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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo discute os fundamentos sociológicos da emancipação social desenvolvidos por Boaventura de Sousa Santos e situa as possibilidades emancipatórias produzidas no espaço público da cidade.

english
This article discusses the paradigm of social emancipation, developed by Boaventura de Sousa Santos, and the possibilities of emancipation in public spaces.

español
Este articulo discute los fundamentos sociologicos de la emancipación social desarrollados por Boaventura de Sousa Santos e situa las possibilidades emancipatórias que son producidas em el espacio publico de la ciudad.


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SILVA, Robertha Georgya de Barros e; SILVA, César Henriques Matos e. Caminhos da emancipação social e o espaço público urbano. Arquitextos, São Paulo, ano 19, n. 220.02, Vitruvius, set. 2018 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/19.220/7124>.

As sociedades modernas têm como característica básica o debate sobre a diferença. O conhecimento científico, produto desta modernidade, permitiu progressos técnicos incontestáveis, mas trouxe, entretanto, possibilidades de subjugação e de dominação. Esse domínio se dá corriqueiramente pela ocultação das outras formas de narrar o mundo, ou seja, dos diversos conhecimentos produzidos por diferentes povos e culturas. Trata-se de conhecimentos envolvidos nas experiências sociais, esboçadas neste texto como práticas de emancipação social. É o que o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos designa como senso comum emancipatório (1).

O acesso a essas experiências torna-se fundamental a partir da compreensão de que o saber científico é incompleto, assim como todas as formas de conhecimento.  Na medida em que os diálogos e os conflitos possíveis são reconhecidos nesses diferentes saberes poderão se figurar, eventualmente, em formas híbridas de conhecimento emancipatório, que considere a pluralidade e a riqueza dos saberes multiculturais postos no mundo.

Este texto procura relacionar estas questões com a dimensão espacial do ambiente urbano, mais especificamente busca situar possibilidades emancipatórias produzidas nos espaços públicos da cidade, que guardam os significados de reconhecimento e pertencimento do lugar, “já que o cidadão contém a cidade, e ao mesmo tempo está contido nela” (2). Para isso, fazemos inicialmente uma explanação sucinta sobre o percurso de dominação do conhecimento científico a partir da ciência moderna, para em seguida apresentar, apoiado em observações no espaço público urbano, a crítica do modelo de racionalidade por essa nova emancipação social a partir do reconhecimento das diversas formas de conhecimento. Neste sentido, os caminhos apontados por Boaventura de Sousa Santos a partir de novos fundamentos sociológicos são as sociologias das ausências e das emergências, e o que o autor denomina trabalho de tradução, procedimento sociológico que completa esta tríade de possibilidades elencadas pelo autor para uma nova emancipação social.

O conhecimento científico e sua forma privilegiada

A reflexão proposta nesta seção pretende contextualizar como a ciência moderna historicamente passou a considerar o conhecimento cientifico como absoluto, já que, segundo Boaventura de Sousa Santos, foi a partir daí que a emancipação social se tornou um subproduto do projeto moderno, que sempre esteve ligado a questões inerentes a dominação hegemônica dos países ricos.

Foi a partir do século 17, que as sociedades ocidentais iniciaram um processo de seletivização da forma de conhecimento, que constitui o que conhecemos por ciência moderna. A partir daí, então, as ciências predecessoras passaram a ser desconsideradas no âmbito dos grandes debates sobre conhecimento, porque uma nova forma de conhecimento se auto concebeu como um novo começo, uma ruptura em relação ao passado, uma revolução científica, como mais tarde viria a ser caracterizada (3). E, ainda segundo o mesmo autor, como as ciências sociais desenvolvidas nos países centrais a partir do século 19 extinguiram a sua capacidade de renovação e inovação, deixando de ser proativas e transformadoras, elas assumiram o papel tão somente de legitimar a reprodução da injustiça social cognitiva.

A crise do paradigma dominante se instaurou na medida em que o conhecimento científico estabeleceu, de forma imperativa, uma espécie de padronização que “torna invisível” todo e qualquer saber emanado dos domínios sociais. Com isso, a emancipação social produzida pelo paradigma moderno pode ser considerada ilusória.

Desta forma, situando a temática da emancipação social no espaço público da cidade, é que se pretende avançar sobre novas perspectivas que permitam uma nova análise social, que não apenas reproduza o efeito de ocultação e descrédito imposto pela racionalidade ocidental dominante. Uma das manifestações da racionalidade moderna está representada pela figura do plano, do projeto. A pretensa universalidade, funcionalidade e ordenação das coisas no mundo faz do planejamento (do espaço) a mola-mestra da modernidade.

O espaço público urbano encerra em si uma potencialidade transformadora: é o lugar do confronto e da imprevisibilidade, que se contrapõe à racionalidade do planejamento. É também o lugar da liberdade em seu sentido moderno (4). Muito mais do que ser entendido como espaço urbano coletivo, acessível a todos, ele é, acima de tudo, um espaço político (5).

O ponto de partida para reconhecer a pluralidade de narrativas oriundas de movimentos sociais e ativistas, que são formas de apropriação do espaço público da cidade através de experiências emancipatórias, é a crítica do modelo de racionalidade, proposta por Boaventura de Sousa Santos (6). Aqui cabe a seguinte reflexão do autor:

“A experiência social em todo mundo é muito mais ampla e variada do que o que a tradição social científica ou filosófica ocidental conhece e considera importante. Esta riqueza social está a ser desperdiçada e é deste desperdício que se nutrem as ideias que proclamam que não há alternativa, que a história chegou ao fim e outras semelhantes. Para combater o desperdício da experiência, para tornar visíveis as iniciativas e os movimentos alternativos e para lhes dar credibilidade, de pouco serve recorrer à ciência social tal como a conhecemos. No fim das contas, essa ciência é responsável por esconder ou desacreditar as alternativas” (7).

O autor entende que o modelo de racionalidade dominante do conhecimento científico é pautado por uma razão indolente, arrogante, que deve ser substituída por uma razão cosmopolita. O autor procura fundar esse novo modelo de racionalidade cosmopolita em três procedimentos sociológicos, designados por ele de sociologia das ausências, sociologia das emergências e o trabalho de tradução.

A reinvenção da emancipação social seria possível a partir da crítica sobre duas formas de indolência da razão: a razão metonímica e a razão proléptica, metaforicamente designadas pelo autor ao utilizar as figuras de linguagem metonímia e prolepse. Em poucas palavras, a razão metonímica reivindica-se como a única forma de racionalidade, obcecada pelo todo em detrimento das partes do contexto. A razão proléptica preocupa-se em antever o futuro, “porque julga que sabe tudo a respeito dele e o concebe como uma superação linear automática e infinita do presente” (8).

A condição fundamental para recuperar ações emancipatórias desperdiçadas é pensar as dicotomias para além dos arranjos de poder, assim, se revelariam outras relações e articulações que têm sido ofuscadas e “invisibilizadas” pelas dicotomias dominantes. Para tanto, a sociologia das ausências traz a seguinte reflexão:

"Pensar o Sul como se não houvesse Norte, pensar a mulher como se não houvesse o homem, pensar o escravo como se não houvesse senhor. O pressuposto deste procedimento é o que a razão metonímica, ao arrastar estas entidades para dentro das dicotomias, não o fez com pleno êxito, já que fora destas ficaram componentes ou fragmentos não socializados pela ordem da totalidade. Esses componentes ou fragmentos tem vagueado fora da totalidade como meteoritos perdidos no espaço da ordem e insusceptíveis de serem percebidos e controlados por ela" (9).

Desta forma, a racionalidade cosmopolita traz como alternativa à razão metonímica, a sociologia das ausências e à razão proléptica, a sociologia das emergências. Portanto, o sentido central da aplicação desses fundamentos sociológicos é justamente evitar o desperdício da experiência social, como por exemplo reconhecendo as formas de apropriação do espaço público da cidade pela sociedade civil organizada ou individualmente.

Para uma sociologia das ausências

O procedimento sociologia das ausências tem como objetivo empírico tornar visíveis as manifestações sociais ocultadas ou marginalizadas e com base nisso, transformar as ausências em presenças, centrando-se nos fragmentos da experiência social não-socializados pela totalidade metonímica. A sociologia das ausências visa demonstrar que o que não existe (as experiências sociais ocultadas) é, no fundo, produzido pelo pensamento hegemônico como não-existente: “estão apenas presentes como obstáculos em relação às realidades que contam como importantes (...) são, pois, partes desqualificadas de totalidades homogêneas” (10).

Para tanto, Santos (11) propõe cinco tipos de ecologias, como uma espécie de recurso metodológico para colocar em prática a sociologia das ausências: a ecologia de saberes, que visa substituir a monocultura do saber e do rigor científico; a ecologia das temporalidades confronta a lógica da monocultura do tempo linear; a ecologia dos reconhecimentos confronta a lógica da classificação social, cuja produção da ausência centra-se na desqualificação dos agentes sociais; a ecologia das trans-escalas, que se contrapõe à lógica da escala global através da recuperação do local, do específico; e, finalmente, a ecologia da produtividade que, no domínio da lógica produtivista, consiste na recuperação e valorização dos sistemas alternativos de produção.

Assim, a sociologia das ausências pretende identificar como acontece o desperdício das experiências.  Como afirma Santos (12), “tornarem-se presentes significa serem consideradas alternativas às experiências hegemônicas, a sua credibilidade pode ser discutida e argumentada e as suas relações com as experiências hegemônicas poderem ser objeto de disputa política”.

Entendemos o espaço público urbano como um dispositivo de manifestação, é uma superfície que torna visível (presente) as experiências que de outro modo estariam ocultas (ausentes). Podemos aqui inverter as noções comuns de superficialidade e profundidade. No senso comum, por exemplo, dizemos ser necessário “aprofundar” uma reflexão ou discussão, enquanto que “manter-se na superficialidade” de uma questão significa restringir-se aos seus aspectos mais visíveis e não- significativos e, assim, não abordar os aspectos mais relevantes. Em se tratando de espaço público, o raciocínio é outro: a visibilidade é relevante. Estar na superfície é importante para que se possa ver, saber e conhecer. No espaço público de nossas cidades podemos de fato ver e comprovar (para que cada um interprete a seu modo) o quanto a criatividade e a necessidade podem gerar novas atividades econômicas (comércio ambulante, por exemplo), mas também o quanto as contradições sociais podem gerar formas precárias de uso e apropriação do espaço (moradores sem-teto). Em sua dimensão política, o espaço público materializa na escala local a sociologia das ausências de Santos, dando visibilidade às ausências e transformando-as em presenças.

Numa democracia, a transparência (de processos, de relações) é extremamente importante. Assim, a noção de superfície passa a ter um sentido positivo, ligado à visibilidade, ao tempo em que a ideia de profundidade remete à escuridão, onde nunca se sabe exatamente quais são e onde estão os objetos lá existentes – e quem os manipula ou controla. Os aspectos tidos como mais profundos (como raízes que parecem fixas, imutáveis) de uma realidade social devem ser trazidos à superfície, se queremos que todos os vejam – e sejam transformados. Uma das definições de política pode ser então este movimento de “trazer à superfície” alguns aspectos da construção de uma sociedade, para que possam ser vistos por todos. Trazer à esfera pública, portanto (13).

Em linhas gerais, a sociologia das ausências é um exercício contrafactual (14), que pretende confrontar-se com o senso comum científico tradicional. Por isso, exige imaginação sociológica que permita avançar epistemologicamente e democraticamente para reconhecer as experiências sociais existentes no mundo.

Para uma sociologia das emergências

A sociologia das emergências debruça-se sobre as alternativas que permeiam o horizonte das possibilidades concretas. Levando em conta a ampliação simbólica dos saberes, das diversas práticas e agentes que cotidianamente fazem a cidade, de forma a apontar neles as tendências ou inclinações do porvir. Sobre as quais é possível operar para maximizar a probabilidade de esperança em relação à chance de frustação.

A sociologia das emergências revela-se, com isso, por via da amplificação destas pistas, que poderão ocorrer em cinco campos sociais, elencados a seguir: experiências de conhecimentos; experiências de desenvolvimento, trabalho e produção; experiências de reconhecimento; experiências de democracia e; experiências de comunicação e de informação. Segundo Santos (15), na ciência moderna a realidade e a necessidade não precisam da possibilidade para dar conta do presente ou do futuro, todavia “a possibilidade é o movimento do mundo”, que é categoria modal negligenciada pela modernidade:

“Ambas as sociologias, a da ausência e a das emergências, ampliam o presente. Mas enquanto a primeira o faz ‘juntando ao real existente o que dele foi subtraído pela razão metonímia’ (idem, 2004, p. 796), a sociologia das emergências o faz incorporando as possibilidades e as expectativas futuras que ele, o presente, comporta. À esperança contrapõe-se a frustação que, entretanto, não pode ser blindada. É possível, ainda assim, atuar para maximizar a probabilidade de esperança em relação à probabilidade de frustação. As expectativas sociais, portanto, movem a sociologia das emergências. Essas expectativas são contextuais, concretas e radicais, porque ‘no âmbito dessas possibilidades e capacidades, reivindicam uma realização forte que as defenda da frustração. São essas expectativas que apontam para os novos caminhos da emancipação social, ou melhor, das emancipações sociais’” (16).

O fundamento sociológico não convencional das emergências compactua, portanto, com a ideia de potência, no sentido de capacidade e também com a ideia de potencialidade, no sentido de possibilidade. De uma forma ou de outra, esses sentidos estão presentes nos inconformismos que movimentam ambas as sociologias propostas por Boaventura de Sousa Santos, por um lado a sociologia das ausências se articula no campo as experiências sociais enquanto a sociologia das emergências, por outro lado, move-se na seara das expectativas sociais.

Quanto mais abrangente e múltipla forem as práticas e ações, ou seja, quanto mais ampla for a realidade real tanto maior o futuro concreto. A sociologia das emergências assenta-se, portanto, na busca de uma relação mais equilibrada entre experiência e expectativa:

“Não se trata de minimizar as expectativas, trata-se antes de radicalizar as expectativas assentes em possiblidades e capacidades reais, aqui e agora (...) As expectativas legitimadas pela sociologia das emergências são contextuais porque medidas por possibilidades e capacidades concretas e reais, e porque, no âmbito dessas possiblidades e capacidades, reivindicam uma realização forte que as defenda da frustação” (17).

Como será possível observar mais adiante ao serem contextualizadas as possiblidades e capacidades das vinculações entre as sociologias de Boaventura de Sousa Santos expressas no espaço público da cidade, as expectativas apontam seguramente para novos caminhos da emancipação social ou, melhor ainda, das emancipações sociais.

O trabalho de tradução

A tradução representa uma alternativa para interpretar as experiências de emancipação social, bem como os seus agentes, no sentido de compreender que todas as culturas são incompletas e podem enriquecer e serem enriquecidas pelo diálogo e confrontos com outras culturas, outros olhares. O trabalho de tradução cria as condições necessárias para emancipações sociais concretas de grupos sociais concretos num presente cuja injustiça é legitimada com base num maciço desperdício de experiência (18).

O trabalho de tradução é complementar à sociologia das ausências e à sociologia das emergências, portanto, se constitui em alternativa para interpretar os saberes e as práticas, bem como os seus agentes, além de tentar esclarecer o que une e o que separa os diversos movimentos e as diferentes práticas.

Do ponto de vista da razão cosmopolita, a tarefa do trabalho de tradução é tanto a de identificar novas totalidades e/ou empregar outros sentidos para a transformação social quanto de sugerir novas formas de pensar essas totalidades e de figurar esses sentidos:

“Se o mundo é uma totalidade inesgotável, cabem nele muitas totalidades, todas necessariamente parciais, o que significa que todas as totalidades podem ser vistas como partes e todas as partes como totalidades” (19).

Do ponto de vista desta concepção de mundo, faz pouco ou nenhum sentido compreendê-lo por uma teoria geral, o que pressupõe a homogeneidade das suas partes. Por isso, o trabalho de tradução é uma alternativa à teoria geral, porque precipita um procedimento que permite dar clareza recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis, desveladas pelas sociologias estudadas:

“Trata-se de um procedimento que não atribui a nenhum conjunto de experiências nem o estatuto de totalidade exclusiva nem o estatuto de parte homogénea. As experiências do mundo são vistas em momentos diferentes do trabalho de tradução como totalidades ou partes. Por exemplo, ver o subalterno tanto dentro como fora da relação de subalternidade” (20).

Assim, o trabalho de tradução se manifesta entre práticas e agentes sociais, já que, objetivamente, todas as práticas sociais abarcam conhecimentos e, nesse sentido, são práticas de saber. Em outras palavras, o trabalho de tradução envolve os saberes aplicados em práticas e materialidades.

A relevância do trabalho de tradução junto às sociologias das ausências e das emergências permitem acrescentar, sobremaneira, a reserva de experiências sociais disponíveis e possíveis no mundo em movimento contra-hegemônico e contrassistêmico. Esses fundamentos sociológicos, portanto, se complementam, tornando visíveis a diversidade de experiências e imprimindo inteligibilidade, coerência e articulação dentro de toda uma multiplicidade e diversidade possível e disponível no mundo.

Como as sociologias, o trabalho de tradução exige imaginação epistemológica e democrática, de modo a se edificar novas e plurais concepções de emancipações sociais sobre os escombros da emancipação social do projeto da sociedade moderna.

O conceito de “para-formalidade”, desenvolvido pelo coletivo argentino GRIS (21), pode ser interpretado como um trabalho de tradução, pois nos ajuda a compreender, na escala do espaço público, como se dá esta relação entre racionalidades dominantes e outras formas de experiências sociais (22).

Conforme Eduardo Rocha e companheiros, o para-formal está na fronteira, nas frestas, para além da oposição entre o formal (formado) e o informal (em formação), e se expressa em figuras como o morador de rua, o ambulante, o catador etc., em “espaços não regulados, espaços anarquistas, onde se produzem atividades que tendem a subverter as leis da economia tradicional, do urbanismo e das relações humanas, que podem gerar mudanças importantes, tanto teóricas como práticas, na maneira de pensar e planejar a cidade” (23).

Rocha e companheiros  (24) apontam alguns exemplos de equipamentos para-formais que conquistam seu lugar no cotidiano pelo simples fato de serem úteis e necessários, apesar de normalmente não pertencerem ao aparato do planejamento urbano. O trailer é encontrado em diversas cidades e são utilizados basicamente para lanches e alimentos em geral (ver figura 1). Apesar de muitas vezes prejudicarem o fluxo de pedestres nas calçadas e da baixa qualidade estética e sanitária, as pessoas gostam dos trailers por diversos motivos, segundo pesquisa desenvolvida em diversas cidades pelos autores, entre eles por gerar movimento e maior segurança à noite, ou pela variedade de lanches. Aliás, estas situações de comida de rua advindas de um aparato para-formal ou mesmo formal (trailers e barracas de rua regularizados a posteriori, ainda que não resultantes de um processo oficial de projeto), adquirem um outro conceito quando se revestem em food trucks: aqui a experiência de comer na rua, de vivenciar o espaço público, passa a ser desejada por novos consumidores com a ressalva de serem mais exigentes em relação ao atendimento, higiene e sabor da comida. Trata-se aqui de um tipo de apropriação segmentada do espaço público por consumidores de mais alta renda, mesmo quando a ocupação do espaço por trailers de food truck não está regularizada e formalizada – sendo, portanto, um exemplo de para-formalidade, mas sem a eventual carga negativa dos demais trailers de lanches.

Trailer de lanches na Praça Camerino, Aracaju
Foto César Henriques Matos e Silva, 2006

Outro equipamento para-formal é o “paraciclo inventado”, que pode ser qualquer coisa que sirva de apoio para guardar a bicicleta, como grade, poste etc. (figura 2). Este uso “para-formal” de elementos do espaço público para as bicicletas é bastante disseminado nas nossas cidades, pois apesar de ser um meio de locomoção importante para muitas pessoas, ela não recebe benefícios do poder público ou de empreendimentos privados e por isso não existem paraciclos adequados nas cidades, precisando ser improvisados pelos ciclistas. O automóvel é o principal modal na cidade, dominando o espaço das vias em detrimento dos espaços para as pessoas, mas “pedalar na cidade pode ser uma boa forma de senti-la, descobri-la, observando as brechas, as margens, as atividades que acabam passando despercebidas quando andamos de carro ou ônibus” (25).

A crítica ao automóvel é também uma crítica ao tipo de planejamento urbano oriundo do modernismo, essencialmente rodoviarista, em especial no tocante ao desenho urbano e às configurações espaciais que ignoram as múltiplas dinâmicas de uso do espaço (26). É a racionalidade dominante, hegemônica, que se reflete no desenho e na não-apropriação do espaço por indivíduos, pois o transporte individual motorizado exige espaços excludentes, sem compartilhamento com outros modos de transporte.

Corrimão serve de apoio para ambulante e torna-se um “paraciclo inventado”
Foto César Henriques Matos e Silva, 2006

Ademais, formas subversivas de uso do espaço são também produtos de uma aguda precariedade da vida urbana, resultado da ineficiência do poder público, como constatado nos paraciclos inventados, ou das condições macro-esconômicas e políticas da pobreza urbana refletida nos ambulantes e moradores de rua. E tudo isso é visível nas ruas da cidade. Dai a importância política do espaço público enquanto lugar da visibilidade. Ao se manifestar no espaço público, o "para-formal" gera disputas e opiniões diversas, pois de acordo com Rosalyn Deutsche, “o espaço social é produzido e estruturado pelo conflito” (27). Neste sentido, é o espaço público urbano que torna real e sensível novas experiências de ação para além do desenho urbano projetado.

Aliás, com respeito ao caráter conflitivo do espaço público, Miles (28) questiona a idealização, nascida da sociedade burguesa moderna, do espaço público como um lugar da democracia, onde pessoas diferentes podem de alguma maneira conviver. Para o autor, ao longo de diversos momentos da civilização humana o espaço público não tem sido um “local de conquista do poder social”, mas de sua manutenção. Na maioria das vezes, os espaços urbanos abertos eram apropriados por grupos sociais hegemônicos para exibição do seu poder, quase sempre o poder do Estado. Entretanto, entendemos o espaço público como uma possibilidade, a ser usufruída ou não, a ser conquistada, de democracia. Se o espaço público não é o lugar onde a política necessariamente se instaura, ele decerto contém em si, ao menos, a potencialidade para tal (29).

Os para-formais, como os ambulantes, ou os usos para-formais de mobiliário – um bom exemplo é a colocação provisória de cadeiras na rua trazidas de uma loja para grupos de conversa, como se observa na figura 3 – são exemplos de experiências no espaço público para além da racionalidade dominante dos planos urbanísticos oficiais. Estas e outras devem ser incorporadas à nossa forma de ver e pensar a cidade como um meio de “combater o desperdício da experiência” (30) e como uma forma de resistência e inconformismo à planificação.

Cadeiras na rua de pedestres, centro de Aracaju
Foto César Henriques Matos e Silva, 2006

Considerações finais

A ciência moderna assume o papel de grande protagonista na construção do conhecimento. Nas relações entre essa forma privilegiada do conhecimento científico e as formas “periféricas” de produção do conhecimento (filosófico, artístico etc.), incluindo aqui formas de apropriação do espaço público urbano em contraposição aos planos e projetos técnicos, as expectativas e possibilidades de reinventar experiências e práticas sociais emancipatórias no espaço público estão provisoriamente ocultadas, mas existem e são reais.

Este artigo buscou fazer uma análise local, na escala dos espaços da cidade, a partir dos processos de emancipação social tendo como base as reflexões de Boaventura de Sousa Santos, e pretendeu contribuir para qualificação do debate acerca da função da ciência enquanto forma de conhecimento e prática social.

Pode-se compreender com muita clareza alguns pontos fundamentais para as próximas reflexões dos limites e possibilidades em torno da reconstrução da emancipação social pelo prisma da razão cosmopolita. O principal deles foi que a variedade e a amplitude da experiência social em todo o mundo vão além do que a tradição científica ocidental conhece e considera relevante. A riqueza social vem sendo sistematicamente marginalizada e para combater esse processo são necessários mecanismos que possam permitir ações coletivas reais e efetivas, que surtam efeitos positivos para a vida das pessoas. A possibilidade de transformação social esboçada pelos fundamentos sociológicos (ausências, emergências e tradução) pode levar a repensar as estruturas de organização e função da sociedade.

Assim, os interesses materialistas são conferidos às instituições da ciência moderna, em grande medida porque esses interesses rivalizam com os interesses dos movimentos emancipatórios, como os que têm se reunido nas diversas edições do Fórum Social Mundial. Este evento é, aliás, um bom exemplo de trabalho de tradução que congrega diversas experiências emancipatórias e promove o intercâmbio entre elas.

Quando se trata de cidade, em especial da cidade brasileira contemporânea, observa-se que ela se conforma como uma esfera ¨pública¨ baseada em espaços privados e enclausurados. Muitas experiências são desperdiçadas quando da construção de espaços urbanos a partir de projetos políticos-ideológicos homogeneizantes, como nos fenômenos dos condomínios fechados, shopping centers e outros espaços afins. Aqui não se pode falar em espaço público.

Os projetos urbanísticos oficiais para o espaço público, desenvolvidos e desenhados por instâncias específicas (escritórios de arquitetura ou órgãos públicos de planejamento urbano), muitas vezes não consideram as dinâmicas sociais do lugar e as formas de apropriação dos usuários e emergem como propostas planificadoras e padronizantes.

Na verdade, numa perspectiva metafórica talvez não devêssemos falar em espaço público no singular, pois são muitas e diversas as experiências sociais (mesmo as “ausentes”, como nos mostra Boaventura de Souza Santos) e, por isso, são muitos os espaços públicos. Para que esta pluralidade de fato ocorra, ela deve estar fundada em bases coletivas, de participação e colaboração. Mas de que tipo de produção coletiva está se enunciando? Muitas vezes, nestes processos de pensar e decidir os rumos da cidade a participação social ocorre unicamente para cumprir uma agenda institucional, baseada na legislação urbana vigente que exige participação e controle social. Na verdade, esses espaços se configuram em uma forma velada de construção coletiva que reproduz e legitima uma emancipação social excludente e ilusória, onde a própria linguagem de chamamento público e os termos técnicos adotados nestes processos são restritivos.

Por fim, entende-se que todo o arcabouço sociológico proposto por Boaventura de Sousa Santos configura-se em alternativa tangível à hegemonia globalizante do modo de produção capitalista, já que se apoia na compreensão de que não há caminho para a justiça social sem uma justiça cognitiva entre as pessoas e suas diferentes culturas.

Diante dos vários saberes que existem no mundo, não podemos trabalhar com um único saber ou com uma teoria geral, apresentada na tradição científica moderna através do caráter hegemônico do método científico experimental, que marginaliza outros tipos de conhecimento, outras experiências sociais. Para Santos (31), temos que pensar em um pluralismo metodológico, que seriam diálogos e conflitos possíveis entre diferentes formas de conhecimento, evitando, assim, totalidades.

notas

NA - Uma versão preliminar deste texto foi apresentada no I Congresso Internacional Espaços Públicos, em outubro de 2015 na Pontifíca Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUC RS em Porto Alegre, e publicada nos Anais do evento.

1
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: A ciência, o direito e a política na transição paradigmática. 4ª edição. São Paulo, Cortez, 2002.

2
MEDEIROS NETA, Olivia Morais de. É possível uma pedagogia da cidade? HISTEDBR Online, n.40, Campinas, dez. 2010, p. 214.

3
SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo, Cortez, 2004, p. 18.

4
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34/Edusp, 2000, p. 305. A autora trata do conceito de liberdade na Modernidade que, em contraponto com a liberdade na Antiguidade, está baseado no princípio da universalidade. Mas a própria autora ressalta que “a comunidade política que incorpora a todos os cidadãos nunca existiu”.

5
SILVA, César Henriques Matos e. Espaços públicos fortes: transformações e ressignificações do centro da cidade de Aracaju. São Cristóvão, Editora UFS, 2014.

6
SANTOS, Boaventura de Souza. Conhecimento prudente para uma vida decente (op. cit.).

7
Idem, ibidem, p. 778.

8
Idem, ibidem, p. 779-780.

9
Idem, ibidem, p. 786.

10
Idem, ibidem, p. 789.

11
Idem, ibidem.

12
Idem, ibidem, p. 789.

13
SILVA, César Henriques Matos e. Op. Cit.

14
SANTOS, Boaventura de Sousa. Conhecimento prudente para uma vida decente (op. cit.), p. 789.

15
Idem, ibidem, p. 796.

16
Idem, ibidem, p. 798.

17
Idem, ibidem, p. 786.

18
Idem, ibidem, p. 814-815.

19
Idem, ibidem, p. 786.

20
Idem, ibidem, p. 788.

21
O grupo Gris Público Americano – GPA é formado por um grupo de arquitetos argentinos com sede em Buenos Aires, integrado por Mauricio Corbalán, Paola Salaberri, Pío Torroja, Adriana Vázquez, Daniel Wepfer e Norberto Nenninger.

22
ROCHA, Eduardo; ALLEMAND, Débora Souto; PINHO, Rafaela Barros de; PORTELA, Laís Dellighausen; MUNSBERG, Glauco Roberto. A cidade "para-formal": controvérsias e mediações no espaço público latino-americano. In Anais do XVI ANPUR, Belo Horizonte, 2015.

23
Idem, ibidem, p. 1-2.

24
Idem, ibidem.

25
Idem, ibídem, p. 8.

26
HOLSTON, James. A cidade modernista: uma critica de Brasília e sua utopia. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.

27
DEUTSCHE, Rosalyn. Evictions, art and spatial politics. Chicago/London, Graham Foundation for Advanced Studies and Fine Arts/The MIT Press, 1996, p.XXIV. Tradução do autor.

28
MILES, Malcolm. Para além do espaço público. Lisboa: Água Forte, 2001.

29
SILVA, Op. cit.

30
SANTOS, 2004, Op. cit.

31
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para um novo senso comum: A ciência, o direito e a política na transição paradigmática (op. cit.).

sobre os autores Robertha Georgya de Barros e Silva é urbanista (Uneb), mestre pela Universidade Federal de Sergipe (Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento e Meio Ambiente – Prodema), Brasil. Trabalhou na Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Bahia (Sedur) e de Sergipe (Sedurb).

César Henriques Matos e Silva é arquiteto e urbanista (UFBA), doutor pela Universidade Federal da Bahia (PPGAU/UFBA), professor adjunto da Universidade Federal de Sergipe, Campus Laranjeiras, Departamento de Arquitetura e Urbanismo, Brasil. Autor de ¨Espaços públicos fortes: transformações e ressignificações do centro da cidade de Aracaju¨ (2014).

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