Os projetos elaborados pela geração de arquitetos formados pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul nos anos 1960, independentemente de questões estilísticas, de qualidade formal e/ou da relevância da encomenda, caracterizavam-se por ser extremamente detalhados, em seus diferentes aspectos. Esse detalhamento não pretendia apenas o desenvolvimento e aprimoramento do projeto em si, do desenho no papel, mas visava também sofisticar o artefato construído e antever tudo que fosse possível no que se refere à sua execução.
Esta abordagem não era uma qualidade exclusiva daqueles profissionais mais talentosos, mas também, caracterizava os chamados arquitetos de mercado, os funcionários dos órgãos públicos, como as secretarias de obras e outros setores semelhantes; enfim, era uma qualidade da maioria dos egressos.
É claro que as circunstâncias daquele momento são muito diferentes das atuais em vários aspectos como o número de profissionais existentes, as condições gerais de trabalho, a cultura profissional geral e até mesmo no que se refere a noções mais básicas, como o significado do tempo e do dinheiro.
Naquele contexto, o projeto de uma casa de praia para um cliente de classe média, realizado por um arquiteto comum, envolvia desenhos que resolviam desde a implantação do edifício, solução de plantas, cortes, estrutura e paisagismo, até os desenhos de carpintaria, marcenaria, paginação e especificação de materiais – tanto estruturais quanto de revestimento – bonecos de esquadrias, equipamentos e tudo aquilo que fosse necessário para a execução do entorno imediato, da casca e também dos elementos internos e do mobiliário do edifício. Projetar significava pensar em tudo – e desenhar tudo – que é relativo ao edifício e ao ambiente construído. Parte significativa desse material era o chamado detalhamento, mas não um detalhamento padrão, nem o desenho de soluções repetitivas, mas o aprofundamento investigativo das soluções propostas.
Além da especulação formal, existe nessa geração um compromisso sério com a construção correta do edifício e o entendimento que o desenho é uma ferramenta fundamental no processo. Por consequência, no sentido técnico – técnica no que se refere a conjunto de procedimentos ligados à ciência, ou à arte de fazer alguma coisa – a qualidade média dos edifícios produzidos por eles era bastante boa.
Depois de quarenta anos, no final do século 20, os egressos da mesma Faculdade de Arquitetura – de maneira genérica, o aluno médio – eram bem diferentes daqueles dos anos 1960. No que se refere ao projeto de Arquitetura, pode-se afirmar que eles haviam perdido boa parte da noção relativa à dimensão construtiva e material; o ensino da escola havia menosprezado a importância dos aspectos relacionados à realização do edifício, como o detalhamento executivo e a economia de recursos, enfatizando seu caráter estético e formal. O foco do projeto concentrou-se exclusivamente no edifício, boa parte deles institucionais ou excepcionais, deixando de lado o ambiente interno e os programas mais ordinários.
Comparados a seus antecessores, os alunos dispunham de uma quantidade maior de informação – principalmente as fotos das revistas – mas não iam muito além da imagem. Não era raro um aluno da última metade do curso nunca ter visto uma amostra de uma simples divisória de gesso acartonado ou uma peça de piso de basalto, para ficar em materiais bastante comuns. Consequentemente, eles tampouco sabiam sobre sua utilização ou como desenhá-los. Afinal, na quase totalidade do curso, os alunos não se aproximavam do objeto além de uma escala 1/200; 1/50 já era considerado detalhamento. O fato é que a sequência dos projetos explorava o exercício formal e compositivo de maneira bastante despreocupada com as possibilidades concretas de produção do edifício, não apenas daqueles de programas mais complexos ou de maior importância, mas até dos objetos mais simples e/ou de menores dimensões; ampliações ou reformas não eram tratados jamais. Afinal, isso não era entendido como Arquitetura de verdade. Esse afastamento, além de evitar as escalas mais próximas, também excluía o projeto do interior.
Soma-se a isso tudo o fato de que o ensino universitário do país foi, pouco a pouco, afastando os profissionais de ofício das escolas públicas. Desde o final dos anos 1990 os concursos oferecidos eram, em sua imensa maioria, para professores que atuassem em regime de dedicação exclusiva, de forma que aqueles profissionais que quisessem conciliar a atividade de escritório com a docência em uma faculdade federal foram impedidos de entrar. Recaiu no estágio a responsabilidade quase exclusiva de suprir essa deficiência, de colocar o aluno em contato com algo da experiência prática.
Por outro lado, nesse meio tempo aconteceu um episódio bastante positivo. No início dos anos 1990 o Programa de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura da UFRGS, o Propar – onde já havia ótimos cursos de especialização – tem sua primeira turma de mestrado. Esse é um passo fundamental para o desenvolvimento da pesquisa, da teoria e da crítica arquitetônica na região sul do Brasil. E é o Propar que vai formar a maioria dos mestres e doutores que ingressam como professores na Faculdade de Arquitetura da UFRGS a partir dos anos 2000. De qualquer forma, um grupo de professores formado exclusivamente de mestres e doutores, que são pesquisadores, mas não tem atividade de escritório – porque não pode ter – não abrange as distintas dimensões que conformam o problema arquitetônico; a questão não é a presença do professor exclusivamente acadêmico, mas sim a ausência do professor que é da prática.
Eu não me proponho a tratar das razões pelas quais aconteceu essa mudança na nossa escola, tampouco a propor algum modelo de ensino de Arquitetura, mas a observar o fato incontestável de que os nossos alunos, no final do século passado, eram totalmente desinteressados pela Arquitetura como objeto construído. Além disso, eles tinham bastante dificuldade para projetar em uma escala mais próxima e mais material, muita dificuldade de desenvolver algum tipo de detalhamento, nenhuma familiaridade com programas cotidianos e de menor metragem e nenhuma experiência com o projeto de interiores e de mobiliário. E o mais irônico é que essas eram, justamente os projetos de pequenas dimensões, os projetos de interiores e as reformas, as encomendas mais comuns que surgiam nos escritórios de Arquitetura naquele momento.
Um breve momento autobiográfico
Cursei a faculdade de Arquitetura da UFRGS na primeira metade da década de 1980. Quando eu estava na metade do curso conheci o professor Carlos Eduardo Comas. Ele, que já era mestre em Arquitetura e Planejamento Urbano pela University of Pennsylvania, voltava de um período em Londres, na Architectural Association, a famosa AA. Um pouco mais adiante volta também o professor Edson Mahfuz, que havia terminado seu doutorado em Arquitetura na mesma University of Pennsylvania, no ano de 1983. Eram os ventos de um novo momento nas escolas de Arquitetura brasileiras, de valorização acadêmica e de revalorização do conhecimento disciplinar específico.
Em 1981 eu comecei a trabalhar como estagiária de Carlos Eduardo Comas, em um escritório dividido por meia-dúzia de arquitetos, todos eles professores, colegas de UFRGS. No final da graduação tive a chance de cursar um semestre na cátedra de Miguel Angel Roca, na Faculdade de Arquitetura da Universidad Nacional de Cordoba, na Argentina. Mesmo que um tanto contestado, Miguel Roca – que havia estudado com Louis Kahn – era um importante personagem da Arquitetura Latino Americana naquele momento. Além de ter sido Secretario de Obras de Córdoba (de 1979 a 1981) e de ter mudado a cara do centro da cidade naquele período, tinha um escritório potente e cheio de trabalho, com obras em toda a Argentina e no exterior, e publicava seus projetos e textos em várias revistas internacionais importantes. Com ele trabalhava um casal de jovens arquitetos, Monica Bertolino e Carlos Barrado, que já eram professores da faculdade, na cátedra de Roca. Então, para mim, a figura do arquiteto de escritório ligado à faculdade é mais uma regra do que uma exceção.
Em 1985, quando me formei, levei um golpe duro: não havia trabalho para a minha geração no Brasil, muito menos em Porto Alegre. Era o período que ficou conhecido como “década perdida”. De aluna totalmente envolvida em diversas atividades e dividida entre os projetos da faculdade e o estágio, passei a ser uma desocupada, de um dia para o outro. Era preciso inventar trabalho e eu parti para áreas bem menos ortodoxas, para dizer o mínimo. Comecei desenhando roupas para uma marca local, depois parti para a cenografia e a direção de arte de comerciais de TV, além de cenários para o teatro, comunicação visual e, depois de algum tempo, a Arquitetura de Interiores. E aí eu fiquei. O que eu sabia fazer de Arquitetura de Interiores eu havia aprendido nos tempos de estagiária, tanto do próprio Carlos Eduardo Comas, que por sua vez foi discípulo de Claudio Araújo – destacado arquiteto gaúcho, um típico exemplar da geração formada nos anos 1960 pela UFRGS, conhecido também por sua assumida paixão pelo detalhe construtivo, em qualquer escala – quanto de Sylvia Moreira, sobrinha do arquiteto Fernando Moreira – carioca, da turma de Lucio Costa e Oscar Niemeyer – e que também havia frequentado o escritório de Claudio Araújo.
Além da atividade de escritório, eu não parei de estudar e segui nos cursos de especialização do Propar. Quando surgiu o mestrado do Propar eu entrei na primeira turma orientada por Carlos Eduardo Comas. Em seguida comecei a dar aulas na Faculdade de Arquitetura da Ritter dos Reis e, em 1994, ingressei como professora no Departamento de Arquitetura da UFRGS. Junto com a atividade acadêmica eu segui com o escritório, agora focado em Arquitetura de Interiores.
Em 2000 o PROPAR lança seu primeiro curso de Doutorado e eu resolvi voltar a estudar, novamente orientada por Carlos Eduardo Comas. Propus um tema de investigação que tivesse bastante ligação com a minha atividade de escritório. Com total apoio do meu orientador, resolvi trabalhar com Arquitetura de Interiores, uma área ainda inexplorada academicamente por aqui, ainda encarada pela maioria de meus colegas professores como um tema menor. Assim, faço a primeira tese sobre o assunto no Brasil.
Terminei o trabalho na metade de 2006. O professor Eduardo Galvão era o chefe do departamento de Arquitetura da UFRGS naquele momento (um dos arquitetos que dividia o escritório com Carlos Eduardo Comas nos anos 1980). Além de ser um apaixonado confesso pelos bons layouts internos e pelos detalhes inteligentes, Galvão via o mesmo quadro que eu: arquitetos recém-formados saindo da faculdade sem nenhuma noção construtiva e material, com dificuldades para resolver problemas corriqueiros como pequenas reformas. Ele, então, me convidou para montar uma disciplina opcional de Arquitetura de Interiores para a graduação, onde estas questões fossem abordadas através dos interiores. A disciplina saiu e deu bastante certo.
Era uma disciplina de caráter teórico-prático, onde os alunos trabalhavam bastante com layouts internos, discutiam e propunham o programa, desenhavam mobiliário, escolhiam revestimentos, especificavam os móveis soltos. As áreas não eram muito grandes, de forma a possibilitar um aprofundamento maior nas soluções. Muitas vezes a proposta envolvia reformas; nesse caso, os exemplares tratados eram escolhidos entre edifícios interessantes da cidade que fossem subutilizados ou abandonados, ou mesmo que merecessem uma renovação de programa e de uso.
Poucos semestres depois, entendemos que o conteúdo daquela disciplina deveria migrar para uma das disciplinas de projeto do curso. A escolha foi pelo Projeto Arquitetônico IV, o P.IV, que eu passei a ministrar regularmente.
Ao ser promovida à sequência obrigatória e ao eixo protagonista do curso, o conteúdo anterior também se expandiu. Mesmo que os exercícios ainda fossem bastante semelhantes em essência, a complexidade aumentou e o foco na questão construtiva ganhou força. A intenção era dar aos alunos, mesmo que fosse em um episódio único, restrito a um semestre, a possibilidade de trabalhar com o detalhamento do projeto, visando a construção do edifício. E detalhamento no sentido da sofisticação do desenho e da antecipação daquilo que acontece na execução da obra. Também pretendíamos abordar aspectos práticos da vida de escritório, que são tratados de maneira muito desconectada no curso, por disciplinas especializadas e não relacionadas à sequência de Projetos. De alguma maneira, era como se voltássemos no tempo, para os anos 1960, por um semestre ao menos, e trabalhávamos com a perspectiva de produzir projetos que se caracterizassem por ser extremamente detalhados e que se destacassem por seus aspectos técnicos – além dos formais e de caráter – e por suas possibilidades concretas de realização.
Sobre o espírito do P.IV
Os alunos de Projeto Arquitetônico IV estão no quinto semestre da Faculdade, em sua maioria. São alunos da metade do curso, que entendem que a Arquitetura é o projeto das chamadas “grandes composições” e que qualquer coisa menos importante do que um museu não merece consideração. Por outro lado, ignoram quase que totalmente a dimensão construtiva da Arquitetura. Então, no começo é importante ressaltar que o problema arquitetônico não está limitado às grandes escalas nem tampouco à construção de novos edifícios; alertamos para a existência das ampliações, das reformas e até daqueles ambientes que são criados sem que se faça ou altere uma casca externa. Afinal, em todo projeto estão presentes os elementos de Arquitetura e de composição, regrados segundo alguma ordem. Tal lógica explicita-se na essência da organização espacial, no principio fundamental que rege as relações entre as diversas partes do projeto, na hierarquia entre os compartimentos, em sua configuração, na relação com os espaços externos, em seu caráter e sua materialidade.
A disciplina de P.IV tem caráter teórico-prático e é focada nos espaços arquitetônicos internos e no projeto de novas arquiteturas que complementem edifícios existentes: as reformas ou a construção de anexos. Através de temas pouco extensos em área, em exercícios mais rápidos e com programas recorrentes, o aluno se aproxima mais do objeto e se envolve com seu detalhamento. Ressaltamos a necessidade de entender o projeto como um processo que tem enorme valor em si, mas que é um documento que prevê uma construção. E essa construção pode ser mínima, pode ser uma reforma, um anexo, um interior; deve durar mais ou menos tempo; deve ter um preço compatível, deve ser adequada ao uso ao qual se propõe. E deve ser bela. Outro aspecto importante do semestre é o reconhecimento de variáveis pragmáticas que interferem no processo de projeto, como custos e prazos, tanto de projeto como de execução, e da sua interferência nas decisões de forma. São critérios objetivos de concepção e análise de projeto que raramente aparecem nos projetos acadêmicos e aos quais, de uma forma ou de outra, todo projeto “real” está relacionado.
No ano 2012 a professora Ana Carolina Pellegrini ingressou na UFRGS e começou a trabalhar na turma B da mesma disciplina de P.IV. Embora cada uma de nós tenha a sua turma, nos organizamos de maneira que algumas atividades, como as aulas teóricas e painéis, fossem conjuntas, deixando apenas os assessoramentos acontecerem separadamente. Geralmente trabalhamos com dois exercícios por semestre, forçando os alunos a decisões um pouco mais rápidas do que em outros semestres. Os alunos também fazem orçamentos, no início ou no meio do processo, e pensam em seus projetos em função dos custos.
Temos seminários a respeito de honorários e aproveitamos para introduzir assuntos éticos como a questão das reservas técnicas, a elaboração de contratos e a responsabilidade que eles envolvem, e a valorização da profissão em geral. Este pragmatismo aparente, porém, não nos isenta da investigação compositiva, formal e conceitual que deve estar presente em todo o bom projeto de arquitetura.
Para reforçar esse aspecto teórico-prático, dos três encontros que temos por semana reservamos um para aulas expositivas e seminários. Os temas dessas aulas variam de assuntos mais objetivos, como a construção seca, a questões teóricas ou históricas; tratamos da habitação – vista de uma forma panorâmica até o período moderno e contemporâneo; da questão de construir em edifícios existentes – desde as reformas mais banais à intervenção em monumentos preservados; do detalhamento e/ou a técnica como protagonista do projeto e/ou da obra; dos processos de renovação de edifícios e áreas de cidade e da intervenção em lotes muito pequenos em áreas centrais, por exemplo.
Nossa exigência é que os alunos cheguem a projetos executivos, o mais detalhado possível, desde a casca até o mobiliário. Eles especificam materiais, lançam e tratam dos projetos complementares e consideram custos. No começo do semestre levamos a turma ao local de intervenção, quando eles fazem o levantamento e registram o lugar. Além disso, fomos afinando os temas de projeto para que trabalhássemos mais explicitamente com a ideia de projetar no construído. Outro aspecto importante – que tem relação com nossa atuação na pesquisa e, principalmente, junto ao Docomomo – é fazer referência ao patrimônio moderno e trabalhar com exemplares dessa época – até mesmo por sua qualidade na cidade de Porto Alegre.
Em 2013 eu entrei para o corpo docente do Propar, onde ministro uma disciplina sobre Interiores Modernos. No mesmo Propar a professora Ana Carolina trata do assunto do Projeto com Patrimônio. Naturalmente somos procuradas como orientadoras de Trabalho final de curso para assessorar temas que são relativos ao nosso trabalho em P.IV. Da mesma forma chegam as orientações do Propar e esses orientandos – que foram nossos alunos de P.IV – se transformam em nossos estagiários docentes na mesma disciplina. Assim, o ciclo se renova e realimenta.
Mais recentemente o professor Leandro Manenti entrou para o Departamento de Arquitetura, passou a trabalhar conosco, adotou nossos procedimentos e se juntou ao nosso grupo de Pesquisa Projetar no Construído, ampliando ainda mais a nossa abordagem e abrangência.
O que temos feito ultimamente
Em 2016 nós trabalhamos em uma antiga casa de um bairro central de Porto Alegre, em um terreno muito estreito e comprido, em más condições de conservação. O exercício se dividia em uma primeira fase mais rápida, de lançamento de um partido geral, depois uma segunda de reforma e ambientação da casa antiga e, finalmente, da construção de um anexo. O programa proposto era um hostel.
Na casa o foco do exercício era mais voltado para o interior, no sentido de determinação de caráter e ambiência, investigação de materiais e desenho de mobiliário. O terreno deu margem para abordar o assunto dos lotes antigos da cidade, estreitos e compridos – como as casas de chorizo argentinas – e do possível reaproveitamento desses terrenos. Abordamos as transformações da cidade e os fenômenos de qualificação e revalorização de certas áreas. Também houve espaço para refletir sobre a alteração de programa dentro de uma mesma casca externa e a transformação de usos e costumes.
Na parte do anexo a proposta era trabalhar com tecnologia seca. A construção nova possibilita tratar do detalhamento do envelope, da sua vedação, das questões de insolação, dos projetos complementares – quando abordamos a inter-relação dos diferentes projetos e agentes da construção do edifício – da tecnologia agregada e dos materiais utilizados. A casa original, além de antiga, é alugada. Eles são levados a orçar a obra e refletir sobre a viabilidade do investimento e isso leva aos orçamentos. Eles também montam a proposta de trabalho, com o contrato e honorários. Nesse ponto discutimos as questões relativas à responsabilidade e às nossas condições de trabalho.
Na mesma linha da casa, houve um semestre em que o local de intervenção era o Vila Flores, um conjunto de edifícios originalmente projetados por Joseph Lutzenberger em 1928, que hoje abriga coletivos de arte e escritórios e que se abriu para a comunidade em 2011 com a intenção de tornar-se um centro de cultura, educação e economia criativa (1). Lá os alunos propuseram habitação temporária em um dos sótãos aproveitáveis e uma galeria de exposições no térreo do pátio comum.
Trocamos frequentemente de objeto de intervenção, quase a todo semestre. Já trabalhamos algumas vezes com a reforma de apartamentos modernos, cuidadosamente escolhidos entre os exemplares porto-alegrenses. Nesses casos, além de trabalhar com reforma do apartamento em si – alteração de layout, definição de ambientação geral, detalhamento de todos os elementos da proposta e especificação dos materiais envolvidos, lançamento dos complementares, desenho do mobiliário projetado e definição dos móveis soltos – esse tema dá margem para ampliar a reflexão a respeito da casa moderna, dos programas mais contemporâneos e da própria história de Porto Alegre e da Arquitetura Moderna na cidade.
Além disso, podemos discutir a adaptação de um projeto Moderno ao habitar contemporâneo. Amparam o exercício prático um conjunto de aulas teóricas sobre a Arquitetura Moderna em Porto Alegre e sobre a habitação na Arquitetura Moderna. Já a parte das aulas de conteúdo mais técnico é sempre a mesma, com focos um pouco diferentes, dependendo do tema específico.
Também já trabalhamos com um apartamento em um edifício construído recentemente, em 2013, e que se destaca no cenário geral da produção gaúcha contemporânea, que é o Península, do escritório Cantergiani + Kunze Arquitetos (2). Nesse caso o terreno também é estreito e comprido, no centro da cidade, como uma versão atual do chorizo do primeiro exercício. O trabalho envolvia a alteração de programa e a consequente customização do apartamento às necessidades do cliente/personagem.
Algumas conclusões
Hoje o Projeto IV se constitui em um momento importante na sequência do curso; é quando os alunos têm um primeiro momento de aproximação dos aspectos construtivos e materiais em uma disciplina de projeto. E normalmente eles gostam disso, apesar de alguma dificuldade inicial. A outra coisa que eles aprendem no semestre é que não é fácil trabalhar com Arquitetura de Interiores, que não é fácil fazer uma reforma nem trabalhar com áreas menores e que considerar os aspectos econômicos e materiais do projeto é mais complicado do que possa parecer inicialmente. E é claro que eles sabem que essas são demandas bastante comuns nos escritórios de Arquitetura.
Não são poucos os relatos de ex-alunos que afirmam ter começado a trabalhar em seus escritórios tomando por base as coisas que viram em P.IV. Isso significa que o P.IV consegue sucesso naquilo que pretende, de preparar os alunos para as situações cotidianas do escritório. Por outro lado, o semestre tem uma parcela importante de fundamentação teórica. Conciliados ambos os aspectos, a síntese do que acontece na disciplina é a chamada prática reflexiva; nesse caso, a prática reflexiva relativa aos projetos ordinários e não aos grandes temas.
Por trás dessa montagem há o desejo de recuperar algumas características daquele arquiteto descrito no começo deste texto: um profissional que, independente da escala de metragem quadrada ou de importância do projeto, detalha muito, desenha tudo e domina os aspectos construtivos do edifício. Há também a consideração do mundo real, do fato de que fazer arquitetura não é apenas ficar na escala 1/200, que a construção envolve mais do que estilo, que o dinheiro entra na equação e que o projeto deverá se transformar em um edifício.
Não temos a pretensão de que a Escola seja toda igual ao P.IV; muito antes pelo contrário. O que é importante, justamente, é que a Escola aborde os diversos aspectos que compõe a Arquitetura. Mas é fato que a questão construtiva e os temas mais banais, digamos assim, estavam abandonados, soterrados no meio das “grandes composições”. Trabalhar desta maneira recupera parte da dimensão material perdida e supre uma demanda que é real dos alunos – mesmo que eles não saibam – sem deixar de tratar de assuntos importantes, sob o ponto de vista teórico. Além disso, o fato dos professores estarem envolvidos com a pós-graduação dá a chance para que tenhamos a tal integração entre ensino e pesquisa e uma renovação constante.
Ao mesmo tempo que estaríamos contribuindo para a formação de arquitetos com características mais parecidas com aquele profissional formado na metade do século 20, existe um aprofundamento teórico herdado daquele processo importante iniciado nos anos 1980 e que consolidou ao longo dos últimos trinta anos. O fato do professor de projeto arquitetônico ter experiência de escritório é, sem dúvida, muito importante; mas não a experiência prática apenas, mas experiência aliada à educação acadêmica e à pesquisa. Além disso, uma equipe de professores que mistura perfis diferentes é extremamente enriquecedora e essa diversidade deveria ser a regra de um ambiente dito universitário.
notas
1
O Vila Flores é um dos 15 projetos que representou o Brasil na mostra Juntos, na 15ª Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza. Ver: PORTAL VITRUVIUS. Vila Flores. Um processo arquitetônico: ressignificação, coletividade e aprendizado. Projetos, São Paulo, ano 16, n. 184.01, Vitruvius, abr. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/16.184/6015>.
2
Ver: PORTAL VITRUVIUS. Edifício Península. Projetos, São Paulo, ano 16, n. 187.03, Vitruvius, jul. 2016 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/16.187/6132>.
sobre a autora
Marta Silveira Peixoto é Arquiteta, professora Associada do Departamento de Arquitetura da UFRGS, professora permanente do Propar UFRGS e do Mestrado UniRitter/Mackenzie e professora Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UniRitter. Atua em Pesquisa com foco em Projeto, Interiores e Arquitetura Moderna, além de manter atividade de escritório centrada em Arquitetura de Interiores.