Notas iniciais: sobre portos e cidades
As cidades portuárias estão particularmente expostas a intensas transformações territoriais, devido ao perfil interventivo do setor dos portos e das infraestruturas de transportes interligadas às suas atividades. O processo de mudança dos portos está contido em sua mais remota origem, contudo a transformação do porto agrava-se como problemática urbana a partir da urbanização e industrialização das principais cidades dos continentes europeu e americano. Posteriormente, em fins do século passado, a ascensão dos centros urbanos no comando das operações econômicas internacionais da era global informatizada e a queda de antigos setores industriais pontuam algumas questões acerca dos sistemas de reestruturação econômica e territorial das cidades de modo geral, especialmente das portuárias (1).
Essa breve indicação de crise do sistema urbano anteriormente dominante aponta, nos termos de Hall (2), para o denominado processo de desindustrialização, instaurado de maneira efetiva no final da década de 1960, atingindo, como dito, grande parte da economia de base manufatureira de regiões industriais tradicionais da Europa e dos Estados Unidos. Desde as duas últimas décadas do século 20, a desativação programada de áreas portuárias e industriais em distintas partes do mundo se alinham aos processos de urbanização neoliberalizada, devido, principalmente, ao incremento da globalização econômica.
Esses, entre outros fatores, fizeram com que os negócios do comércio marítimo internacional se deslocassem para fora da zona urbana e as autoridades portuárias de grande parte das cidades desocupassem as áreas dos portos tradicionais. Certamente essa questão remete a temas do planejamento urbano, levando, recentemente, à criação de instituições específicas com o objetivo de partilhar conhecimento e experiências entre autoridades portuárias.
Este artigo prossegue com alguns dos modelos de desenvolvimento do sistema portuário e sua relação com a cidade. Revisados em literatura especializada, sabe-se que os discursos desses modelos evolutivos não são neutros, pelo contrário, são discursos agenciados por relações de poder – conflitos políticos e sociais –, podendo configurar formalizações alimentadas por uma realidade bem mais complexa. Ainda assim, constituem-se em aparatos conceituais importantes para elucidar as mudanças das cidades portuárias ao longo do tempo.
Os modelos de evolução portuária e a cidade
O holandês Hans Meyer, pesquisador pioneiro da temática sobre as mudanças na relação entre cidades e portos, afirma que a cidade moderna do contexto europeu surgiu da economia moderna, entretanto o termo tempos modernos não denota um tempo contínuo, e sim uma sucessão de fases (3). Para ele, o paralelo entre a economia mundial e as atividades portuárias demonstra no tempo as mudanças da relação cidade-porto.
Apesar das particularidades de cada caso, mudanças do sistema portuário e da relação do porto com a cidade seguem trajetória comum, postulada no discurso de modelos evolutivos, a exemplo do proposto por Meyer (4). Anteriormente a ele, entre as visões conceituais mais reconhecidas do desenvolvimento portuário, está o modelo Anyport, de J. Bird, organizado em 1963, a partir de perspectiva histórico-morfológica em etapas (5).
A fase inicial do modelo Anyport refere-se ao setting, com implantação do porto primitivo próximo ao centro urbano, por questões geográficas e funcionais mantidas de forma rudimentar e sem alterações por muito tempo. Na etapa seguinte expansion, tem-se a ampliação de terminais, infraestruturas, instalações e atividades portuárias, tanto no setor portuário inicial como em novas áreas. A expansão decorre da modernização das instalações e operações portuárias e do aumento do porte dos navios. O sítio portuário passa a contar com linhas férreas no escoamento da produção e, adicionalmente, ocorre o processo de expansão urbana. A terceira e última fase, specialization, caracteriza-se pela intermodalidade e multimodalidade, expansão de áreas portuárias, agigantamento de navios, implantação de infraestrutura rodoferroviária no porto e construção de terminais especializados. Os portos afastavam-se da cidade rumo a áreas mais amplas e de águas mais profundas. Em alguns casos, os núcleos portuários tradicionais são posteriormente reconvertidos e transformados por ações de waterfront, que ganham força no urbanismo da época (6).
Nottebom e Rodrigue expandiram o modelo Anyport, acrescentando nova etapa de regionalização portuária (7), considerando dois aspectos relativos ao desenvolvimento contemporâneo dos portos: os hubports e as redes de distribuição de mercadorias.
Os autores incluem a fase de regionalização portuária, correspondente ao surgimento dos centros de distribuição de mercadorias no interior do território, para além da área urbana e a partir do aumento da movimentação dos portos. A integração logística e as redes no setor portuário e na estrutura do transporte marítimo redefinem o papel funcional dos portos, gerando novos padrões de distribuição de mercadorias, concluem os mesmos autores. Destacam, ainda, a importância da distribuição terrestre de mercadorias para o transporte marítimo e custos logísticos (8).
Os modelos evolutivos expostos buscam demonstrar que as dinâmicas das cidades portuárias se misturaram com as das infraestruturas do porto, na maioria das localidades onde esses fenômenos ocorreram. Contudo, na medida em que o sistema portuário, as redes de infraestrutura de transportes rodoferroviários, o setor industrial, os serviços logísticos e de apoio às atividades portuárias vão sendo privatizados, gera-se a produção da emergência de novos espaços diferenciados nas cidades.
Nota-se, no caso brasileiro, que os novos – mas também os antigos – espaços ocupados por atividades portuárias e retroportuárias tiveram, progressivamente, a partir da década de 1990, redução do domínio público e intensificação da participação de empresas privadas. Isso se deve, sobretudo, às mudanças no entendimento jurídico que rege o sistema portuário no Brasil (9). Composto por modalidades aduaneiras distintas que, por sua vez, configuram os espaços de uso e apoio às atividades portuárias, observa-se que o sistema portuário das cidades brasileiras tem acionado, com outros fatores, a ocupação descontínua e fragmentada do território.
Dessa forma, acentua-se o desinvestimento em zonas urbanas de declínio em detrimento de outras, privando-as de melhorias em serviços, equipamentos e infraestruturas urbanas agregadas de valor e diferencial, a exemplo das áreas portuárias tradicionais temporariamente abandonadas, bem como das novas áreas de expansão portuária de distintas cidades do mundo e do Brasil (10).
Este trabalho destaca as infraestruturas dos portos da Região Metropolitana da Grande Vitória – RMGV (ES, Brasil), em fração territorial específica denominada Vitória Metropolitana (11), buscando demonstrar que a expansão das redes de infraestruturas e das atividades portuárias na região antevê o incremento da interiorização portuária em áreas distanciadas da costa marítima, bem como o aumento da implantação de portos no litoral capixaba.
Isso torna plausível a hipótese prospectiva deste estudo, relativa à desativação parcial, ou total, do Porto de Vitória em futuro próximo, sobretudo da área delimitada pelo Cais Comercial de Vitória, localizado na capital capixaba.
A situação atual do Porto de Vitória é de parcialmente utilizado, se considerada a ação da Companhia Docas do Espírito Santo – Codesa em disponibilizar alguns dos antigos armazéns – situados em área de berço público, o Cais Comercial de Vitória – para outros usos, em paralelo ao seu funcionamento regular. Como exemplo, pode-se citar o compartilhamento esporádico do Armazém 5 para uso de cultura, lazer e turismo promovido pelo Projeto Estação Porto (12), cuja prerrogativa consiste no uso do porto como espaço público voltado para atividades gratuitas e abertas à população (13).
Nota-se, ainda, conforme amplo levantamento de Moraes, obsolescência dos armazéns quanto à armazenagem de carga pesada, considerando que eles foram projetados para estoque de café e minério de ferro. A autora registra a situação de uso de cada armazém em 2014, em farto material fotográfico, mostrando a subutilização de alguns.
Atividade portuária na Vitória metropolitana
Das vilas coloniais às cidades portuárias, a despeito do porte das aglomerações urbanas e atividades portuárias desenvolvidas, a transformação dos portos tem sido considerada determinante no processo brasileiro de estruturação urbana (14).
A implantação das instalações portuárias da cidade de Vitória ocorre nas primeiras décadas do século 20, com o Porto de Vitória totalmente integrado à sua fração territorial insular. Contudo, o projeto de substituição dos antigos cais pelo porto moderno tem início no final do século anterior. Até o começo da República, as instalações do comércio marítimo de Vitória – núcleo colonial fundado em 1551– correspondiam a pequenos cais e trapiches às margens da baía (15).
Ainda no final do século 19, a construção e o aprimoramento dos portos estavam entre os fatores de modernização das cidades litorâneas brasileiras, a exemplo de Vitória. De acordo com Freitas (16), em 1879, iniciam-se os estudos de viabilidade de implantação do Porto de Vitória, entretanto, apenas em 1895, com a organização da Comissão de Melhoramentos de Vitória, são previstas, de fato, ações de modernização da cidade junto ao porto. No entanto, conforme o autor, somente em 1904, decide-se pela construção do porto na Capital, cujas obras são inauguradas em 1911.
Nas décadas seguintes, a cidade reformula-se para se tornar praça de comércio e conexão com outras regiões. Isso resulta em aterros, saneamento urbano, reestruturação viária, criação de espaços públicos, em suma, em obras que caracterizam a nova imagem da cidade que se quer moderna. O porto estruturado em substituição aos antigos cais e as intervenções urbanísticas refletem, segundo Siqueira, a almejada imagem modernizada da cidade “numa associação funcional e espacial direta entre cidade e porto” (17).
A despeito da suspensão das obras do Porto de Vitória em 1914, durante a Primeira Guerra Mundial, continuam sendo realizadas reformulações urbanísticas em Vitória, seguindo estratégia de se alcançar o patamar de capital portuária. Com essas ações, “Vitória tornou-se cidade habitável, quanto às condições sanitárias, e em pé de igualdade com as melhores capitais brasileiras” (18). E ainda, a intenção não era apenas “em urbanizar a cidade, mas também em promover condições para o desenvolvimento e expansão do porto, um porto cafeeiro que atendia às tendências da economia agroexportadora nacional” (19).
Obras portuárias e urbanas marcam a cidade dos anos 20 do século passado, tais como “muralha de cais de 130 metros de extensão, para a construção de três armazéns, aparelhamento em linha férrea e uma ponte ligando Vitória a Vila Velha”, conforme registram Abreu, Martins e Vasconcellos (20). Em rigor, para os autores, o desenvolvimento portuário respondeu “pela concepção de outra cidade [...]. Morreu a cidade colonial, voltada para o mar, e uma outra começou a ser erguida” (21).
A partir da década de 1940, com a conclusão do Porto de Vitória, o incremento da comercialização do minério de ferro e a diversificação das operações portuárias, as instalações do porto são progressivamente transferidas para a área continental, no município vizinho de Vila Velha. A expansão portuária para a outra margem da Baía de Vitória revela novos aparatos técnicos do porto, acentuando a imagem portuária de Vitória.
Ações de modernização do porto e expansão da cidade distinguem também a década de 1950, a exemplo da realização de extenso aterro contíguo ao Porto de Vitória. Nos anos de 1960, as instalações portuárias avançam para fora da mancha de ocupação urbana e, em décadas subsequentes, são totalmente afastadas da conurbação urbana consolidada, com implantação de portos ao norte e ao sul do Estado do Espírito Santo.
Esse processo de ampliação portuária afastado do núcleo primitivo evidencia as limitações físico-operacionais e o arrefecimento do Porto de Vitória em sua fração territorial insular, que gradualmente perde em competitividade e importância mediante o comércio marítimo nacional e internacional. Posteriormente, processos similares ocorrem de modo gradual nos terminais portuários de Vila Velha. Nota-se, também, a partir do final da década de 1960, o centro tradicional de Vitória fortemente impactado pelo processo de verticalização das construções.
Finalmente, na última década do século 20 e início do 21, as instalações portuárias da região passam a ser interiorizadas no território – com criação dos Portos Secos –, acompanhando o fenômeno mundial de autonomização da estrutura física dos portos.
De todo modo, em âmbito local, a permanência da volumetria horizontalizada do conjunto dos antigos armazéns do Porto de Vitória, na paisagem do século 21, permite guardar referências de ocupações remotas do sítio, dando ao porto distinção histórica, cultural e paisagística de inegável valor patrimonial (22).
Na perspectiva empírica deste estudo, observa-se que o desenvolvimento portuário associado às atividades industriais caracteriza uma das faces do atual perfil econômico da RMGV. Entretanto, a atividade portuária iniciada em Vitória e desdobrada nos municípios vizinhos integra-os em níveis diferenciados no sistema produtivo portuário. Molda-se com isso o conceito de arco metropolitano (23), relativo a formação de território logístico resultado do processo de regionalização do porto, cujos impactos de ordem urbana e metropolitana se estendem para além da frente marítima das cidades e em distintas escalas. Dito de outra forma, conforme Campos, constitui em “territorialidade local a serviço da macroescala econômica global do comércio internacional. Não institui redes de catalisação social local e sim territorialidades intermitentes de exclusão e de enclave econômico” (24).
Observa-se que os processos de interiorização e regionalização da atividade portuária se estendem em áreas afastadas do litoral. Desse modo, altera-se permanentemente o território da região, seja com acréscimos, seja com substituições de infraestruturas de apoio às atividades portuárias (25).
A criação e desativação de áreas portuárias e industriais instituem situações urbanas críticas e alcançam concretude, se abordadas localmente, sobretudo, considerando a dimensão simbólica da cidade portuária e seu valor paisagístico. Abordagens sobre o sítio portuário e industrial desativado, quando inseridas no campo do patrimônio industrial, indicam que a preservação de suas instalações isoladamente é insuficiente para o enfrentamento da condição urbana globalizada de embate extraterritorial. Diante dessa constatação, este artigo prossegue interpondo ao campo do patrimônio industrial problemática relativa ao entendimento da cidade portuária de modo geral, e da Capital capixaba em específico.
Patrimônio industrial e cidade portuária
O reconhecimento da cidade portuária como patrimônio cultural pode revelar “a constante evolução da tecnologia portuária e das suas consequências culturais”, isto é, a cidade portuária constitui uma “herança industrial de caráter urbano”, resgatando expressões de Diedrich (26). Seguramente, trata-se de herança presente na memória social dos espaços, implicando atribuição de valor identitário específico à cidade portuária, que deve ser resguardado e protegido.
Para Diedrich, "as cidades portuárias têm sido descobertas enquanto patrimônio [...], mas a preservação de objetos isolados de valor estético ou tecnológico não é suficiente para abarcar a totalidade do problema" (27). Argumenta-se, assim, que a magnitude cultural do patrimônio industrial está necessariamente contida na paisagem que o envolve. Por sua vez, a paisagem remete a questões da identidade cultural das cidades, por meio de, ao menos, uma dupla perspectiva: da paisagem como representação simbólica do espaço e da ação sobre o espaço. Como bem sentencia Luchiari, nesse sentido, a paisagem é representação simbólica que não se esgota: “reproduz-se, renova-se, regenera-se tal qual as sociedades” (28).
Posto isso, diante do fracasso dos denominados projetos urbanos de waterfronts realizados nos últimos trinta anos, o desafio acerca da reflexão sobre intervenções em áreas portuárias e industriais em desuso pode residir na articulação entre “conservação e desenvolvimento dentro de uma estratégia geral de planejamento urbano”, aponta Diedrich (29).
Ao tomar as áreas portuárias do Porto de Vitória como parte dos suportes físicos da memória social da Capital capixaba e, ainda, como partícipe da sua identidade cultural, levantam-se evidentemente questões do campo do patrimônio cultural. Como exposto, de um patrimônio específico, institucionalizado como patrimônio industrial (30). Assim, ainda em concordância com Diedrich (31), entende-se que o patrimônio industrial não é um tema clássico de preservação do patrimônio, pelo contrário, refere-se à sua reutilização e integração na esfera da vida cotidiana na atualidade. Isso no contexto do planejamento de regeneração e das práticas de intervenções em áreas portuárias no mundo ocidental, conclui a mesma autora.
Observa-se que os resultados de tais práticas interventivas, em sua maioria, são nefastos ou questionáveis quando relativos ao papel do componente patrimonial na efetiva regeneração das cidades. Chega-se, então, a uma das questões deste estudo: aproximar o entendimento da paisagem ao campo do patrimônio industrial vinculado à cidade portuária. Sendo assim, no limite, o valor cultural contido no patrimônio industrial o torna herança paisagística da cidade.
Certamente o desafio do planejamento e projeto urbano na interpretação de determinado sítio e sua paisagem deve incluir o entendimento de bem comum e a perspectiva da identificação cultural da população com o lugar. Desse modo, a problemática acerca do discurso patrimonial somente encontra validação no reconhecimento dos valores patrimoniais dados pela população local, além dos valores instituídos por suas instituições.
Utiliza-se a seguir o artigo de Kühl (32), no qual a autora descreve a importância do legado cultural resultante do processo da industrialização. Visa-se, ao fim, a conjugar questões do patrimônio industrial ao entendimento da paisagem como uma das instâncias do conhecimento operante de ações – ou intervenções – que envolvem a infraestrutura dos portos em particular.
Kühl (33) menciona que a preocupação com o patrimônio industrial surge no século 19, contudo se torna mais ordenada somente a partir da década de 1960. Isso devido, sobretudo, à destruição de edifícios emblemáticos na Europa, o que gerou o acirramento desse debate e promoveu ações de preservação. A autora menciona a multiplicação de estudos sobre complexos industriais e suas tipologias e também a ausência de estudos interdisciplinares nos quais se explore:
“a questão da inserção desses bens no espaço, ao longo do tempo, e suas relações com a estruturação da cidade ou do território, sua articulação com aspectos sociais, econômicos, culturais e políticos [...]. É necessário, portanto, retomar questões de método para permitir essa articulação. [...] é essencial retomar as discussões metodológicas para estabelecer linhas temáticas que possibilitem indagações que aprofundem tanto aspectos específicos da questão (arquitetura ferroviária, por exemplo), quanto análises mais abrangentes, envolvendo de maneira articulada campos como a história (econômica, social, da arquitetura etc.), a sociologia, a antropologia e o restauro, de modo que se torne possível uma compreensão mais efetiva dos vários aspectos vinculados ao processo de industrialização e de seu legado de interesse para a preservação”. (34)
A questão proposta por Kühl, na extensa citação acima, passa inevitavelmente por estudos ainda ausentes em pesquisas relativas ao patrimônio industrial e às questões de método. Porém, não cabe adentrar na complexidade de questões quando relativas a formas de intervir no patrimônio industrial. Para isso, como alerta a mesma autora, é preciso debater “com base nos referenciais teórico-metodológicos e técnico-operacionais próprios à restauração, encarando a intervenção como verdadeiro ato de cultura, que se afasta de interesses imediatistas e de setores restritos da sociedade” (35).
Importa enfatizar por ora a necessidade de se avançar em estudos relativos à infraestrutura, edificações e áreas do setor portuário mais remoto de Vitória que, a despeito de ainda ser ativo, tem tido comprometimento e risco de desaparecimento. Armazéns, galpões, depósitos, silos, cais, píeres, pátios ferroviários, estações, oficinas, estaleiros, sedes administrativas elencam algumas das tipologias existentes nas frações insular e continental do Porto de Vitória e nos demais setores associados às suas atividades.
A maioria das instalações portuárias das cidades coloniais do Brasil, a exemplo do Porto de Vitória, tiveram sua localização determinada por atributos geográficos dados pelo relevo, clima e hidrografia, configurando portos naturais por excelência. Sem dúvida, trata-se de matriz paisagística – o perfil geográfico de porto natural – que caracteriza fortemente a ocupação de seu território, valorizando os atributos paisagísticos do Porto de Vitória.
Notas finais: sobre um porto e uma paisagem
Durante a ocupação portuguesa no Brasil, a Vila de Vitória se caracterizava como lugar de defesa do território, abrigando um porto natural com trapiches e cais, que posteriormente se tornaram um grande cais, para, finalmente, no século 20, constituir um porto organizado de inegável importância na história de formação da cidade.
Entretanto, é notório o descaso com a infraestrutura portuária tradicional e a sua memória paisagística ao longo do tempo, impondo, assim, uma pergunta: se a valoração da paisagem como patrimônio cultural pressupõe reconhecimento e opinião da população, como e o que deve ser preservado institucionalmente por antecipação, em caso de desativação das atividades do porto nesse sítio?
O futuro das infraestruturas do Porto de Vitória urge por abordagens ampliadas que possam atravessar o patrimônio cultural, incluir o legado industrial e paisagístico do lugar, alcançando o debate com a população local. Isso de modo associado ao entendimento do lugar como grau zero da paisagem da capital, qual seja, a sua paisagem de porto natural do Brasil Colônia.
Reconhecida, em sua época de vila colonial, pela geografia de recinto de águas de profundidade variada, de atmosfera amena protegida dos ventos pela cadeia de montanhas alinhadas à margem da baía, a paisagem do porto tradicional de Vitória pode ser consagrada ainda como referência de sistemas técnicos industriais e de processos de urbanização ocorridos no século XX no contexto das cidades brasileiras, instituindo-se como herança paisagística da cidade a ser protegida e modificada (36).
notas
NE
Este artigo expõe resultados parciais da pesquisa Cidade portuária na Vitória Metropolitana (ES), com apoio CNPq/Universal 2014, coordenada por Martha M. Campos, uma de suas autoras. Minieli Fim e Nathalia S. Sorte, as demais autoras, participam como colaboradoras da mesma pesquisa. O artigo integra ainda estudos de pós-doutorado de Martha M. Campos no PROURB-UFRJ, com bolsa PDS Faperj, concluído em 2017.
1
CAMPOS, Martha Machado. Vazios operativos da cidade: territórios interurbanos na Grande Vitória (ES). Orientador Nelson Brissac Peixoto. Tese de doutorado. São Paulo, PUC São Paulo, 2004.
2
HALL, Peter. Cidades do amanhã. São Paulo, Perspectiva, 1995.
3
MEYER, Han. City and Port: Transformation of Port Cities - London, Barcelona, New York, Rotterdam. Rotterdam, International Books, 1999.
4
Idem, ibidem.
5
RODRIGUE, Jean-Paul; COMTOIS, Claude; SLACK, Brian. The Geography of Transport Systems. Hofstra University, Department of Global Studies & Geography, 2013. Disponível em: <http://people.hofstra.edu/geotrans/eng/ch4en/conc4en/portdev.html>. Acesso em: 3 abril de 2014.
6
Idem, ibidem.
7
NOTTEBOOM, Theo E.; RODRIGUE, Jean-Paul. Port regionalization: towards a new phase in port development. Maritime Policy and Management, v. 32, n. 3, jul./set., 2005, p. 297-313.
8
Idem, ibidem.
9
A Lei nº 8.630, de 1993, constitui marco jurídico inaugural da nova legislação portuária no Brasil, que passou por alterações com a Lei nº 12.815, de 5 de junho de 2013. Para Fim, em geral, essa lei incentiva a atração de capital privado, facilitando criação de terminais portuários particulares, visando à modernização dos portos, além do evidente estímulo da concorrência portuária no Brasil. FIM, Minieli. Atividade portuária e processos territoriais: uma abordagem urbanística - Grande Vitória (ES). Orientadora Martha M. Campos. Dissertação de mestrado. Vitória, PPGAU UFES, 2015.
10
Fim observa, por exemplo, a cidade do Rio de Janeiro como uma das referências paradigmáticas dessa situação no Brasil. O Porto de Itaguaí, inaugurado em 1982, em Sepetiba, no Estado do Rio de Janeiro, surge como expansão das atividades portuárias antes concentradas no centro da Capital carioca, em atendimento às novas demandas logísticas e comerciais. O corredor rodoviário Arco Metropolitano do Rio de Janeiro resulta da ampliação das redes de infraestruturas ligadas aos portos, atende como exemplo de modelo portuário associado às grandes empresas e segregado da economia local. Distante cerca de 90km da cidade do Rio de Janeiro, o Porto de Itaguaí caracteriza-se como concentrador de cargas. É constituído por vários terminais arrendados, conectados a redes viárias e ferroviárias, contudo desvinculados das políticas territoriais e do desenvolvimento local. No cenário internacional, destaca-se o surgimento de portos isolados nos cruzamentos logísticos da Europa, a exemplo do Porto de Gioia Tauro, na Itália. Idem, ibidem.
11
A expressão Vitória Metropolitana designa configuração territorial que delimita área cornubada, isto é, o núcleo metropolitano consolidado da Grande Vitória (RMGV), englobando somente os municípios de Vitória, Serra, Vila Velha e Cariacica, na tentativa de distinguir tecido metropolitano mais homogêneo, ou com tendência a processos de urbanização interligados.
12
As edições do Projeto Estação Porto, realizadas por meio de convênio firmado de 2008 a 2010, entre a Companhia Docas do Espírito Santo e a Prefeitura Municipal de Vitória, objetivam a integração da cidade com o porto, promovendo atividades culturais e artísticas, tais como shows de músicas, festival de filmes, exposições de artes, entre outras. O projeto antevê ainda mecanismos para estruturar o turismo de cruzeiros marítimos na área. MORAIS, Lívia Santos de. Porto de Vitória: armazéns do século XX, patrimônio industrial e memória do trabalho. Orientador Nelson P. Ribeiro. Dissertação de mestrado. Vitória, PPGAU UFES, 2014.
13
Redes sociais noticiam realização de evento de decoração de caráter privado em dois armazéns do Porto de Vitória, ambos situados no Cais Comercial de Vitória, durante o ano de 2017. Muda-se, assim, o formato original do Projeto Estação Porto, anteriormente pautado em políticas públicas voltadas para o uso cultural do espaço portuário, mediante eventos públicos e gratuitos.
14
FREITAS, José Francisco Bernardino; SOUZA, C. F. de. Os portos e a modernização das cidades brasileiras no início do século XX: Porto Alegre e Vitória. In FREITAS, José Francisco Bernardino. (org.). Diálogos: urbanismo.br. Vitória, EDUFES, Niterói, UDUFF, 2010; SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. A cidade de Vitória e o porto nos princípios modernos da urbanização no início do século XX. Cadernos Metrópole, v. 12, n. 24, São Paulo, jul./dez. 2010, p. 565-584.
15
Ver pesquisa acadêmica basilar de Miranda sobre cartografia e iconografia capixaba. MIRANDA, Clara Luiza(Org.). Memória visual da Baia de Vitória. Relatório Final de Pesquisa. Vitória, Facitec, Ufes, 2001. Disponível em: <http://www.arq.ufmg.br/nehcit/vitoria/index.php>.
16
FREITAS, José Francisco Bernardino; SOUZA, C. F. de. Op. cit.
17
SIQUEIRA, Maria da Penha Smarzaro. A cidade e o porto como fator de desenvolvimento. In VILASCHI, A. Elementos da economia capixaba e trajetórias de seu desenvolvimento. Vitória, Flor & Cultura, 2011, p. 257.
18
DERENZI, Luiz Serafim. Biografia de uma ilha. Vitória, Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 1995, p. 140.
19
Idem, ibidem, nota 17, p. 260.
20
ABREU Carol; MARTINS Janes de; VASCONCELLOS, João Gualberto Moreira. Vitória: trajetórias de uma cidade. Vitória, Instituto Histórico e Geográfico do Espírito Santo, 1993, p. 87.
21
Idem, ibidem, p. 33.
22
Entre os cinco armazéns, somente o Armazém 1 foi reconhecido como de interesse de preservação no Plano Diretor Urbano (PDU) do município de Vitória de 1994 – Lei nº 4167/94. Em 2006, o PDU – Lei nº 6705/06 – institui esta área portuária como Zona de Equipamentos Especiais e propõe diretrizes para a formulação de um Plano de Preservação da Paisagem para a Capital capixaba, porém não institui medidas para a proteção dos armazéns na totalidade. No entanto, segundo representante do Conselho da Secretaria de Cultura do Estado (CEC-Secult), os cinco armazéns não podem passar qualquer alteração, considerando o processo administrativo de tombamento aberto em 2011, ainda em tramitação. De fato, trata-se de ofício a pedido da Associação dos Moradores do Centro, do Instituto Quorum e do Instituto Goia, solicitando reabertura de um processo administrativo de 1985, arquivado devido à ausência de instrução. Esse processo pleiteava o tombamento histórico do conjunto dos armazéns do Cais Comercial e o ofício de sua reabertura mantém o mesmo pleito, solicitando, ainda, a utilização dos armazéns para finalidade cultural e artística. Em 2012, o CEC-Secult emitiu parecer favorável ao tombamento imediato dos cinco armazéns. O mesmo processo foi enviado para o Instituto de Patrimônio Artístico Nacional, uma vez que eles são de propriedade da União, solicitando realização de diligências referentes à possibilidade de tombamento do conjunto dos armazéns. SORTE, Nathalia Spala. Infraestrutura portuária, memória e vida urbana: O Porto de Vitória (Brasil). Orientador Martha M. Campos. Dissertação de mestrado. Vitória, PPGAU UFES, 2016.
23
Conceito aprimorado na pesquisa MG-ES: Um Sistema Infraestrutural, Projeto de Intercâmbio Interinstitucional entre Ufes, Unileste, UFMG, Arte/Cidade e IaaC (Instituto de Arquitetura Avançada da Catalunha/Espanha).
24
Idem, ibidem, nota 1.
25
CAMPOS, Martha Machado; FIM, Minieli. Vitória Metropolitana- ES: a interiorização da atividade portuária. In Anais do XVI ENANPUR: Espaço, Planejamento e Insurgências. Belo Horizonte, 2015.
26
DIEDRICH, Lisa. Entre a tabula rasa e a museificação. In CARDOSO, (org.). Paisagem e patrimônio: aproximações pluridisciplinares. Porto, Dafne/Chaia, 2013, p. 83.
27
Idem, ibidem, p. 83 e 84.
28
LUCHIARI, Maria Tereza Duarte Paes. A (re) significação da paisagem no período contemporâneo. InROSENDAHL, Zeny; CORRÊA, Roberto Lobato (org.). Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro, UERJ, 2001, p. 22.
29
Idem, ibidem, nota 26, p. 84.
30
Ver Comissão Internacional para Conservação do Patrimônio Industrial, TICCIH (2003) Carta de Nizhny Tagil, sobre Patrimônio Industrial, 2003. Disponível em: <http:// www.ticcih.org>. Acesso em: 01 mar. 2016.
31
Idem, ibidem, nota 26, p. 84.
32
KÜHL, Beatriz Mugayar. Patrimônio industrial: algumas questões em aberto. Revista arq.urb/USJT, n. 3, São Paulo, 2010, p. 23-30.
33
Idem, ibidem.
34
Idem, ibidem, p. 27.
35
Idem, ibidem, p. 28.
36
Existem, de fato, poucas ações e políticas públicas norteadas pelo interesse na manutenção dos referentes paisagísticos da área portuária mais antiga de Vitória, exceto pelo Plano de Proteção da Paisagem da Área Central de Vitória (PMV, 2011), realizado em atendimento às diretrizes do PDU em vigência. Assim, a paisagem como objeto político capaz de mediar e regular socialmente certos territórios, encontra referência de política pública renovada no citado Plano, o qual uma das autoras deste artigo – Martha M. Campos - teve a oportunidade de coordenar. O Plano considera a proteção dos referentes paisagísticos naturais e construídos do centro histórico da Capital, no qual o Porto de Vitória é objeto de atenção especial.
sobre os autores
Martha Machado Campos
Arquiteta urbanista (UFES, 1988), doutora (PUC-SP, 2004), pós-doutorado (PROURB-UFRJ, 2017), docente do PPGAU-UFES. Publicações em coautoria: Reflexões sobre o urbano no ES (2016), Cidade Prospectiva (2009), Urbanismo no Brasil 1895-1965 (2005, 2 ed.) e Centro.com.vitória (2002).
Minieli Fim
Arquiteta urbanista (UFES, 2012), mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFES, 2015), docente do Instituto Federal do Espírito Santo (IFES). Publicações em coautoria: Reflexões sobre o urbano no ES (2016).
Nathalia Spala Sorte
Arquiteta urbanista (UFES, 2010), mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFES, 2016).