A verticalização da habitação
No início da década de 1940, a cidade de Uberaba viu surgir seu primeiro arranha-céu, um edifício construído em uma de suas principais avenidas. O edifício abrigou dois usos de grande prestígio: o Grande Hotel e o Cine Metrópole. O prédio, como os que o precederam, buscou integração com a cidade, traduzida em térreos abrindo para as ruas seus comércios e serviços e em implantações que buscavam harmonizar esquinas e valorizar perspectivas. Contudo, apesar do sucesso da inauguração do primeiro edifício alto do Triângulo Mineiro, a difusão da moradia em prédios foi lenta.
A intensificação da verticalização residencial em Uberaba verifica-se a partir de 1980, mas é na primeira década do século 21 que se impõe definitivamente. Os prédios residenciais, antes concentrados na área central, extrapolam seus limites e avançam em direção a bairros, especialmente ao shopping e à universidade. A moradia em apartamentos se fixa como uma alternativa para segmentos amplos e diversos da população.
Neste momento, um ajuste importante nos projetos arquitetônicos dos prédios se verifica, de modo a atender a este mercado e enfrentar a forte concorrência que se estabelece no interior do setor da construção civil local. Este trabalho discute as características dos condomínios verticais edificados em Uberaba neste momento. Apresenta parte dos resultados de uma pesquisa de mestrado concluída em 2016, que analisou trinta e sete prédios de apartamentos, acima de cinco pavimentos, projetados e construídos em Uberaba entre os anos 2000 a 2010. As fontes da pesquisa foram, entre outras, os projetos aprovados, material de publicidade dos empreendimentos, entrevistas com moradores e levantamentos fotográficos.
O mercado
A produção de condomínios verticais entre os anos 2000 e 2010 em Uberaba se caracteriza por aumento expressivo da construção, tendência de expansão dos limites da verticalização na cidade, introdução de condomínios verticais compostos por várias torres e pela diversificação do padrão de construção.
A legislação urbana de Uberaba contribuiu para a localização, expansão dos prédios de apartamentos e para a configuração que assumiram. Um fator relevante, nesse sentido, foi a definição de uma macrozona de transição urbana na periferia da cidade, que define parâmetros restritos de edificação, impedindo a construção de edifícios altos. É nesta região, que nos últimos anos foram implantados loteamentos horizontais do Programa Minha Casa Minha Vida. Esta situação induz à produção de prédios em bairros consolidados e a consequente valorização destas áreas. Outro instrumento que potencializou a verticalização de determinadas regiões na cidade foi a ampliação do coeficiente de aproveitamento nas regiões consolidadas com a aplicação da outorga onerosa do direito de construir para atingir o coeficiente máximo estipulado.
Além da legislação urbana favorável à construção dos edifícios altos, alguns fatores de atração foram determinantes para a definição de localizações como a proximidade ao centro da cidade, a relação com o Shopping Center Uberaba e a proximidade com as duas maiores universidades da cidade.
Grande parte dos 37 prédios estudados foi produzida por construtoras e por empreiteiros com escritórios e sedes em Uberaba. Constroem na cidade e em municípios vizinhos. Algumas atuam na cidade há mais de vinte anos. No final da década estudada, contudo, este mercado se alterou com a presença de construtoras com sedes em outras cidades, inclusive de grandes construtoras organizadas em nível nacional. Os arquitetos e projetistas responsáveis por esses empreendimentos possuem escritórios na cidade. Os clientes são população de classe média e alta, composta, sobretudo, de casais sem filhos ou com um ou dois filhos e aposentados.
As formas de publicidade mobilizadas pelas empresas para atingir o potencial consumidor são diversas: banners distribuídos próximos ao empreendimento, propagandas em jornais e na internet. A concorrência, contudo, exigiu em vários casos um esforço adicional. Assim uma estratégia utilizada, com cada vez mais frequência, voltada para as classes da alta renda, é o lançamento do empreendimento em eventos, organizados com luxo e degustação, para convidados criteriosamente escolhidos.
A publicidade destes empreendimentos lança mão do nome dos arquitetos mais conhecidos na cidade, assim como do tempo da atuação das construtoras, como forma de associar o empreendimento a bom gosto, qualidade e entrega do produto, no caso de compras realizadas ainda durante a construção do empreendimento. Na apresentação dos empreendimentos a publicidade enfatiza localização, segurança, áreas comuns e número de quartos, suítes e vagas de garagem.
Entre os moradores entrevistados, as justificativas para a escolha dos empreendimentos foram, sobretudo, localização, segurança, qualidade de vida e conforto. A maioria dos entrevistados morava antes em casas e a opção pelo apartamento foi relacionada, sobretudo, a segurança. Este também é um dos temas centrais nas campanhas publicitárias. Em termos de localização os atributos mais valorizados são a vizinhança, entendendo-se por isso proximidade de comércio e serviços, sobretudo do Shopping Center Uberaba, e distância dos bairros pobres. As avenidas também atraem os empreendimentos. O motivo, neste caso é a legislação. O número máximo de pavimentos nas edificações em Uberaba é calculado com base na largura da via: quanto mais larga a via, mais pavimentos o edifício poderá ter. Como os limites possíveis estão sempre sendo considerados, os prédios mais altos procuram as avenidas mais largas.
Do ponto de vista dos empreendedores, há uma clara disposição para incorporar todas as possibilidades de criação de espaço permitidas pela legislação. Os anúncios dos edifícios tendem a destacar as áreas comuns, muitas das quais não computadas no cálculo das taxas de ocupação. A legislação específica de Uberaba em relação ao uso e ocupação do solo – Artigo 29 da Lei Complementar n. 376 (1) – diz muito sobre as estratégias de promoção dos empreendimentos. Esta lei considera como área não computável as varandas abertas com até 1,50 m, espaço que se tornou quase obrigatório nos condomínios analisados. Alguns apresentam estas estreitas sacadas como varandas gourmets. Como as cozinhas estão se estreitando, não tem se mostrado absurdo oferecer um espaço de 1,50 m de largura como adequado a esta atividade. Conforme a referida lei, também são áreas não computáveis os pilotis e a cobertura, considerando a possibilidade de uma área fechada de até 30% da área do pavimento tipo, se projetada como área de lazer e uso comum. Assim, o lazer se tornou alternativa para ocupar estes espaços, ampliando o programa do prédio e o associando a estilo e qualidade de vida. As garagens em até dois pavimentos também não são computadas, o que favoreceu o aumento do número de vagas para carros. A guarita também não tem sua área computada, incentivando a difusão da ideia de ser fundamental para garantir o controle do acesso ao interior dos condomínios e tornando-a um item básico presente no programa da maioria dos prédios construídos no final da década analisada.
Entre os prédios analisados, o aproveitamento das possibilidades oferecidas pela legislação pode ser constado, por exemplo, no Portal das Palmeiras Residence – projetado no ano de 2009 com 15 pavimentos – é possível perceber claramente a lei como parâmetro de projeto na definição de locais de uso comum. A área de lazer está distribuída no térreo, na coberta (ocupando os 30% do espaço) e nas áreas permeáveis e recuos; a garagem utiliza os dois pavimentos.
Uma análise dos apartamentos e espaços de uso comum dos condomínios verticais, explicita claramente a tradução das determinações da legislação e das caraterísticas do mercado na configuração assumida por esta moradia na cidade.
Os espaços coletivos
Nas últimas décadas do século 20 as áreas coletivas dos condomínios verticais em Uberaba eram, quando existiam, o salão de festas e os playgrounds. No período analisado tais áreas se ampliaram, motivadas pelo aumento da concorrência entre as construtoras e por demandas do mercado e apoiadas nas possibilidades oferecidas pela legislação.
A importância destas áreas já foi destacada por Fabio Queiroz (2), mostrando que, a partir da década de 1990, há certa uniformização nas plantas das unidades habitacionais, as quais deixam de ser as protagonistas dos anúncios publicitários dos condomínios, transferindo tal papel aos espaços coletivos.
Em Uberaba os ambientes de uso coletivo são tratados na publicidade dos prédios como evidências de melhoria na qualidade de vida dos moradores, enquanto a referência ao apartamento, geralmente, é feita pela quantidade de quartos, banheiros e vagas para automóveis. Para reforçar a relevância destes espaços – assim como a de alguns nos apartamentos, recorre-se à língua inglesa: áreas gourmets, fitness, play grounds, closet, hall, living.
O espaço mais frequente é o salão de festas. Está presente em quase 50% dos empreendimentos analisados. Associa-se a uma mudança no hábito de receber – transformado em evento – e às limitações das salas de estar e eventuais varandas gourmet. Ligados ou não aos salões, um lugar que tem se tornado recorrente nas áreas comuns dos edifícios são os espaços gourmets, que testemunham novos hábitos de cozinhar em público, como forma de diversão e lazer, abraçados, sobretudo, por homens deslumbrados por habilidades recém-adquiridas ou por apetrechos de cozinha caros. A denominação gourmet em Uberaba aparece pela primeira vez em um empreendimento em 2007. Até então, o espaço comum destinado ao preparo de alimentos era a área da churrasqueira, geralmente abrigada em quiosques próximos à piscina quando, dando seus primeiros passos na arte culinária, os homens se especializaram na tarefa de assar em público as carnes, que acompanhavam os vários pratos, prévia e discretamente, preparados pelas esposas.
O espaço fitness e o espaço zen são locais que ganham prestígio, associado à cultura do corpo e à saúde como estilo de vida. O minicampo de futebol e a piscina são apropriados, sobretudo, pelas crianças, que têm na brinquedoteca outro local, pensado para acolhê-las, compensando a falta de espaço para brincadeiras nos apartamentos e a exiguidade das áreas livres coletivas. Estas transformações indicam uma tendência de interiorização do tempo livre no âmbito do condomínio, associada a ideia de segurança e à otimização do uso do tempo. Porém, como já constatou Teresa Pires do Rio Caldeira (3), são pouco utilizados pelos moradores dos condomínios.
Os condomínios verticais para as classes de renda mais alta têm se ampliado de forma considerável a partir dos anos 2000. Três empreendimentos de padrão mais elevado – um do começo da década, um da metade e o último do final desse período – são úteis para ilustrar quais ambientes estes condomínios possuem, como são distribuídos dentro do projeto arquitetônico e como o programa foi se alterando ao longo da década.
Edificado no início dos anos 2000, o Condomínio Residencial Millenium localiza-se na rua Maranhão, no eixo de verticalização do bairro Santa Maria. Tem nove pavimentos, com duas unidades habitacionais em cada. O pavimento térreo abriga garagens; ou seja, é área não computável para o cálculo do coeficiente de aproveitamento. No primeiro pavimento, denominado pelo projetista como lazer, estão as áreas voltadas para o culto ao corpo: saunas, piscinas e sala de ginástica. Nesse início de década, o termo gourmet ainda não havia se propagado e a área da churrasqueira é denominada pelo termo quiosque. Além destes espaços, foram criados sala de jogos e salão de festas. Neste empreendimento ainda persiste a divisão entre o acesso de serviço e o social, muito difundida nas décadas anteriores, principalmente para as classes de renda mais elevada. As entradas dos elevadores são voltadas para faces opostas, o que garante uma divisão social mais rígida.
Edificado em meados da década, o Residencial Parque dos Buritis foi implantado na avenida da Saudade, no eixo de verticalização do bairro Mercês. Tem vinte pavimentos e quatro apartamentos por andar, totalizando 76 unidades. A parte mais antiga deste bairro é conhecida por suas construções de alto padrão. Este condomínio vertical já apresenta um número maior de pavimentos. Foi o primeiro empreendimento a se apropriar do termo gourmet para as áreas reservadas às experiências de preparo de comida, reflexo das alterações comportamentais associadas a uma concepção de vida como espetáculo. Os espaços voltados ao cuidado do corpo não tiveram tanta alteração em relação ao exemplo anterior. Neste caso não há saunas, mas existe um campo, espaço que atrai não apenas as crianças e os jovens, mas também os adultos. Introduz um conceito de condomínio-clube que, após 2010, tem ganhado destaque nas propagandas. Uma diferença é a presença do bicicletário. A prática tem relação com o estímulo do poder público à bicicleta, com a criação de ciclovias em pontos específicos da cidade, inclusive em uma avenida próxima a este empreendimento, com usos restritos aos finais de semana. Outra diferença em relação ao prédio anterior é o parque infantil, implantado em área próximo ao campo. Neste edifício, os acessos ditos social e de serviço continuam separados por uma parede, que isola os dois elevadores, criando assim, circulações distintas.
O edifício Portal das Palmeiras Residence foi implantado na rua Goiás, no eixo de verticalização do bairro Santa Maria. Está próximo ao Shopping, possui quinze pavimentos e quatro unidades por andar, com um total de 52 apartamentos. Foi assim anunciado, segundo Alberto:
“Edifício Portal das Palmeiras Residence é o mais novo e bem-sucedido empreendimento da Portal Construtora e Empreendimentos. São 48 apartamentos de três quartos (com varanda gourmet e churrasqueira), quatro coberturas duplex de quatro quartos; espaço gourmet, academia, brinquedoteca, piscina, playground e salão de festa. Erguido em localização privilegiada (próximo ao Shopping Uberaba, ao Carrefour e Wall Mart)” (4).
Nesta matéria, percebe-se o destaque à localização como um diferencial do empreendimento. Além disto, os ambientes de uso comum ganham ênfase em relação à unidade habitacional, da qual apenas a quantidade de quartos é mencionada na promoção. Tal situação reflete a perda da importância do projeto arquitetônico, resultado da uniformização das plantas dos apartamentos. Analisando as áreas de uso coletivo, percebe-se o aumento da metragem desses espaços e um desenho mais cuidadoso do espaço gourmet, com dimensões maiores, configurando-se como área de receber. Cria-se um espaço para a leitura e, também, um redário, espaço repleto de redes que evoca a tranquilidade e conforto. Além do playground, incorpora a brinquedoteca. Os acessos para funcionários e moradores são distintos, assim como nos dois condomínios analisados acima.
No período analisado, outros empreendimentos também indicam às transformações do programa do prédio de apartamentos, com introdução de espaços de uso coletivo. Um exemplo é o Celebration Residence, que inclui os seguintes espaços de uso coletivo: salão de festas, salão de jogos, espaço gourmet, fitness, minicampo de futebol, piscina, brinquedoteca, playground e espaço das babás. Neste caso, o termo para a sala de ginástica é substituído por fitness, que sugere um equipamento mais moderno.
Três condomínios construídos entre os anos de 2000 a 2010 são ilustrativos das tendências assumidas pelas áreas de uso comum nos condomínios destinados a moradores de classe média.
O Edifício Dr. José Humberto Rodrigues da Cunha foi projetado no mesmo ano do Condomínio Residencial Millenium. Está implantado na avenida Nenê Sabino, no bairro Mercês, próximo à Universidade de Uberaba. Possui três blocos com seis pavimentos cada um. Esta é uma das construções destinadas, também, a estudantes universitários. Os espaços de circulação são aproveitados com jardins e um espaço maior é denominado praça, incorporando a construção de simulacros de espaços públicos dentro dos espaços privados. A divisão entre os acessos, comum nos empreendimentos de alto padrão, neste caso não existe. Há apenas um elevador por torre. O controle das três torres se faz presente na guarita, localizada na esquina da quadra.
Construído na metade da década, o Residencial Montecarlo foi implantado no bairro São Benedito, exatamente na divisa com o Centro. Possui treze pavimentos, com dois apartamentos cada. Esta construção é destinada a uma população de classe média alta. O fator que eleva o preço dos seus apartamentos é a localização em área extremamente valorizada. Neste caso, em decorrência da localização e do tamanho do terreno disponível, o condomínio possui poucas áreas de uso comum, pautando-se no considerado essencial para legitimar seu status e suprir eventuais necessidades que unidades habitacionais reduzidas não suportam. Além das áreas de circulação, portaria e garagem, o espaço adicional é o salão de festas. Outra característica deste empreendimento é a proximidade da via pública. O material escolhido para separar o público e o privado foi o vidro, diluindo um pouco a separação entre o prédio e a rua. Os acessos de serviço e social são realizados pelos mesmos elevadores, sem criação de fluxos separados.
O condomínio Residencial Santa Beatriz exemplifica as tendências assumidas por este padrão de moradia no final da década. Está localizado próximo ao Shopping Center Uberaba. É composto por duas torres com dezenove pavimentos cada uma e quatro unidades habitacionais em cada pavimento, totalizando 136 apartamentos. O adensamento maior se reflete nas áreas comuns, com o aumento na oferta desses espaços. A entrada no condomínio é feita pela rua Dona Maria Glória Leão Borges, enquanto a face voltada para a avenida do shopping – considerada como pavimento subsolo – abriga um conjunto de cômodos destinados a lojas. Neste caso, o mercado imobiliário aproveitou a localização para atender a duas demandas de ocupação. O pavimento térreo apresenta uma versão menor dos espaços ofertados pelos empreendimentos destinados às classes de renda mais alta. Pode-se observar, neste sentido, o tamanho reduzido da piscina, considerando a quantidade de pessoas que mora no condomínio. A denominação de espaço zen dada a uma banheira de hidromassagem próxima à piscina é uma forma de criar um repertório de ambiências. A integração do espaço gourmet ao salão de festas resulta em uma estratégia de marketing, sugerindo uma falsa ampliação do programa. No primeiro pavimento, encontra-se a sala de ginástica e a brinquedoteca, um espaço presente em quase todos os empreendimentos, principalmente nos projetados no final da década.
A partir das análises das áreas comuns dos dois padrões de edifícios produzidos durante a primeira década do século 21, pode-se chegar a alguns entendimentos. As tendências de aumento e diversificação dos espaços comuns iniciam-se com os empreendimentos mais caros, para depois se difundirem nos prédios voltados para a classe média. Os dois últimos exemplos de cada padrão comprovam tal suposição: são prédios destinados a públicos diferentes, com muitos ambientes de lazer.
Percebe-se que a segregação social, representada pelo isolamento na habitação vertical coletiva, envolve uma falsa sociabilidade: seus espaços de uso comum geralmente são poucos utilizados pelos moradores, com exceção das crianças. Assim, a presença de alguns destes espaços no empreendimento funciona mais como um atrativo de venda, que como reflexo do cotidiano dos moradores.
Os apartamentos
Foram estudadas 33 plantas de apartamentos, entre as 37 produzidas no período em questão, as quais foram classificadas segundo duas categorias de padrões construtivos: alto e médio. Deste total, onze unidades foram projetadas para as classes de renda mais alta, considerando os seguintes fatores para tal determinação: o poder aquisitivo dos moradores, a localização, a metragem e acabamentos dos apartamentos.
Os projetos de apartamentos têm sido afetados por mudanças que ocorrem em várias esferas: na composição das famílias, especialmente pela redução de seu tamanho; no trabalho, inclusive pelo declínio do doméstico; na vida familiar, sobretudo pelo aprofundamento do gosto pela privacidade; no aparelhamento da moradia, especialmente pelo acúmulo de máquinas e objetos e por seus efeitos sobre o uso do tempo livre. No Brasil, conforme a Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios – 2004 e 2014 (5), na última década ocorreu uma diminuição de 10% no número de domicílios ocupados por um casal com filhos e, simultaneamente, um aumento na diversidade dos arranjos familiares. Aliada às transformações na estrutura familiar, outras mudanças que influenciam o modo de vivenciar o espaço doméstico são as transformações tecnológicas, como a internet que alterou significativamente a forma de comunicação entre os membros da família. Novos modos de usar a habitação têm se difundido, como a volta do trabalho em casa favorecida pela informatização e formas de lazer possibilitadas por todo um aparelhamento eletrônico e tecnológico do espaço doméstico.
No período analisado, Uberaba teve um crescimento econômico acelerado, presente em praticamente todos os setores de atividades, acompanhado por algumas mudanças nas condições de vida e nos hábitos de sua população. Nesse cenário, a produção de apartamentos entre os anos 2000 a 2010 teve um incremento muito significativo.
Entre os condomínios verticais, construídos entre os anos de 2000 e 2010, a grande maioria destinou-se à classe média. Dos 33 empreendimentos analisados, 22 tiveram como público-alvo tal parcela da população.
Percebe-se, pela leitura das plantas que, apesar da redução no tamanho das unidades ao longo da década, a quantidade média dos cômodos permanece estável.
Em todas as plantas analisadas nesse período, a separação do espaço habitacional em zonas de uso, a tripartição burguesa, está presente. As formas dos cômodos nos apartamentos mantiveram a ortogonalidade. A flexibilização do projeto, ofertada nas plantas mais compactas, ocorre pela remoção ou adição de divisórias, respeitando a modulação estrutural. Uma constante observada nos apartamentos é a relação entre o tamanho das áreas internas, que apresentam em sua grande maioria a seguinte sequência dimensional: íntima, social e serviços.
Foi observada em apartamentos com áreas menores, dentro dos dois padrões de construção, uma redução da cozinha a um cômodo, geralmente retangular e estreito, com uma parede equipada. A varanda, por sua vez, passou a assumir o papel de complemento da cozinha.
Em grande parte dos empreendimentos, os espaços mínimos oferecidos por esse mercado preveem um grupo doméstico realizando as funções de se alimentar, repousar, cozinhar e higienizar corpos, utensílios e roupas. Não considera os diferentes arranjos familiares e suas necessidades específicas.
A diminuição das áreas dos apartamentos levou a soluções de planta, layout, móveis e objetos que potencializam os usos do espaço. O espelho como recursos para ampliar os espaços tem sido largamente aplicado. Seu uso revela uma ênfase em aparência em detrimento de forma e, ainda, uma exarcebação do narcisismo.
Em Uberaba, o slogan usado pelas construtoras como sinônimo de satisfação quanto ao produto imobiliário é “100% vendido”. Portanto, não há lugar para ousadias. O projeto se altera lentamente, atento ao sucesso de mercado das soluções.
A área íntima foi o setor que mais aumentou em dimensões ao longo dos anos, equivalendo, em quase todas as plantas analisadas a algo próximo de metade da área total da unidade de habitação. O quarto é o local reservado à manifestação da intimidade. Seu projeto tem o desenho voltado para os equipamentos básicos que servem à função de dormir, trocar-se e atividades individuais como ler e estudar: cama, armários, cadeira e mesa ou bancada. Outro aspecto de grande relevância no âmbito dos quartos é a presença, quase no total dos empreendimentos, da suíte, que ressalta a crescente individualização da vida familiar. A suíte até a década de 1990 era privilégio dos apartamentos de luxo. No período analisado, faz-se presente em apartamentos destinados a diferentes segmentos de classe média.
Os banheiros, durante muitos anos considerados a parte obscura da casa brasileira, hoje recebem um tratamento privilegiado no projeto. Sua função ultrapassou a de uma simples área de higienização pessoal. Houve um aumento da quantidade desse cômodo. Seu arranjo interno molda-se ao atual acirramento da tendência de culto ao corpo, através do crescimento dos armários e, sobretudo, da ampliação dos espelhos e da iluminação.
A área denominada social resulta em um único ambiente, que nos apartamentos estudados, é definido, na grande maioria, pelas nomenclaturas estar/jantar ou living.
A cozinha, ainda está locada na zona de serviços e reduzida em suas dimensões em muitos apartamentos a quase um corredor com uma parede equipada. Nos projetos estudados, em sua grande maioria, remete a um ambiente destinado ao preparo rápido de refeições, que não atende ao destaque que o ato de cozinhar tem ganhado no ambiente no convívio social, estimulado pelos programas de culinária e reality shows sobre preparo de alimentos e pelo aumento da ação do homem neste campo. Estratégias foram pensadas para fazê-la comporta o caráter espetacular que o ato de cozinhar assume em determinadas ocasiões, como evento de final de semana realizado na companhia de outras pessoas: sua integração com a área social e a introdução das varandas gourmets. Naturalmente, quando a assistência se amplia o evento é transferido ao espaço gourmet, que vão assumindo a posição de locus do ato culinário como convívio social.
Junto à cozinha, a lavanderia tem seu uso restrito à função de lavar e passar roupas; torna-se um cômodo cada vez menor e, em muitas plantas, integrado à cozinha. O banheiro complementa a zona destinada aos serviços.
A diversidade das atividades realizadas nos cômodos do apartamento e a transformação dos ambientes tornam obsoleta sua divisão por zonas de uso: social, íntima e de serviços. As hierarquias de acesso e circulação nos espaços internos das moradias sofreram grandes mudanças. Espaços da intimidade – como o quarto – podem ser espaços de receber e trabalhar. O mesmo acontece com a cozinha, que vive uma transição entre o serviço e o social. Os limites internos das atividades tornam-se cada vez mais tênues.
A redução das áreas dos apartamentos é correlata à oferta de espaços de uso comum, que prometem assumir a funções antes realizadas no apartamento. A falta de espaço para banheira nas unidades tem levado, com mais frequência no final da década de 2000, os empreendimentos a adotarem piscinas com hidromassagem e banheiras coletivas.
Três empreendimentos de padrão elevado – um do começo, outro da metade e o último do final da década – são úteis para ilustrar como o programa e a organização dos apartamentos foi se alterando ao longo do período em análise.
Os apartamentos do condomínio Millenium são muito amplos, com seus 236,65 m². As salas de jantar e estar são integradas e ampliadas por uma varanda, espaço que, em Uberaba, constituem tradicionalmente grande significado como lugar de convívio. A cozinha, neste prédio, surge como uma área de transição para o acesso à área de serviço. A zona íntima é delimitada por quatro dormitórios, entre os quais duas suítes. O quarto principal possui uma sacada e um closet, cômodo comum em muitos apartamentos destinados às classes mais altas, correlato ao acúmulo de roupas e acessórios. A existência de quatro banheiros somados a um lavabo destaca a importância que este cômodo tem adquirido. Nos exemplares desse padrão, no início da década, nota-se uma quantidade reduzida de unidades por pavimento: uma ou duas, como é o caso desse edifício.
O apartamento do Residencial Parque dos Buritis, embora destinado ao público com poder aquisitivo elevado, apresenta uma redução significativa na área – 125m² – sinalizando claramente uma tendência que se confirmou ao final da década. Tem três suítes. As salas dão lugar ao ambiente denominado living. Uma grande alteração em relação ao Edifício Millenium é o aumento da quantidade de unidades por pavimento: quatro neste empreendimento. Curiosamente, o lavabo é implantado na área comum de cada pavimento, ou seja, um único lavabo serve a quatro unidades. O apartamento possui três banheiros, todos compondo suítes. A possibilidade de um banheiro social surge pela disposição de uma das suítes ser interligada à sala. Trata-se de artifício, que auxilia a venda, ao aumentar o número de suítes da unidade sem deixar de oferecer um banheiro social. Este aumento na quantidade de cômodos não significa necessariamente um aumento na área da unidade, mas uma maior compartimentação, principalmente da zona íntima. A repartição em zonas de usos permanece nesse empreendimento e a zona íntima ocupa a maior área do apartamento, seguida da social. A sacada, denominada varanda gourmet, é embutida.
O Edifício Portal das Palmeiras Residence, produzido no final da década de 2000, tem área ainda menor: 114 m². Confirma, pois, a tendência da diminuição da área da unidade habitacional do apartamento de luxo na cidade. A divisão dos acessos social e de serviços, neste caso, aparece mais definida, com circulações distintas e afastadas. Tem três dormitórios e uma suíte. Sua cozinha, contudo, é um pouco mais ampla, além da possibilidade ofertada de flexibilização da planta com a integração da cozinha à sala. A varanda apresenta uma área maior, próxima à sala, que teve seu espaço diminuído. Segundo Marcelo Tramontano (6), a partir dos anos 1980, a varanda se afirma como item de valorização do apartamento, enquanto nas décadas de 1990 e 2000, houve uma tendência de diminuição das áreas dos apartamentos que resultou no uso das varandas como elemento para criar a ilusão de um espaço mais amplo, prolongamento do pequeno espaço interno. Sobre a situação recorrente, visualizada neste exemplo, o autor escreveu:
“Mais recentemente, a área das varandas em grandes apartamentos tem chegado a equivaler àquela das salas principais, com acréscimo de churrasqueiras, e mais espaços para sofás e poltronas: uma varanda, misto de cômodo e jardim” (7).
Trata-se ainda de estratégia de máximo aproveitamento do terreno pela incorporação de espaços não computáveis como área construída.
A grande maioria dos apartamentos construídos em Uberaba, entre os anos 2000 e 2010, destinou-se à classe média. Três desses empreendimentos – um do início, um da metade e o último do final desse período – são úteis para ilustrar como o programa e a organização destes apartamentos foi se alterando ao longo da década.
Construído no início da década, o Edifício Dr. José Humberto Rodrigues da Cunha foi destinado à classe média e a estudantes. Apresenta uma área de 88,55 m². Possui quatro unidades por pavimento. Seus acessos chamados social e de serviços são distintos dentro da unidade, porém não estão isolados nas áreas coletivas. Tem três dormitórios, um deles suíte. O número de banheiros, em comparação aos apartamentos de alto padrão, é menor. As salas de estar e de jantar são integradas e a sacada faz-se presente. A observação de Heliana Comin Vargas (8) acerca da perda da importância do projeto arquitetônico pode ser exemplificada por este caso: sua planta é similar à outro edifício, projetado pela mesma construtora, adaptada apenas em relação à orientação solar do lote.
Um empreendimento projetado em meados da década foi o Edifício Residencial Montecarlo. Seu apartamento-tipo tem uma área de 120,9 m². São três dormitórios, com a presença de uma suíte. As salas de jantar e estar são integradas. Nele há uma redução dos espaços de circulação interna, com o aproveitamento maior da área útil, mas esta economia de área é feita em detrimento das condições de iluminação e ventilação de um dos banheiros.
Projetado no final da década, o Residencial Santa Beatriz localiza-se próximo ao shopping. O apartamento-tipo tem área de 94 m². Tem dois quartos e uma suíte. Sua área de convívio social se restringe ao living e à sacada. A cozinha permanece isolada, ao lado da área de serviço. Possui um único acesso, em coerência com as plantas dos prédios de tal padrão que, em sua grande maioria, não possuem entradas social e de serviços separadas.
Algumas tendências
As tendências foram definidas por Guillaume Erner como “entusiasmos coletivos” (9), que alteram modos regionais e culturais e impõem gostos que se generalizam. Para o autor, podem ser um evento permanente ou efêmero; confidencial (próprio de um grupo) ou massivo, quando uma tendência confidencial se amplia.
É possível pensar, portanto, a moradia em condomínios verticais de Uberaba, no período analisado, como uma tendência que extrapolava grupos, expandindo-se com vigor no espaço urbano e entre classes sociais de diferentes níveis de renda. Os dados levantados sobre a produção de prédios de apartamentos na cidade mostram um aumento a partir da década de 1990. O que inicialmente constituiu um processo concentrado em grupo específico da população – com renda mais alta, definindo o caráter de consumo desse grupo e uma tendência confidencial – foi aos poucos atingindo outros segmentos da sociedade, caminhando no sentido de se tornar uma tendência massiva. Ocorreu um esboço do que Pierre Bourdieu (10) denominou de difusão vertical de gosto, ancorada, no caso estudado, em uma ampliação do poder aquisitivo entre setores de classe média.
Entre os condomínios verticais voltados para camadas da população de renda média e alta, uma tendência clara foi a busca de proximidade com o shopping e com a Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
Os condomínios também expressam tendências contemporâneas à segregação social, exacerbação de dispositivos de segurança e àquilo que Jean Baudrillard (11) chamou de invasão da realidade por signos e conversão dos indivíduos em consumidores insaciáveis. A publicidade destas moradias se apoiou no tripé: exclusividade, segurança e consumo de luxo. Este tripé foi traduzido nos projetos pela proteção dos muros e das guaritas. Pelas áreas de lazer confinadas incorporando de forma precária o programa de clubes e academias – piscinas, hidromassagem, sauna, fitness, play ground etc. Pela moradia compacta e distribuída de modo a atender a privacidade, hierarquias e funções em áreas íntimas, coletivas e de serviços, em quartos, suítes e suítes do casal. Em todos os padrões analisados se constatou uma tendência de redução das áreas dos apartamentos e de ampliação do número de seus cômodos, decorrente, sobretudo, da proliferação das suítes. Todos os condomínios analisados têm como constante a presença de suítes, reflexo da necessidade de privacidade e de propósitos de diferenciação dos habitantes da unidade habitacional. Para dar conta desse programa, a área íntima cresce, equivalendo a algo próximo da metade da área total da habitação. A sala se encolhe e busca incorporar de alguma forma o espaço das estreitas sacadas. A cozinha, reduzida a um corredor ladeado por uma parede equipada, tende a ser um espaço confinado, que pode incluir também a lavanderia, reduzida a tanque e máquina de lavar. A estreita sacada é um coringa: amplia a sala e absorve, eventualmente, atividades da cozinha.
Para compensar os espaços reduzidos, se oferecem outros de uso comum que, de fato, são usados amplamente apenas em festas e pelas crianças, difíceis de serem contidas em cômodos que mal acomodam um mobiliário mínimo. Os condomínios tratados são vistosos, têm um programa que impressiona e que vende. Seus apartamentos são atentos a conforto, privacidade e praticidade. Segmentados, contudo, lhes falta espaço. O cenário é bem montado, mas em meio a ele os personagens mal podem se mover.
notas
NE – Este artigo foi produzido com base na dissertação de mestrado Condomínios verticais: Uberaba (2000-2010) apresentada ao Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. GUIMARÃES, Camila Ferreira. Condomínios verticais: Uberaba (2000-2010). Dissertação de mestrado. São Carlos, PPGAU IAU USP, 2015.
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Câmara Municipal de Uberaba. Lei nº 376. Dispõe sobre o Uso e Ocupação do do Solo no Município de Uberaba, Estado de Minas Gerais, e dá outras providências. Uberaba, Prefeitura Municipal de Uberaba, 04 ago. 2007 < https://bit.ly/2OUHh8t>.
2
QUEIROZ, Fabio A. Apartamento modelo. Arquitetura, modos de morar e produção imobiliária na cidade de São Paulo. Dissertação de mestrado. São Carlos, PPGAU IAU USP, 2008.
3
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros. Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000.
4
ALBERTO, Jorge. Portal Engenharia inaugura o edifício Portal das Palmeiras Residence. Jornal da Manhã, Uberaba, 10 nov. 2012 <www.jmonline.com.br/novo/?noticias,15,SOCIAL,71447>.
5
CALIXTRE, André; VAZ; Fábio. Nota técnica, n. 22 (Pnad 2014 – breves análises), Brasília, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, dez. 2015. <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/151230_nota_tecnica_pnad2014.pdf>.
6
TRAMONTANO, Marcelo. SQCB Apartamentos e vida privada na cidade de São Paulo. 2004. Tese de livre docência. São Paulo, PPGEM EESC USP, 2004.
7
Idem, ibidem, p. 32-33.
8
VARGAS, Heliana Comin. Publicidade imobiliária: o que se está vendendo? In VARGAS, Heliana Comin; ARAUJO, Cristina Pereira de (Orgs.). Arquitetura e mercado imobiliário. Barueri, Manole, 2014.
9
ERNER, Guillaume. Sociologia das tendências. São Paulo, Gustavo Gili, 2015.
10
BOURDIEU, Pierre. Questões de sociologia. Rio de Janeiro, Marco Zero, 1983.
11
BAUDRILLARD, Jean. A sociedade do consumo. Paris, Gallimard, 1970.
sobre as autoras
Camila Ferreira Guimarães é arquiteta e urbanista, mestre em Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo pelo IAU USP (2016) e docente do curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Uberaba.
Telma de Barros Correia é arquiteta e urbanista, doutora em História e Fundamentos Sociais da Arquitetura e do Urbanismo pela FAU USP, docente do Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (IAU USP) e bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq.