“Não suporto o cinema narrativo. Quanto mais ele conta história e quanto melhor o faz, maior fica minha resistência. O único meio de pensar um novo cinema é dar maior importância ao papel do espectador. Devemos encarar um cinema inacabado e incompleto para que o espectador possa intervir e preencher os vazios, as lacunas”
Abbas Kiarostami
"A meu ver, o narrativo inerente ao filme é o que de pior podia ter acontecido à Sétima Arte. Griffith nos colocou no caminho errado” (1). A declaração do cineasta britânico Peter Greenway – relacionada a D. W. Griffith, considerado o pai do cinema narrativo clássico – sintetiza de forma poderosa a obra de um dos cineastas mais cultuados na atualidade e que chamou a atenção do mundo para a cinematografia de seu país: o iraniano Abbas Kiarostami. Expoente do cinema produzido no Irã a partir do final dos anos 1980, o diretor explora sua capacidade de reflexão para criar uma obra singular que pensa o cinema enquanto linguagem, arte e ferramenta de representação do real. Seu formalismo próprio se une a uma estética social, dando origem a um cinema poético, político, metafórico, autorreflexivo e autorreferente.
Ao lado de Kiarostami, nomes importantes do cinema iraniano vêm se destacando nos últimos tempos, reforçando a vocação do Irã para produzir obras cinematográficas marcantes e que se distanciam dos padrões industriais. Encorpam a lista Mohsen Makhmalbaf, Samira Makhmalbaf, Jafar Panahi e, mais recentemente, Asghar Farhadi – ganhador de duas estatuetas do Oscar com os filmes O apartamento, em 2017, e A Separação, em 2012.
É importante se deter brevemente sobre as condições de produção cinematográfica no Irã, que, ainda hoje, preserva tradições e costumes milenares, tentando brecar a influência de outras nações e expressões culturais. Dentro das limitações políticas e econômicas impostas pelo país, os cineastas desenvolvem sua arte, que apresenta ares de certa simplicidade narrativa – oposta aos elaborados sons e montagens hollywoodianos, por exemplo –, apuro em seus elementos poéticos, força metafórica e um sem-fim de alegorias, visto que os meios de comunicação iranianos são fortemente censurados e controlados, cabendo a diretores e roteiristas, no caso específico do cinema, elaborarem formas de driblar a conduta de censura do governo.
Alessandra Meleiro explica que “estamos diante de um panorama em que artistas e intelectuais estão constantemente sob censura, opositores políticos são perseguidos e mortos e jornais reformistas são fechados. Todo o sistema de comunicação é controlado pelo governo e a televisão e todos os recursos da mídia forçam a informação para dentro de moldes cada vez mais padronizados. O cinema torna-se, assim, uma importante ferramenta de expressão dos iranianos fora do país” (2).
Após a revolução, em 1979, o Irã passou por um período de forte repressão e controle do governo. O aiatolá Khomeini, então presidente do país, sobrepunha, à política, orientações do islamismo. Jornais foram fechados, TVs passaram para o controle do Estado e imagens dos líderes Khomeini e Khamenei (sucessor de Khomeini) começaram a se espalhar pelo país e a dominar os meios de comunicação, bem como escolas e outros canais de expressão.
Nos primeiros anos após a revolução, o Irã viu sua produção cinematográfica, que era de cerca de 70 filmes por ano, cair consideravelmente a uma produção de 20 filmes anuais. Assim, aumentou o número de obras importadas, especialmente, dos Estados Unidos, gerando discordâncias no governo, que se dividia entre aqueles que enxergavam benefícios na exibição de filmes ocidentais, pois mostravam pessoas oprimidas pelo capitalismo, e aqueles que acreditavam que tais produções só aumentariam a dependência cultural e o imperialismo.
A partir deste cenário, a tarefa dos cineastas iranianos acabou sendo dupla: libertar olhar e mente dos espectadores da linguagem padronizada do cinema narrativo – que transmitia valores e “realidades” dissonantes daquilo que se vivia no Irã – e criar formas de passar pelo controle governamental para fazer o cinema iraniano chegar aos espectadores dentro e fora do país.
Na década de 1970, o cinema comercial no Irã chegou a uma fórmula inovadora: desenvolveu uma linguagem simbólica para fazer um cinema político que não esbarrasse na censura. Assim, foi possível se aproximar e abordar temas ligados aos problemas sociais, ao cotidiano repressivo e promover críticas – de forma implícita – ao governo. A linguagem cinematográfica no Irã também se formatou de acordo com o que permitiam os equipamentos racionados e obsoletos, além do pouco investimento financeiro e das dificuldades de produção em um país onde a liberdade de expressão não é assegurada. O resultado é um cinema aparentemente simples, sem inovações técnicas ou visuais, mas que subverte sua ordem. Um cinema que também refinou a abordagem de temas que ainda hoje são considerados tabus na sociedade iraniana, como homossexualidade, suicídio e estupro.
A estética desenvolvida pelos cineastas do Irã em muito se assemelha àquela dos realizadores do neorrealismo italiano, que surgiu no período pós-2ª Guerra Mundial. Mariarosaria Fabris (3) pontua algumas características da estética neorrealista facilmente encontradas no cinema do Irã, também chamado de neorrealismo iraniano: a presença de elementos históricos e temporais, elementos reais e imagens documentais, simplicidade técnica com recusa aos efeitos visuais, filmagem em cenários reais, atores não profissionais, baixos orçamentos, recortes de vivências coletivas e crítica social.
E foi no terreno pantanoso – mas, paradoxalmente, fértil – pós-revolução, que se desenvolveu o cinema de Abbas Kiarostami como conhecemos hoje. Nos anos 1960, Kiarostami foi diretor do Instituto para o Desenvolvimento Intelectual da Criança e do Adolescente, conhecido como Kanun, cujo objetivo era produzir filmes para crianças e jovens. Como grande parte de seus realizadores era formada por intelectuais, claramente nem todos os filmes eram para o público infanto-juvenil.
A história do Kanun pode ser resumida em três fases, que se fundem também com a história de Kiarostami, protagonista na produção do instituto. A primeira fase considera o período que vai de 1966 a 1979, momento de grande atividade do Kanun; a segunda fase, já no início da revolução, dura até 1990 e é nela que se estabelecem as semelhanças com o neorrealismo italiano, visto que a situação do país era arrasadora com as medidas adotadas pelos líderes políticos/religiosos; a terceira e última fase do Kanun, já nos anos 1990, marca uma ruptura com as atividades em pleno vapor que o instituto vinha desenvolvendo até então, pois os novos dirigentes do país decidiram aumentar o controle sobre os cineastas, o que os levou a enveredar para produções independentes.
É a partir da segunda fase do Kanun que Kiarostami apura seu cinema. Durante a década de 1980, foram produzidos filmes mais realistas, que tratavam de temas sociais, e foi também ali que Kiarostami produziu obras que o tornariam conhecido internacionalmente e que expressam o momento em que ele planta as sementes do que viria a ser a sua surpreendente obra.
Nesse período ele filmou Onde fica a casa do meu amigo? (1987), a gênese de dois outros filmes – E a vida continua (1992) e Através das oliveiras (1994) – com os quais dialoga numa metalinguagem significativa e emblemática de um cinema que rompe suas paredes e traz o fazer cinematográfico para o centro da tela.
É também nesse momento que Kiarostami apresenta Close-Up (1990), obra híbrida que dissolve a (já) tênue linha entre ficção e documentário em um exercício do cineasta de explorar a narrativa cinematográfica na construção e desconstrução da própria obra. Close-Up reconta a história de um impostor que se faz passar por Mohsen Makhmalbaf, até então um cineasta pouco conhecido no Irã, e faz uma senhora crer que sua família e sua casa seriam interessantes como personagens e locação para um filme. Da ficção, Kiarostami traz a encenação, a reconstituição dos fatos, o flashback, a montagem, o fechamento dos espaços, a câmera invisível e o narrador onipresente. Traz, ainda, os diálogos como base da interação entre seus personagens. Do documentário, vêm registros aparentemente documentais, a presença de sua equipe em cena, a intervenção – e exposição – do aparato cinematográfico no mundo retratado, a entrevista, os processos de negociação e até mesmo as eventuais falhas no momento da captação dos eventos. A partir de Close-Up, o cinema de Kiarostami passa a ter uma espinha dorsal para a qual convergem os enredos construídos pelo diretor: o próprio cinema.
Depois do exercício e reflexão realizados em Close-Up, Abbas Kiarostami remonta, em seus dois próximos filmes, a Onde fica a casa do meu amigo. Em E a vida continua, lançado em 1992 – depois de Close-Up –, um diretor de cinema viaja ao vilarejo que serviu de cenário para filme de 1987. O local havia sido arrasado por um terremoto e o filme acompanha a busca do diretor pelos dois (não-)atores principais. Nessa jornada, o cineasta-personagem se encontra com pessoas que participaram das filmagens de Onde fica..., visita lugares que serviram como locações e expõe o tecer cinematográfico em diálogos que expressam a “farsa” – ou a “feitura”, para os mais sensíveis – da ficção, com personagens que representam a autoconsciência de um filme sobre si próprio (“Pensei que sua casa era outra. No filme era a outra”, “Não entendo o tipo de arte em que as pessoas têm de parecer mais velhas”). Ele expande essa discussão através do diretor-personagem: seria ele um alterego de Kiarostami? Ele está representando o diretor do primeiro filme? Ou é apenas um diretor iraniano em busca daquelas duas crianças?
Saltamos, então, a 1994, ano de lançamento de Através das oliveiras. E saltamos, também, em direção ao emaranhado metalinguístico da obra: aqui, um diretor que se apresenta no começo do filme (“Eu sou Mohamed Ali Keshavarz, o ator que faz o papel do diretor”, é sua primeira fala), está na região de Koker para gravar a falida história de amor entre Hossein e Tahereh, personagens de E a vida continua. Cenas são remontadas, refeitas, regravadas, expondo abertamente o dispositivo. Naquele universo, três diretores convivem: o diretor fictício, o diretor-personagem de E a vida continua e o diretor onipresente, papel do próprio Kiarostami (vale pontuar que ele faz uma brevíssima aparição, que passa despercebida por olhos menos atentos).
Lançados pós-Close-Up, E a vida continua e Através das oliveiras evidenciam o papel provocador que assume Kiarostami em relação à narrativa clássica no cinema. Após o exercício iniciado no doc-fic de 1990, o cineasta começa a trilhar o caminho de um cinema que (se) experimenta, (se) expande, (se) questiona e (se) instiga – o (se) vem entre parênteses para indicar que essa tarefa não é apenas autorreflexiva, ela também é atribuída ao espectador, que se apropria dessas condições e estabelece diferentes – e complexas – relações com o cinema.
Kiarostami também traz de outras artes seus anseios em relação à linguagem cinematográfica clássica: “Às vezes invejo o teatro e, particularmente, o momento em que mal abrem-se as cortinas e o ator, que morrera instantes antes, levanta-se e vai agradecer. Isto, no cinema, é impossível” (4).
Era.
Em Gosto de cereja (1997), o cineasta volta a subverter convenções narrativas em um epílogo que desconstrói a obra e retira o espectador do natural estado de imersão na ficção. Além da estrutura que, ao final, se descola do modelo clássico, seu conteúdo é espinhoso: o suicídio e a sugestão de um personagem possivelmente homossexual. O Sr. Badii circula por Teerã abordando homens para que executem um trabalho pelo qual ele pagará uma vultosa quantia. O trabalho? Ir a um ponto específico de uma região afastada da capital iraniana, chamar pelo seu nome e, caso ele não responda, jogar terra em cima do corpo. Essa informação é dada a conhecer após quase meia hora de filme, fazendo com que o espectador enfrente a própria perversão com a pergunta que não cala: ele está procurando rapazes para programas? A descoberta do objetivo de Badii traz a resposta e também outras questões: por que Badii quer se matar? Por que aborda apenas homens? Seu plano deu certo?
Não importa. Gosto de Cereja não é (só) sobre isso. É sobre, por exemplo, como o espectador se relaciona com o personagem: com a informação a conta-gotas, a identificação e afetividade com Badii é praticamente anulada; é sobre, também, a experiência da morte, muito mais do que sobre morrer; é sobre proporcionar um envolvimento diferente com a obra: caminhando no terreno inseguro da desinformação, o espectador se relaciona com o filme em outro nível, pois está atento a qualquer indício que possa ser útil para preencher as lacunas.
Aqui, temos uma obra que está menos preocupada em ser conclusa e mais em ser um exercício e experiência cinematográficos, que são arrematados e ressignificados pelas sequências finais: após a “última” cena, quando vemos terra soterrando Badii, o ator (ou o personagem?) circula pelo set de filmagem interagindo com a equipe, aos moldes da “quebra” de imersão na ficção que Kiarostami disse invejar no teatro. Descolado do modelo clássico, que encerraria o filme com uma pá de terra, esse recurso provoca outro tipo de resposta do espectador em relação à obra, levando-o a se conectar a ela mais no aspecto formal e menos no temático.
E eis que o “formalismo antinarrativo kiarostâmico” apresenta uma nova faceta: para contar o movimento (não a “história”, atenção) de uma mãe que circula de carro por Teerã enquanto conversa com seus passageiros, Kiarostami submeteu o tema à estrutura: em Dez (2002), o cineasta já chama a atenção para o dispositivo através do título, remetendo diretamente à forma do filme, que traz dez blocos.
Os dez diálogos entre motorista e passageiros acontecem exclusivamente através de dois tipos de planos estáticos: a perspectiva destes e daquela, evidenciando ainda mais a submissão do tema à estrutura e às linhas que formam a tela. Sem trazer elementos extracampo, em Dez toda a ação se enquadra no dispositivo e a câmera não exerce um papel narrativo, já que foram excluídos movimentos ou alteração de enquadramento. Além disso, Kiarostami suprime a figura do diretor, reconfigurando a relação do cineasta com a obra, já que ele atua, verdadeiramente, na montagem e sonorização, tornando-se um autor do dispositivo, em vez de um diretor de filme (5).
Essa função foi novamente exercida por Kiarostami em Shirin (2008), considerada uma de suas obras mais radicais ao propor uma inédita relação entre espectador e filme. Câmeras estáticas se alternam para trazer à tela apenas as expressões de uma plateia. Mulheres em primeiro plano ora choram, ora sorriem, ora sofrem, ora se angustiam. Isso é exclusivamente o que nos entrega a tela. Extracampo estão os sons da encenação a que assistem aquelas mulheres: “A História de Khosrow e Shirin”, um poema persa do século 12 sobre os amores de uma princesa armênia pelo rei da Pérsia. E na junção entre o que ouve e as reações que vê, é que o espectador constrói o filme, costurando no imaginário as duas camadas dissociadas – som e imagem – que Kiarostami nos oferece.
Ao expandir os limites de da linguagem cinematográfica e voltar as lentes do cinema para si mesmo, Kiarostami oferece ao espectador outro tipo de imersão, que não é aquela na ilusão promovida pela narrativa clássica, mas, sim, nas muitas possibilidades desta arte. O cineasta usa o aparato cinematográfico não apenas para contar suas histórias, mas para acrescentar camadas que promovam discussão, reflexão, exercício.
Envolvidos nessas camadas estão sua estética social e códigos que foram sendo impressos pelo cineasta ao longo de sua cinematografia, tornando sua obra, apesar de bastante plural, identificável.
Dentro das estruturas formais próprias tecidas por Kiarostami, são abordados temas considerados tabus pela cultura islâmica. Metáforas são recursos presentes em grade parte de seus filmes, seja para tratar da busca de um menino pela casa de seu amigo (Onde fica a casa do meu amigo?); da procura por possíveis sobreviventes de um terremoto (E a vida continua); do amor impossível entre dois jovens (Através das Oliveiras); da história de um impostor (Close-Up); de suicídio (Gosto de cereja); ou de conversas com pessoas em um carro, numa espécie de consultório psicanalítico (Dez).
É lançando mão de simbolismos, alegorias e certo verniz poético que Kiarostami constrói situações possíveis para a discussão desses temas, trazendo à tona suas faces mais delicadas: a honra masculina e o autoritarismo (Onde fica a casa do meu amigo?), o descaso do governo com sobreviventes de tragédias naturais (E a vida continua), as diferenças de classes sociais que marcam as relações entre as pessoas (Através das Oliveiras), o suicídio e a homossexualidade (Gosto de cereja) e o papel da mulher na sociedade iraniana (Dez).
A já citada estética de Kiarostami também é formada por elementos permanentemente presentes em sua obra: a busca constante (pela casa do amigo, por sobreviventes, por um cúmplice), sempre mais significativa do que aquilo que a motiva; trajetórias circulares e desconhecidas; a quase inexistência de planos interiores das casas (a porta é o limite da câmera); e o carro como ferramenta narrativa, presença recorrente na obra do iraniano e dentro do qual Kiarostami cria inúmeros planos que ampliam os espaços e, ao mesmo tempo, colocam o espectador no interior da busca dos personagens.
Sobre os carros, Jean-Claude Bernardet resume: “a câmera no lugar do motorista filma o passageiro ou vice-versa, acompanha a paisagem por uma janela ou pelo para-brisa, filma o motorista do ponto de vista do banco traseiro. Ou então a câmera externa ao veículo filma o motorista e o passageiro por uma janela; há planos de paisagem com o carro ao fundo e o diálogo de seus ocupantes em primeiro plano sonoro” (6).
As informações a conta-gotas, a subinformação, as situações incompletas, as ações entrecortadas e os finais abertos de Kiarostami também estão entre os elementos que marcam sua ruptura com a narrativa clássica. “Todos os filmes deveriam ficar em aberto e fazer perguntas, deixando ao espectador a liberdade de construir sua própria visão. Agir sem se preocupar com essa liberdade implica doutrinar o público” (7).
Campo/contracampo é outro recurso que Kiarostami usa com parcimônia. Em seus filmes não é raro que um dos interlocutores fale e o centro do plano seja a expressão do outro, que está no foco da ação, mas não da fala. Para Kiarostami, o campo/contracampo é um tipo de técnica que fecha o espaço e o define, coisas que o iraniano evita, pois “sempre procura o aberto, o inconcluso” (8).
O som, ao contrário da função de linearidade que lhe é conferida na narrativa clássica, não é, em Kiarostami, obrigatoriamente sincronizado com as imagens. Podemos ver um carro em campo aberto e ouvir um diálogo de personagens que não aparecem. Ao dissociar som e imagem, ele apresenta ao espectador um ordenamento diferente do habitual e que é próprio – e possível – em uma arte como o cinema.
As escolhas arriscadas e, em certa medida, subversivas, são assumidas por Kiarostami por motivos que lhe são caros: a cumplicidade do espectador e sua capacidade de se apropriar das formas e conteúdos apresentados, ressignificá-los e, a partir daí, estabelecer uma relação mais complexa – menos contemplativa e passiva – com o cinema.
A todos os elementos que dão corpo à singular obra do cineasta iraniano soma-se a função que ele atribui à estrutura “inacabada” de seus filmes, pois ela está ligada àquilo que ele entende como sendo a liberdade do espectador. A organização da estrutura fílmica em acontecimentos previsíveis feita por meio de códigos e métodos facilmente reconhecidos tranquiliza o público, justamente a sensação que Kiarostami rejeita.
Suas histórias inconclusas, a aparente simplicidade de seus planos, a negação em seguir a narrativa clássica e a subversão desse modelo foi possível porque Kiarostami confia no espectador. Faz dele seu cúmplice e o retira do estado de tranquilidade frente a uma estrutura que aprisiona e domestica o olhar de forma a impedir que se enxergue, questione e reflita sobre as possibilidades e o poder do cinema.
notas
NE – Artigo de apresentação da “Retrospectiva Abbas Kiarostami”, curadoria de Helena Guerra, Cineclube Marieta, São Paulo, 28 agosto a 17 outubro de 2017.
1
BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 106.
2
MELEIRO, Alessandra. O novo cinema iraniano: arte e intervenção social. São Paulo, Escrituras, 2006, p. 19.
3
FABRIS, Mariarosaria. O neo-realismo cinematográfico iraniano. São Paulo, Edusp/Fapesp, 1996.
4
KIAROSTAMI, Abbas. Duas ou três coisas que sei de mim. In: Abbas Kiarostami. São Paulo, Cosac Naify, p. 243
5
BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 111.
6
BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 32.
7
CIMENT, Michel; GOUDET, Stéphane. Apud BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 52.
8
BERNARDET, Jean-Claude. Caminhos de Kiarostami. São Paulo, Companhia das Letras, 2004, p. 61.
sobre a autora
Magaly da Silva Corgosinho é graduada em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás e pós-graduada em Gestão de Projetos Culturais e Organização de Eventos pelo Centro de Estudos Latino Americanos sobre Cultura e Comunicação, da Universidade de São Paulo. Autora da monografia Cinema documentário: ficção e realidade em Abbas Kiarostami e Eduardo Coutinho (2007) e do artigo De objeto a sujeito: os índios como protagonistas da produção audiovisual (2012).