O processo de construção da cidade é constante e evidencia as desigualdades socioeconômicas e os conflitos de interesses inerentes ao contexto urbano. Para reflexão sobre esse processo de fazer cidade, entende-se que a cidade não é apenas uma reprodução, localizada e reduzida da estrutura social. Por um lado, ela é um complexo de relações sociais, econômicas e de poder, por outro, ela é materialização das desigualdades e dos conflitos ao longo do tempo: “a cidade contribui para configurar a estrutura social”, de acordo com Carlos Vainer (1).
Dessa concepção deriva o entendimento que a arquitetura (ou o espaço) é, concomitantemente, variável dependente e variável independente (2). Como variável dependente, compreende-se que o espaço resulta do ambiente socionatural (geografia, relevo, interesses políticos e econômicos). Como variável independente, entende-se que a arquitetura tem efeitos, impactando o ambiente e afetando as pessoas de vários aspectos, entre eles o sociológico.
A pesquisa parte dessa abordagem para analisar o processo de construção das cidades à luz do Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV, o maior programa habitacional brasileiro, lançado pelo Governo Federal em 2009, com volumosos recursos para a construção de moradias. Investigam-se os impactos do programa no tecido urbano tendo em vista o quadro de fragmentação espacial das cidades brasileiras. Explora-se a relação entre as políticas públicas e o território, a partir da investigação da inserção urbana dos empreendimentos do programa, utilizando-se do aparato teórico, metodológico e ferramental da Sintaxe Espacial.
Parte-se da compreensão do processo de urbanização brasileiro – extremamente rápido e violento: em 1950, 18,8 milhões de habitantes viviam em cidades, passando para 160,9 milhões em 2010 (3), resultando em um robusto movimento de construção da cidade, historicamente marcado pela exclusão social e fragmentação urbana. A consequência desse processo é que as cidades brasileiras figuram como as mais fragmentadas do mundo: “As cidades brasileiras são um tipo preciso de configuração da forma-espaço urbana, produzido por um processo histórico peculiar de urbanização que legou à cidade contemporânea uma fragmentação espacial sem precedentes. As feições configuracionais examinadas apontam para um labirinto derivado da colcha de retalhos” (4).
Diante desse processo, investigam-se as consequências das rápidas transformações ocorridas nas cidades brasileiras ao longo dos últimos anos, a partir da constituição de novos bairros nas fronteiras urbanas que, impulsionados por um mercado imobiliário aquecido pela grande massa de investimentos públicos, transformou a paisagem das cidades e impactou sobremaneira na dinâmica urbana.
Apresenta-se uma leitura da configuração urbana de 24 capitais estaduais brasileiras: Rio Branco AC, Maceió AL, Manaus AM, Macapá AP, Salvador BA, Fortaleza CE, Brasília DF, Goiânia GO, São Luís MA, Belo Horizonte MG, Campo Grande MS, Cuiabá MT, Belém PA, João Pessoa PB, Recife PE, Teresina PI, Curitiba PR, Natal RN, Porto Velho RO, Boa Vista RR, Porto Alegre RS, Florianópolis SC, Aracajú SE e Palmas TO, buscando analisar, em caráter exploratório, a relação entre o PMCMV e o espaço urbano. O objetivo é analisar o processo contemporâneo de construção de cidades impulsionado pelo PMCMV visando explorar o impacto no programa no tecido urbano, a partir da compreensão da relação existente entre as políticas públicas e o território. Explora-se em que medida os empreendimentos habitacionais se relacionam com o tecido ao qual estão inseridos, em termos de segregação ou integração espacial. É possível afirmar que o PMCMV tem contribuído para acentuar o quadro de fragmentação/dispersão do contexto urbano das cidades brasileiras?
Questão habitacional e segregação espacial
Considera-se, na relação de forças que atuam na cidade, que tanto o Estado, quanto o mercado, atuam na conformação da estrutura urbana das cidades, reforçando a segregação urbana. O padrão de segregação espacial mais conhecido nas metrópoles brasileiras é o centro x periferia (5). Nesta lógica, as classes de alta renda ocupam áreas mais centrais dotadas de infraestrutura e serviços urbanos, enquanto que as periferias subequipadas e longínquas são o lugar dos excluídos, ressaltando, portanto, que o espaço atua como um mecanismo de exclusão, em um movimento de segregação involuntária. Já, com o surgimento do padrão de ocupação dos condomínios de alta renda, fechados com altos muros e sistema de vigilância, reforça-se um modelo altamente segregador, de maneira voluntária.
Assim, a segregação urbana não é mais percebida pela abstração simplista do modelo centro x periferia, mas pode ser observada a partir da identificação de um processo: “segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole” (6), utilizando-se a definição de segregação dada por este autor.
Considerando ainda as análises de Pedro Abramo (7) e Carmo Júnior (8), que também exploram de que maneira a questão habitacional (e de centralidades) se relaciona com a estruturação das cidades, verifica-se de que maneira a periferização e a exclusão socioespacial se deram, em grande medida, enquanto decorrência de uma política habitacional (ou da intencional ausência dela), marcando o processo de urbanização brasileiro.
Analisando a relação entre as políticas habitacionais e o espaço urbano a partir da leitura configuracional, avalia-se que nas cidades brasileiras o padrão de segregação se dá pela fragmentação do tecido urbano. De acordo com Medeiros (9), o que se percebe, de maneira geral, é a fragmentação espacial como característica predominante nas cidades brasileiras, tendo em vista os diversos conflitos presentes no processo contemporâneo de construção das cidades: o estudo indica que muitas cidades do país foram conformadas sem uma política urbana ordenadora, de forma que a ocupação dos vazios foi estabelecida pela especulação imobiliária, promovendo o estabelecimento de conjuntos habitacionais espaçados, criando malhas independentes hoje integradas à cidade de uma maneira ou outra.
Considerando esse padrão urbano como a materialização dos processos sucessivos e conflitantes, onde as intervenções são pensadas de maneiras independentes e não seguem uma lógica ordenadora e que definem nosso processo de urbanização, alcança-se a origem da expressão colcha de retalhos explorada por Medeiros:
O padrão em colcha de retalho de nosso tecido urbano é o elemento que mais decisivamente colabora para a construção de um espaço de fragmentação, que progressivamente compromete as qualidades de percepção e apreensão, ao se tornar continuamente menos acessível e permeável. São agravados, portanto, os estados de segregação espacial e derivados – distanciamento entre ricos e pobres, dificuldade de locomoção, concentração de renda, baixa produtividade etc (10).
A partir dessas evidências e à luz da análise configuracional que a pesquisa explora de que maneira o Programa Minha Casa, Minha Vida se relaciona com o tecido existente das cidades brasileiras, em termos de segregação e integração, como veremos adiante.
Sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida
O Programa Minha Casa Minha Vida – PMCMV foi lançado em 2009 pelo Governo Federal, com a intenção de estimular a atividade de construção civil para o enfrentamento da crise econômica (11). Além disso, o programa tinha o objetivo reduzir o déficit habitacional brasileiro e ampliar o mercado habitacional para o atendimento a famílias com renda média mensal de até R$ 5 mil (12).
O programa possui abrangência nacional e pode ser dividido em fases. Em sua primeira fase (PMCMV 1) foram contratadas 1 milhão de unidades habitacionais até 2010. Para a segunda fase do programa (PMCMV 2), estabeleceu-se a meta de outras 2,75 milhões de moradias entre 2011 e 2014. Sua dimensão pode ser avaliada considerando o total de unidades habitacionais contratadas: até janeiro de 2015, eram 3,8 milhões de moradias contratadas nas duas fases, em mais de 94% dos municípios brasileiros, e 2,1 milhões unidades habitacionais entregues (13).
Desde sua implementação, o PMCMV foi estruturado em três faixas de renda para atendimento das famílias, sendo considerado em sua segunda fase: (a) Faixa 1: famílias com renda mensal até R$ 1.600,00; (b) Faixa 2: famílias com renda mensal até R$ 3.275,00; (c) Faixa 3: famílias com renda mensal até R$ 5.000,00. O programa divide-se ainda em dois subprogramas: (a) Programa Nacional de Habitação Urbana – PNHU, destinado à produção ou aquisição de novas unidades habitacionais, ou requalificação de imóveis urbanos; e (b) Programa Nacional de Habitação Rural – PNHR, destinado à produção ou reforma de imóveis para agricultores familiares e trabalhadores rurais. Dentro do PNHU, estão as modalidades que se destinam ao atendimento das famílias enquadradas na faixa 1: (a) Fundo de Arrendamento Residencial (FAR) e (b) Fundo de Desenvolvimento Social (FDS) – Entidades, ambas atuam nos municípios acima de 50 mil habitantes; (c) Oferta Pública de Recursos – para municípios abaixo de 50 mil habitantes (14). O atendimento às famílias enquadradas nas Faixas 2 e 3, por sua vez, se dá a partir do financiamento habitacional que pode ocorrer de duas formas: (a) operação de balcão ou destinado à Pessoa Física que adquire um imóvel na planta; e (b) financiamento à produção ou destinado à Pessoa Jurídica (construtoras e incorporadoras).
A pesquisa concentra-se na modalidade FAR, considerada a principal do programa e que conta com a maior parcela de subsídios e atende famílias com renda mensal de até R$ 1.600. Esta modalidade baseia-se na iniciativa privada, já que cabe a ela acessar diretamente os recursos do Fundo de Arrendamento Residencial – FAR, por meio da apresentação de projetos a serem avaliados e aprovados pelas instituições financeiras.
As críticas desenvolvidas por Bonduki (15), Fix e Arantes (16), além de Rolnik e Nakano (17), reforçam que a estratégia adotada pelo PMCMV tende a contribuir com a periferização das intervenções, na medida em que não enfrenta a questão fundiária. Pesquisas recentes têm evidenciado o processo de periferização dos empreendimentos do PMCMV (18), reforçando as inquietações sobre as consequências do programa para o espaço urbano já tão marcado pela segregação socioespacial. Além disso, ressalta-se que não é somente pela localização em si que se evidencia a segregação socioespacial, mas também pelos aspectos relacionados mais amplamente ao conceito de moradia adequada (19), em especial à inserção urbana do empreendimento em termos de serviços e equipamentos públicos urbanos, empregos, atividades, integração com a malha viária.
Portanto, surge, enquanto inquietação, a seguinte questão: É possível afirmar que o PMCMV tem contribuído para acentuar o quadro de fragmentação/dispersão do contexto urbano das cidades brasileiras?
Metodologia
A leitura da cidade que se apresenta explora o conceito de “lógica social” derivado da Sintaxe Espacial ou Teoria da Lógica Social do Espaço. Segundo Holanda, o conceito se refere “à maneira como a forma é constituinte de relações de simetria ou assimetria entre classes ou grupos sociais de natureza variada, isto é, como ela é constituinte de relações de poder” (20). De acordo com essa teoria, há uma relação fundamental entre espaço e sociedade, de maneira que não é possível haver uma sociedade sem conteúdo espacial, tampouco, um espaço sem conteúdo social.
A teoria baseia-se no entendimento de configuração enquanto arranjo das estruturas interdependentes de um determinado sistema, ou ainda, a maneira pela qual o objeto e suas partes se relacionam entre si. Trata-se de um complexo de relações de interdependência com duas propriedades fundamentais: a configuração é diferente quando vista de diferentes pontos dentro de um mesmo sistema e quando apenas de uma parte do sistema (21).
Explorar a leitura da cidade a partir da sua configuração urbana significa reconhecer a existência de uma relação entre o espaço – enquanto forma – e a estrutura social – enquanto modo de interação entre os indivíduos. Significa reconhecer nos vazios da cidade (ou permeabilidades) o espaço por onde circulam pedestres e veículos, ou seja, por onde se distribui o fluxo ou movimento.
A teoria, juntamente com seu aparato metodológico e ferramental, vem sendo amplamente utilizada em diversos estudos do espaço urbano ao possibilitar que fatores relacionados à configuração sejam mensurados e visualizados e, portanto, possam ser correlacionados com outras variáveis de natureza urbana (22). Ao permitir comparar aspectos de hierarquia na distribuição espacial de partes do assentamento, considera-se que a abordagem subsidia discussões a respeito de periferização e segregação urbana.
A leitura dos mapas axiais e dos valores calculados, em geral, ocorre a partir da interpretação da escala cromática aplicada aos números obtidos: quanto mais quente for a cor, ou seja, tendendo para o vermelho, maior o valor de determinada variável. No extremo oposto, quanto mais fria a cor, próxima ao azul, menor o valor obtido. Em termos de integração, significa dizer que eixos mais integrados (mais vermelhos) são mais acessíveis e tendem a gerar mais fluxo potencial. Na medida em que são mais facilmente alcançados a partir de qualquer outro elemento do sistema (para o caso de uma interpretação global), são topologicamente mais curtos e por isso chamado de rasos. Os eixos com menor valor de integração são menos permeáveis e denominados segregados ou profundos.
Etapas procedimentais
Tendo em vista que o sistema urbano muitas vezes extrapola o limite municipal, em função de processos de conurbação/metropolização, os mapas axiais produzidos para as análises consideram o sistema para além dos limites administrativos onde se localiza o empreendimento, incluindo municípios próximos a depender do grau de conurbação e da dinâmica entre partes da estrutura urbana. Foram analisadas 24 capitais brasileiras – Rio Branco AC, Maceió AL, Manaus AM, Macapá AP, Salvador BA, Fortaleza CE, Brasília DF, Goiânia GO, São Luís MA, Belo Horizonte MG, Campo Grande MS, Cuiabá MT, Belém PA, João Pessoa PB, Recife PE, Teresina PI, Curitiba PR, Natal RN, Porto Velho RO, BoaVista RR, Porto Alegre RS, Florianópolis SC, Aracajú SE e Palmas TO – incluindo seu entorno definido a partir da mancha urbana contínua – estendendo a amostra para um total de 59 municípios.
A partir da utilização de imagens de satélites, foi possível identificar a localização dos empreendimentos, que foram agrupados considerando o grau de contiguidade entre eles. Após o mapeamento, identificou-se a via de acesso do empreendimento no mapa axial, para a extração de medidas configuracionais específicas processadas por meio do software Depthmap. A análise de Goiânia representa um exemplo do uso do mapa axial com a identificação dos empreendimentos mapeados e resultados expressos na tabela correspondente.
Análise dos resultados
Os resultados alcançados serão apresentados, a seguir, orientados por duas seções. Inicialmente, serão apresentados os resultados oriundos exclusivamente da análise configuracional e os valores de integração extraídos dos mapas axiais, permitindo uma análise comparada entre os contextos urbanos analisados. Em seguida, serão apresentadas as correlações realizadas entre os valores de integração e as seguintes categorias de análise: (a) condição de inserção urbana; (b) categoria de município; (c) tipo edilício; (d) fase de contratação do programa; (e) existência de contrapartida; e (f) porte do empreendimento.
Valores de Integração
A partir da sistematização das informações de cada sistema, desenvolveu-se a base amostral de todos os empreendimentos mapeados, permitindo investigar comparativamente os dados conforme características comuns e específicas. Foi considerada, enquanto variável chave, a medida de integração global, que expressa o potencial da acessibilidade topológica de cada uma das vias de acesso ao empreendimento em relação ao complexo urbano como um todo. A média de integração global dos empreendimentos corresponde ao valor médio de todos os empreendimentos de determinado sistema, desta vez considerando as medidas normalizadas para base 100. Essa normalização permite que as medidas sejam comparadas a partir de uma mesma escala (que varia de 0 a 100, denominada de base 100), percebendo mais claramente o desempenho dos empreendimentos em cada sistema considerando a amostra como um todo.
A análise permitiu evidenciar uma enorme variação entre a média de integração dos empreendimentos a depender do contexto analisado, variando de 32,5 (Palmas TO) a 66,1 (João Pessoa PB), ou seja, os empreendimentos de Palmas são relativamente menos
No entanto, ainda que se verifique que Palmas TO têm menor média de integração, a análise torna-se mais rica ao comparar essa média com a média de integração do próprio sistema. Ou seja, uma análise intrínseca a determinada localidade verificando o quanto os empreendimentos de determinado contexto urbano se relaciona com ele mesmo. Assim, ao confrontar as médias da amostra com as médias de cada uma das cidades, é possível perceber o quanto os empreendimentos se distanciam ou aproximam dos polos, permitindo explorar com mais sincronia o cenário de determinado contexto urbano por meio de uma leitura global comparada, como ilustra a Figura 4.
No gráfico, os dados estão ordenados considerando a diferença entre a média de integração dos empreendimentos e a média de integração de cada sistema. Quanto mais à esquerda ou quanto mais azul, maior a distância entre esses valores, evidenciando casos em que os empreendimentos tendem para a segregação do tecido na medida em que possuem valores menores do que a média do sistema. No extremo oposto, ou seja, quanto mais vermelho, estão os casos em que a média de integração da amostra de empreendimentos é maior que a média do sistema, apontando os casos em que a inserção urbana do empreendimento é mais positiva ou mais central.
Dos 24 sistemas analisados, em 12 deles os empreendimentos são melhor integrados que a média do sistema, enquanto nos outros 12 ocorre o contrário. As situações mais segregadas incluem Goiânia GO, Brasília DF, Aracaju SE, Salvador BA, Rio Branco AC, Belo Horizonte MG, Palmas TO, Porto Alegre RS, Cuiabá MT, Boa Vista RR, Natal RN e Florianópolis SC, destacando-se Goiânia GO para a situação mais extrema. Os contextos de maior integração global incorporam Campo Grande MS, São Luís MA, Recife PE, Belém PA, Manaus AM, Maceió AL, Teresina PI, Curitiba PR, Fortaleza CE, Macapá AP, João Pessoa PB e Porto Velho RO, destacando-se o último com maior diferença entre os valores médios do sistema e do empreendimento.
Correlação de variáveis: valor de integração x demais categorias de análise
a-) Condição de inserção urbana
A categoria que observou a condição de inserção urbana considera a noção do empreendimento enquanto elemento de expansão do tecido urbano ou de consolidação de um tecido existente, a partir das imagens de satélites analisadas. A correlação realizada entre a condição de inserção urbana e o valor de integração revela, naturalmente, que empreendimentos em consolidação apresentam maiores valores de integração do que aqueles em expansão. Os dados expressos no gráfico de valor de integração Rn (base 100) por condição de inserção urbana ajudam a evidenciar em que medida isso ocorre e permitem conferir ainda que a análise visual e os valores de integração têm correspondência. Nos 148 empreendimentos em expansão, a média do valor de integração é de 48,59, enquanto que nos 196 empreendimentos considerados em consolidação do tecido, a média foi de 56,02, sensivelmente superior.
b-) Categoria de município
Uma vez que a análise considera mancha urbana contínua, a comparação entre a categoria de município e o valor de integração revela, curiosamente, que, considerando o total da amostra, os empreendimentos localizados no município do entorno têm maiores valores de integração (23). A intenção desses dados é evidenciar a complexidade de se analisar a questão da periferização dos empreendimentos não devendo essa se resumir a uma análise apenas do município a qual está inserido. É essencial ter em mente a complexidade da dinâmica urbana principalmente nas grandes metrópoles, tendo em conta a criação de subcentralidades e a conformação de tecidos urbanos contínuos. Esse alerta havia sido feito por Mercês (24) na análise da Região Metropolitana de Belém, ao constatar que a localização dos empreendimentos fora de Belém não significa necessariamente piora da inserção urbana.
c-) Tipo edilício
Em relação ao tipo edilício, percebe-se uma variação significativa entre os valores de integração dos empreendimentos do tipo “casa” para ao tipo “apartamentos”. Tal análise indica que os empreendimentos do tipo apartamentos estão em áreas mais acessíveis, possivelmente aproveitando frações urbanas em locais mais consolidados que, naturalmente, tendem a apresentar maiores valores de integração, em contraposição aos empreendimentos do tipo casa, que demandam maiores terreno para implantação, geralmente disponíveis em áreas periféricas.
d-) Fase de contratação do programa
A comparação entre os valores de integração e a fase do MCMV poderia vir a explicar duas hipóteses alternativamente. Ou seria de que: (a) na medida em que já houve a utilização dos terrenos mais bem inseridos no MCMV 1, o MCMV 2 tenderia a ocupar áreas menos integradas comparativamente; ou (b) de que a alteração normativa inclusive com aumento do valor teto (em reais R$) da unidade habitacional no MCMV 2 permitiram a contratação de moradias mais bem inseridas, em comparação das unidades do MCMV 1, uma vez que as moradias com melhor localização tendem a ser mais caras.
Esse tema havia sido explorado em Lima Neto, Krause e Furtado (2015), a partir da análise da distância média dos empreendimentos nas Regiões Metropolitanas de Belém, Fortaleza, Belo Horizonte, Porto Alegre e Goiânia. Os autores constataram a piora na localização dos empreendimentos do MCMV 2 em quase todas as localidades, exceto na RM de Belo Horizonte.
A partir da amostra analisada, os dados indicaram que os empreendimentos do MCMV 2 apresentam menor valor de integração do que do MCMV 1. No entanto, a diferença verificada não parece significativa a ponto de permitir confirmar nenhuma das hipóteses com segurança.
e-) Existência de contrapartida
A comparação entre o valor de integração e a existência de contrapartida permitiu verificar se os empreendimentos com algum tipo de apoio do ente público local têm uma melhor inserção urbana. Conforme o esperado, foi possível constatar a importância do apoio local para viabilizar empreendimentos com melhor inserção urbana, uma vez que se constata que os empreendimentos com contrapartida possuem maiores valores de integração em média (25).
f-) Porte do empreendimento
Ao correlacionar o valor de integração e o porte esperava-se confirmar a hipótese de que os empreendimentos maiores têm uma pior inserção urbana, na medida em que necessitam de terrenos maiores, em geral, disponíveis em áreas periféricas. Os valores foram agrupados em faixas considerando a quantidade de UH por empreendimento. Dessa forma, foi possível perceber que os empreendimentos de menor porte respondem por melhores valores de integração, no entanto, não foi possível perceber com clareza uma lógica entre as médias de cada categoria, nem confirmar que empreendimentos grandes realmente respondem por uma pior integração.
Conclusão
A pesquisa analisou a relação entre o Programa Minha Casa Minha Vida e o espaço urbano, a partir da análise configuracional comparativa em caráter exploratório. Acredita-se que a metodologia e as ferramentas utilizadas, oriundas da Sintaxe Espacial, foram úteis na leitura urbana e possibilitaram aprofundar o debate acerca da inserção urbana dos empreendimentos, em termos potenciais, ao permitir que os dados fossem matematicamente quantificados e correlacionados. A opção contribuiu para o processo de sistematização das análises comparadas, de modo a identificar as relações entre as características dos empreendimentos e seus atributos configuracionais.
Na análise comparada, a partir da média de integração na base 100, foi possível identificar que dos 24 contextos urbanos analisados, em 12 deles, os empreendimentos têm maior valor de integração que a média do sistema. Para estes casos, a inserção tende para a integração do tecido, o que requer a ressalva sobre a leitura de o PMCMV ser exclusivamente de reforço da periferização. Corroborando essa evidência, verificou-se, ainda, que na maioria dos casos, os empreendimentos do PMCMV ocorrem de forma a consolidar o tecido urbano existente, associando este grupo de empreendimentos a maiores valores de integração em média, confirmando a correspondência entre a análise visual e as medidas de integração.
A correlação entre os valores de integração com as categorias de município evidenciou a dificuldade de se analisar contextos urbanos, principalmente naqueles com características metropolitanas (quando é difícil precisar os limites municipais em função da conurbação), evidenciando o equívoco ao tratar de maneira superficial que empreendimentos fora do município polo reforçam a segregação, ignorando a complexidade da dinâmica urbana e a criação de subcentralidades. Dessa forma, discute-se a importância de um olhar metropolitano, na medida em que as relações entre o local de moradia, de emprego e de serviços se traduzem em realidades complexas.
Em relação à fase de contratação do programa, os dados não mostraram uma diferença significativa entre os valores de integração dos empreendimentos do MCMV 1 e MCMV 2, de forma que não é possível confirmar a hipótese de que, em função da indisponibilidade de terrenos, os empreendimentos do MCMV 2 são pior inseridos, ou ainda se essa diferença foi relativizada em função das alterações normativas ocorridas ao longo do programa. Já em relação à existência de contrapartida, revelou-se a importância do apoio local para viabilizar empreendimentos com melhor inserção urbana.
Já, a correlação entre valor de integração e o tipo edilício identificou que os empreendimentos do tipo apartamento estão em lotes mais acessíveis, aproveitando frações urbanas em espaços consolidados, em contraposição ao tipo casa, que possui a menor média de integração. Quanto ao porte, esperava-se confirmar a hipótese de que os empreendimentos maiores têm pior inserção urbana, na medida em que necessitam de terrenos maiores, em geral, disponíveis em áreas periféricas. No entanto, ainda que os empreendimentos de menor porte (categoria de até 100 UH) apresentassem maiores valores de integração, esse comportamento não foi linear entre as categorias de porte, de forma que os empreendimentos de maior porte (acima de 1.500 UH) não apresentaram a pior integração urbana verificada entre os grupos, dificultando confirmar a hipótese.
Considera-se, ainda, que os achados da pesquisa permitiram caracterizar melhor a maneira como vêm se dando o processo de construção das cidades brasileiras, sob a ótica do Programa Minha Casa, Minha Vida. Revela-se ainda que a associação direta entre o PMCMV e a fragmentação/periferização precisa ser relativizada. Há variações de desempenho na amostra, mas não é possível reputar ao programa, de maneira generalizada, a piora de um quadro de descontinuidade urbana que vem sendo uma característica das cidades do país há décadas. Vários resultados apontam para estratégias de consolidação do tecido que, grosso modo, servem para articular partes das cidades.
notas
1
VAINER, Carlos. As escalas do poder e o poder das escalas: o que pode o poder local? In Anais do 9º Encontro Nacional da Enanpur, Rio de Janeiro, 2001, p. 140-151.
2
HOLANDA, Frederico. O espaço de exceção. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2002.
3
De acordo com o Censo Demográfico dos anos de 1950 e 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE.
4
MEDEIROS, Valério. Urbis brasiliae: o labirinto das cidades brasileiras. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2013, p. 561.
5
VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel/FAPESP/Licoln Institute, 1998, p.142.
6
Idem, ibidem, p.142.
7
ABRAMO, Pedro. A Cidade com-fusa: a mão inoxidável do mercado e a produção da estrutura urbana nas grandes metrópoles latino-americanas. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, São Paulo, v. 9, n. 2, 2007.
8
CARMO JÚNIOR, João Batista. A forma do privilégio: Renda, Acessibilidade e Densidade em Natal – RN. Tese de doutorado, Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN, 2014.
9
MEDEIROS, Valério. Op. cit.
10
Idem, ibidem, p. 561.
11
Crise internacional que teve origem nos Estados Unidos em 2008, a partir do colapso no sistema financeiro de títulos hipotecários de alto risco, conhecido como subprime.
12
Anteriormente utilizava-se o patamar de 10 salários mínimos. Em abril de 2016, o programa sofreu ajustes, ampliando a renda, no entanto, modificações recentes, que contemplam a terceira fase do programa, não serão abordadas no presente artigo.
13
Segundo dados da Caixa Econômica Federal. Data base: 30/01/15.
14
Mais detalhes sobre o funcionamento operacional do programa podem ser vistos em CARVALHO, Alice. Da moradia à colcha de retalhos: o processo de construção de cidades à luz do Programa Minha Casa, Minha Vida. Dissertação de Mestrado, Universidade de Brasília, Brasília, 2015.
15
BONDUKI, Nabil. Do Projeto Moradia ao Programa Minha Casa Minha Vida. Teoria e Debate, v. 82, São Paulo, 2009 <https://teoriaedebate.org.br/2009/05/01/do-projeto-moradia-ao-programa-minha-casa-minha-vida/>
16
FIX, Mariana; ARANTES, Pedro. F. Como o governo Lula pretende resolver o problema da habitação. In Correio da Cidadania, jul. 2009 <www.correiocidadania.com.br/especiais/66-pacote-habitacional/3580-31-07-2009-minha-casa-minha-vida-o-pacote-habitacional-de-lula>.
17
ROLNIK, Raquel; NAKANO, Kazuo. As armadilhas do Pacote Habitacional. Le Monde Diplomatique Brasil, n. 20, São Paulo, mar. 2009 <https://diplomatique.org.br/as-armadilhas-do-pacote-habitacional/>.
18
Como é caso dos estudos referentes a Região Metropolitana de Belo Horizonte, do Rio de Janeiro, Fortaleza e Goiânia apresentados em CARDOSO, Adauto Lucio. O Programa Minha Casa Minha Vida e seus efeitos territoriais. Rio de Janeiro, Letra Capital, 2013.
19
Seguindo o conceito tratado pela ONU de que: "A moradia deve ser entendida de forma ampla, levando-se em conta, por exemplo, aspectos culturais do local onde se encontra e da comunidade que habita. Em muitos casos, o conceito de moradia adequada engloba o território, o acesso aos rios ou ao mar”. Organização das Nações Unidas – ONU. Relatora Especial da ONU para a Moradia Adequada. Como atuar em projetos que envolvem despejos e remoções?. Guia. São Paulo: ONU, 2010. Recuperado em 25 de janeiro de 2017, de http://direitoamoradia.org/.
20
HOLANDA, Frederico. Op. cit., p.31.
21
HILLIER, Bill. Apud MEDEIROS, Valerio. Op. cit.
22
Por exemplo, estudos sobre: centralidades, padrões urbanos, entre tantos outros temas possíveis, como transportes, mobilidade, preservação do patrimônio. Ver respectivamente: HOLANDA, Frederico. O espaço de exceção. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2002; e MEDEIROS, Valério. Urbis brasiliae: o labirinto das cidades brasileiras. Brasília, Editora Universidade de Brasília, 2013.
23
Ressalta-se que para essa análise foram considerados apenas os empreendimentos localizados nos 16 sistemas que possuem mancha urbana para além da capital.
24
MERCÊS, Simaia. Programa Minha Casa, Minha Vida na Região Metropolitana de Belém: localização dos empreendimentos e seus determinantes. In CARDOSO, Adauto Lucio (Org.). Op. cit.
25
Considerou-se nesta análise apenas os sistemas que possuíam empreendimentos com e sem contrapartida. Excluíram-se os seguintes sistemas: Rio Branco AC, Manaus AM, Campo Grande MS, Recife PE e Porto Velho RO.
sobre a autora
Alice de Almeida Vasconcellos de Carvalho é arquiteta (2009) e mestre em planejamento urbano (2015) pela Universidade de Brasília. É analista de infraestrutura do Governo Federal desde 2010 e, atualmente, trabalha na Secretaria Nacional de Desenvolvimento Urbano no Ministério das Cidades. Foi coordenadora da área de habitação na Secretaria do Programa de Aceleração do Crescimento do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.