identidade nacional e raízes

Convém observar o uso no Brasil do vocábulo popular aplicado às manifestações artísticas em geral. Comumente, não se refere à produção “da arte do povo” ou “ao gosto do povo” como se sugere de imediato, mas sim às manifestações criativas dos estratos mais pobres da população, numa identificação limitada e incorreta de povo com pobre. Quando abordada em diferentes disciplinas como arqueologia, etnografia, geografia nem sempre acontece. No campo da arquitetura, no entanto, é de domínio comum a aplicação da expressão “arquitetura popular” com referência a construções, especialmente abrigos, para a população mais carente expressos nas favelas, conjuntos de palafitas e mocambos. Onde predomina a utilização e aplicação espontânea, por vezes sábia, de materiais locais, economia de meios, tecnologias transmitidas por gerações, e relacionamento integrado ao meio ambiente.

Donde decorre, por preconceitos de origem econômica e social, o equívoco em se tratar a arquitetura popular em contraposição à erudita. Os projetos e construções para atender as faixas de pobreza ou camadas de menor poder aquisitivo recorrem a expressão “habitação popular”, em contraposição ao uso de “residência e casa” para os segmentos mais abastados da sociedade.

A produção edificada do passado incluindo a contribuição dos grupos imigrantes – espanhóis, italianos, japoneses, libaneses, poloneses, passou a ser tratada como questões de folclore, tradição e patrimônio.

Os estudos e investigações sobre arquitetura popular e enraizada se intensificaram a partir da publicação em 1964 de Architecture without architects, do arquiteto norte-americano Bernard Rudofsky. A exposição baseada no livro percorreu o mundo. Alguns receberam o livro-exposição como exibição de produtos exóticos e curiosos. Mas boa parte de arquitetos e críticos perceberam a sua evidente intenção de alimentar um crescente descontentamento com a não – concretização de algumas “promessas” da arquitetura moderna. Um convite de revisão do receituário modernista dando especial atenção aos valores intrínsecos na arquitetura enraizada contida naquela mostra. Valores inerentes a cultura copular – simplicidade, racionalidade, formas e estruturas lógicas, que caracterizam a relação do edifício com o território e com o Homem. Num processo de produção espontânea a arquitetura popular revela profunda sabedoria, transmitida por gerações, na adequação de recursos disponíveis aos condicionantes locais, quase sempre nascidos de necessidades práticas (cultivo, criação de animais, proteção aos agentes climáticos).

A identidade com os valores permanentes da Nação gera na população um sentimento de pertencimento com seu território. Ao longo do tempo vai germinando as bases para os movimentos nacionalistas. No Brasil, a partir da segunda metade do século 20, eles se configuram através da palavra de Afonso Celso, José de Alencar, Machado de Assis, Manuel Bonfim, Olavo Bilac e muitos outros. Correntes se dividiram na compreensão e adoção do nacionalismo. Algumas mais estremadas chegaram a absorver princípios e a formar movimentos fascistas. No campo da arquitetura se desenvolve nas décadas de 10 e 20 do século passado o movimento neocolonial.

A revista Fon-Fon, no Rio de Janeiro, em edição de 1921, procura definir as constantes tradicionais entre os brasileiros:

“Desenha-se agora na nossa vida artística em geral um forte movimento tradicionalista, palpitante de aspirações nacionais. Cansados de copiar o que fazem os estrangeiros, chegamos à conclusão que é necessário fazer qualquer coisa de acordo com a história, a raça, a alma da nação, em todas as nossas manifestações artísticas. Daí o movimento a cuja frente se pôs José Mariano Filho para restabelecer, pondo-os de acordo com o progresso, as valhas características da arquitetura colonial adaptada aos ares do Brasil, por aqueles a quem devemos a força da nossa coesão nacional e o profundo sentimento da nossa personalidade como povo” (1).

Paul Ricoer explicita:

“por um lado, uma nação precisa enraizar-se no solo de seu passado, forjar um espírito nacional e propalar essa reivindicação espiritual e cultural em relação à personalidade colonialista. Mas visando participar da civilização moderna, torna-se necessário ao mesmo tempo integrar a racionalidade científica, técnica e política, algo que frequentemente exige o abandono puro e simples de todo um passado cultural. É um fato: nem todas as culturas são capazes de suportar e absorver o choque da civilização moderna. Este é o paradoxo: como torna-se moderno e voltar-se às raízes; como reviver uma civilização antiga e adormecida e participar da civilização universal?” (2).

Lúcio Costa

A busca da compreensão das origens do fenômeno arquitetônico brasileiro, já havia mobilizado o ainda formando em arquitetura, Lúcio Costa, a abordar a questão popular e a arquitetura do passado. Com apenas 20 anos, ele revela-se profundamente marcado pela “descoberta” da arquitetura da cidade de Diamantina, no interior do estado de Minas Gerais, resultado de viagem no ano de 1922, patrocinada pela Sociedade Brasileira de Belas Artes pelo interior daquele estado, incluindo as cidades de Serro e Sabará, com o objetivo de investigar a arquitetura produzida nas cidades do ciclo do ouro no país. Lúcio Costa se encontra com a realidade da arquitetura brasileira do passado, em sua expressão mais profunda e popular; de volta, dá o seguinte testemunho:

“Lá chegando, caí em cheio no passado no seu sentido mais despojado, mais puro, um passado de verdade, que eu ignorava, um passado que era novo em folha para mim. Foi uma revelação: casas, igrejas, pousada dos tropeiros, era tudo de pau-a-pique, ou seja, fortes arcabouços de madeira – esteios, baldrames, frechais – enquadrando paredes de trama barreada, a chamada taipa de mão, ou de sebe, ao contrário de São Paulo, onde a taipa de pilão imperava” (3).

O impacto da visita abalou o jovem arquiteto em suas convicções de aproximação como movimento Neocolonial, uma tentativa de combate ao Ecletismo vigente desde o final do século 19. Mas que só respondia parcialmente a uma das duas principais questões da intelectualidade brasileira à época – a afirmação de uma identidade cultural nacional, mas não atendia à segunda exigência – a integração dessa cultura à modernidade internacional.

Lúcio Costa permaneceu até 1929 como o mais talentoso protagonista desse movimento, quando então rompe e o rejeita, declarando ser indispensável o reconhecimento dos valores da produção popular e do passado, sim, mas entendidos como raízes para a produção de uma arquitetura contemporânea coerente com os novos tempos

Diamantina MG, aquarela de Lucio Costa, 1922 [Registro de uma vivência]

Quinze anos depois, em 1937, do despertar frente àquela realidade simples e pungente de Diamantina, de ter vivido o episódio traumático da direção da Escola Nacional de Belas Artes e liderado a equipe responsável pelo projeto seminal do modernismo – o edifício MEC (atual Palácio Capanema), Lúcio Costa publica o artigo “Documentação necessária”, onde aprofunda sua reflexão sobre os valores essenciais da arquitetura e do espaço construído, em busca de um cainho próprio brasileiro, para a produção arquitetônica no país. Projetos que embebidos na sabedoria da arquitetura popular, tal qual revelada pelo conjunto de Diamantina, se articulassem como os ensinamentos vindos dos arquitetos contemporâneos da Centro-Europa e norte-América e apontassem os caminhos de uma arquitetura bela e adequada às expectativas e necessidades do brasileiro nos novos tempos.

Voltando-se para o período do Brasil como colônia de Portugal, Lúcio Costa, nesse artigo, afirma:

“Ora, a arquitetura popular apresenta em Portugal, a nosso ver, interesse maior que a erudita – servindo-nos da expressão usada, na fata de outra, por Mário de Andrade, para distinguir da arte do povo a “sabida”. É nas suas aldeias, no aspecto virial das suas construções rurais e um tempo rudes e acolhedoras, que as qualidades da raça se mostram melhor. Sem o ar afetado e, por vezes, pedante de quando se apura, aí, à vontade, ela se desenvolve naturalmente, adivinhando-se na justeza das proporções e na ausência de “make-up” uma saúde plástica perfeita, - se é que podemos dizer assim” (4).

Mais adiante, acentua:

“Tais características, transferidas na pessoa dos antigos mestres e pedreiros “incultos” para a nossa terra, longe de significarem um mau começo, conferiram desde logo, pelo contrário, à arquitetura portuguesa na colônia, esse ar despretensioso e puro que ela soube manter, apesar das vicissitudes por que passou, até meados do século XIX” (5).

O professor Nuno Ramos, da Universidade do Porto, afirmou, certa vez, que esse artigo “Documentação necessária” foi fonte de inspiração para a organização do Inquérito à arquitectura popular em Portugal, realizado em 1957.

Lúcio Costa aprofunda sua reflexão sobre os valores essenciais da arquitetura e do espaço construído, em busca de um caminho próprio brasileiro, para a produção arquitetônica no país. Projetos que – embebidos na sabedoria da arquitetura popular, tal qual revelada pelo conjunto de Diamantina – se articulassem com os ensinamentos vindos dos arquitetos contemporâneos da centro-Europa e norte-América e apontassem os caminhos de uma arquitetura bela e adequada às expectativas e necessidades do brasileiro nos novos tempos.

Vila Monlevade, vista geral do conjunto, arquiteto Lúcio Costa, 1934 [Registro de uma vivência]

A experimentação desses conceitos se dará em Monlevade MG e no hotel de Friburgo RJ. No projeto de Monlevade, de 1934, solicitado, mas não executado pela Companhia Siderúrgica Belgo-Mineira. Há uma magistral fusão de método de construir tradicional e popular com inovação modernista, assim descrita em sua exposição do projeto:

“Com efeito, no caso em apreço, o emprego dos pilotis se encomenda, ou melhor, se impõe, por vários motivos:

a) dispensa para implantação da obra, movimentos de terra – seja qual for a aclividade local;

b) reduz de 90% a abertura de cavas e respectivas fundações;

c) permite o emprego acima da laje – livre, portanto, de qualquer umidade – de sistemas construtivos leves, econômicos e independentes da subestrutura, como, por exemplo – sem nenhum dos inconvenientes que sempre o condenaram – aquele que todo o Brasil rural conhece: o barro armado (devidamente aperfeiçoado quanto à nitidez no acabamento, graças ao emprego de madeira serrada, além da indispensável caiação); uma das particularidades mais interessantes do nosso anteprojeto é, precisamente, essa de tornar possível – graças ao emprego da técnica moderna – o aproveitamento desse primitivo processo de construir, quiçá dos mais antigos, pois já era comum do Baixo Egito, e que tem, ainda, a vantagem de simplificar extraordinariamente a armação da cobertura, aliviada pelos pés-direitos da própria estrutura das paredes internas” (6).

Park Hotel, Nova Friburgo, arquiteto Lúcio Costa, 1940 [Registro de uma vivência]

O Park Hotel de Friburgo, originariamente uma pousada de diminutas dimensões, na cidade serrana do Rio de Janeiro, de 1940, destinava-se a um empreendimento imobiliário. A solicitação era para ser um abrigo temporário, mas sua beleza e significados para a arquitetura brasileira tornaram-se um ícone registrado no patrimônio moderno do país. De concepção claramente modernista apoia-se em tecnologia e materiais locais: pedra, troncos de eucalipto, e produtos cerâmicos (telhas, cobogós) de olaria vizinha ao terreno. Uma concretização de suas propostas para uma arquitetura enraizada no Brasil.

Bloquinhos de Lúcio Costa Imagem divulgação
Imgem divulgação [Wikipedia Commons]

Em busca de encontrar as raízes da arquitetura brasileira na matriz, Lúcio Costa empreende duas viagens: a primeira de norte a sul de Portugal em 1948, e a segunda do MInho ao Algarve em 1952. É o primeiro contato ao vivo coma a arquitetura popular portuguesa com o firme propósito de se deparar com a verdadeira fonte, mas a partir do olhar brasileiro. E esse olhar, essa busca, foram magistralmente registrados em cinco bloquinhos, recentemente descobertos, exibidos e reunidos em livro...

Croquis de Lucio Costa
Imagem divulgação [Registro de uma vivência]

Ao encaminhar ao Sphan o relatório da primeira viagem em 1948, Costa faz uma introdução com a seguinte abertura:

“O objetivo principal da excursão através das províncias portuguesas era o procurar estabelecer um sistema fundamental onde fosse possível apreender os vínculos naturais de filiação das fases de expressões diferenciadas da arquitetura original da metrópole naqueles períodos e naquelas modalidades que lhe correspondessem” (7).

Vila Monlevade, perspectiva da escola, arquiteto Lúcio Costa, 1934
Imagem divulgação [Registro de uma vivência]

Fernando Távora

Fernando Távora,  em Portugal  e poucas décadas depois, a partir dos anos quarenta, protagonizou uma trajetória com pontos de semelhança ao ocorrido com Lúcio Costa no Brasil.

Também muito jovem aos 22 anos, em 1945, publica o ensaio O problema da casa portuguesa, onde recoloca tradição, o saber popular e a identidade nacional da contemporaneidade e do futuro papel do arquiteto junto da sociedade, num claro enfrentamento ao pensamento oficial vigente que desejava estabelecer “normas oficiais de bem projetar”.

Távora investe contra a tendência dos arquitetos portugueses de recorrerem às manifestações do passado, reproduzindo-as ou aplicando-as como forma de construção de uma “verdadeira” arquitetura portuguesa atualizada. Uma atitude semelhante a dos brasileiros com seu neocolonial, três décadas antes. E alerta sobre a necessidade de se investigar e conhecer a verdadeira arquitetura portuguesa, dispersa por todos os rincões onde se abrigava o povo.

Elas é que guardavam a essência do Homem português e criava com os recursos que a Terra colocava a seu alcance, de forma direta, simples e objetiva, sem disfarces decorativos, a verdadeira arquitetura portuguesa. Inspirados nessa fonte, os arquitetos portugueses deveriam apoiar-se nos recursos e na tecnologia da nova era para criar obras que respondessem às exigências dos tempos modernos.

Suas palavras são insofismáveis:

“É indispensável que na história de nossas casas antigas ou populares se determinem as condições que a criaram e desenvolveram, fossem elas condições da Terra, fossem elas condições do Homem, e se estudem os modos como os materiais se empregaram e satisfizeram as necessidades do memento. A casa portuguesa fornecer-nos-á grandes lições quando devidamente estudada, pois ela é a mais funcional e a menos fantasiosa, numa palavra, aquela que está mais de acordo com as novas intenções. Hoje, estuda-se pelo seu “pitoresco” e estiliza-se em exposições para nacionais e estrangeiros: nada há a esperar dessa atitude que conduz ao beco sem saída da mais completa negação ao que se poderia ter-se chegado” (8).

As palavras de Távora repercutiram intensamente nos jovens arquitetos patrícios, que naquele momento, já começavam a receber como contundente revelação a moderna arquitetura brasileira. Os primeiros e marcantes exemplos produzidos pelos pioneiros arquitetos brasileiros no período de 1936 – 1945, imbuídos dos princípios lançados por Lúcio Costa de conciliação das raízes populares e eruditas do passado com os princípios modernistas via Le Corbusier, abriram para os portugueses uma alternativa de expressão de forte caráter contemporâneo, libertando-os do equivocado movimento oficial nacional-passadista ou por outro viés, de filiação direta aos rígidos cânones do movimento internacional praticados por seus vizinhos da centro-Europa ou mais distantes dos norte-americanos, já de forte influência.

Arquitectura Popular em Portugal, republicação de 1961 do Inquérito à arquitectura regional portuguesa, de 1957

A presença de Fernando Távora na realização do Inquérito à arquitectura regional portuguesa (1957), como coordenador da área do Minho, ao norte (Zona 1), posteriormente editado sob o título de Arquitectura Popular em Portugal, em 1961, o levou a ampliar sua reflexão sobre a essência da arquitetura. Segundo o próprio Távora, esta investigação estabeleceu uma mudança de paradigma para a arquitetura em Portugal.

No texto interno sobre a Zona 1 do inquérito, Távora refere-se ao Inquérito à arquitectura regional portuguesa emprestando com essa troca de popular por regional, uma dimensão explícita de território, enfatizando o caráter de uma forma de expressão enraizada, tipicamente regional.

O Inquérito propiciou a abertura de uma nova modernidade para os arquitetos em Portugal, em visível contraponto à exigências oficiais. Vários fundamentos da arquitetura vernacular ali revelados se apresentaram com grande proximidade dos princípios da arquitetura moderna nascente, confirmando-se os avanços revelados pela moderna arquitetura no Brasil, liderada por Lúcio Costa.

Távora emerge como grande mestre e pensador no panorama português do século 20. E, também, como pioneiro na formulação dos princípios de defesa e de reabilitação do patrimônio lusitano, em cujo legado destacam-se o Convento de Santa Marinha, em Guimarães, transformado em pousada (1975-1984) e o Convento dos Refoios do Lima, em Ponte de Lima, para instalação da Escola Superior Agrária (1987-1983).

Sua relevante obra (parte dos trezentos projetos elaborados), centrou-se na produção de uma arquitetura contemporânea capaz de oferecer espaços e formas de expressão enraizada. Com grandes habilidades, senso de harmonia e equilíbrio, ele vai introduzindo princípios do racionalismo europeu, das lições orgânicas de Frank Lloyd Wright e Alvar Aalto na arquitetura tradicional de seu povo. Atitude que o levou a ser convidado a ingressar como membro dos CIAM (Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna) que no período de 1928-1956 concretizaram e divulgaram para o mundo o pensamento moderno europeu liderado por Le Corbusier.

Ele participou entre 1951-1956, com o último evento CIAM X em Dubrovinik, antiga Iugoslávia, atual Bósnia.

Escola de Arquitectura do Porto,
Foto Luckabega [Wikimedia Commons]

Mais tarde, o pensamento de Távora é transferido para a Academia. Sob sua liderança, um grupo de arquitetos organiza e funda a Faculdade de Arquitetura do Porto, onde esses princípios irão alimentar novas gerações de arquitetos cuja produção passa a ser conhecida em todo mundo como a “escola do Porto”. Dela, despertaram dois expoentes mundiais – Álvaro Siza Vieira e Eduardo Souto de Moura, seus ex-alunos agraciados com o Prêmio Pritzker.

Tempos atuais e efeitos da globalização

A partir dos anos oitenta do século passado, pode-se observar mudanças radicais no comportamento da humanidade, com a introdução da cibernética e das novas tecnologias de comunicação no nosso cotidiano. O crescimento econômico de todos os países em desenvolvimento permitiu diversificada demanda de serviços de arquitetura. Coerente com o processo de globalização e apoiados nos novos instrumentos de produção e de comunicação por rede, que lhes proporcionava maior velocidade de produção, os arquitetos mais proeminentes passaram a atuar nos amis diferentes países. Alguns, propondo projetos sem consultar as fontes tradicionais locais consideradas como verdadeiras “amarras” e “restrições à sua criatividade”, estimulando, por consequência, um processo local de desraizamento da arquitetura.

A aceitação local de projetos dessa natureza tem sido controversa. Em nossos países Brasil e em Portugal, bem como na Austrália, Chile, Colômbia, Equador, Espanha, Finlândia, Índia, arquitetos isoladamente vem contrapondo-se a essa linguagem e apresentando uma produção baseada na reinterpretação de fontes populares de questões que envolvem a identidade nacional, e que possibilitem a aplicação de estratégias adequadas a economia energética, a preservação de recursos hídricos , a criação de ambientes saudáveis e confortáveis, a aplicação de materiais de origem certificada e agentes de economia na manutenção futura.

Para países de dimensões continentais, dotados de grandes diversidades climáticas e naturais, como o Brasil, essa postura profissional cria pontes eficientes entre a urgência de uma arquitetura enraizada e a permanente preocupação com a realidade social cada vez mais complexa.

Arquitetura popular e produção contemporânea

Os arquitetos e responsáveis pela produção de espaços urbanos e habitados começam a despontar nos mais diferentes países, voltando-se contra a produção de arquiteturas que em sua aparência exibem uma mudança de sintaxe, mas na realidade continuam a ignorar a indispensável parceria presença com a natureza, e a comprometer o equilíbrio ambiental, a desprezar as exigências da economia energética.

Direcionam o olhar para a arquitetura de origem popular, tal como se compreende hoje, e sua capacidade em traduzir os elementos fundamentais da nacionalidade e de oferecer exemplos favoráveis ao consumo de energia mais limpa e econômica, de baixo impacto ambiental que contribuem para a sustentabilidade do planeta.

Produzir uma arquitetura enraizada irá de encontro às aspirações da sociedade e, certamente, fortalecerá os sistemas de proteção do acervo das diferentes arquiteturas populares resistente em nossos países. Soma-se ainda, o fato de que a valorização deste patrimônio contribuirá para a dinamização das economias locais. Neste panorama, as reflexões e contribuições de Fernando Távora e Lúcio Costa tornam-se cada vez mais presentes e instigantes para a produção contemporânea e para o debate e orientações no âmbito da Academia e do pensamento crítico.

Conjunto habitacional em Cotia, São Paulo, arquitetos Joan Villá e Silvia Chile, 2012
Foto Nelson Kon

Torna-se oportuno a introdução nos currículos dos cursos de arquitetura de mecanismos e disciplinas de história e projetos com foco na relação entre o popular, o nacional e a contemporaneidade, para propiciar ao alunado conhecimento e empenho em valorizar e preservar a riqueza da arquitetura popular de seu país.

As obras e críticas de arquitetos como Aldo Rossi, Alvar Aalto, Álvaro Siza Vieira, Charles Correa, Eduardo Souto de Moura, Hassan Fathy, João Filgueira Lima (Lelé), Luis Baragán, Severiano Porto oferecem massa crítica fundamental para as novas gerações.

Brasil e Portugal poderão, também, através de instituições específicas, manter permanentemente uma troca de informações e dados sobre as ações empreendidas nesse campo.

O Colóquio de Valdevez vem, nesse justo momento, oferecer excepcional oportunidade para se ampliar e se aprofundar o debate sobre as raízes e virtudes da arquitetura popular e seus desdobramentos no ensino e na produção das arquiteturas consideradas eruditas em nosso país.

notas

NE – publicação original do artigo: BRITO, Alfredo. Por uma arquitetura contemporânea enraizada: a arquitetura popular nas trajetórias de Fernando Távora (Portugal) e Lúcio Costa (Brasil). Colóquio Internacional Arquitectura Popular: Actas. Casa das Artes Arcos de Valdevez, 3 a 6 de abril 2013, p. 545-554.

1
Apud SANTOS, Paulo F. Constantes da sensibilidade do brasileiro (paralelo com as do português). Comunicação apresentada no I Colóquio do Comitê Nacional de História da Arte, São Paulo, 1975 (memo). Posteriormente editado como: SANTOS, Paulo F. Constantes de sensibilidade na Arquitetura do Brasil. Arquitetura Revista, v. 6, Rio de Janeiro, FAU UFRJ, p. 52-71.

2
RICOER, Paul (1961). Universal Civilization and National Cultures. Apud: FRAMPTON, Kenneth. O regionalismo crítico: arquitetura moderna e identidade cultural. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1997, p. 381.

3
COSTA, Lúcio. Diamantina. Registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 27.

4
COSTA, Lúcio (1938). Documentação necessária. Registro de uma vivência (op. cit.), p. 457.

5
Idem, ibidem, p. 457-458.

6
COSTA, Lúcio (1934). Monlevade, projeto rejeitado. Registro de uma vivência (op. cit.), p. 91.

7
COSTA, Lúcio (1948). Introdução a um relatório. Registro de uma vivência (op. cit.), p. 455.

8
TRIGUEIROS, Luiz. Fernando Távora. Lisboa, Blau, 1993, p. 13.

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