Concebida como um experimento em diversas categorias, a residência Pio IX atravessou vinte anos de uso, permitindo assim, uma análise comparativa entre as intenções originais e o resultado. A premissa inicial era a redução do desperdício e a eliminação de resíduos na construção, o que induzia o projeto a soluções industrializadas e repetitivas, com componentes pré-fabricados e montados em loco. A premissa seguinte previa a adequação do projeto aos processos, e não o reverso, padrão típico das construções convencionais. Isto significa ter uma volumetria e um programa flexível, capaz de ser acomodado em um processo onde todas as decisões apontem para a otimização máxima de recursos e o menor gasto energético no processo. Ainda subjacente havia a prerrogativa do uso de materiais de baixo impacto ambiental e tecnologias de baixo carbono, incipientes no início dos anos 1990 no Brasil.
Após pesquisa de materiais, que incluíu todos os materiais convencionais como o concreto e o metal, as decisões caminharam para o uso de madeira de plantios industriais de média densidade, produzidos a menos de 200 km de distância do local da construção. Dentre as espécies de média densidade produzidas na região sul, a escolha recaiu sobre o eucalipto grandis (Eucalyptus grandis), cultivado pela Klabin na região de Telêmaco Borba, no Paraná, principalmente pela produtividade da espécie, mais do que pelas características mecânicas ou de resistência. A espécie tem sido plantada pelas características apropriadas à indústria papeleira, porém possui propriedades mecânicas e de resistência à xilófagos apropriados à construção em madeira. As características foram conferidas em 1995, em ensaios realizados na Escola Politécnica da Universidade de São Paulo – Poli USP, em São Paulo, e os valores aferidos considerados apropriados para o uso em construções como estrutura.
Uma característica peculiar do manejo florestal da Klabin exigia que as peças retiradas das áreas de manejo fossem de aproximadamente 4 metros de comprimento, fator determinante para o arranjo estrutural a ser projetado. Outra característica decorrente da matéria prima era a seção máxima obtida pelo uso do cerne, descontado o alburno, com cerca de 12x12cm serrado.
As decisões projetuais levaram em consideração a grande declividade –que impacta na movimentação de elementos pesados durante a obra– e a permeabilidade do solo, preservada elevando a construção do terreno, mantendo o perfil original.
O desenho final, para acomodar um programa generoso de 270m2, foi dividido em quatro andares de tamanho variado e o conjunto apoiado em 6 fundações profundas de concreto, cuja formato cilíndrico determinado pela escavação dispensou o uso de fôrmas de madeira descartáveis.
Representação
Até essa etapa de projeto, as ferramentas de desenho foram as tradicionais, através de modelos em escala e desenhos executados a mão, com representação tradicional.
Observou-se que a representação convencional, de cortes, elevações e detalhes em duas dimensões, revelou-se incompreensível para os executores da obra, montadores experientes, porém não educados para a leitura codificada das convenções gráficas tradicionais. Ocorre que na hierarquia das obras convencionais, em alvenaria e concreto, existem filtros de interpretação do projeto representados pelo engenheiro responsável/empreiteiro, pelo mestre de obras, terminando pelo assentador de tijolos e argamassa.
Até o momento do início da montagem, a representação convencional dava conta do diálogo entre o projeto de arquitetura e o projeto estrutural. Por volta desse período, a Ita Construtora, responsável pelo projeto e montagem da estrutura avançava no uso de programas Computer-aided design – CAD adotados pela maioria dos arquitetos e engenheiros (AutoCad) e introduzia também, programas voltados para o desenho e produção de estruturas em madeira (WoodWorks)
Ao desenvolver o desenho da escada, ficou claro que a representação convencional não seria compreendida pelos interlocutores responsáveis pela montagem. Os primeiros modelos tridimensionais da estrutura e da escada, foram realizados em escala consideravelmente grande para esse tipo de projeto. Modelos não devem representar apenas a volumetria e a implantação, mas sobretudo revelar detalhes funcionais e permitir a investigação das conexões estruturais e de outros componentes a serem testados, assim como o processo de montagem.
Aqui vale um parêntese sobre a prática arquitetônica de alguns arquitetos ao longo da história, prática essa adotada nesse projeto, na expectativa de compreender melhor todas as intercorrências derivadas do projeto na fabricação e montagem de uma edificação.
Arquitetos como Renzo Piano, valem-se dos modelos em escala progressivamente ampliada para resolver certos detalhes executivos fundamentais para os projetos em questão.
O Atelier Bow-Wow, além dos modelos em corte, utiliza como metodologia gráfica, a representação para projetos executivos em cortes perspectivados com cotas e detalhes, uma evolução da representação que tornou os desenhos de Gottfried Semper e Paul Rudolph, referências na arquitetura em suas respectivas épocas.
A representação convencional já não traduz as necessidades reais de um projeto contemporâneo e suas intrincadas relações com a produção, a montagem e o meio ambiente.
Essa aparente divagação se justifica em função da metodologia aplicada na avaliação da estrutura e dos processos aos quais foi submetida ao longo dos últimos vinte anos.
Estrutura
Com as dimensões definidas, a implantação e a volumetria caracterizadas e os apoios locados, o arranjo estrutural foi definido com três pórticos apoiados nas fundações e quatro treliças perpendiculares, no outro sentido. Essa solução permitiu uma área de piso inteiramente livre, possibilitando paredes independentes da estrutura e o piso contínuo atuando como contraventamento horizontal. Para compensar o comprimento limitado das peças de madeira, os pilares foram encapsulados com segmentos de seção reduzida que atuam também como consoles para os pórticos duplos.
Essas soluções, concebidas pelo engenheiro e especialista Hélio Olga, evoluíram a partir das decisões combinadas entre arquitetura e o processo de fabricação, visando uma montagem in loco, na qual a própria estrutura servia também como andaime e escoramento.
A escada não tem função estrutural, porém atua como poço de ventilação trazendo o ar frio produzido embaixo da estrutura e conduzindo o ar quente para as saídas no andar superior.
As conexões são essencialmente pregadas, com poucos parafusos que foram utilizados para fixar consoles ou elementos de fechamento.
Como parte do processo de pesquisa, o arranjo estrutural expos os elementos à todas as situações de carga e deformações possíveis, como tração, compressão e torção. Ainda dentro de uma visão de baixo impacto ambiental, as vigas curvas da cobertura foram laminadas e pregadas (Vigas Laminadas Pregadas – VLP) dispensando o uso de colas tóxicas, (caseína, uréia-formol e resorcina) considerando que adesivos alternativos, como o uso de poliuretano monocomponente à base d’água (PUR), de menor impacto ambiental, ainda não estavam disponíveis na época da construção. Vale salientar que nenhum adesivo no mercado é totalmente isento de efeitos negativos ao meio ambiente visto que uma vez rígidos, não existem solventes apropriados para desfazer a colagem.
A estrutura está sujeita a um conjunto de cargas distribuídas uniformemente, com a carga da pele de revestimento atuando de forma homogênea em todo o perímetro e com os pórticos trabalhando para sustentar as treliças e compensar a flecha (deformação) prevista para o centro da estrutura.
Cada conjunto de componentes indica as principais cargas consideradas, e a montagem seguiu uma sequência logica de operações não conflitantes, colaborando com a não geração de resíduos inicialmente planejada.
O dimensionamento e os fatores de cálculo feitos à época tinham como base o conhecimento adquirido ao longo de uma considerável quantidade de obras executadas, e o comportamento de espécies de madeira já testadas. O uso do eucalipto grandis trazia algumas incógnitas, mas de uma forma geral, a estrutura teve um comportamento dentro do previsto, com uma deformação maior entre as treliças, provocada pelo momento exercido pelo balanço da fachada mais alta da edificação. Ao longo do período pós-edificado, a estrutura passou por uma revisão, com o enrijecimento das treliças do piso inferior através de um acréscimo de conectores ligando os banzos superior e inferior do conjunto. Essa adequação não surtiu o resultado esperado e a movimentação acentuou-se no vão central da área em balanço.
Com a introdução de recursos digitais de avaliação comportamental de estruturas em geral, antecipar deformações e aplicar soluções aos modelos trazem benefícios incalculáveis ao processo de projeto, permitindo correções tanto ao projeto estrutural quanto ao projeto de arquitetura.
À análise visual do comportamento estrutural foi adicionada a análise digital aplicada ao projeto original, permitindo uma clara visualização das deformações. Foi utilizado o módulo analítico Karamba3D, integrado programa de modelagem 3D Rhinoceros e ao plug-in Grasshopper, plataformas abertas que possuem centenas de algoritmos de modelagem e análise que podem ser integrados.
A utilização de programas integrados faz parte do conceito BIM (Buiding Information Modeling), a modelagem de informações da construção, que permite o cruzamento e a atualização dos projetos a qualquer tempo, aumentando o controle e a eficiência dos processos construtivos. Nesse universo, a possibilidade da alteração de parâmetros durante o projeto permite uma antecipação de eventuais patologias estruturais e uma maior integração entre os desígnios do projeto arquitetônico e a realidade do projeto de engenharia.
O plug-in Grasshopper, utilizado na análise da estrutura do Projeto Pio IX, opera através de algoritmos predeterminados, ou formulados para a obtenção de ações específicas. A essas ações são acrescidas variáveis (parâmetros) que permitem modificar seções, volumetria e mais uma infinidade de fatores que possam influenciar no resultado pretendido. Isso caracteriza um ramo específico de projeto denominado Arquitetura Paramétrica.
Nas ilustrações que se seguem, o modelo original foi submetido ao algoritmo pré-programado Karamba3D com as cargas decompostas, e colocando como parâmetros de deformação múltiplos amplificados para permitir uma clara visualização, sem considerar outros fatores como ruptura e fadiga do material.
O que se pode observar em uma leitura da análise do modelo é a correspondência com as previsões iniciais, inclusive apontando a deformação exagerada do pavimento inferior pela somatória das cargas aplicadas ao balanço. A deformação periférica é mínima, em parte pelo desenho e em parte pela pele de revestimento, que trabalha para distribuir momentos ao longo de toda a superfície, como uma grelha.
Observando a deformação mais crítica, o rebaixamento do vão central entre as treliças, nota-se que um enrijecimento dos vãos laterais imediatos, poderia compensar a deformação sem prejuízo à estética da construção. A falta de um contraventamento nesse sentido, paralelo à fachada permite que a deformação ocorra.
O modelo aplicado ao programa analítico, já com a introdução de um elemento de travamento no piso inferior, mostra que o comportamento estrutural muda significativamente para melhor.
A conclusão é a de que a transformação das vigas duplas do balanço em uma treliça, em todos os pisos resultará em deformação quase inexistente nessa fachada.
Embora o conhecimento à priori e as ferramentas de cálculo tradicional sejam ainda fundamentais na concepção e desenvolvimento do projeto estrutural, é inegável a contribuição que ferramentas de análise visual, como a aplicada aqui, podem dar ao arquiteto e ao engenheiro no desenvolvimento de projetos de edificações. Heino Engel, em Sistemas Estruturais (1), sempre pontuou a importância do trabalho conjunto entre engenheiros e arquitetos na criação de conceitos e formas edificadas, com base em clareza estrutural, razão e arte, mas a falta de uma linguagem comum criou um distanciamento entre as disciplinas de projeto arquitetônico e de engenharia que é incompreensível no contexto atual. Ferramentas de visualização, projetos que já nascem em três dimensões e ferramentas de análise, aproximam as disciplinas e criam uma linguagem comum que avança rumo ao canteiro de obras (ou de montagem, como aponta o crescente processo de industrialização das construções) e ao processo industrial.
Não se questionam aqui os valores do aprendizado através das ferramentas tradicionais de conceituação, porque prescindem de um mediador entre o raciocínio e o produto final. Ter o domínio do raciocínio espacial e a independência de recursos mediadores entre a intenção e o produto sempre será necessário e desejado no processo de criação, porém a complexidade com que as novas variáveis tecnológicas, ambientais e sociais se apresentam, requer o auxílio de ferramentas velozes para dominar e tornar acessível tão vasto conjunto de informações.
Por outro lado, as ferramentas de visualização aproximam o público da linguagem arquitetônica, diminuindo a distância que separa o leigo do experto e tornando a prática (e o ensino) menos autoritário.
nota
1
ENGEL, Heino. Sistemas Estruturais. Barcelona, Gustavo Gilli, 2001.
sobre os autores
Marcelo Aflalo é doutorando em Arquitetura (FAU USP, 2016), com mestrado em Comunicação Visual pela The School of the Art Institute of Chicago, em 1985. Possui especialização em Fotografia (Faap, 2012) e graduação em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP, 1978). Publicou o livro Madeira como estrutura: a história da ITA (Paralaxe, 2005).
Akemi Ino é doutora em Engenharia Civil (Poli USP, 1992), mestre em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP, 1984) e especialista em Faculty of Science of Living (Osaka City University, 1987). Graduada em Engenharia Civil pela Universidade de São Paulo (1979), hoje é professora livre docente no Instituto de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.