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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Com licença poética, cinco casas do escritório SPBR Arquitetos são relacionadas com textos do livro Cidades Invisíveis, de Ítalo Calvino. A partir dessa associação, o trabalho também faz relações com as demais casas produzidas pelo escritório.

english
With no scientific rigidity, five houses designed by the office SPBR Architects are associated with texts from "Invisible Cities", by Italo Calvino. From this association, the article also makes relations with the other houses designed by the office.


how to quote

DA COSTA, Ana Elisia. A negação da terra. Relações entre as As cidades invisíveis de Ítalo Calvino e casas projetadas pelo escritório SPBR Arquitetos. Arquitextos, São Paulo, ano 18, n. 207.05, Vitruvius, ago. 2017 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/18.207/6667>.

Introdução ou zonas de contato

Ítalo Calvino, no clássico livro Cidades invisíveis (1), descreve cinquenta e cinco cidades fantasiosas e fantásticas. Algumas dessas cidades se caracterizam por desafiar a gravidade. Umas erguem-se dependuradas em teias, cujos fios e seus sustentáculos procuram uma forma, desenhando percursos em camadas e em ziguezague que, no cotidiano, poupam os seus habitantes de tédio. Outras cidades se elevam acima das nuvens através de apoios que assumem grandes distâncias, deixando tocar no solo somente as suas sombras refletidas nas folhagens.

A vida nestas cidades é incerta, pois se sabe dos limites das redes e apoios. Os habitantes possuem tudo que precisam em cima e raramente são vistos em terra porque a odeiam ou porque a sacralizam, evitando qualquer intervenção ou contato. Mantendo distância, seus habitantes contemplam a paisagem “lá em baixo”, bem como, suas próprias ausências.

As imagens sugeridas pelo “mundo-textualizado” de Calvino podem indicar relações ou zonas de contato com o “mundo real” (2). Por outro lado, ao serem “experienciadas”, essas imagens podem sugerir a construção de “novos mundos reais”, já que a vida/o real muitas vezes segue a arte/a ficção, ou seria desejável (?) que seguisse.

Entre realidade e ficção, na leitura de algumas cidades Calvino sugere que haja “zonas simbólicas de contato” com algumas casas projetadas pelo escritório SPBR, fundado em 2003 pelo arquiteto Ângelo Bucci (3). Distanciadas de arranjos tipológicos convencionalmente empregados na arquitetura residencial, essas casas assumem feições ímpares e surpreendentes, o que permite serem entendidas aqui como “mundos domésticos fantásticos” (4). Naturalmente, esta relação é permeada por licença poética e decorre de imagens que são derivadas da leitura pessoal desses textos e projetos.

Neste contexto, cinco casas produzidas pelo SPBR entre 2005 e 2013 são visitadas – Ubatuba (2005-2006); Casa de Fim de Semana em São Paulo, de 2010-2011; Itaipava, de 2011-2012; Ubatuba II, de 2011-2012; Santana do Parnaíba, de 2013-2014 (5). Entre essas casas há uma tênue ligação. Todas elas ocupam terrenos estreitos e compridos e, excetuando-se a Casa de Fim de Semana, terrenos com declive no sentido frente-fundos. Com vistas para o mar (Ubatuba, Ubatuba II), serra (Itaipava), floresta (Santana do Parnaíba) e cidade (Casa de Fim de Semana), as casas são elevadas do solo e, assim como ocorre nas cidades descritas por Calvino, parecem desafiar a gravidade. Os seus apoios (pilares/colunas) são poucos e conservam grandes vãos entre si, para manter o terreno e sua vegetação o mais intactos possível. Sobre estes apoios, um sistema de vigas se tramam e, muitas vezes, atirantam as lajes de piso, tal como se erguem as cidades-teia-de-aranha de Calvino.

Casas do Escritório SPBR: maquetes e cortes
Desenho da autora [Imagens Acervo SPBR]

Hipoteticamente, tais casas compoem o que Martí Arís (6) chama de “séries tipológicas”,  ou seja, um conjunto de exemplos ou modelos que se referem a uma mesma estrutura formal e que se constroem mediante a transposição e/ou transformação de soluções adotadas em exemplos precedentes. Cronologicamente, na própria produção do escritório, essa série se constrói em paralelo a outras presumíveis séries tipológicas, compondo um emaranhado de soluções que se hibridizam e que, ao mesmo tempo, preservam certa autonomia em suas estratégias.

Em certo sentido, tais características convergem com a própria narrativa de Calvino que agrupa as suas cinquenta e cinco cidades em torno de onze temas, apresentando-as, contudo, embaralhadas no sequenciamento do seu livro. Pelo desafio imposto à gravidade, a possível relação simbólica entre as referidas casas e as cidades de Calvino se restringe a trechos destacados das cidades vinculadas aos temas cidades delgadas, cidades e os olhos e cidades e as trocas.

O estudo se propõe, assim, a fazer uma visitação a essas casas, estabelecendo associações livres entre as mesmas e os trechos literários de Calvino. A partir dessa associação, o estudo também faz relações com outras casas produzidas pelo próprio escritório, buscando construir pontes incertas – ligações ou conexões tipológicas – que expliquem a configuração destes casas “fantásticas”.  Despretensiosamente, a análise mescla literatura e teoria arquitetônica – poesia e tipologia, intuição e razão – perseguindo a identificação de uma potência poética, um “sentido” ou a falta dele, na linguagem arquitetônica adotada nestas casas. O exercício pode parecer pouco, pois é profundamente deleitoso. Mas não seria o deleite um importante passo para a construção do conhecimento?

Uma aproximação poética

Otávia, Armila e Bauci

A Casa Ubatuba (2005-2006) marca o início desta “série tipológica” em estudo. Três potentes colunas erguem esta casa do solo, deixando intocável a topografia íngreme e a abundante vegetação. Apoiada nelas, uma trama de vigas impostadas no nível da rua sugere ser uma “teia ou uma viga-ponte” que alça volumes, desafiando a gravidade. Assim, ao invés de se elevar, os três volumes independentes da casa estão dependurados e conectados por escadas e passarelas, tal como a cidade de Otávia de Calvino:

“Agora contarei como é feita Otávia, cidade-teia-de-aranha. [...] Essa é a base da cidade: uma rede que serve de passagem e sustentáculo. Todo o resto, em vez de se elevar, está pendurado para baixo: escadas de cordas, redes, casas em forma de saco, varais, terraços com a forma de navetas, odres de água, bicos de gás, assadeiras, cestos pendurados com barbantes, monta-cargas, chuveiros, trapézios e anéis para jogos, teleféricos, lampadários, vasos com plantas de folhagem pendente” (7).

Casa Ubatuba, plantas baixas, 2005-2006. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos [Acervo SPBR]

Casa Ubatuba, maquete, 2005-2006. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos
Fotos Nelson Kon [Acervo SPBR]

O gosto de dependerur volumes, tais como os objetos de Calvino, se transforma na sequência das casas estudadas. O suporte se agiganta para consolidar-se como uma “ponte habitável” (Casa de Fim de Semana, 2010-2011) ou desaparece, configurando volumes individualizados (Itaipava e Ubatuba II, 2011-2012) ou compactos (Santana do Parnaíba, 2013-2014), estruturados por generosas vigas-paredes. Em todos os casos, contudo, as casas se erguem através de poucas e distanciadas colunas, que buscam ainda preservar a integridade do solo. Neste contexto, os apoios ganham grande expressão formal no conjunto, como as palafitas de Zenóbia ou as “pernas de flamingo” que sustentam a cidade de Bauci:

“quem vai a Bauci não percebe que já chegou. As finas andas que se elevam do solo a grande distância uma da outra e que se perdem acima das nuvens sustentam a cidade. Sobe-se por escadas. Os habitantes raramente são vistos em terra: têm todo o necessário lá em cima e preferem não descer. Nenhuma parte da cidade toca o solo exceto as longas pernas de flamingo nas quais ela se apoia, e, nos dias luminosos, uma sombra diáfana e angulosa que se reflete na folhagem” (8).

Casa Ubatuba II, plantas baixas, 2011-2012. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos [Acervo SPBR]

Casa Ubatuba II, maquete, 2011-2012. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos
Fotos Nelson Kon [Acervo SPBR]

Seja numa estrutura “teia-de-aranha” ou numa estrutura “pernas de flamingo”, todas as casas se comportam como mirantes, com as aberturas voltadas para paisagem e as coberturas tratadas como terraços. Destas casas-mirante, como em Bauci, o homem se posiciona de modo contemplativo e, ao mesmo tempo, se faz ausente da terra que lhe pertence e da qual é pertencente:

“Há três hipóteses a respeito dos habitantes de Bauci: que odeiam a terra; que a respeitam a ponto de evitar qualquer contato; que a amam da forma que era antes de existirem e com binóculos e telescópios apontados para baixo não se cansam de examiná-la, folha por folha, pedra por pedra, formiga por formiga, contemplando fascinados a própria ausência” (9).

Esquemas estrutural das casas Ubatuba (2005-2006) e Santana do Parnaíba (2013-2014). Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos
Desenhos de Stefânia R. Tonet, 2016, e Mariana Samurio, 2016 [https://www.ufrgs.br/casacontemporanea]

A impostação da casa como mirante se radicaliza nas casas Ubatuba e Ubatuba II, em que os terraços-mirante são extensões das calçadas da rua, ficando a casa implantada abaixo deste nível, ou ainda, na Casa de Fim de Semana em SP, onde o “térreo” é tratado a 6m de altura do nível do solo, onde recebe, com maior generosidade, a luz do sol (10). O mesmo pode ser observado com a posição das piscinas que migram para estes terraços, abdicando da posição natural de estarem encravadas no solo, destacando-se a radicalidade da piscina suspensa da Casa de Fim de Semana em São Paulo.  A mimetização na paisagem e/ou a posição transgressora das suas piscinas escrevem narrativas próximas às da cidade de Armila, onde as ninfas que a dominaram buscam “novas maneiras de desfrutar a água”:

“Ignoro se Armila é dessa maneira por ser inacabada ou demolida. (..). A céu aberto, alvejam lavabos ou banheiras ou outras peças de mármore, como frutas tardias que permanecem penduradas nos galhos. [...]. A qualquer hora do dia, levantando os olhos através dos encanamentos, não é raro entrever uma ou mais jovens mulheres, esbeltas, de estatura não elevada, estendidas ao sol dentro das banheiras” (11).

Casa de Final de Semana, plantas baixas, São Paulo, 2010-2011. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos [Acervo SPBR]

Casa de Final de Semana, maquetes, São Paulo, 2010-2011. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos
Fotos Nelson Kon [Acervo SPBR]

As referidas cidades de Otávia e Armila pertencem ao grupo das “cidades delgadas” de Calvino que, segundo Monteiro (12), podem remeter a uma busca coletiva de transcender, através da técnica, “o peso da superfície do planeta”. Por outro lado, ainda segundo o mesmo autor, Bauci é pertencente ao grupo das “cidades e os olhos” que parecem evocar discussões sobre o referencial a partir do qual se olha a cidade, tradicionalmente mais focado no chão do que no céu. A suspensão do solo, através da técnica, para construir mirantes que proporcionem novas perspectivas do “céu” e da “terra”, parece ser uma das principais motivações poéticas destas casas.

Casa Itaipava, plantas baixas, 2010-2011. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos [Acervo SPBR]

Casa Itaipava, maquete, 2010-2011. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos
Fotos Nelson Kon [Acervo SPBR]

As narrativas espaciais resultantes, contudo, não são facilmente interpretadas ou são desafiadoras e, talvez por isso, prazerosas. Uma unidade “inquieta” se revela – implantação de volumes em diferentes níveis; uso de diferentes materias; regularidade geométrica de volumes contraposta à irregularidade de elementos de arquitetura, como vigas e coberturas declinadas e lajes que assumem contornos irregulares; contraposição entre pesadas empenas cegas e superfícies envidraçadas ou suaves brises. Assim, define-se arranjos com grande complexidade formal, um jogo antagônico entre o todo e suas partes, entre o peso dos volumes e a leveza da suspensão dos mesmos no ar, entre o rigor geométrico e irregularidades aparentemente arbitrárias, entre os cheio e os vazios de suas superfícies.

São obras difícieis de se apreender numa visada só, quer vivenciadas, quer numa leitura de seus desenhos e fotos. Qualquer foto é sempre parcial, sugerindo narrativas fragmentadas e incompletas. Em suas totalidades, são obras quase “infotografáveis”, exigindo o recurso didático de maquetes, ricamente exploradas pelo escritório. Esta narrativa, aberta a interpretações, mais uma vez se aproxima dos textos de Calvino que recebeu inúmeras, incríveis e possíveis ilustrações ao longo do tempo.

Casa Santana do Parnaíba, plantas baixas, 2013-2014. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos [Acervo SPBR]

Casa Santana do Parnaíba, maquetes, 2013-2014. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos
Fotos Nelson Kon [Acervo SPBR]

Ercília e Esmeraldina

Essa complexidade do arranjo formal encontra correspondência na definição da rede circulatória, em detrimento da aparente racionalidade da setorização, organizada em níveis e/ou blocos independentes. Uma trama não convergente e não linear de rampas, escadas e passarelas conecta as suas partes, como os fios da cidade de Ercília:

"Em Ercília os habitantes estendem fios entre as arestas das casas brancos ou pretos ou cinza ou pretos e brancos, de acordo com as relações de parentesco, troca, autoridade, representação [...] Deste modo, viajando-se no território de Ercília, depara-se com [...] teias de aranha de relações intrincadas à procura de uma forma" (13).

Esquema de zoneamento das casas Ubatuba, 2005-2006, e Ubatuba II, 2011-2012. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos
Desenhos de Stefânia R. Tonet e Paula Hallal, 2016 [https://www.ufrgs.br/casacontemporanea]

Espacialidade do acesso das casas Ubatuba, 2005-2006, e Santana do Parnaíba, 2013-2014
Desenhos de Stefânia R. Tonet e Paula Hallal, 2016 [https://www.ufrgs.br/casacontemporanea]

Nas casas, a “forma” desenhada pelos percursos parece se subordinar mais à intenção de promover espacialidades surpreendentes e exteriorizadas do que à promoção de uma eficiência funcional. A partir da plataforma onde estacionam os carros (Ubatuba, Itaipava, Ubatuba II), o corpo e os olhos do fruidor passam a ser solicitados – inicialmente, é necessário transpor uma pequena passarela em meio ao “abismo” imposto pela topografia íngreme, para atingir o corpo edificado. Na sequência, às vezes, é necessário “ir para voltar” – atravessar todo o terraço-mirante, pausar, olhar o horizonte, para depois atingir a escada que conduz ao pavimento inferior; ou é necessário transpor todo o jardim em meio a espelhos d’água e volumes suspensos, para alcançar o acesso principal nos fundos do lote (Casa de Fim de Semana em São Paulo); ou ainda, percorrer um “túnel” rampeado e fechado por brises que promovem um rico jogo de luz e sombra, para alcançar o acesso do estar (Santana do Parnaíba). De qualquer forma, neste ritual de passagem, é necessário “transpor”, passear e preparar-se para as experiências que irão ser vivenciadas nas sequências espaciais das casas.

O ingresso nos setores sociais revela plantas livres, com salas e cozinhas sempre integradas e aberturas simultâneas para a paisagem e para os pátios ou vazios que separam os volumes da composição. O olho oscila entre diversos pontos focais, o corpo é solicitado a planejar um percurso diante das inúmeras possibilidades, pois os elementos de circulação vertical nunca estão no mesmo eixo. Para acessar os setores íntimos, é necessário, novamentente, “transpor”, atravessar as grandes salas e as escadas, numa promenade que exige olhar o intocável mundo exterior. O ato contemplativo também é imposto nos setores íntimos, onde banheiros se agrupam ou se internalizam, para abrir amplamente os quartos para a paisagem.

Assim, os caminhos se alongam, se bifurcam, se sobrepoem, impondo experiência com múltiplos pontos focais e promotoras de diferentes sensações. Tais características, pouco entediantes, aproximam estas casas da cidade de Esmeraldina de Calvino:

"Em Esmeraldina [...] a linha mais curta entre dois pontos não é uma reta mas um ziguezague que se ramifica em tortuosas variantes, os caminhos que se abrem para o transeunte não são dois mas muitos [...]. Desse modo, os habitantes de Esmeraldina são poupados do tédio de percorrer todos os dias os mesmos caminhos. E não é tudo: a rede de trajetos não é disposta numa única camada: segue um sobe-desce de escadas, bailéus, pontes arqueadas, ruas suspensas. Combinando segmentos dos diversos percursos elevados ou de superfície, os habitantes se dão o divertimento diário de um novo itinerário para ir aos mesmos lugares. Em Esmeraldina, mesmo as vidas mais rotineiras e tranquilas transcorrem sem se repetir" (14).

Ercília e Esmeraldina são pertencentes ao grupo das “cidades e as trocas” de Calvino, onde emerge o problema das circulações e que, através dos atores urbanos, transforma o que é rotina, torna mutantes o que é rígido (15). Assim como nestas cidades de Calvino, criar uma rede de circulação complexa e promotora de experiências espaciais surpreendentes parece ser outro dos interesses centrais destas casas.

Nelas, deslocar, subir e descer não é uma atividade meramente funcional. A premissa moderna de eficiência e compacidade da rede circulatória é relativizada, sugerindo não os caminhos mais curtos, mas talvez os mais agradáveis aos olhos que deslizam entre frente-lado e acima-abaixo; não os percursos autônomos entre os setores, mas a sociável passagem obrigatória pelas salas de estar; não os percursos únicos e econômicos, mas a oferta de várias opções para “passear” pela casa. Como mesmo afirma Bucci, o interesse está em esparramar cenas e não juntá-las, mesmo que aquilo venha se constituir num todo.

SPBR e outras narrativas

As narrativas destas casas é acompanhada por narrativas anteriores, posteriores ou simultâneas promovidas por outras casas do próprio escritório SPBR. Não tão “fantásticas” quanto as aqui apresentadas, esssas outras casas podem compor distintas séries tipológicas (16) que, por sua vez, hibridizam-se entre si e, possivelmente, com esquemas tipológicos adotados em outros programas (17). A construção do “texto doméstico” do SPBR é, portanto, complexa, com referências nem sempre precisas, mas que demostram certos modos recorrentes de “narrar”, o que também pode remeter ao texto de Calvino, ao agrupar cidades em torno de temas comuns.

Linha cronológica e agrupamento tipológico das casas do escritório SPBR
Desenho da autora [Imagens do acervo SPBR]

A investigação residencial do SPBR, segundo o site do escritório, começa a ser desenvolvida nos anos 2000. Algumas casas deste período configuram o grupo tipológico denominado G1. Este grupo se caracteriza pelo uso de volumes compactos apoiados sobre pilotis, com as alas dos setores social e íntimo dispostas em lados opostos. Nesse esquema, podem ser observados dois subgrupos: o de casas com proporções quadráticas, em que a escada e a cozinha compartimentada ocupam uma posição central, segregando as alas entre si – Aldeia da Serra, de 2001 (18), e Cotia, de 2008; e o de casas com proporções retangulares, onde as alas são segregadas por um pátio central e conectadas por uma ala que envolve a cozinha – Ribeirão Preto, de 2000, e Casa e Salão em Orlândia, de 2007. Formalmente, estas casas vinculam-se ao vocabulário da escola paulista dos anos 50 e 60, especialmente ilustrado por projetos de Vilanova Artigas e Paulo Mendes da Rocha (19). Contudo, os arranjos espaciais e as soluções estruturais adotadas evidenciam estratégias projetuais próprias, destacando-se a estrutura da Casa Ribeirão Preto que, segundo Bucci, fundamenta a solução que veio a ser empregada posteriormente na Casa Ubatuba.

Casas do grupo G1: Aldeia da Serra, 2001, com proporções retangulares, e Ribeirão Preto, 2000, com proporções retangulares. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos
Desenhos de Gabriela Costa, 2015; Mariana Samurio, 2016 [https://www.ufrgs.br/casacontemporanea]

Posteriormente, as casas agrupadas como G5 – Orlândia, de 2011, e Jardim Europa, de 2014 –, bem como a própria Santana do Parnaíba, de 2013, podem representar modelos que hibridizam estes arranjos – volume sobre pilotis, pátio e alas dispostas frente-fundos – a outros esquemas tipológicos, quer por imposição das distintas configurações dos lotes, quer por demandas do programa, quer pelo desejo progressivo de impor espacialidades mais complexas aos projetos. De qualquer modo, estes exemplos demonstram flexibilidade no tratamento do pressuposto esquema tipológico, entendido como uma estrutura ou princípio interior da forma que, abordado de modo aberto, permite inúmeras variações formais, levando até mesmo à própria modificação ou superação do esquema formal original (20). Assim, os arquitetos “escapam”, como sugere Moneo (21) ou “neutralizam”, como sugere Argan (22), as rígidas referencias do passado, que são aceitas como um patrimônio de imagens e significados simbólicos, mas que são apropriadas ou reinterpretadas com um novo juízo de valor, em busca de soluções mais adequadas ao seu tempo e seus distintos contextos.

A hibridização de esquemas tipológicos e a pesquisa por espacialidades complexas, amparadas por sistemas estruturais arrojados, podem ainda ser ilustradas pelas casas agrupadas como G2 – Carapicuíba, de 2003 (23), e Santa Tereza, de 2004. Além dos aspectos fisionômicos que ainda remetem ao vocabulário paulista, especialmente na Santa Tereza (24), observa-se que ambas as casas usam estratégias similares de acomodação na topografia íngreme do terreno – fragmentam o partido em dois volumes, estando estes mediados por um pilotis. Nestes projetos, são testados esquemas de vigas invertidas que atirantam as lajes dos pavimentos inferiores, levando à redução do número de apoios, o que será posteriormente perseguido nas casas destacadas neste estudo.

Casas do Grupo G2 e seus esquemas estruturais: Carapicuíba, 2003; Santa Tereza, 2004. Arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos. Desenhos Amanda Andreghetti, Eduarda Soares, Nathalie Wood, Rayssa Marques, 2012; Gabriela Costa, 2014; Ana Menuzzi, 2016 [https://www.ufrgs.br/casacontemporanea]

As casas aqui estudadas – G3 –, por sua vez, podem ter ainda estreitas relações com casas que Paulo Mendes da Rocha desenvolve da década de 1970 – G. de Cristófero, de 1971, Paulo e Lucia Francini, de 1975, e Helena Ometto, de 1979. Não são desprezíveis ainda possíveis relações dessas casas com soluções parciais desenvolvidas a partir dos projetos das casas aqui agrupadas como G5 e G6 (25) e de projetos voltados a outros programas arquitetônicos, o que exigiria uma investigação mais aprofundada.

Relação entre os cortes das casas G. de Cristófero, 1971, arquiteto Paulo Mendes da Rocha, e Casa Ubatuba, 2005, arquiteto Angelo Bucci / SPBR Arquitetos
Desenho de Stefânia Tonet [ZEIN, 2000, p. 281-282 / https://www.ufrgs.br/casacontemporanea]

Assim, a linguagem arquitetônica adotada nas casas destacas nesse trabalho se constrói através de uma complexa rede de relações entre soluções arquitetônicas. Isso, contudo, ainda permite retornar ao tema central que as une, mesmo que tenuamente, mesmo que por uma motivação poética comum.

As casas e o texto

A análise proposta revela um complexo universo projetual que permite diversas interpretações e exige releituras. Depara-se com uma quarta dimensão, uma ilusão ou um jogo de espelhos, onde a abordagem poética isolada não revela o “sentido” das obras e tão pouco a abordagem tipológica das mesmas se mostra absoluta. Fundindo essas duas abordagens, constrói-se algumas certezas (provisórias) que sobrevivem ao lado de dúvidas permanentes.

De qualquer modo, o exercício proposto se mostra prazeroso, tal como a leitura da envolvente obra de Calvino que oferece seus textos como um espaço de experiências (26). Deleitosa e fantasiosamente, percorrendo as casas estudadas, escolhendo caminhos a seguir, depara-se com uma “ordem desconfortável e atraente” e com um sentimento como o dos habitantes da cidade teia de aranha de Otávia – sobre o abismo, sabe-se que rede não resistirá mais que isso (27).

notas

1
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Tradução Diogo Mainardi. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p. 71.

2
MOREIRA, Maria Elisa Rodrigues. Ítalo Calvino, mundo escrito e mundo não escrito. Zunái – Revista de Poesia & Debates, ano IX, n. XXVI, mar. 2013 <www.revistazunai.com/ensaios/maria_elisa_moreira_italo_calvino.htm>.

3
Bucci tem graduação (1987), mestrado (1998) e doutorado (2005) pela Universidade de São Paulo (USP), onde passou a atuar como professor em 2001. Entre 1987 e 1992, fundou o escritório Arquitetura Paulista, com os arquitetos Álvaro Luís Puntoni e Álvaro Mahfuz Razuk, e, entre 1996 e 2002, dedicou-se ao escritório MMBB, onde atuou como sócio-fundador, com os arquitetos Fernando de Mello Franco, Milton Braga e Marta Moreira.

4
Um possível interesse de Bucci por narrativas mais fantásticas ou surreais pode se explicitar através de sua admiração pelo arquiteto paraguaio Solano Benitez Vargas que, segundo o próprio Bucci, comunga da tradição surrealista da América Espanhola, em contraposição ao Brasil, com tradição mais concretista. FIGUEROLA, Valentina. Um arquiteto em busca de razões. AU – Arquitetura e Urbanismo, n. 137, ago. 2005 <www.au.pini.com.br/arquitetura-urbanismo/137/artigo22207-1.aspx>.

5
Bucci projeta com a colaboração de jovens arquitetos. Na sua equipe, atuam de modo mais constante os arquitetos Nilton Suenaga, Tatiana Ozzetti, Ciro Miguel, João Paulo M. de Faria, Juliana Braga. Além destes, atuaram em algum ou alguns destes projetos: Fernanda Cavallaro, Victor Próspero. Eric Ennser, Lucas Nobre, Flávia P. Costa, Beatriz Marques e Beatriz Brandt.

6
MARTÍ ARÍS, Carlos. Las variaciones de la identidad: ensayo sobre el tipo en la arquitectura. Barcelona, Colegio de Arquitectos de Cataluña, 1993.

7
CALVINO, Ítalo. Op. cit. Destaque da autora.

8
CALVINO, Ítalo. Op. cit., p. 73. Destaque da autora.

9
CALVINO, Ítalo. Op. cit., p. 73. Destaque da autora.

10
PORTAL VITRUVIUS. Casa de fim de semana em São Paulo. Arquiteto Angelo Bucci. Projetos, São Paulo, ano 14, n. 160.02. Vitruvius, abr. 2014. <www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/14.160/5130>.

11
CALVINO, Ítalo. Op. cit., p. 49. Destaque da autora.

12
MONTEIRO, Evandro Ziggiatti. Cidades invisíveis visitadas. Uma leitura de Ítalo Calvino para compreender a paisagem urbana. Resenhas Online, São Paulo, ano 08, n. 085.02, Vitruvius, jan. 2009 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/08.085/3050>.

13
CALVINO, Ítalo. Op. cit., p. 72. Destaque da autora.

14
CALVINO, Ítalo. Op. cit., p. 83. Destaque da autora.

15
MONTEIRO, Evandro Ziggiatti. Op. cit.

16
SAMURIO, Mariana; COSTA, Ana Elísia da. Escritório SPBR: um estudo comparativo entre casas contemporâneas. Relatório de pesquisa. Disponível em: <https://www.ufrgs.br/casacontemporanea/wp-content/uploads/2014/10/ESCRITÓRIO-SPBR-Um-Estudo-Comparativo-Entre-Casas-Contemporâneas.pdf>.

17
Sobre o tema, consultar: COSTA, Ana Elísia da; COTRIN, Marcio; GONSALES, Célia. Transformações no Esquema Base/Pilotis/Mirante: narrativas sobre casas contemporâneas brasileiras. Anais do IV ENANPARQ. Porto Alegre: UFRGS, 2016. Neste texto, são apontadas relações entre a Casa Carapicuíba, com a Clínica de Psicologia em Orlândia, desenvolvido junto ao MMBB, e o Projeto Residencial para o Concurso Elemental, desenvolvido com Álvaro Puntoni.

18
Projeto desenvolvido enquanto Bucci atuava junto ao escritório MMBB.

19
Sobre o tema, ver: COTRIM, Marcio. Vilanova Artigas. Casas Paulistas. São Paulo, Romano Guerra Editora, 2017; ZEIN, Ruth Verde. Arquitetura brasileira, escola paulista e as casas de Paulo Mendes da Rocha. Orientador Carlos Eduardo Dias Comas. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2000.

20
Sobre o conceito de tipo, ver: MAHFUZ, Edson da Cunha. Ensaio sobre a razão compositiva. Viçosa: UFV; Belo Horizonte, AP Cultural, 1995; MARTÍ ARÍS, Carlos. Las variaciones de la identidad: ensayo sobre el tipo en la arquitectura. Barcelona, Colegio de Arquitectos de Cataluña, 1993.

21
MONEO, Rafael. On Tipology. Opositions, n.13, Cambridge, MIT Press, 1978.

22
ARGAN, Giulio Carlo. Sul concetto di tipologia architettonica. Progetto e destino. Milão, Il Saggiatore, 1965.

23
Projeto desenvolvido em parceria com Álvaro Puntoni.

24
Além do emprego de empenas cegas em concreto, comum no vocabulário paulista, pode-se perceber relações da Casa Santa Tereza com a casa Sílvio Antônio Bueno Neto (1978), de Paulo Mendes da Rocha. Em ambas, se observa a inerpenetração de volumes dispostos em diferentes níveis, em que o volume principal se comporta como um “pórtico envolvente”.

25
As casas do G5 se caracterizam pelo arranjo linear, com uma grande cobertura que absorve sob si volumes isolados. Volumes compactos e características isoladas configuram as casas do G6.

26
MOREIRA, Maria Elisa Rodrigues. Italo Calvino, mundo escrito e mundo não escrito. Zunái Revista de Poesia & Debates, ano IX, n. XXVI, mar. 2013 <www.revistazunai.com/ensaios/maria_elisa_moreira_italo_calvino.htm>.

27
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. Op. cit.

sobre a autora

Ana Elísia da Costa é arquiteta pela UCG (1993), com mestrado (2001) e doutorado (2011) em Arquitetura pela UFRGS, tendo realizado pesquisas no Instituto Universitário de Arquitetura da Veneza, em 2005. É professora adjunta da graduação em Arquitetura da UFRGS e da pós-graduação do PPGAU da UFPel. Desde 2014, coordena a pesquisa A Casa Contemporânea Brasileira.

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