Devemos observar, a princípio, as mudanças que ocorriam em plano nacional e que, de certa maneira, influenciaram a criação do Instituto Tecnológico de Aeronáutica – ITA, instalado inicialmente na Praia Vermelha no Rio de Janeiro e mais tarde transferido para São José dos Campos. A ação do Estado, além de ser percebida no controlo e uso da terra e expansão urbana, era estendida à criação de entidades de Ensino Superior, como já apontamos acima em relação à criação do ITA.
Há, contudo, uma diferença marcante entre a instalação do ITA no território joseense e a Faculdade de Direito que lhe seguiu. A primeira se inscreve no plano político nacional, como parte das tarefas colocadas à Educação Brasileira pelo projeto nacional desenvolvimentista. Já a criação do curso de Direito vincula-se fortemente com a mudança do contexto local, marcado especialmente pelas relações entre antigos moradores da cidade e os novos habitantes, motivados pela acelerada industrialização do município naquele momento.
Nilda Nazaré Pereira Oliveira atenta para o fato de que aqueles que formariam a sociedade científica de São José dos Campos (podemos dizer uma nova elite em gestação) eram quase todos estrangeiros, e os joseenses empregados pelo Instituto vinham ocupar posições como as de assistentes, auxiliares ou técnicos (1). A Faculdade de Direito viria, assim, no sentido de um esforço para criar um maior “equilíbrio cultural” entre os antigos moradores do lugar e uma camada migrante, nacional e estrangeira, que se distinguia por sua qualificação. Neste sentido, vale mencionar que até então a cidade não possuía o Ensino Médio, tendo sido sua implantação uma tarefa que precedeu a criação da Faculdade. Assim, Orlando Campos, prefeito municipal entre os anos de 1954 a 1957, autorizou a concessão de 200 mil cruzeiros a serem pagos anualmente para ajudar na instalação, manutenção e criação do Curso de Direito (2).
A busca do país por afirmar-se no plano político-econômico internacional, em que a tecnologia era vista como desempenhando um lugar central, trouxe a São José dos Campos os investimentos federais necessários à criação do primeiro curso de engenharia no país voltado ao setor aeronáutico. Não se pode pensar o Instituto recém-criado como voltado a atender uma demanda local. Mesmo porque os jovens joseenses, como vimos, nem contavam com escolas do ensino médio que os habilitassem aos estudos universitários. Não se subestima aqui a demanda por profissionais do Direito trazidas pelas mudanças na economia municipal. Mas o que se pode observar no trabalho de pesquisa foi a disputa entre antigos e novos moradores, em que os primeiros, ao se sentirem de certo modo inferiorizados, lançam mão dos recursos locais para que seus jovens também conquistassem seu “anelão”, na feliz expressão de Lima Barreto (3).
O ITA e o CTA: determinantes externos
Nesse período, temos a vinculação do momento de São José dos Campos a um processo nacional mais amplo. Como aponta Maria Aparecida Papali e colegas:
“Tem início um momento transformador para a população brasileira, quando o nacional-desenvolvimentismo da década de 1950 lança o esteio infraestrutural para a grande arrancada industrial que o país conheceria nas décadas posteriores. Nessa época, a concentração industrial consolida-se na região sudeste, principalmente no eixo Rio-São Paulo, propiciando que cidades ainda acanhadas como São José dos Campos ganhassem espaço e projeção” (4).
Em 1947 tiveram início as obras para a construção do Centro Técnico Aeronáutico – CTA, sendo as primeiras etapas concluídas em 1950, o que permitiu o funcionamento no segundo semestre daquele ano, recebendo alunos e docentes da Escola Técnica do Exército (5) no ITA, dentro de seu complexo. Em conjunto com a instalação da Companhia Rhodosá de Rayon, a General Motors e a Eaton na cidade; e a situação educacional e econômica em São Paulo, houve um grande processo de movimentação e transformação em São José dos Campos.
No início da década de 1950, a escolha de uma cidade que até o início do século 20 era mais conhecida por suas indústrias de laticínios e de cerâmica e seus sanatórios para a construção de um Centro Técnico de Aeronáutica ainda é discutido. Alguns pontos são salientados em interpretações desta opção. Em primeiro lugar, a curta distância da cidade aos grandes pólos econômicos da época, São Paulo e Rio de Janeiro, bem como a proximidade do Porto de São Sebastião.; mas, ao mesmo tempo, seus alunos não teriam “a movimentação e distração de uma cidade grande” (6).
A isto se somam os interesses locais. Segundo Souza e Costa, os governantes locais estariam conscientes de que uma estrutura propícia “à produção de ciência e tecnologia conduziria o município a um desenvolvimento sem semelhança a qualquer outro da região” e, dessa forma, mostravam-se amistosos com as negociações, oferecendo um grande lote de terras para a instalação do Centro (7).
De qualquer maneira, inaugura-se naquele momento um processo que modificará profundamente a vida social de uma cidade que, até então, destacava-se pelo acolhimento dos acometidos por tuberculose. Neste sentido, é importante sublinhar que, mesmo com a atividade sanatorial estar se enfraquecendo, dada as novas terapias, a administração da cidade permanece conduzida por sanitaristas ao longo da década de 1950, dando uma complexidade ainda maior à sociedade joseense.
Alguns fatores pressionam a transformação de São José dos Campos e sua sociedade naquele momento: um novo padrão de industrialização que se consolida na cidade, e antigas manufaturas dos ramos da cerâmica e tecelagem passaram a coexistir com empresas de alta tecnologia. Há, inclusive, um deslocamento da atividade industrial, com as novas fábricas se instalando às margens da recém-inaugurada Rodovia Pres. Dutra. No novo padrão, dois elementos merecem ser destacados. O primeiro refere-se ao tamanho das plantas industriais, quando se observa o crescimento do número de unidades fabris que empregam um grande número de operários (mais de 1.000), além do fato de que o novo padrão de industrialização traz a marca do absenteísmo de seus proprietários (8). Há um caráter de ruptura que se verifica no plano da economia, que faz autores como Fernando Henrique Cardoso concluírem que a partir desta característica entre as décadas de 1960/1970 deslancha o desfiguramento do passado de São José, realizando um corte histórico-estrutural (9).
A transformação da economia carreia outros processos que vão gradativamente mudar a vida da cidade. A urbanização da cidade se acentua naquele período. Em 1950, segundo dados do IBGE, a população da cidade era de 44.804, dos quais 26.600 (59,4%) habitavam o perímetro urbano. No recenseamento de 1960, já se percebe nitidamente um tendência de crescimento da taxa de urbanização. Naquele ano, São José dos Campos, contava com 77.533 moradores, 56.882 (73,4%) na área urbana.
É importante observar que o crescimento da população urbana se faz por processos migratórios motivados pela industrialização que se acelera no município naquele período. Ele não reflete um deslocamento da população rural para o perímetro urbano. Ao contrário, entre os anos 1950 e 1960, esta continua crescendo em nível bem menos acelerado que a urbana, com taxas de 13,4% (de 18.204 a 20.651), contra 113,8% (de 26.600 a 56.882) respectivamente.
Embora os três processos – industrialização, urbanização e migração – caminhem juntos, é no último que queremos nos fixar. A chegada de novos habitantes à cidade implicou na constituição de fronteiras entre estes e aqueles que já habitavam o lugar. Fronteiras mais simbólicas que físicas, uma vez que migrantes e antigos moradores coabitavam a mesma área da cidade (à exceção dos que se instalaram no CTA), em que vão se distinguir particularmente por seus hábitos e capital cultural. Tem início um jogo identitários dando origem a sistemas classificatórios distintos, apontando a disputa por prestígio entre os dois grupos.
Diferenças, Estabelecidos/Outsiders e dois sistemas classificatórios na cidade
Embora o ITA satisfizesse consideravelmente o ensino superior de ciências exatas na cidade de São José dos Campos, não havia nenhum curso voltado para ciências humanas e sociais. Um grupo que envolvia os dirigentes da Sociedade Civil Mantenedora começou a pensar sobre a implantação de uma Faculdade de Filosofia, mas mudaram de ideia para que pudessem fundar, imediatamente, uma Faculdade de Direito na cidade (10). Tal decisão pode ter sido tomada por conta de, diferente de outros cursos, as faculdades de Direito não exigiriam investimentos em instalações de laboratórios ou equipamentos específicos necessários para o seu funcionamento (11).
No entanto, a criação de uma Faculdade na cidade também pode ser entendida como uma resposta à chegada de famílias de fora do país e de diferentes estados para compor o ITA e o CTA. Como observou Ângela Savastano em sua entrevista ao projeto Patrimônio Humano, havia um grande descompasso entre os costumes da cidade de São José dos Campos e das pessoas do CTA na década de 1950, que foi percebido pela depoente principalmente nos mercados da cidade:
“Então é veio um pessoal diferente pra São José e esse, e nessa, a primeira diferença que eu como criança senti foi a chegada desse pessoal, porque eles chegaram em São José com os costumes, com o comportamento diferente. Por exemplo no mercado, eles não se portavam como os daqui da região, que a gente negociava, o vendedor a gente é ... é pechinchava né [...] Eles não. Eles não perguntavam nem o preço, às vezes eles compravam muito e compravam e não pegavam nem o troco. Então foi assim uma... uma... como é que se diz, um modo diferente de negociar” (12).
O descompasso entre a vida dos cidadãos brasileiros e o ITA também foi evidenciado pelo depoente Ruy Rodrigues Dória Filho, em que ele conta como que os estudantes do ITA fizeram uma ‘brincadeira’ com os moradores de São José dos Campos ao fingir que tinham construído um foguete:
“eu me lembro de um fato até pitoresco e muito engraçado, pelo inusitado do fato em si na época, os alunos do ITA construíram, acho que deve ter sido por volta de 1960, 1961, na época do Sputinik, deve ser por aí, construíram um foguete, montaram o foguete atrás da Igreja da matriz ali na orla do Banhado e convocaram a população toda para ir ver o lançamento desse foguete, e era tudo uma montagem, uma brincadeira dos alunos do ITA, e a população inteira de São José foi assistir o lançamento do foguete construído aqui em São José dos Campos, era um negócio interessante para época né” (13).
É possível perceber uma inversão da teoria de Norbert Elias e John Scotson de “estabelecidos” e 'outsiders': enquanto para Elias e Scotsonos “establishment” eram autopercebidos e reconhecidos como uma sociedade boa, poderosa e melhor, os outsiders eram vistos como “os não membros da 'boa sociedade', os que estão fora dela” (14), um grupo de pessoas unidas por laços pouco intensos - em uma inversão, podemos perceber que são os grupos do ITA e do CTA que se sentem como ‘estabelecidos’, vendo-se como pessoas melhores do que os joseenses, que aqui se colocam como os ‘outsiders’, não sendo percebidos como uma sociedade com fortes laços, com “tradição, autoridade e influência” (15).
Isso nos leva a uma questão de hierarquização espacial, que envolve mediações políticas, econômicas e sociais. Para Bourdieu, a ideia de diferença e separação está inbuída no próprio fundamento da noção de espaço, que já é definido como um “como “conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento e, também, por relações de ordem” (16). Contribuindo para a nossa hipótese utilizando Elias e Scotson, Bourdieu também acredita que os lugares no espaço são definidas por posições geradas pelo volume e composição do capital – econômico, cultural ou simbólico. Esses capitais são distribuídos desigualmente e, em nosso caso, tanto o capital econômico quanto o cultural e simbólico estiveram presentes em grandes medidas na representação e percepção da população sobre o ITA/CTA (conforme pudemos ver pelos depoimentos de Ângela Savastano e Ruy Rodrigues Dória Filho, que evidenciaram esse impacto).
Assim, é possível que a cidade tenha buscado responder a esse descompasso criando a sua própria Faculdade e implantando o seu Ensino Médio.
A Faculdade de Direito no reequilíbrio das relações
Em Janeiro de 1954, Moura Rezende, Secretário da Educação de São Paulo, enviou um ofício ao Prefeito Municipal de São José dos Campos comunicando a criação da Faculdade de Direito, que foi publicado no jornal O Correio Joseense em 3 de Janeiro de 1954, comunicando com “grata satisfação” a criação da “Faculdade de Direito nessa progressista cidade” (17). No mesmo ano, diversas outras publicações foram feitas relacionando a criação da Faculdade com o progresso da cidade: quando da notícia da criação da uma Escola de Farmácia e Odontologia, escreveu-se que a “população que vê nessa escola superior, mais um grande fator em favor da cidade que caminha a passos largos na conquista dos mais elevados elementos de progresso, em todos os setores” (18). Já em 1957, durante a construção do prédio que abrigaria a Faculdade de Direito, o jornal exaltou que finalmente
“São José dos Campos que terá a honra e a glória de possuir uma academia à altura do progresso do nosso Estado, já tão credenciado com a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em São Paulo, de onde saíram os grandes juristas do Brasil” (19).
Durante o período republicano o diploma de ensino superior era essencial para ter acesso à elite política que, por sua vez, eram composta em sua maioria por bacharéis - além disso, os ocupantes de grandes cargos nacionais eram formados em Direito: “sete dos doze presidentes da velha República eram formados pela Academia Paulista de Direito” (20). No entanto, no tempo dessas publicações, a cidade tinha pouco mais de 44 mil habitantes , com uma população urbana de 26.600 pessoas (21) – uma cidade pequena em todos os aspectos. Como observou Amilton Maciel Monteiro em seu livro sobre a história da Universidade do Vale do Paraíba, acreditava-se que a instalação dos
“Cursos Jurídicos, entre outros méritos, têm o condão de descortinar horizontes culturais e aprimorar a cidadania do povo. Sabiam que, depois da promulgação da Lei Imperial de 11 de Agosto de 1827, que criou os dois primeiros Cursos Jurídicos no Brasil, um em São Paulo e outro em Olinda, nenhum grande acontecimento da nossa Pátria deixou de ter a participação dessas escolas superiores” (22).
Assim, os fundadores da Faculdade passaram a esperar “que, assim como aconteceu com o Brasil, a instalação de uma Faculdade de Direito em São José dos Campos, algo de semelhante também devesse provocar”: ao ser instalado na cidade, com certeza a Faculdade de Direito também formaria alunos e figuras ilustres na cidade e no Brasil, além de, em breve espaço de tempo, abrir “aos futuros formandos de São José um imenso campo de trabalho, quer na advocacia, quer em muitos outros misteres de cunho intelectual” (23).
Em um período de transformações em sua configuração urbana, com a instalação de diversas fábricas e, agora, Faculdades e instituições de ensino, São José dos Campos em 1950 estava se consolidando como um pólo industrial. A Faculdade se instalou na posteriormente nomeada praça “Cândido Dias Castejón”, “cuidadosamente ajardinada”, observou Agê Junior, é “onde se encontra o portentoso edifício da Faculdade de Direito, e linhas modernas e funcionais, onde funcionam outras faculdades, tornando-se o ponto de reunião da vida acadêmica da cidade” (24).
É possível perceber um relacionamento íntimo entre a cidade de São José dos Campos e a Faculdade de Direito, em que é notável que a cidade se sentia honrada em possuir uma academia de onde poderiam sair grandes juristas, e vendo-a como parte do progresso econômico e social da cidade. Como observou um dos diretores da Faculdade de Direito e que foi aluno da segunda turma,
”o prédio começou em 58 com o auxílio é de verba consignada do orçamento do Estado de São Paulo, e uma pequena verba da prefeitura municipal e também com o dinheiro arranjado entre colaboradores aqui da cidade. O prédio começou imponente, a planta da do prédio era ambiciosa e hoje nós temos esse prédio que realmente é um prédio que começou a funcionar efetivamente em 1961, os ex-alunos de 61 já vieram para cá, e está ainda a firme, é um prédio que ainda tem uma presença na cidade marcante, é um marco” (25).
Ainda para Regina Célia Lopes Araújo, a espacialização das universidades são exemplos da configuração do surgimento, através das idéias de modernização, construção e desenvolvimento da nacionalidade brasileira, do discurso urbanístico no país, de forma que as primeiras instituições de ensino no país representavam “dos valores ideológicos da sociedade brasileira e de sua organização política e cultural” (26). Além disso, desde o século 19, se formava uma gama de intelectuais, professores e alunos, em torno de uma Faculdade de Direito, criando então um círculo cultural local e a produção de um modelo de vida cultural e, como observou Marlos de Barros Pessoa, o “centro urbano da região é símbolo de formação jurídica – portanto de bacharéis”, atraindo para si importantes intelectuais. Desde esse momento, como foi ilustrado por Amilton Maciel Monteiro a referência aos séculos passado, a conclusão de uma Faculdade de Direito qualificava o indivíduo para o acesso à burocracia, “permitindo-lhe a ascensão dentro das elites governamentais e administrativas” (27).
Considerações finais
Nossa hipótese foi a de quede que a criação da Faculdade de Direito se deu como uma resposta da elite joseense à instalação do ITA/CTA na cidade no final da década de 1940. Isso nos leva a uma questão de hierarquização espacial, que envolve mediações políticas, econômicas e sociais. Para Bourdieu, a idéia de diferença e separação está imbuída no próprio fundamento da noção de espaço, que já é definido como um “como “conjunto de posições distintas e coexistentes, exteriores umas às outras, definidas umas em relação às outras por sua exterioridade mútua e por relações de proximidade, de vizinhança ou de distanciamento e, também, por relações de ordem” (28). Contribuindo para a nossa hipótese utilizando Norbert Elias e John Scotson, Bourdieu também acredita que os lugares no espaço são definidas por posições geradas pelo volume e composição do capital – econômico, cultural ou simbólico. Esses capitais são distribuídos desigualmente e, em nosso caso, tanto o capital econômico quanto o cultural e simbólico estiveram presentes em grandes medidas na representação e percepção da população sobre o ITA/CTA (conforme pudemos ver pelos depoimentos).
As posições neste espaço social expressaram as relações de dominação entre as classes sociais e as relações de hierarquia e as estruturas sociais, que materializadas na estrutura espacial (o fechamento e afastamento do ITA/CTA da cidade), fecharam-no para a cidade, sendo percebida pela comunidade de seu entorno como local restrito, interditado e privilegiado, resultando, como apresentamos em nossa hipótese, na criação da própria faculdade da cidade. Retomando o conceito de campo, que faz parte do corpo teórico da obra de Pierre Bourdieu, podemos perceber a cidade também como “um espaço de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais, espaço de disputa e jogo de poder” (29). Além disso, como observou Maria Ceci Araujo Misoczky em sua análise sobre Bourdieu e Wacquant, os atores lutam no espaço socialmente estruturado dependendo das posições que ocupam no campo, seja ela para mudar ou para preservar sua forma e limites – que é sempre um objeto de disputa no campo. Dessa forma, “os participantes do campo trabalham, constantemente, para se diferenciar dos seus rivais mais próximos, para reduzir a competição e estabelecer um monopólio sobre um subsetor particular do campo. Assim, os esforços constantes dos membros do campo para impor critérios de competição e de pertencimento podem ser mais ou menos bem sucedidos, dependendo das conjunturas particulares” (30).
Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda menciona que na sociedade brasileira os títulos honoríficos, cartas e anéis de baixarem ainda merecem crédito apesar de serem virtudes senhoriais, e que estes podem ser vistos como decorrência da formação agrária e colonial brasileira, relacionando-a com brusca transição da vida rural para a urbana (31). Assim, os principais atores envolvidos na criação da Faculdade pretendiam melhorar não apenas a sua imagem e a representação dela, mas também a da cidade perante aos outsiders. Embora Bourdieu não se refira a 'representações sociais' (diferentemente de Durkheim), ele utiliza o conceito de 'representações', divididas em “representações mentais” – “atos de percepção e de apreciação, de conhecimento e de reconhecimento, em que agentes investem seus interesses e pressupostos” (32) – e “representações objetais” – que o autor define como podendo ser “coisas”, como bandeiras, insígnias, emblemas etc.; ou atos, “estratégias interessadas de manipulação simbólica tendentes a determinar a representação” mental (33). As representações se materializam em práticas e relações sociais, assim como em instituição. Assim, Bourdieu nos permite analisar a posição de grupos e suas relações, sendo o habitus é um conceito fundamental para entender a ideia de representações, em Bourdieu, porque articula as ideias e as práticas sociais que são os dois elementos de oposição dentro da qual o conceito de representação aparece no pensamento filosófico e sociológico do autor.
Ou seja, a partir desse referencial teórico, será possível analisar não apenas a ação dos atores, mas suas experiências passadas, seus históricos de modo geral e como suas ações refletiram na construção da Faculdade que viria a ser um ponto de encontro da vida acadêmica da cidade e um símbolo de progresso conforme foi possível concluir com a análise de jornais e publicações da época. Com base neste referencial, um novo olhar sobre as relações sócio-espaciais entre campus universitário e seu entorno urbano, a partir da realidade empírica entre a Faculdade de Direito e a cidade de São José dos Campos foi, então, construído. Realidade esta agora entendida a partir da relação entre seus espaços físicos e sociais, como partes integrantes, estruturantes e estruturadas, das relações que os indivíduos e grupos sociais mantêm entre si e que imprimem marcas diferenciadas à sua história e natureza.
notas
1
OLIVEIRA, Nilda Nazaré Pereira. Entre o criar, o copiar e o comprar pronto: a criação do ITA e do CTA como instituições de ensino e pesquisa para a consolidação da indústria aeronáutica brasileira (1945-1990). Tese de doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo, 2008.
2
MONTEIRO, Amilton Maciel. Elementos históricos da Univap e de seu berço. Pró-Reitoria de Cultura e Divulgação. São José dos Campos, Univap, 2002, p. 18.
3
BARRETO, Lima de. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo, Clube dos Autores, 2012, p. 60.
4
PAPALI, Maria Aparecida; COSTA, Sandra Fonseca da; ZANETTI, Valéria; ALMEIDA, Douglas de; CARVALHO, Luciane do Carmo Guimarães de. Dinâmica urbana da zona leste de São José dos Campos, SP e a Refinaria Henrique Lage (REVAP). In: Crescimento urbano e industrialização em São José dos Campos. COSTA, Sandra Maria Fonseca de; MELLO, Leonardo Freire de (Orgs). São José dos Campos, Intergraf, 2010, p. 145.
5
MATIAS, Benedito Rodrigues. Monografia estatístico coreográfica de São José dos Campos – SP. 15 jul. 1977, p. 90. Disponível no Acervo do CEHVAP.
6
OLIVEIRA, Nilda Nazaré Pereira. Entre o criar, o copiar e o comprar pronto: a criação do ITA e do CTA como instituições de ensino e pesquisa para a consolidação da indústria aeronáutica brasileira (1945-1990). Tese de doutorado. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008, p. 124.
7
SOUZA, Adriane Aparecida Moreira; COSTA, Wanderley Messias da. Atividades industriais no interior do Estado de São Paulo: Uma análise da formação do complexo tecnológico-industrial-aeroespacial de São José dos Campos. In: Crescimento urbano e industrialização em São José dos Campos. COSTA, Sandra Maria Fonseca de; MELLO, Leonardo Freire de (Orgs). São José dos Campos, Intergraf, 2010, p. 103.
8
CARDOSO, Fernando Henrique. População e Crescimento Econômico - Notas sobre a estrutura sócio-econômica de São José dos Campos. <http://acervo.ifhc.org.br/ModuloPesquisador/principal/anexo?acao=abrirDocumentoDoContent&anexo=16077001&fichaId=16077&iframe=true&width=100%&height=100%>
9
Idem, ibidem.
10
MONTEIRO, Amilton Maciel. Elementos históricos da Univap e de seu berço. Pró-Reitoria de Cultura e Divulgação. São José dos Campos, Univap, 2002, p. 19.
11
MAKSOUD, Henry. Projeto de Estruturação e Estudo de Viabilidade Econômica da Universidade de São José dos Campos. Relatório HE106-R1-770, jul. 1970, p. 26. Acervo do CEHVAP.
12
SAVASTANO, Ângela. Entrevista concedida ao projeto de Patrimônio Humano de São José dos Campos em 1992, p. 8. DVDS e transcrição disponíveis no Pró-Memória de São José dos Campos.
13
FILHO, Duy Dória. Entrevista concedida ao projeto de Patrimônio Humano de São José dos Campos em 1992, p.5. DVDS e transcrição disponíveis no Pró-Memória de São José dos Campos.
14
ELIAS, Norbert; SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2000, p.7.
15
Idem, ibidem.
16
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre uma teoria da ação. 8ª edição. Campinas, Papirus, 2007, p. 18-19.
17
Prefeitura da Estância de S. José dos Campos. Comunicado da Prefeitura – Criação da Faculdade de Direito. Correio Joseense, São Paulo, 3 jan. 1954. Disponível no Arquivo Público do Município de São José dos Campos.
18
A criação da Escola de Farmácia e Odontologia. Correio Joseense, São Paulo, 10 jan. 1954. Disponível no Arquivo Público do Município de São José dos Campos.
19
Uma Realidade a Construção do Prédio da Faculdade de Direito. Assinado contrato com importante firma – Os trabalhos serão iniciados imediatamente. Correio Joseense, São Paulo, 25 ago. 1957. Disponível no Arquivo Público do Município de São José dos Campos.
20
TRIGO, Maria Helena Bueno. Os paulistas de quatrocentos anos: ser e parecer. São Paulo, Annablume, 2001, p. 63.
21
SÃO JOSÉ EM DADOS. Informações sobre a cidade de São José dos Campos. Governo do Estado de São Paulo, 2012 <https://www.sjc.sp.gov.br/media/293116/saojoseemdados4_fev.pdf>.
22
MONTEIRO, Amilton Maciel. Elementos históricos da Univap e de seu berço: São José dos Campos. Rascunho enviado para análise da Pró-Reitoria de Cultura e Divulgação. São José dos Campos, Univap, 1997, p. 33.
23
Idem, ibidem.
24
JUNIOR, Agê. São José dos Campos de 1900 a 1980. São Paulo, Santuário, 1981, p.48
25
PIMENTEL, Francisco José de Castro. Entrevista realizada pela TV Univap em 1994. Cedida ao Centro de História da Univap (CEHVAP) em 2016, disponível para consulta no Acervo, p. 3-4.
26
ARAUJO, Regina Célia Lopes. A Universidade e a Cidade: um estudo de caso do Campus Seropédica da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Anais IV Enanparq – Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Porto Alegre, 25-29 jul. 2016 <https://enanparq2016.files.wordpress.com/2016/09/s25-01-araujo-r.pdf>.
27
PESSOA, Marlos de Barros. Formação de uma variedade urbana e semi-oralidade: o caso do Recife, Brasil. Alemanha, Walter de GruyterGmbH&Co KG, 2003, p. 87.
28
BOURDIEU, Pierre. Razões práticas: sobre uma teoria da ação. 8ª edição. Campinas, Papirus, 2007, p. 18-19.
29
SETTON, Maria da Graça Jacintho. A teoria do habitus em Pierre Bourdieu: uma leitura contemporânea. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 20, 2002, p. 64.
30
MISOCZKY, Maria Ceci Araujo. O campo da atenção à saúde após a Constituição de 1988: uma narrativa de sua produção social. Tese de doutorado. Porto Alegre, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2002, p. 52.
31
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 26a edição. São Paulo, Companhia das Letras, 1995, p. 83 e 156.
32
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas linguísticas. São Paulo, Edusp, 1996, p. 107-108.
33
Idem, ibidem.
sobre os autores
Maria Helena Alves da Silva é graduada em História, cursando mestrado no Planejamento Urbano e Regional na Univap – Universidade do Vale do Paraíba. Maria Helena Alves da Silva, se graduó en Historia, estudiando Maestría en Planificación Urbana y Regional en Univap – Universidade do Vale do Paraíba. Maria Helena Alves da Silva, graduated in History, pursuing a master's degree in Urban and Regional Planning at Univap – University of Vale do Paraíba.
Maria Aparecida Chaves Ribeiro Papali é graduado em Historia pela Universidade do Vale do Paraíba, Mestrado em História do Brasil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Doutorado em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Licenciado en Historia por la Universidad de Vale do Paraíba, Master en Historia del Brasil de la Universidad Católica de San Pablo y doctorado en Historia Social de la Universidad Católica de Sao Paulo. Graduated in History from the University of Vale do Paraíba, Master in History of Brazil from the Pontifical Catholic University of São Paulo and PhD in Social History from the Pontifical Catholic University of São Paulo.
Antônio Carlos Machado Guimarães é graduado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, mestrado em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas e doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Licenciado en Ciencias Sociales por la Universidad Estatal de Campinas, Master en Antropología Social por la Universidad Estatal de Campinas y Doctor en Ciencias Sociales por la Universidad Católica de San Pablo. Graduated in Social Sciences from the State University of Campinas, Master's degree in Social Anthropology from the State University of Campinas and PhD in Social Sciences from the Pontifical Catholic University of São Paulo.