A vida está determinada pelas cidades. Neste sentido, nossa curiosidade nos conduz aos estudos da produção material e subjetiva das cidades simpáticos à seguinte ideia: sujeitos fazem a cidade e são feitos por ela. Esta investigação nasceu numa cidade concreta: Suzano SP. No período de 2005 a 2012, a cidade experimentou ampliação da democracia por meio da participação política direta nos processos de tomada de decisão pelo governo local. Acompanhamos intensamente dois projetos, descritos abaixo.
Orçamento Participativo – OP: política pública que tem por objetivo aproximar população e poder público local com vistas a decidir como serão investidos os recursos públicos. No caso estudado (entre 2005 e 2008), aconteceram 40 grandes assembleias populares sendo 36 Plenárias Regionais Deliberativas, três Assembleias Gerais dos Representantes e uma Plenária de Juventude, além de três Caravanas pela Cidade e mais de 400 Reuniões Preparatórias. Foram eleitos três Conselhos do OP, denominados Corpo, com ⅔ eleitos diretamente pela população durante o processo das Plenárias e ⅓ dos membros indicados pelo governo local. No caso de Suzano, para além das questões orçamentárias, experimentamos um intenso processo de educação popular no sentido de pensar a cidade.
Educação e Meio Ambiente: política construída com a sociedade civil organizada, população e poder público no sentido de descobrir caminhos para uma relação mais harmoniosa e saudável com o meio ambiente. Foram organizados processos formativos com atividades teórico-práticas com a população via Programa de Educação Ambiental Popular – Peap com mais de 250 participantes. Simultaneamente ocorria o processo formativo de setores do poder público com a sociedade civil organizada – Comissão Interinstitucional Municipal de Educação Ambiental, com a participação de mais de 20 organizações e a representação das Secretarias Municipais. Por fim a Educação Ambiental Escolar que no ano de 2010 iniciou sua construção do currículo municipal com o tema Dialogando com os Espaços da Cidade – Tempo, Espaço e Água. Estes setores empenharam-se na construção e implementação da Política e Sistema Municipal de Educação Ambiental.
Ao mesmo tempo em que vivíamos a intensidade dos encontros na cidade, o texto “Restauração da Cidade Subjetiva” (1) escrito por Félix Guattari para o Colóquio “Homem, cidade, natureza: a cultura hoje”, organizado pela Unesco no Rio de Janeiro em 1992, muito nos provocou. Ali encontramos o conceito de desterritorialização associado à ideia de terras natais. O autor identifica um paradoxo. Tudo circula: as músicas, os slogans publicitários, os turistas e, ao mesmo tempo, tudo parece petrificar-se, permanecer no lugar. No seio de espaços padronizados, tudo é cada vez mais igual. Guattari afirma que “a subjetividade se encontra ameaçada de paralisia” (2). Em nosso trânsito por Suzano percebemos uma cidade viva, conhecemos muitas vidas singulares. Percebemos uma certa reconstrução das relações entre as pessoas e delas com a cidade e, pensando com o psicanalista francês, vinculamos a restauração de uma cidade subjetiva à ressingularização das finalidades da atividade humana e passamos a nos perguntar se são as pessoas habitam a cidade, ou as cidades que habitam as pessoas?
Neste percurso de pesquisa por Suzano enquanto a cidade material se constituía, um espaço de cidade imaterial também se revelava. Ao pensar a cidade, sujeitos implicados nos encontros, de alguma maneira, pensavam a si mesmos: sua relação com a vizinhança e os interesses ali presentes, as possibilidades de composição destes interesses, o bairro, a região... a cidade se produzindo em encontros de corpos que aceitaram o convite de participar do Orçamento Participativo e no Programa de Educação Ambiental Popular, momentos de conversa e decisão. Encontramos gente do Norte e Nordeste do Brasil, gente de origem africana, uma numerosa colônia japonesa, trabalhadoras/es que habitam a região metropolitana de São Paulo, além das marcas de povos indígenas. Inspirados na canção A Cidade Ideal de Chico Buarque de Hollanda para a peça Saltimbancos, percorremos a cidade de Suzano conversando também com as crianças atentos às suas leituras da cidade, seus desejos para a cidade. Com elas nos permitimos imaginar possibilidades para Suzano porque as crianças inventaram cidades dentro da cidade: durante as assembleias as crianças reivindicaram (dentre outras coisas) escola de circo, rio de chocolate e praia. Brincando, produzimos um pensamento a partir da cidade.
Neste artigo tentamos registrar uma cartografia das paisagens da Suzano física e das paisagens efêmeras na Suzano subjetiva, nos territórios existenciais que produzem sentidos outros, onde o pensamento movimenta, canta e dança. Porque nesta pesquisa, nas entrevistas e conversas com o povo de Suzano conhecemos muitas Suzanos dentro da mesma Suzano, muitas cidades dentro de uma mesma cidade. Tem muita vida na cidade, muitos olhares, muitas falas, muitos saberes produzidos na cidade, muita gente diferente fazendo a cidade pulsar: uma cidade viva.
Entendemos com Deleuze (a partir de Nietzsche): “um passo para a vida, um passo para o pensamento. Os modos de vida inspiram maneiras de pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver. A vida activa o pensamento e o pensamento, por seu lado, afirma a vida” (3). Por isso partiremos da arte em sua potência disparadora de devir. Iniciaremos com o cancioneiro popular, passaremos pela literatura de Ítalo Calvino e a leitura plástica de Lutero Pröschold. Em seguida apresentaremos os autores que nos dão sustentação teoria e, por fim, nossas considerações acerca da cidade como experiência de vida e pensamento.
Cidade na arte
“à medida em que fui mergulhando na memória para buscar os fatos e reconstituir sua cronologia, me vi adentrando numa outra espécie de memória, uma memória do invisível feita não de fatos mas de algo que acabei chamando de ‘marcas’” (4).
Suely Rolnik
Para além do olhar, podemos ouvir, sentir, pensar a cidade. A cidade é tantas: cada subjetividade pensa a cidade à sua maneira, significa a cidade, carrega cidades consigo em marcas afetivas. A cultura popular está toda marcada por essas significações de cidades. O cancioneiro popular brasileiro é rico em registros de saudade da terra natal onde, neste movimento das pessoas no território, da migração, das relações e sentimentos produzidos neste trânsito sobre o chão, marcas vão se fazendo em seus corpos. Encontramos, por exemplo, nos bairros da zona Norte de Suzano, situados às margens do Rio Tietê, um povo migrante. Gente que saiu de sua cidade em busca de uma vida melhor, com esperança de um futuro. Vejamos no cancioneiro popular.
Em Pau de Arara (5), Luiz Gonzaga, o rei do baião, fala de um retirante que deixa a cidade de Bodocó, no sertão pernambucano, carregando o essencial.
“Quando eu vim do sertão,
Seu môço, do meu Bodocó
A maleta era um saco
E o cadeado era um nó
Só trazia a coragem e a cara
Viajando num pau-de-arara
Eu penei, mas aqui cheguei
Trouxe um triângulo, no matolão
Trouxe um gonguê, no matolão
Trouxe um zabumba dentro do matolão
Xóte, maracatu e baião
Tudo isso eu trouxe no meu matolão”
Cuitelinho (6), de domínio público, tem origem no folclore do Pantanal mato-grossense. Trata-se da história de um brasileiro que, tornado soldado, lutou na guerra do Paraguai.
“Ai quando eu vim da minha terra despedir da parentaia
Eu entrei no Mato Grosso bem em terras Paraguaias
Lá tinha revolução, enfrentei forte bataia
A tua saudade corta como aço de navaia
O coração fica afrito, bate uma e a outra faia
E o zoio se enchem d'água que até a vista se atrapaia”
Saudade da Minha Terra (7), o migrante se despede da moça paulista para retornar ao sertão. Cansado do sofrimento na cidade, retorna à terra natal para morrer onde descansam seus ancestrais.
“De que me adianta viver na cidade
Se a felicidade não me acompanhar
Adeus, paulistinha do meu coração
Lá pro meu sertão quero voltar [...]"
Lampião de gás (8) fala da saudade da infância vivida num quintal da rua da graça. Luar do sertão (9) fala da escuridão na cidade e da claridade (que até parece um sol de prata) do luar lá do sertão. Em Tristeza do Jeca (10), a viola e a cantoria são o remédio para curar a dor da saudade da serra e do ranchinho à beira chão. Em Lamento Sertanejo (11), o modo de viver na cidade para quem é do sertão tem sua particularidade:
“Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado”
No Rancho Fundo (12), a história de saudade é invertida. A experiência, os encontros na cidade transformaram o personagem da canção.
“Ele que era o cantor da primavera
E que fez do rancho fundo
O céu melhor que tem no mundo [...]
Porque o moreno
Vive louco de saudade
Só por causa do veneno
Das mulheres da cidade [...]”
Tais canções dão linguagem a um sentimento, essa espécie de afeto que o migrante carrega consigo durante toda sua vida, uma espécie de saudade de um tempo e espaço, de uma infância cuja materialidade se deu num quintal, numa serra, num ranchinho, no Mato Grosso, em Bodocó, no sertão, enfim, numa terra natal. Essa memória parece determinante nas significações das cidades no curso da vida. Os moradores de Suzano advindos de outros estados mantinham esta cidade invisível nos gestos, no vocabulário cheio de sotaque, nos cheiros que vinham dos temperos das cozinhas, nas roupas e chinelas que usavam nas ruas e vielas dos bairros. Também nos risos e nas conversas ao final da tarde entre os compadres e comadres, o desespero na cidade, a correria, sugerindo uma certa dificuldade com a aceleração e o ritmo de uma cidade média na região metropolitana de São Paulo.
Vejamos na literatura alguns fragmentos presentes em As cidades Invisíveis de Ítalo Calvino. O viajante veneziano Marco Polo descreve para Kublai Khan as cidades do imenso império. Lutero Pröscholdt é arquiteto, professor e artista brasileiro. Suas Cidades Invisíveis estão disponíveis na internet. As telas de Pröscholdt e a literatura de Calvino nos ajudarão a pensar com Félix Guattari. Vejamos algumas cidades invisíveis.
“Presume-se que Isaura, cidade dos mil poços, esteja situada em cima de um profundo lago subterrâneo. A cidade se estendeu exclusivamente até os lugares em que os habitantes conseguiram extrair água escavando na terra longos buracos verticais: o seu perímetro verdejante reproduz o das margens escuras do lago submerso, uma paisagem invisível condiciona a paisagem visível, tudo o que se move à luz do sol é impelido pelas ondas enclausuradas que quebram sob o céu calcário das rochas” (13).
A tela 1 é uma leitura do trecho acima. A interpretação do artista sugere ligações verticais na cidade, profundidade e superfície em interação. O perímetro verdejante cuja fonte está no lago submerso. Pröscholdt mostra a parte submersa, mais escura, com molduras que enclausuram os movimentos da água. Contudo, esta energia move tudo o que está na superfície. Uma paisagem invisível condiciona a paisagem visível.
“A correspondência entre a nossa cidade e o céu é tão perfeita – responderam [os moradores] –, que cada mudança em Ândria comporta alguma novidade nas estrelas. – Os astrônomos perscrutam com os telescópios depois de cada mudança que acontece em Ândria e assinalam a explosão de uma nova, ou a passagem do laranja para o amarelo de um ponto remoto do firmamento, a expansão de uma nebulosa, a curvatura de uma espiral da Via Láctea. Cada mudança implica uma cadeia de outras mudanças, tanto em Ândria como nas estrelas: a cidade e o céu nunca permanecem iguais” (14).
A tela 2 é uma leitura do trecho acima. Na pintura, a interpretação do artista sugere uma cidade suspensa, como se os habitantes de Ândria não vivessem com os pés no chão. Há, em Ândria, ruas suspensas e a temporalidade é outra: “a vida da cidade flui com a calma do movimento dos corpos celestes e adquire a necessidade dos fenômenos não sujeitos ao arbítrio humano” (15). São duas as virtudes dos andrianos: a confiança em si mesmos e a prudência. Sabedores dos vínculos estreitos entre a cidade e o céu, antes de qualquer decisão sobre inovações na cidade, eles calculam os riscos e as vantagens tanto para eles próprios, para a cidade como um todo e para os outros mundos. Porque tantos são os mundos possíveis.
“Partindo dali e caminhando por três dias em direção ao levante, encontra-se Diomira, cidade com sessenta cúpulas de prata, estátuas de bronze de todos os deuses, ruas lajeadas de estanho, um teatro de cristal, um galo de ouro que canta todas as manhãs no alto de uma torre. Todas essas belezas o viajante já conhece por tê-las visto em outras cidades. Mas a peculiaridade desta é que quem chega numa noite de setembro, quando os dias se tornam mais curtos e as lâmpadas multicoloridas se acendem juntas nas portas das tabernas, e de um terraço ouve-se a voz de uma mulher que grita: uh!, é levado a invejar aqueles que imaginam ter vivido uma noite igual a esta e que na ocasião se sentiram felizes” (16).
A tela 3 é uma leitura do trecho acima. Trata-se de uma cidade rica, com muitas cúpulas de prata e estátuas de bronze e até um galo de ouro que canta todas as manhãs. Diomira parece igual a outras cidades mas, durante as longas noites de setembro e ao som (que mais parece um gemido) da mulher, o viajante sente algo. Tais afetos têm força para mobilizar afectos, marcas subjetivas, memórias de felicidade. A tela sugere movimento na cidade, nas linhas contornando prédios, circulando-os. Algumas linhas podem sugerir que o vento circula nas ruas. E mesmo o brilho da lua parece provocar essa vontade de movimento em Diomira, a cidade que igualmente brilha. Num segundo plano da tela, uma espécie de coração que parece ser de fumaça. Algo estaria pegando fogo. Ou alguém? Corpo ou corpos, o que estaria aquecido? Essas tantas linhas que sugerem o movimento na cidade também podem ser linhas de força circulando entre as formas retas dos prédios, torres e ruas. Forças que dão contorno às formas e, simultaneamente, formas que dão contornos a forças. Pensamos nas relações entre rio e margem, nessas modulações, nesse fazer e ser feito numa relação em mútua implicação.
Na literatura de Calvino, Marco Polo é um viajante. Sua vida é andar pelo império e narrar a Kublai Khan as cidades visitadas. O livro fala de movimentos. Em que medida Marco Polo descreve as cidades visitadas? Em que medida o viajante fala de subjetividades? Marco Polo transita pelo território do Império ou por territórios existenciais? Ou ambos? Ele mergulha em interiores, observa a duplicidade de imagens refletidas e fala de desejos. Seria este último o grande disparador de tanto movimento?
As Cidades Invisíveis são femininas. Além disso, as cidades e outras dimensões se confundem intencionalmente: A cidade e a memória, a cidade e o desejo, a cidade e os símbolos, a cidade e as trocas, as cidades e o céu, a cidade e os mortos dentre outras. Isaura é uma cidade delgada, Ândria é uma cidade e o céu, Diomira é uma cidade e a memória. Isaura, apesar de delgada, possui ligações permanentes com a profundidade; Ândria tem ligações com o cosmo; e Diomira tem relações com o passado.
“As cidades, como os sonhos, são construídas por desejos e medos, ainda que o fio condutor de seu discurso seja secreto, que as suas regras sejam absurdas, as suas perspectivas enganosas, e que todas as coisas escondam uma outra coisa. [...] As cidades também acreditam ser obra da mente ou do acaso, mas nem um nem o outro bastam para sustentar suas muralhas. De uma cidade, não aproveitamos as suas sete ou setenta maravilhas, mas a resposta que dá às nossas perguntas” (17).
Podemos pensar com cancioneiro popular e as cidades invisíveis de Calvino e Pröscholdt algumas relações. Se considerarmos que o desejo produz movimento e o medo, por exemplo, interdita movimentos, tanto um quanto o outro acontecem sobre um chão. E a cidade é esse chão sobre o qual o trânsito, o movimento acontece. Como percebemos nas canções, há uma cidade que o sujeito carrega consigo nos seus trânsitos pelo mundo. As canções indicam que o sujeito não deixou sua terra natal meramente por uma escolha sua. O sujeito deixa a terra natal forçado pela necessidade, pela sobrevivência neste mundo e seu modo de vida, por um jeito de organizar a economia, a sociedade e a política com base no capitalismo. Se o cardápio de possibilidades fosse mais diverso talvez conhecêssemos outras histórias. Estar numa cidade como vítima da luta pela sobrevivência material certamente marca interdições nos movimentos de produção de uma relação afetiva com a cidade. Estar na cidade nessa condição de sujeito determinado por este ambiente urbano hostil é diferente de estar na cidade numa condição de poder assumir esse espaço como resultado de sua ação. Nesta situação o sujeito atua na produção do espaço na medida mesma em que produz a si mesmo, se produz como sujeito outro superando uma relação de tutela no seu encontro com as instituições, no caso de nossa observação de campo, com a prefeitura e outras instituições da sociedade civil organizada. Entendemos que a reinvenção do espaço dependa do sujeito. Mas como se envolver com uma cidade se uma cidade invisível ainda determina o sujeito? Como criar um envolvimento efetivo com a reinvenção da cidade se a saudade, se a memória determina o sujeito e, de alguma maneira, dificulta seus movimentos? Como fazer um acerto neste compasso? É sujeito e temporalidade: o passado da cidade que ficou para trás, o presente nesta cidade e o futuro que é a relação com o sonho alimentado em estando aqui e agora.
Forçado por um modo de vida que o obriga a procurar trabalho noutra cidade, forçado por um capitalismo que produz mercadorias e subjetividades e, neste processo violento de digamos, sequestro subjetivo, se produz entre outras coisas, desamparo e desespero. Então é necessário fazer um acerto de contas com o passado de forma a produzir novos vínculos com a memória, elaborar esse sentimento de retirada violenta da terra de origem superando o trauma, transformando-o em potência e, desta maneira, criar outros vínculos na ligação entre subjetividades e cidade atual. Subjetividades que produzam um outro jeito de estar na cidade. Estamos evidentemente falando da relação entre sujeito e mundo, aqui materializado num lugar específico denominado cidade. Portanto, um lugar das lembranças, um lugar afetivo que podemos denominar ‘terra natal’ de onde formos forçados a sair, e um lugar real que é esta cidade que nos permite sobreviver diante desta dura realidade.
Cidades na teoria
Durante a Eco 92 no Rio de Janeiro, Félix Guattari afirmava o esmaecimento das dicotomias cidade e natureza. Todos os espaços estariam determinados pelas cidades: os espaços de lazer, esporte, turismo e mesmo as reservas ecológicas se despotencializam na medida de sua redução ao status de mercadoria. A imensa maioria da população mundial vivendo nas cidades e, mesmo a pequena parte restante, determinada pelo habitat urbano. Percebemos, observando as cidades, uma espécie de separatismo interno por muralhas equipadas com tecnologia, fortificações urbanas demarcando o território, demarcando classes sociais, impedindo a circulação, criando espaços privados coletivos e guetos. Artificialização dos encontros. Ao mesmo tempo em que diluem as diferenças internas, reduzem os encontros nas cidades meramente entre diferenças desiguais. Interessante perceber neste ponto uma relação com o levantamento histórico das cidades presente em Yi-fu Tuan (18) quando este recupera a origem das cidades, apresenta o papel separatista das muralhas entre cidade e campo, fala das relações e características das pessoas e dos encontros que acontecem dentro e fora das muralhas, portões e portais.
Para Guattari, não existe mais uma capital dominando a economia mundial. O que existe é um arquipélago de cidades, subconjuntos de grandes cidades que se ligam com os recursos da tecnologia tornando-as conectadas, extremamente próximas apesar da distância física entre elas, algo que ele chama de um ‘rizoma multipolar urbano planetário’. Como se um capitalismo inteligente devido ao avanço das tecnologias ligasse os imensos bolsões de pobrezas, focos urbanos altamente desenvolvidos, campos fortificados habitados pelo poder. Como se as diferenças na cidade estivessem agora transitando, se trombando, se atravessando apenas no âmbito da circulação do mercado global.
“As cidades são imensas máquinas [...] produtoras de subjetividade individual e coletiva. O que conta, com as cidades de hoje, é menos os seus aspectos de infraestrutura, de comunicação e de serviço do que o fato de engendrarem, por meio de equipamentos materiais e imateriais, a existência humana sob todos os aspectos em que se queira considerá-las. Daí a imensa importância de uma colaboração, de uma transdiciplinaridade entre os urbanistas, os arquitetos e todas as outras disciplinas das ciências sociais, das ciências humanas, das ciências ecológicas etc.” (19).
É necessário, portanto, recolocar em discussão o atual espírito de competição econômica entre empresas e nações, revisão da industrialização, da emissão de poluentes, da circulação, rever todo um modo de vida atual. Com Guattari e Tuan percebemos a força subjetiva das cidades como materialização de um modo de vida fez com que tanto ambientes construídos como ambientes naturais produzam formas de pensamento muito parecidas. Ou seja, o modo de vida contemporâneo está determinado por uma urbanidade que tem colocado em risco todas as formas de vida sobre a Terra. Neste horizonte de catástrofe ambiental, novas formas de subjetividade individual e coletiva se fazem urgentes e, nesta perspectiva, várias áreas do saber nas ciências sociais e humanas podem produzir coletivamente outros sentidos para a cidade. Ela não pode mais ser definida apenas no seu caráter de espacialidade visto ser a cidade o cruzamento das questões econômicas, sociais, culturais. Trata-se, portanto, da questão prioritária na agenda atual. Contudo, apesar de a cidade produzir o destino da humanidade, Guattari constata um “desconhecimento desse aspecto global das problemáticas urbanas como meio de produção da subjetividade” (20).
As cidades não podem ser vistas apenas como mercadoria. As escolhas sobre o que fazer neste chão, de como fazer neste chão, tais decisões e demarcações não podem ficar apenas ao sabor dos interesses econômicos e imobiliários. Pensamos com o documentário Bike versus Carros (21) que a configuração das cidades é resultado do jogo entre as forças que a produzem. Por exemplo, uma cidade que prioriza a circulação dos automóveis, ou seja, uma cidade resultado dos interesses da indústria automobilística e do petróleo ganha necessariamente uma configuração urbana diferente da cidade que prioriza o uso das modalidades de transporte não poluentes ou de transporte coletivo sobre trilhos. No período entre 2013 e 2016, a cidade de São Paulo trouxe à luz um intenso debate acerca do investimento público em ciclovias. Vários setores se levantaram contra esta política chegando a paralisar as obras por exigência do Ministério Público Estadual que questionava, entre outras coisas, os valores do investimento em ciclovias e ciclo-faixas além de solicitar um estudo detalhado de demanda para o uso de bicicletas. Pois bem, como estimar as demandas por um tipo de circulação na cidade quando sua estrutura física não oferece praticamente nenhuma opção para esta modalidade de transporte? E seriam os valores gastos para instalação dessa infraestrutura superiores aos valores exigidos pela circulação de carros nas marginais, acessos, pontes, viadutos e etc?
Com David Harvey percebemos que pensar a cidade significa necessariamente pensar subjetividades individuais e coletivas.
“A questão do tipo de cidade que queremos não pode ser separada da questão do tipo de pessoas que queremos ser, que tipos de relações sociais buscamos, que relações com a natureza nos satisfazem mais, que estilo de vida desejamos levar, quais são nossos valores estéticos. O direito à cidade é, portanto, muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização. A liberdade de fazer e refazer a nós mesmos e a nossas cidades é um dos nossos direitos humanos mais preciosos, ainda que um dos mais menosprezados” (22).
Daí ser nossa época ao mesmo tempo aterrorizante e potente. Pensemos um pouco em nossa pele. Ela é plástica, ela dobra, estica, ela é uma superfície modeladora que responde aos estímulos. Ela se move com os estímulos de dentro, com a contração e relaxamento dos músculos. Ela também responde aos estímulos de fora, enruga com a água, responde às variações da temperatura, da umidade e da pressão. Ela faz uma fronteira entre o dentro e o fora. Consideremos também a casa como pele. Menos plástica, ela também faz a fronteira entre dentro e fora. Pensemos o corpo em interior e exterior. Pensemos a casa como abrigo, aconchego. E igualmente a cidade como casa de um corpo social, como abrigo, como uma espécie de morada social que é construída, desconstruída e reconstruída constante e coletivamente. A cidade como resultado de um jogo de forças, resultado de interesses, de capitais que, em trânsito, se fixam no território. Desta forma queremos pensar também que sujeito e mundo não estejam dados a priori. Sujeito e mundo se constituem nesta relação dentro e fora, ou na relação entre eles, uma espécie de inter-relação. Desta maneira, podemos pensar a cidade como obra aberta, uma obra que muda com as mudanças da sociedade. Uma obra coletiva habitada pelos corpos, de onde se extrai a sobrevivência. A cidade é, em parte, sustentadora da vida. A cidade é onde corpos e coisas se cruzam e se produzem.
Pensemos a pele de um corpo como o limite entre o dentro e o fora. Dentro estão as forças e as intensidades internas, as evidências da consciência e as profundezas a serem descobertas, emoções, sentimentos, o que vamos chamar grosso modo de inconsciência. E o externo compreendido como os atravessamentos em nosso corpo considerados como a relação com o mundo, com a política, com o jogo de forças presente no corpo social. A casa como a moradia do corpo e a cidade, por conseguinte, como a casa de um corpo social. A cidade enquanto pele de um corpo social pode estar mais ou menos permeável às sensações e afetos, mais ou menos permeável a atravessamentos desta ou daquela ordem. Uma cidade projetada (ou não) mas construída para os carros, para as moradias seriadas, produz necessariamente corpos mais ou menos abertos para os encontros. Queremos pensar um devir social na cidade.
Contudo, como se dá a implicação desses corpos na produção da cidade? Retomamos em Guattari a importância de ressingularizar as finalidades da atividade humana. Ao se referir aos subúrbios, Tuan (23) aponta as especificidades dessa implicação. Para ele, o subúrbio está na fronteira da expansão metropolitana. É uma sociedade em formação, ao final do qual está a cultura urbana. As características pioneiras do novo subúrbio manifestam-se em sua falta de forma (porque gênese, nascimento, algo de novo, pensando com Hannah Arendt (24), um novo início no mundo e toda potência que a novidade carrega), falta de uma estrutura social diferenciada e na primitivez de suas condições de vida: ruas lamacentas, abastecimento de água incerto, sistemas primitivos de esgoto de lixo, escolas deficientes ou inexistentes, transporte precário e uma sensação de isolamento. É necessário um espírito pioneiro potente, quando uma família se muda para um distrito pobre, criado quase do dia para a noite; também se necessita de um espírito de cooperação com os vizinhos que estão passando pelos mesmos apuros. Nos subúrbios mais pobres, os residentes frequentemente constroem suas próprias casas com as suas próprias ferramentas. Tuan apresenta a figura do faz-tudo: aquele que tem as habilidades deste pioneiro, quem dá os primeiros passos. O suburbano de classe média, por sua vez, pode se mudar para uma casa já terminada, mas ainda há muito trabalho a ser feito, o que obriga a desempenhar o papel de faz-tudo. Este papel pode ser assumido prazerosamente, normalmente dá mais status ao pai e fortalece sua imagem de provedor da família. De qualquer modo, não é um papel que ele possa assumir no apartamento quase lotado da cidade onde qualquer mudança na estrutura necessita a aprovação do proprietário. Na casa do subúrbio, um homem realmente pouco pode fazer para modificar os seus arredores, mas a possibilidade aí está. Portanto, a cooperação estabelece laços de solidariedade e, consequentemente, vínculos mais profundos nessa rede de ajuda mútua na fronteira suburbana. Necessidades comuns engendram ajuda mútua. Existe uma força, não a do centro mas a das pontas, das bordas, das extremidades da cidade, uma potência a do subúrbio. Compreendemos o ‘faz tudo’ em seu potencial criativo, aquele que no seu fazer, na sua prática, faz da casa, dos subúrbios e, portanto, do mundo uma (por assim dizer) oficina, um laboratório de experimentação. Talvez seja sua necessidade vital na dimensão da sobrevivência que o empurra a criar outras possibilidades, novas formas, outras obras. O faz-tudo suburbano pode ser associado ao artista diante de uma tela em branco, ao escritor diante de uma folha em branco, ao compositor com seu instrumento às mãos. Uma necessidade vital o empurra ao trabalho criativo. Afirmamos ser o subúrbio a tela e a tinta para a criação da obra. Em grande medida as periferias urbanas, os subúrbios contribuem para pensarmos a cidade como obra aberta.
Com Luc Boltanski e Ève Chiapello pensamos a formação da cidade por projetos. Estes autores traçam o perfil do novo espírito do capitalismo analisando os textos de gestão empresarial nos anos de 1960 e 1990 e apresentam a cidade por projetos inserida num mundo concebido em rede, essa nova forma de conexão que já não depende mais do espaço, e sim do tempo. Tais autores trabalham a cidade a partir da lógica industrial, doméstica, mercantil, cívica, de rede, inspirada e lógica da fama. A cidade como projeto aparece com as transformações e reconfigurações nessas lógicas, que eles chamam de mundos. Percebemos o crescimento significativo da lógica da rede na contemporaneidade e o declínio da lógica doméstica. A leitura de o novo espírito do capitalismo reforça nosso pensamento acerca da configuração das cidades vinculada aos valores e modos de vida do seu tempo.
“O projeto é a oportunidade e o pretexto para a conexão. Ele reúne temporariamente pessoas muito diferentes e apresenta-se com um segmento de rede fortemente ativado durante um período relativamente curto, mas que permite criar laços mais duradouros, que permanecerão adormecidos, mas sempre disponíveis. Os projetos possibilitam a produção e a acumulação num mundo que, se fosse puramente conexionista, conheceria apenas fluxos, sem que coisa alguma pudesse estabilizar-se, acumular-se ou ganhar forma: tudo seria carregado pela corrente incessante dos contatos estabelecidos, que, em vista de sua capacidade de comunicar tudo com tudo, distribuem e dissolvem incessantemente aquilo que cai em suas malhas. O projeto é precisamente um amontoado de conexões ativas capazes de dar origem a formas, ou seja, dar existência a objetos e sujeitos, estabilizando e tornando irreversíveis os laços. Portanto, é um bolsão de acumulação temporário que, sendo criador de valor, dá fundamento à exigência de ampliar a rede, favorecendo conexões” (25).
Na medida em que a noção de justiça distributiva da riqueza produzida na cidade se transforma, as relações humanas vão ganhando novos valores sociais e éticos, a cidade vai ganhando uma materialidade que favoreça tais relações e encontros. As conexões assumem mais fluidez, mais leveza na medida em que não se fixam, pelo contrário, circulam. A manipulação dos símbolos vai produzindo imagens e valores mais interessantes e sempre coerentes com a lógica do capitalismo no seu tempo. E nesta medida o capitalismo vai capturando, vai se apropriando das forças sociais em seu favor. Entram em cena, e ganham proeminência, os líderes e suas visões. O empreendedor, por exemplo, ou o sujeito de sucesso e de fama vão produzindo sentidos a serem compartilhados. Essa lógica que aponta para o futuro como se o sucesso na vida dependesse de um sucesso profissional, vai colonizando os pensamentos e projetando no tempo, lançando para o futuro a produção de um modo de viver único e, sendo único, inquestionável.
De acordo com esses autores, toda uma engenharia do pensamento foi se constituindo nas últimas décadas para formação de uma classe de engenheiros, empresários, homens de negócios, executivos que ascendem aos postos de comando e gerência no mundo empresarial, um conjunto de formações acadêmicas e pesquisas seguem validando tais produções de verdades que funcionam como um imã para o pensamento na sociedade. O novo espírito do capitalismo vai permeando o conjunto das representações mentais e colonizando o pensamento geral. Uma falsa leveza nos trânsitos do sujeito pelo mundo e uma nova impermeabilidade da pele aos encontros reconfigurados, vão reduzindo as subjetividades apenas ao seu aspecto de consumidores.
“A empresa privada concorrencial continua sendo considerada mais eficaz e eficiente do que a organização não lucrativa (mas isso tem o preço não mencionado de transformar o amante da arte, o cidadão, o estudante, a criança em relação a seus professores, o beneficiário de ajuda social... em consumidor), e a privatização e a mercantilização máximas de todos os serviços mostram-se como as melhores soluções do ponto de vista social, pois reduzem o desperdício de recursos e obrigam a antecipar-se às expectativas dos clientes” (26).
Progresso material, eficácia e eficiência na satisfação das necessidades, modos de organização social favoráveis ao exercício das liberdades econômicas e compatíveis com os regimes políticos liberais são os pilares que justificam esse espírito do capitalismo apresentado pelos autores.
Cidade mulher
“Cidade notável, inimitável,
Maior e mais bela
Que outra qualquer.
Cidade sensível, irresistível,
Cidade do amor, cidade mulher”.
Noel Rosa (27)
Cidade Mulher é uma canção de Noel Rosa. Para o olhar sensível do artista, a cidade é matéria prima do seu trabalho criativo. Atento, o artista explora a potência dos encontros, as histórias produzidas pelas pessoas comuns nas ruas, nas esquinas, nas praças, rodas de samba, terreiros, bares, festas, na celebração da vida que pulsa na cidade. O artista e a cidade viva.
Interessante pensar com estes artistas a cidade em sua dimensão feminina, a produção permanente de uma cidade que é sempre outra, porque nunca é a mesma cidade. Da mesma forma a subjetividade tende a ser outra à medida que a areia do tempo cai inexoravelmente na ampulheta. Os encontros e as experiências nos produzem outros. Cidade e subjetividade se produzindo permanentemente.
Ainda com Calvino e Pröscholdt, vejamos Irene, mais uma cidade invisível.
“A esta altura, Kublai Khan espera que Marco diga como é Irene vista de dentro. E Marco não pode fazê-lo: não conseguiu saber qual é a cidade que os moradores do planalto chamam de Irene; por outro lado, não importa: vista de dentro, seria uma outra cidade; Irene é o nome de uma cidade distante que muda à medida que se aproxima dela” (28).
A tela 4 é uma leitura do trecho acima. De acordo com o texto, trata-se de uma cidade que se revela de diversas maneiras, a depender do ponto de vista. E considerando que esse ponto de vista também difere no mesmo sujeito, Irene é tantas cidades quanto sujeitos. O artista parece sugerir que o sol está em movimento, o que nos leva a pensar que o observador há algum tempo olha a cidade. Este, por sua vez, nos remete aos tantos sertanejos das canções populares citadas neste estudo. Podemos compreender o sertanejo, o forasteiro, o andarinho, assim como o aventureiro, o artista, o educador e o político apaixonados, migrando pelo mundo; em movimento sobre o chão mas também vivem o movimento dentro de si. O cavalo parece parado, mas um relevo na superfície da água sugere haver movimento. Quanto à cidade edificada sobre um platô, vertical, íngreme, quase inacessível, esta muda com as mudanças do olhar e do observador.
“A cidade de quem passa sem entrar é uma; É outra para quem é aprisionado e não sai mais dali; Uma é a cidade à qual se chega pela primeira vez, outra é a que se abandona para nunca mais retornar; Cada uma merece um nome diferente; Talvez eu já tenha falado de Irene sob outros nomes; Talvez eu só tenha falado de Irene” (29).
Por parecer inacessível, estar em Irene pode significar estar aprisionado em Irene. Queremos, neste ponto, relacionar Irene com as prisões subjetivas, aquelas que capturam nossos pensamentos. Irene está para “o vazio da modernidade exangue’’ de Guattari (30). Associamos Irene ao falso nomadismo e, portanto, escapar de Irene é como aproveitar as brechas existentes nas idealizações para aceder ao verdadeiro nomadismo como dos índios da América pré-colombiana, compreendido como o desejo de uma vida melhor na cidade, desejo este construído e sustentado nos encontros, sustentados num movimento coletivo.
Considerações finais: mudar a cidade e a si mesmo
Na cidade de Suzano encontramos uma população migrante e marcas da ancestralidade indígena denominando rios, ruas, prédios, lugares. Transitando pela cidade, cartografamos um movimento (31): quando a população participava das mudanças na paisagem urbana e pensavam sua relação com o ambiente (por meio das duas políticas públicas: OP e Peap), também conheciam mais a cidade, suas diferenças, suas características, sua população, sua produção, peculiaridades locais e diversidade cultural, produziam-se outros/as. Aceitamos a provocação de Michel Foucault: “Há momentos na vida em que a questão de saber se podemos pensar diferentemente do que pensamos, e perceber diferentemente do que vemos, é absolutamente necessária se quisermos continuar de algum modo a olhar e refletir” (32).
Localizamos, na cultura popular, pistas de uma cidade que ainda habita o sujeito em forma de uma terra natal: as marcas de um passado que interferem na significação do estar numa outra cidade durante o curso da vida, marcas de alegria ou marcas de dor. O referencial teórico utilizado nos possibilitou desatar alguns nós. Aproveitemos a figura do novelo: algumas linhas emaranhadas até achar uma ponta, puxar uma linha, depois outra e vai desfazendo o novelo. E com as linhas pode até produzir um novo tecido. Assim tentamos pensar como que tecendo linhas teóricas e populares. E, desta maneira, tentamos dar alguma forma, mesmo que precárias e provisórias, para os pensamentos e estudos acerca do estar na cidade, viver a cidade, ser a cidade.
Nesta perspectiva, a poesia, a literatura e a pintura nos permitiram acessar o conhecimento teórico com mais sensibilidade. Portanto, sentir a cidade e, coletivamente, produzir outros sentidos para a cidade. As cidades não podem ser pensadas meramente numa perspectiva econômica, como mercadoria portanto. As cidades são produtoras de subjetividades individuais e coletivas. Pensar a cidade é pensar o modo de vida e, quanto mais modos de vida forem pensados, quanto mais pensarmos as cidades tanto será mais possível construir alternativas a este modelo que limita o trânsito dos corpos e consequentemente, os bons encontros na cidade.
A experiência em Suzano nos deu as pistas para pensar um devir social na cidade. Nos encontros a cidade era pensada coletivamente, portanto construída material e subjetivamente, e o direito à cidade não como algo dado a priori mas como construção permanente. Queremos continuar pensando a cidade numa perspectiva de experiência, deslocando de uma racionalidade dada para uma experimentação, uma invenção do espaço de forma a superar o sofrimento de estar na cidade na medida em que se produz um sentido de estar nela. Estar na cidade determinado por um passado ou por um sofrimento nos parece limitar os movimentos, ao passo que estar ocupando um espaço e um tempo cujo significado está de certa forma produzido pelo sujeito, nos parece disparador de movimento. Ou seja, assumir-se na cidade, assumi-la e produzi-la. Sujeito e espaço produzindo-se na mútua implicação. São passos no sentido de superar a cidade como mercadoria apenas, como especulação, como geradora de renda e lucro, como algo dado anteriormente e distante do sujeito. Pelo contrário, pensar a cidade com um enigma que materializa nosso jeito de viver e de pensar. E neste agir e pensar, neste experimentar a cidade compreendido como processo educacional, inventar modos de estar na cidade (e na vida) como obra aberta.
Tentamos, neste artigo, demonstrar algumas linhas desta relação entre cidade e subjetividade: sujeito e cidades se produzindo em mútua implicação. Com Michel Foucault, pensar e perceber de um outro modo para continuar olhando e refletindo. E refletindo perceber a imagem refletida e que vai se modificando com o tempo. Enfim, sentir e produzir sentidos para a cidade: uma pedagogia da cidade.
notas
1
GUATTARI, Félix. Restauração da cidade subjetiva. In GUATTARI, Félix. Caosmose. Rio de Janeiro, Editora 34, 1992, p. 149-158.
2
Idem, ibidem, p. 150.
3
DELEUZE, Gilles. Nietzsche. Lisboa, Edições 70, 2014, p.
4
ROLNIK, Suely. Pensamento, corpo e devir. Uma perspectiva ético/estético/política no trabalho acadêmico. In Cadernos de Subjetividade, n. 2, volume 1, São Paulo, set./fev. 1993, p. 241.
5
Luiz Gonzaga (Exu PE 1912 – 1989, Recife PE).
6
Recolhida por Paulo Vanzolini, zoólogo e compositor paulista, durante uma pescaria.
7
Isidoro Castro de Assumpção, (Vigia PA, 1858 – Belém PA, 1925).
8
Zica Bergami (Ibitinga SP 1913-2011, SP), e Hervê Cordovil, canção de 1957.
9
Catulo da Paixão Cearense (São Luiz MA, 1863–1946), e João Pernambuco, provavelmente de 1914.
10
Angelino de Oliveira (Itaporanga SP 1888-1964, SP). Da segunda década do século 20.
11
Gilberto Gil (Salvador BA, 1942) e Dominguinhos (José Domingos de Moraes, Garanhuns PE 1941–2013, SP).
12
Ary Barroso (Ubá MG 1903–1964, Rio de Janeiro RJ) e Lamartine Babo (RJ 1904–1963), canção de 1931.
13
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. 2ª edição. São Paulo, Companhia das letras, 2005, p. 24.
14
Idem, ibidem, p. 137.
15
Idem, ibidem, p. 136.
16
Idem, ibidem, p. 11.
17
Idem, ibidem, p. 44.
18
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo sobre a percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Londrina, Eduel, 2012, p. 209-264.
19
GUATTARI, Félix. Op. cit., p.152.
20
Idem, ibidem, p. 153.
21
Bike versus Carros. Direção Fredrik Gertten. Documentário, Brasil, 2015.
22
HARVEY, David. Cidades Rebeldes. Do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins Fontes, 2014, p. 28.
23
TUAN, Yi-Fu. Op. cit., p. 324-330.
24
ARENDT, Hannah. Crise na Educação. In ARENDT, Hanna. Entre o Passado e o Futuro. 5ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2001, p. 221–247.
25
BOLTANSKI, Luc; CHIAPELLO, Ève. O novo espírito do capitalismo. São Paulo, Martins Fontes, 2009, p. 135.
26
Idem, ibidem, p. 45.
27
Noel de Medeiros Rosa (RJ 1910–1937)
28
CALVINO, Ítalo. Op. cit., p.114.
29
Idem, ibidem, p. 115.
30
GUATTARI, Félix. Op. cit., p. 170.
31
Ver estudo completo em SILVA, Luciana Ferreira da. Educação popular e processos de subjetivação: uma análise do programa Educação Ambiental Popular do Município de Suzano – Estado de São Paulo. Dissertação de Mestrado. Rio Claro, IB Unesp, 2016 <https://repositorio.unesp.br/handle/11449/141950>; e em DÁRIO JUNIOR, Ivan Rubens. Corpo em movimento: marcas do orçamento participativo na cidade de Suzano SP. Dissertação de Mestrado. Rio Claro, IB Unesp, 2016 <https://repositorio.unesp.br/handle/11449/142810>.
32
FOUCAULT, Michel. O que são as luzes. In FOUCAULT, Michel. Ditos & Escritos. Volume II. Rio de Janeiro, Forense Universitária, 2000, p. 335-351.
sobre o autor
Ivan Rubens Dário Junior é geógrafo pela Universidade do Estado de São Paulo – IGCE Unesp (Rio Claro SP, 1998) e mestre em Educação pelo Instituto de Biociências da mesma instituição (Rio Claro SP, 2016).
Luciana Ferreira da Silva é pedagoga, educadora física e mestre em Educação pelo Instituto de Biociências Universidade do Estado de São Paulo – Unesp (Rio Claro SP, 2016).