A chamada “cidade ideal” é uma construção teórica que foi criada por intelectuais e artistas durante o período que usualmente se denomina de Renascimento. Sabe-se que esta construção teórica chegou a ser, de fato, praticada, nas cidades italianas de Ferrara e Pienza. Contudo, tratava-se nestes casos de reformas urbanas, e o novo tecido clássico, formado por vias mais largas e retilíneas, subsistia com o antigo tecido medieval. Mas sabemos, igualmente, que duas cidades italianas foram construídas na sua totalidade ex novo, Sabbioneta e Palmanova, situadas, respectivamente, nas províncias de Mântua e de Udine. Tratava-se de projetos ambiciosos, nos quais às questões mais propriamente urbanas se misturavam, ainda, funções administrativas e militares. Portanto, em face de tal ambição, seria interessante como ponto de partida se nos perguntássemos se esta questão não teria sido abordada em outros ambientes culturais, para além dos artísticos e urbanos. Para dirimir, ainda que parcialmente, esta dúvida, citemos Descartes, que no seu Tratado O discurso do método comentou brevemente:
“Assim, essas antigas cidades, pequenos burgos no começo, tornaram-se, no correr do tempo, grandes centros, mas são tão ordinariamente traçadas, em comparação com essas praças regulares, construídas por um engenheiro a seu gosto numa planície, que, embora considerando as suas edificações individualmente, se encontra nelas, muitas vezes, tanta ou mais arte que na das outras; contudo, ao ver como se acham arranjadas – uma grande aqui, uma pequena ali – e como se tornam as ruas curvas e desiguais, dir-se-ia que mais do que vontade de algum homem usando da razão, foi o acaso que as dispôs” (1).
Desta maneira, observa-se que o filósofo francês serviu-se da arquitetura e do urbano como metáfora para explicar que a obra realizada por um único autor – no caso, um engenheiro – seria, não a criação do acaso, mas um produto da razão (2). Deve-se observar, igualmente, que o uso do conceito de “razão” não deixa dúvidas sobre o significado deste empreendimento, que se oporia ao simples acaso ou “fortuna”. E este é o próprio caráter da cidade ideal, uma obra urbana realizada por um único homem em um lapso temporal relativamente controlado. Palmanova, cidade já citada, e para nos restringirmos a um único exemplo, foi projeto de Marc'Antonio Martinengo di Villachiara, “que em 1593 foi nomeado pelo senado [de Veneza] ‘chefe de guerra’” (3). Contudo, antes de abordamos a forma urbana das chamadas cidades ideais, convém descrever, ainda que sumariamente, o caráter das cidades italianas nos séculos em que um modelo urbano idealizado foi refletido. Então, como seriam estas cidades nos quais viviam a maioria dos cidadãos italianos? Esta pergunta é pertinente porque o que será proposto como um ideal urbano pode ser compreendido, justamente, como a alteridade da realidade cotidiana das urbes italianas:
“As cidades do século 13 e 14 [...] apresentam-se como um agregado denso de habitações e oficinas artesãs dispostas ao redor de áreas de interesse comum, onde a catedral e o palácio municipal estão situados e onde se realizam mercados e feiras. As ruas, em geral, são estreitas e tortuosas, em movimento concêntrico ou radial; os bairros, em sua maioria, se diferenciam pelas várias especialidades de produção, as ‘artes’” (4).
Pode-se perceber que a cidade descrita pelo historiador italiano é, de maneira geral, bastante diferente do que, normalmente, se imagina ser uma “cidade ideal”, a saber, um tecido urbano radial ou em malha xadrez cujo centro é uma praça cívica, com ruas largas e retilíneas; o conjunto urbano, por sua vez, é protegido por largas muralhas capazes de resistir ao assalto de artilharia pesada. Certamente que havia uma grande variação entre as cidades ditas medievais, mesmo entre aquelas que pertenciam a ambientes culturais próximos, contudo, nenhuma delas poderia ser compreendida a partir do que defendeu, por exemplo, Descartes. De qualquer sorte. É mister reconhecer que cidade ideal não é uma construção teórica que surge em apenas um domínio do pensamento, como em ensaios de arquitetos e demais artistas, podendo ser encontrada em textos de caráter literário e, como vimos, na filosofia. Mas compreendemos que este fenômeno não é exclusivo à “cidade ideal”, posto que muitas construções teóricas são criadas, quase simultaneamente, nos mais diversos meios culturais; à guisa de exemplo, poderíamos citar o mito do “bom selvagem”, escrito inicialmente por Colombo e posteriormente retomado em uma gama literária mais vasta, como no pensamento de Rousseau. Apenas desejamos lançar luz sobre um fenômeno cultural específico e que tem no urbano uma das suas manifestações mais privilegiadas.
Realizadas estas considerações iniciais, salientaremos que neste artigo pretendemos demonstrar que a cidade ideal renascentista, antes de ser construída por arquitetos, foi pensada e escrita por intelectuais e artistas e que, a este título, foi uma manifestação cultural partilhada por vários segmentos sociais (5). Neste sentido, esta se disseminou rapidamente, atingindo outras camadas que estavam um pouco mais distantes dos meios eruditos e universitários, por exemplo, no imaginário cristão (6). Contudo, há uma nítida diferença entre a cidade ideal, como um conceito que é passível de ser projetado (ainda que o termo “ideal”, cujo sinônimo próximo seria o de “perfeição” indicando, então, uma impossibilidade prática) e a cidade idealizada, como uma construção imaginária ou alegórica que estabelece um resgate da Antiguidade Clássica que é, igualmente, idealizada. Esta é, portanto, a hipótese que tentaremos demonstrar nas próximas páginas.
Uma cidade perfeita para uma sociedade ideal
Realizadas as considerações introdutórias acima, resta-nos demonstrar como o conceito de cidade ideal comparece no pensamento de certos autores. Argan faz referência ao surgimento de uma “urbanística” na cultura humanista: “A cultura humanista propõe, pela primeira vez de forma consciente e orgânica, o problema da cidade, enquanto sede de uma sociedade organizada e expressão visível de sua função”. Assim, e fiando-nos na asserção do historiador italiano, a cidade havia se tornado – como, aliás, já havíamos visto com Descartes – um objeto de reflexão para os mais diversos intelectuais, como no-lo afirma, novamente, Argan: “De fato, constituiu-se no âmbito da cultura humanista, pela primeira vez após o fim do mundo clássico, uma teoria ou uma ciência da cidade, uma urbanística” (7). É certo que com Descartes tratava-se de uma metáfora e não de um pensamento que incorporasse realmente a cidade, contudo, deve-se pensar que o uso desta figura de linguagem – ou topos – indica que o fenômeno urbano poderia fazer parte de um ambiente cultural mais amplo.
Sobre a questão abordada pelo historiador italiano, a saber, a cidade como uma “sociedade organizada”, não poucos autores dissertaram sobre a correspondência entre uma suposta alta definição geométrica e o seu perfeito funcionamento político. Esta questão pode ser observada no livro Utopia do inglês Thomas Morus, publicado em 1516, no qual uma sociedade perfeita foi descrita, ou melhor, idealizada. Este texto inaugurou um subgênero literário, que leva o nome deste livro. Assim, temos algumas obras que tratam da idealização de sociedades, como Gargantua (1534), do francês Rabelais, As aventuras de Telémaco (1699), de Fenelon, Cartas persas (1721), de Montesquieu e Cândido (1759), de Voltaire. Todos estes livros têm em comum o fato de criarem sociedades idealizadas nas quais os homens viveriam em paz e harmonia sendo governados de maneira igualitária e justa (8). Outro autor que podemos citar é Tommaso Campanella, no livro A cidade do sol, cuja segunda versão foi publicada em 1623; neste livro o autor criou uma cidade que, à maneira das cidades italianas ditas ideais, é cercada por muralhas no interior das quais os habitantes (os “solarianos”) viveriam em um regime de igualdade social (9).
Contudo, para além da idealização política, há as criações literárias nas quais a idealidade é estética. Pode-se ver isto na obra de um literato como Gian Giorgio Trissino, que, no poema La Italia Liberata da Gotthi, que data de 1547, descreve a Cária, que é uma antiga região da Ásia Menor, como uma cidade ficcional, em um tratamento idealizado e fantástico (10), como podemos observar neste trecho:
"Na grande lateral apresenta-se um belo gramado/ que é posto no ponto oposto à primeira vista da entrada/ fechada em um grande muro altíssimo e supremo/ de mármore finíssimo e de alabastro/ que há em suas três portas, e/ aquela que é do meio/ é toda de ouro, e de cristal é a outra;/ a terceira é feita então de marfim branco” (11).
Devemos acrescentar, por uma questão de respeito às fontes, que período no qual o poema foi escrito a região de Cária não mais existia como tal (12) e, portanto, o autor não poderia tê-la conhecido de fato. Porém, esta questão não é importante porque se trata de um texto literário e, neste caso, o mais importante é a própria descrição do que o possível referente. Neste trecho, o poeta italiano descreve, principalmente, os portões desta cidade fantástica e, sobretudo, rica, no sentido de que os materiais com os quais foi construída – mármore, alabastro, marfim, ouro e cristal –, são reservados, na Antiguidade e no mundo Clássico, às construções importantes e a adornos de Palácios Senhoriais (pensemos, a este respeito, na “porta de ouro” das muralhas de Constantinopla e no palácio veneziano Ca d`oro). E a Cária imaginada pelo poeta é feita destes materiais. E se nesta descrição não há uma perfeição idealizada a partir da geometria – como no caso do excerto de Descartes por nós citado, esta urbe não foi, contudo, menos idealizada.
E como se tratasse de um catálogo de cidades fantásticas e idealizadas, Gian Georgio Trissino descreveu na supracitada obra algumas outras cidades, como a “cidade Leonina”, que foi descrita em termos não menos hiperbólicos, como podemos ler neste trecho:
“Outra estava na cidade Leonina/ e em Trastevere a terceira: ambas tais/ como é esta, e que está perto de nós./ Hoje nunca vem e podeis ver quais foram os meus castelos e as minhas torres/ e os grandes palácios e os arcos do triunfo. E digo com insistência que, se tu não fores,/ maravilhoso será se, olhando-a, a mente não abominarás tantas coisas” (13).
Neste caso, não se trata de uma região tornada cidade nos confins do Império Romano, mas da própria cidade de Roma que existe como um referente (14). Contudo, o autor não descreveu a totalidade da cidade, posto que a chamada cidade Leonina é composta pelos acréscimos ocorridos durante o papado de Leão IV. Os arcos triunfais aos quais o poeta se referiu talvez sejam as duas portas da muralha leonina, a Porta S.Pellegrino e a Porta dita de' Saxoni (15). Na Roma de Leão IV havia – assim como descrição do autor – muralhas, torres e ameias, além de um castelo (o Castell S. Angello) e “grandes palácios”, muito provavelmente uma referência ao atual Vaticano e a outras construções palacianas. Deve-se atentar para o uso do termo “maravilha” realizado pelo autor, certamente com o sentido de “espanto” e “admiração”, e que indicaria, igualmente, “fora do comum” ou “extraordinário”. Ora, não é por outra razão que o sentimento de se espantar é um topos recorrente na literatura viática (16), conceito com o qual o poema citado pode ser subsumido. Deseja-se enfatizar que, para além de o fato na narrativa viática pertencer a uma tradição, há o evidente desejo de lançar luz sobre o fenômeno urbano, uma vez que muitos “viajantes” preferiram abordar outros aspectos das viagens, como acidentes naturais ou criaturas míticas, como foi o caso do francês Jean de Mandeville (17).
Contudo, não apenas os filósofos e poetas se dedicaram ao tema da cidade ideal ou idealizada, uma vez que os pintores se debruçaram, igualmente, sobre este tema. No caso, a diferença fundamental reside no fato de que, enquanto os primeiros criaram imagens não icônicas, isto é, aquelas que são evocadas na mente do leitor, os segundos criaram imagens icônicas, ou seja, vistas em uma relação mais estreita com o referente (18). Há algumas pinturas que já se tornaram bastante clássicas na tradição das cidades ideais, no sentido de que já foram várias vezes citadas e analisadas, como o “painel de Urbino”, pintura realizada entre os anos de 1470, de autor desconhecido, mas frequentemente atribuída a Piero della Francesca, a Giorgio Martini e, igualmente, a Giuliano da Sangalo (19). Nessa pintura há a representação de uma cidade de desenho clássico, centralizada a partir de um templo de planta circular como o tholos grego ou o templo de Hércules situado em Roma. Apesar de esta representação pictórica ser a mais conhecida imagem de uma cidade ideal, está longe de ser a única. Pode-se citar, igualmente, a La Veduta di Città Ideale, pintura datada de1470 atribuída, normalmente, a Giorgio Martini (20). Assim como na pintura anterior, trata-se de uma representação construída a partir de um ponto de fuga central e as construções são de inspiração clássica. Contudo, vê-se ao fundo não um templo, mas uma veduta na qual se pode observar o horizonte e algumas naus. Isto pode indicar o caráter mercantil de algumas cidades italianas, que, paulatinamente, substituíram o Império Bizantino no comércio ocidente-oriente. Seria anacrônico, todavia, mencionarmos as Grandes Navegações e a chegada de certo navegador genovês ao continente americano.
Outra pintura que poderíamos nos referir é a pintura de Canaletto conhecida pelo título de Capriccio con edifici palladiani, isto é, Capricho com edifícios paladianos. A salientar que “capricho” é um gênero artístico, sobretudo pictórico, que, a partir do século 15, se notabilizou pela representação de cenas e paisagens fantásticas (21). Na pintura já citada vê-se a reconstrução imaginária da cidade de Veneza, com três edifícios projetados por Palladio: no centro uma ponte jamais construída para o Rialto, na parte esquerda da tela o Palazzo Chiericati e na direita a Basilica Palladiana, ambos construídos em Vicenza. Ora, Canaletto é mais conhecido pelas vedute de Veneza, mas, neste caso, trata-se da idealização dessa cidade, com uma paisagem urbana que inexistia como referente, como afirma o nosso autor: “representação irreal e meticulosa de uma cidade inexistente, muito ‘arquitetônica’” (22).
Últimas considerações
Com este texto tentamos demonstrar que o tema da “cidade ideal” está presente em várias áreas de conhecimento, não se restringindo à arquitetura e ao urbanismo. Desta maneira, filósofos, pintores, poetas e romancistas abordaram o tema, sempre no sentido de enfatizar a construção de um mundo idealizado, no qual a humanidade viveria em perfeita harmonia e em um sistema político justo. E a estas questões morais e políticas se somaria – sobretudo, é claro, na pintura – a fatura de um espaço geometricamente definido, no qual ruas largas e retilíneas refletiriam a própria retidão social. Assim, não seria exagero afirmar que a cidade ideal – para uma sociedade ideal (23) – é um fato cultural bastante abrangente, cuja origem não remonta ao Renascimento italiano: neste sentido, devemos nos lembrar da Atlântida concebida por certo filósofo grego (24).
Contudo, foi no Renascimento que a urbe ideal ganhou mais adeptos nos meios artísticos e intelectuais, e mesmo uma dimensão construtiva, com a edificação das cidades já citadas de Palmanova e Sabbioneta. Mas nos cabe acrescentar que, como tentamos demonstrar, este, por assim dizer, topos, não desapareceu, e permaneceu instigando inúmeros intelectuais, como os iluministas Voltaire e Montesquieu. Outra questão pertinente é o fato de que em todos estes casos não se trata da mesma “cidade ideal”, uma vez que esta construção teórica é uma resposta a várias e diferentes questões sociais que variam enormemente consoante a própria sociedade e ao período abordado. Assim, é quase desnecessário escrever que a Atlântida de Platão em nada se assemelhava a Utopia proposta por Morus.
Outra questão importante que convém destacar é que, nos casos analisados, há as artes visuais – no caso, a pintura – e há a literatura, ou seja, a escritura. Isto significa que, ainda que possam pertencer a ambientes culturais próximos, devem ser tratadas em conjunto apenas na medida em que se estabelecem as suas diferenças, como já afirmamos em nota de rodapé: de um lado temos as imagens icônicas das pinturas e, de outro, temos as imagens que são evocadas no imaginário do leitor no processo da leitura. Mas ainda que sejam manifestações artísticas com as suas especificidades próprias, ambas tentavam materializar, no caso estudado, o mesmo fenômeno, a saber: uma cidade perfeita construída para uma sociedade harmônica.
notas
1
DESCARTES, René. Discurso do método. Brasília/São Paulo, Editora UnB/Ática, 1989, p. 38. Destaque dos autores.
2
Descartes serve-se desta metáfora para explicar que, assim como a cidade criada por um único arquiteto e engenheiro em um único lapso temporal teria mais arte que uma cidade que surgisse aos poucos, a Lei de Deus seria mais bem regulamentada que as leis criadas pelos homens: “Do mesmo modo, é bem possível que o reino da verdadeira religião, cujas leis Deus fez sozinho, deve ser incomparavelmente mais bem regulamentado do que todos os outros”. DESCARTES, René. Op. cit., p. 39.
3
Palmanova foi uma cidade cuja finalidade era de proteger os limites mais extremos da cidade-estado de Veneza. A este respeito ver: SOPRA, Luciano di. Palmanova: analisi di una città fortezza. The Burlington Magazine, n. 976, vol. 126, jul. 1984. Para uma abordagem mais genérica indicamos o seguinte manual de arquitetura: CALABI, Donatella. A cidade do Primeiro Renascimento. São Paulo, Perspectiva, 2008.
4
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte italiana. Volume 2: de Giotto a Leonardo. São Paulo, Cosac Naify, 2013, p. 56.
5
A este respeito, citemos Francastel que teria concluído que cidade do Renascimento antes de ser construída, foi pintada: “Vários estudos recentes sobre as vistas de arquitetura do Quattrocento demonstram que esses painéis não eram de modo algum representação de fragmentos da realidade. Não se trata de paisagens urbanas, mas dos tipos clássicos da cena trágica, cômica ou satírica. Esses tipos, com certeza – e talvez não se tenha insistido o bastante sobre isso – são modernizados. [...] Os primeiros palácios fiorentinos foram construídos apenas por volta do fim do século, depois que três quartos das pinturas já tinham sido executadas. Por conseguinte, a idéia segundo a qual a pintura do Quattrocento reflete o contexto da nova arquitetura é absolutamente fantástica. A arquitetura do Renascimento foi pintada antes de ser construída”. FRANCASTEL, Pierre. Pintura e Sociedade. São Paulo, Martins Fontes, 1990, p. 24-25. O autor francês refere-se ao fato de que a pintura é, normalmente, executada mais rapidamente do que uma cidade é construída.
6
Certamente que um modelo ideal sempre esteve presente no Cristianismo a partir da noção de “Paraíso” e de “Bem” e “Mal” absolutos, referimo-nos, apenas, ao fato de que o conceito de “cidade ideal” partilha de uma idealidade estética. Sobre o imaginário dos europeus na época da “descoberta das Américas” Zimra escreveu: “Foi com os olhos dos navegadores que haviam conservado a lembrança dos velhos mitos greco-latinos que a Europa descobriu a América. A existência do continente no além-mar teve o efeito de uma bomba sobre um público ainda submetido ao Cristianismo e que confundia, em uma mesma necessidade de exotismo, as antigas lendas pagãs e cristãs: a Idade de Ouro, Arcádia e Tebaida, Ilhas Felizes, o Éden antes da queda”. ZIMRA, Clarisse. La vision du Nouveau Monde de Chateaubriand à Beaumont: pour une étude de forme de l'exotisme. French Review, XLIX, 6, 1976, p. 1001, tradução dos autores. A partir dessas asserções pode-se inferir que havia uma coexistência entre a idealidade do Cristianismo que postulava a “perfeição” e a busca de certo exotismo, representado, neste caso, pelo continente americano. Pode-se perceber esta dualidade no mito do “Bom Selvagem” criado, justamente, por Cristóvão Colombo. Sobre esta questão ver: TODOROV, Tzvetan. A descoberta da América: a questão do outro. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2010.
7
ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., p. 56.
8
A este respeito, ver: HUTCHINSON, Steven. Mapping Utopias. Modern Philology, n. 2, v. 85, Chicago, The University of Chicago Press, nov. 1987, p. 170-185.
9
CAPANELLA, Tomasio. La città del sole. Roma, Newton&Compton, 1995.
10
Neste texto, sempre que nos servirmos da palavra “fantástico”, estaremos nos referindo ao significado dado à palavra fantastique do francês no século 14 – semelhante, aliás, àquela do Latim tardio phantasticus –, isto é, “imaginário” ou ainda “existente somente na imaginação” CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Lexikon, 2010, p. 285.
11
No original lê-se: "Il lato lungo poi di quel bel prato/ ch'è posto di rimpetto al primo ingresso/ chiude un gran muro altissimo, e superbo/ di finissimi marmi e d'alabastri:/ ch'ha in sè tre porte, e/ quella che è nel mezzo/ è tutta d'oro, e di cristallo è l'altra;/ la terza è fatta poi di avorio bianco”
12
Cária era a denominação dada à civilização ocupante de parte da atual Anatólia, na Ásia menor, que prevaleceu durante o período das hexápoles dóricas, sendo que sua costa era parte constituinte desse sistema administrativo da civilização grega. A este respeito ver: MARCHESE, Ronald T. The historical archaeology of northern Caria: a study in cultural adaptations. Oxford, B.A.R., 1989. CLARKE, Hyde. On the Inhabitants of Asia Minor Previous to the Time of the Greeks. Transactions of the Ethnological Society of London, vol. 4, 1866.
13
No original lê-se: “Un’altra n’ebbi in cittá Leonina/ e ’n Trastever la terza: entrambe tali/ qual’è quest’una, ch’è tra noi vicina./ Omai vien oltre e potrai veder quali/ funno li miei castelli e l’alte torri/ e i gran palagi e gli archi triunfali./ E dico ben che, se tu non trascorri,/ maraviglia sará se, riguardando,/ la mente in tante cose non abborri”. Tradução dos autores.
14
Sobre o papel desempenhado pela cidade de Roma no imaginário renascentista, Rafael Sanzio não tem em mente apenas os monumentos ou as soluções específicas de construção dentro destes, preocupa-se, sobretudo, com o significado que eles transmitem, a cidade é tratada como forma expressiva de um conteúdo histórico que assume aqui valor de ideologia. Há, portanto, a necessidade de estudar os edifícios magnos da Roma Antiga para que possam servir de exemplo para os modernos, insiste-se que sejam mantidos vivos, pois só dessa maneira seria possível iguala-los e ultrapassa-los. Em sua carta a Leão X, Rafael lamenta a maneira como os “bárbaros”, despojaram antigas estruturas para seu uso próprio. “Todos os edifícios da antiguidade, que pudessem ter importância por algum motivo, eu os examinei para poder encontrar elementos úteis [...]. Insistentemente, tenho revistado, perscrutado, medido, representado com esboços tudo o que pude, para dominar e me servir de tudo o que o engenho e a arte me oferecem”. MIGLIACCIO, Luciano (Org.). Cartas sobre arquitetura. Rafael e Baldassar Castiglione: Arquitetura, ideologia e poder na Roma de Leão X. Campinas/ São Paulo, Editora Unicamp/Editora Unifesp, 2010, p. 56.
15
“Nome conferido à parte de Roma que compreende a Basílica e o Palácio do Vaticano, o Castelo Sant’Angello, o Hospital do Espírito Santo, e os bairro da vizinhança. É o bairro que Leão IV (847-55) envolveu com uma muralha a fim de proteger as igrejas e os estabelecimentos religiosos contra os ataques dos sarracenos que, no tempo do seu predecessor, tinham subido o Tibre e pilhado as Basílicas de São Pedro e São Paulo. A posse da cidade leonina foi conservada pelo Papa, na ocasião da entrada das tropas italianas em Roma (20 de setembro de 1870)”. Informação retirada do seguinte documento: TROUSSET, Jules. (Org.). Nouveau dictionnaire encyclopédique universel illustré: répertoire des connaissances humaines, v. 3, FRAN-MECO / réd. par une société de littérateurs, de savants et d'hommes spéciaux sous la dir. de Jules Trousset. Paris, Librairie illustrée, 1891. Tradução dos autores.
16
“Narrativa viática” é o subgênero literário no qual um autor ou personagem narra uma viagem. Outros topos recorrentes dessa literatura são o estereótipo, a comparação, a descrição de paisagens, cidade e hábitos, a tríade ida-estadia-retorno, depaysement e o exotismo.
17
MANDEVILLE, Jean de. Le livre des merveilles Du monde. Edition critique par Christiane Deluz. Paris, Editions des CNRS, 2000.
18
Abordando a relação entre o cinema e a literatura, Clerc introduziu a questão entre imagens icônicas e não icônicas nestes termos: “Por outro lado, pensar nas relações que unem as imagens e as palavras é reconsiderar a noção de signo. Mesmo se o caráter analógico dos signos icônicos é o produto de certo número de códigos, deve-se pensar que para o receptor, a motivação dos signos icônicos é percebida de outra maneira que o arbitrário do signo linguístico. […] Com efeito, a originalidade do problema colocado pela relação das imagens com as palavras é o resultado de que estas últimas reenviam tanto ao mundo quanto as suas representações ilusionistas, pelas imagens, introduzindo na linguagem uma dúvida fundamental sobre a própria noção de realidade”. CLERC, Jeanne-Marie. Littérature et cinéma. Paris, Broché, 1993, p. 4. Tradução dos autores. Sobre a mesma questão escreveu Duprat: “Passar da escritura à imagem supõe uma mudança de referência com, como corolário, uma perda ou uma distorção do sentido original. A questão da ilustração de obras literárias ou da sua adaptação para um gênero artístico diferente (por exemplo, o cinema) reside na escolha de enquadramentos ou de objetos a colocar na figuração para tornar clara uma ideia que terá sido expressa, talvez, longamente, com muitas palavras. Os cineastas realizam, necessariamente, escolhas que nem sempre correspondem à “verdade histórica” ou a qualquer outra semelhança, mas que podem constituir uma tomada de partido estética assumida. Aqui se coloca outra questão que é aquela da passagem ä imagem animada, com restrições técnicas diferentes. É no domínio da ilustração das grandes obras literárias do século 19 que se percebe melhor os códigos inventados pelos desenhistas para tornar visível a atmosfera do romance de origem”. DUPRAT, Annie. Images et Histoire: outils et methodes d’analyse des documents iconographiques. Paris, Belin, 2007, p. 41-42. Tradução dos autores. A questão, como se pode perceber, é assaz complexa, contudo, escapa aos objetivos deste artigo estabelecer uma esfera de discussão deste tema que seria exaustiva.
19
ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., p. 153.
20
Idem, ibidem, p. 153.
21
CONTESSI, Gianni. Architetti-pittori e pittori-architetti: da Giotto all’età contemporanea. Roma, Dedalo, 1985, p. 111.
22
Idem, ibidem, p. 111. Tradução dos autores.
23
“Também a cidade deve ser o produto de uma decisão, a atuação de uma teoria. Muitos projetos de cidade encontram-se nos tratados de arquitetura, traçados segundo esquemas geométricos em tabuleiro xadrez ou radiocêntrico com a idéia de refletir na ordem urbana a perfeita razão política: a utopia da cidade ideal é o ponto de encontro do pensamento político e estético”. ARGAN, Giulio Carlo. Op. cit., p. 130.
24
Esta postulação depende, naturalmente, de que se aceite pensar que os limites no interior dos quais este conceito político e urbano seria pensado poderiam, eventualmente, ser ampliados.
sobre os autores
Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima é graduado em Arquitetura, especialista em Filosofia Contemporânea e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal do Espírito Santo. Doutor em Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo com Pós-Doutorado em Teoria e História da Arquitetura e Urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, atualmente é professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Estadual de Maringá.
Gabriela Moia Vivan é graduanda em Arquitetura e Urbanismo na Universidade Estadual de Maringá.