A ascensão do pensamento científico e racional partir de meados do século 18 levou a um processo inexorável de desencantamento e dessacralização do mundo. Este foi perdendo gradativamente sua riqueza simbólica, mítica e poética para ser transformado em uma coleção de objetos e seres a serem esquadrinhados pelo pensamento científico e racional. Em O sagrado e o profano, Mircea Eliade mostra o cisma criado entre a visão do homem moderno e a-religioso e a do homem religioso, aquele de sociedades arcaicas, em suas relações com o espaço, o tempo e a natureza (1).
Esse processo de desencantamento e desacralização não foi uniforme e unidirecional. Alan Colquhoun refere-se ao embate entre Civilization, ou seja, a dimensão racional, universal, intelectual, defendida pelas ciências e instituições modernas, e Kultur, a dimensão institiva, sentimental, autóctone, orgânica e enraizada no solo (2). Esta última dimensão foi absorvida por autores como John Ruskin e William Morris que, inspirados pela Idade Média, defendiam a revalorização do trabalho artesanal em todas as instâncias da vida moderna por um ponto de vista ético e moral. Também serviu de inspiração a movimentos nacionalistas em regiões como a Irlanda, Catalunha, Hungria e Finlândia, que eram dominadas por outras nações maiores.
Alberto Peréz-Goméz procura mostrar que, nesse processo de desencantamento e secularização, a arquitetura foi perdendo sua aura sacra, sobretudo com a convicção de que todo o seu significado provinha unicamente da função. Segundo ele, a teoria da arquitetura foi gradativamente dominada por elementos com seus próprios valores e significados, os quais transformaram a arquitetura em um jogo de regras operacionais dominadas pela tecnologia, desprovida de conteúdo simbólico (3).
Esse processo também levou à autonomização dos gêneros artísticos, com a progressiva dissolução dos grêmios artísticos e com a ideia de que a arquitetura prescindia dos ornamentos (4). A faceta simbólica da arquitetura foi perdendo sentido frente às necessidades funcionais e aos novos materiais e técnicas construtivas. Para Ortega y Gasset, o processo de autonomização dos gêneros artísticos acontece em paralelo ao de autonomização da arte em relação à sociedade (5).
Este artigo analisa as reações críticas do final do século 19 ao processo de autonomização da arquitetura, enquanto arte e gênero artístico, e à perda de seu caráter simbólico. O seu objeto de estudo é a obra do catalão Antoni Gaudí, mais especificamente o Parque Güell. Sua obra apoia-se fortemente na plástica, reintegra os gêneros artísticos em processo de autonomização na era moderna. Ela recorre à representações imagéticas oníricas e mitológicas para reafirmar determinados valores ligados à sua cultura regional.
A grande maioria dos trabalhos publicados sobre Gaudí trata das facetas de arquiteto vanguardista – introduzidas pela historiografia operativa do movimento moderno, como Pevsner e Benevolo – ou místico – introduzida por autores catalães ligados ao surrealismo, como Juan Eduardo Cirlot. Poucos são os autores, como Ignasi de Solá-Morales ou Juan Jose Lahuerta, que, nas décadas de 1980 e 1990, procuram estudar Gaudí dentro de uma conjuntura artística, econômica e política. Esse artigo procura analisar as relações externas à arquitetura e à própria arte que podem ser encontradas na construção do sentido da arquitetura de Antoni Gaudí, construção essa entendida mediante a perspectiva da compreensão das simbologias mitológicas catalanistas contidas nas mesmas.
Deseja-se compreender como Gaudí está indissociavelmente ligado ao mundo moderno – o que se pode ver por sua adoção de materiais e técnicas construtivas modernas como o ferro e o concreto armado (6) – ao mesmo tempo em que procura manter viva uma vivência mitológica sacralizada, ao resistir ao processo de racionalização e estandardização introduzido pela modernidade industrial.
Gaudí, afirmação catalã e ornamento
As origens do caráter nacional imaginário catalão foram identificadas no período medieval, um período supostamente áureo, quando a região tinha independência em relação à Espanha. Como em outras nações européias, não deixa de ser paradoxal que uma sociedade em pleno processo de industrialização eleja, de forma nostalgica, um período pré-industrial, com suas relações de trabalho e de produção de caráter cooperativista e dependente dos ofícios artesanais, como lembra Solá-Morales (7). Esse sentimento medievalista está sintonizado com a crítica de John Ruskin e William Morris sobre a produção industrial e com o descontentamento com as consequências sociais provocadas pela industrialização.
Paralelamente ao retorno medievalista, uma romantização da paisagem natural foi parte integrante da recuperação das raízes catalãs. O excursionismo, em consonância com os ideais românticos do século 19, propunha não só uma aproximação com a natureza, como também um redescobrimento da paisagem e da topografia montanhosa catalã, bem como dos remanescentes arquitetônicos góticos e românicos.
Gaudí graduou-se na Escola de Arquitetura de Barcelona em 1878. Essa escola seguia uma linha que guardava mais distância do modelo Beaux-Arts que a escola de Madrid. Viollet-Le-Duc, por exemplo, era muito lido e discutido na escola de Barcelona e Gaudí não foi exceção. Para Milà, a arquitetura modernista catalã não teria se desenvolvido sem a influência de Viollet-le-Duc (8).
Gaudí compartilhava a crítica aos efeitos negativos da industrialização feita por autores como Morris e Ruskin. O fato de ser oriundo de de uma família ligada às estruturas gremiais lhe facilitou o entendimento das artes menores como integrantes da arquitetura. Apenas recentemente as Cortes de Cádiz haviam dissolvido oficialmente os Grêmios na Espanha, mas suas estruturas e métodos continuavam bem presentes no imaginário de seus últimos membros. O sucesso dos edifícios de Gaudí e do modernismo catalão deveu-se em boa parte à habilidade de artesãos envolvidos em sua execução. Gaudí também manteve em sua juventude relações com movimentos sociais progressistas avançados, como a Associação Internacional de Trabalhadores, a Primeira Internacional, além de conhecer a obra de Charles Fourier.
Leonardo Benevolo e Nikolaus Pevsner foram os primeiros historiadores do século 20 a colocar Gaudí dentro da historiografia internacional da arquitetura moderna. Em seu Storia dell´Archittetura Moderna (9), Benevolo enfatizou a humanização do espaço, o caráter orgânico e as cores, além das semelhanças com o expressionismo alemão de Mendelssohn. Em The Sources of Modern Architecture (10), Pevsner inseriu Gaudí como parte de um movimento artístico mais amplo, o Art-Nouveau. A construção historiográfica de Pevsner, a de encontrar as origens remotas da arquitetura moderna no movimento Arts & Crafts, sugere que é fácil fazer uma correspondência entre Gaudí e este movimento, além de outros como os Pré-Rafaelitas e a idéia de obra de arte total. Charles Jencks em The Language of Post Modern Architecture (11) exaltou Gaudí pelo fato de seus elementos arquitetônicos catalanistas facilitarem a comunicação com o usuário local. Mais recentemente, tanto Kenneth Frampton quanto William Curtis inseriram Gaudí dentro das manifestações estilísticas do Art Nouveau, mas apontaram para sua relação com o imaginário formal de movimento catalanista e a influência que teve de autores centrais do século 19, Viollet-Le-Duc e Ruskin, respectivamente (12). A historiografia internacional ainda carece de um aprofundamento sobre a conjuntura artística, econômica e política na qual Gaudí trabalhou.
Cesar Martinell Brunet, biógrafo de Gaudí que teve a oportunidade de conduzir uma série de entrevistas com o arquiteto catalão já em idade avançada, afirmou que ele “concebia suas construções como obras de arte totalizantes, em que todos os elementos seguiam uma diretriz estética determinada (que incluía até a mobília, ornamentos, torneiras etc.)” (13).
Gaudí não tinha o hábito de escrever sobre arquitetura. Dizia que o próprio edifício já se expressava por si. Devido à sua intensa atuação em canteiro, foram poucos os seus desenhos que sobreviveram. Suas idéias ficaram registradas num conjunto de artigos redigidos quando jovem – conhecido como Manuscrito de Reus -, em sua correspondência e num conjunto de entrevistas e palestras sistematizadas por Martinell.
Um desses artigos, Ornamentación, foi escrito por um jovem Gaudí recém-diplomado arquiteto. Nesse texto, escrito originalmente em espanhol, uma vez que a gramática catalã ainda não havia sido normatizada, Gaudí trata da questão das facetas funcionais e significativas do ornamento. Além de funções construtivas, de proteção contra as intempéries e de contribuição para a utilidade do edifício, o ornamento, na definição de Gaudí, tem valor estético e semântico, pois é o detalhe ornamental que ajuda a representar o caráter do edifício: “O caráter, pode dizer-se, é o critério da ornamentação” (14).
É importante compreender os conceitos de Gaudí para os aspectos simbólico (caráter) e funcional (condições físicas) do ornamento: “O caráter é a definição das circunstâncias estético-morais, e as condições físicas são as que têm os materiais de durabilidade, conservação etc” (15). Segundo ele, o caráter depende da “nacionalidade, e dos usos e do esplendor do que o usa” (16).
Portanto, o ornamento, na concepção de Gaudí, tem um claro conteúdo semântico, alegórico e imagético. Para a sua perfeita fruição estética, ele tem de ser inteligível: “A ornamentação [...] há de representar objetos que nos recordem idéias poéticas, que constituam motivos” (17). Para esse jovem Gaudí, a autonomia da arquitetura como gênero artístico, não faz sentido. Ainda que seu texto seja claramente filiado à tradição crítica de Viollet-Le-Duc, os ecos das críticas éticas de Ruskin e Morris são facilmente perceptíveis. Além disso, entrevistas compiladas por Martinell mostram um arquiteto preocupado com uma produção arquitetônica com uma obra de arte total, na qual ornamento-escultura, espaço e estrutura são parte de um todo inseparável.
Gaudí concebe arquitetura, escultura e pintura como interdependentes: “a pintura por meio das cores e a escultura por meio da forma expressam os organismos existentes: figuras, árvores, frutos...” (18). Sobre a policromía, dizia – respaldando seu exemplo na natureza – que a decoração sempre foi colorida e que os elementos de todos os reinos naturais eram coloridos. Portanto, por que deveria a arquitetura prescindir da cor? Ele ainda respalda esse argumento em descobertas arqueológicas do final do século 18 e início do século 19, as quais apontavam a policromia dos templos gregos (19). Gaudí termina por refletir os sentimentos nacionalistas e regionalistas que caracterizam o ambiente catalanista do momento: “acontece com as culturas nacionais: ao cessarem as ingerências externas, elas se revelam tais como são” (20).
Gaudí não foi um gênio isolado, mas o fruto de um contexto artístico, cultural e de crítica fin-de-siècle e de um momento de afirmação nacionalista da Catalunha – semelhante ao que ocorria em outros países e regiões europeias. Sua obra foi apropriada por uma sociedade catalã preocupada com questões políticas nacionalistas, uma vez que utiliza elementos mitológicos catalães para criar uma identidade – seguindo um modelo que em muitos aspectos é wagneriano.
O caso do Parque Güell
Um dos projetos que melhor mostram a síntese proposta por Gaudí ao trabalhar os elementos acima descritos foi o Parque Güell, um loteamento residencial situado em uma encosta de 20 hectares então nos arredores deBarcelona. Nunca concluído, pois apenas três casas foram construídas, foi promovido pelo conde Eusebi Güell i Bacigalupi e projetado e executado entre 1900 e 1914 por Gaudí. Gaudí ficou responsável pela organização dos sessenta lotes e suas vias de acesso, assim como e pela concepção de uma série de equipamentos dispostos nas proximidades do acesso principal. Cabe lembrar que esse parque não foi o primeiro trabalho de Gaudí para Güell. Antes, já tinha feito o Palau Güell, residência urbana dos Güell em Barcelona, os portões das Fincas Güell e projetou uma igreja para uma colônia para os operários de uma das fábricas da família, dentre outras obras. Sem dúvida, Güell foi desde cedo um mecenas para um jovem Gaudí.
As partes comuns do Parque são compostas por seis elementos: muro de cercamento, dois pavilhões de entrada (um que abrigaria a guarda e outro os visitantes); escadaria de acesso; mercado coberto; praça-teatro por cima deste último e os viadutos. Apenas o último elemento não foi tratado com ornamentação cerâmica, e sim com um recobrimento de pedras de aspecto natural. O muro e os pavilhões, ainda que tenham o mesmo tipo de acabamento dos viadutos, são coroados por ornamentação cerâmica que combina trencadís – técnica muito utilizada por Gaudí e que consiste em partir peças cerâmicas para posteriormente reintegrá-las livremente como um quebra cabeça – e elementos alusivos, como os medalhões com o nome Park Güell no muro. Já os outros elementos – escadaria, mercado e praça-teatro – são completamente ornamentados com cerâmica, sempre combinando esses dois tipos de tratamento: a abstração formal dos trencadís e os elementos alegóricos. Na praça-teatro está o banco sinuoso recoberto com trencadís, tão representativo do Parque.
O Parque Güell encontra-se no contexto de retomada de valores medievais e de busca por uma relação harmônica com a natureza. A Exposição de Barcelona de 1888 teve uma importância fundamental na conformação de uma arte Modernista Catalã de inspiração romântica e nacionalista. Assim, o parque deveria também ser algo similar a uma exposição permanente da Catalunha, combinando a devoção à antiga terra catalã com os jardins românticos da época. O objetivo era prover de significação catalanista os elementos topológicos da paisagem.
O parque foi favorecido pelo envolvimento da burguesia industrial e comercial catalã com os aspectos culturais locais. Como a elite emergente local – em parte egressa das colônias perdidas para os Estados Unidos – não contava com uma linhagem ilustre, soube criar rapidamente laços com a monarquia, a nobreza e a hierarquia eclesiástica (21). Importantes mecenas, como Eusebio Güell, organizavam campanhas no sentido de valorizar as tradições locais, o que evidentemente se refletiu no Parque Güell (22). Escolhido como espaço de afirmação simbólica do ressurgimento da cultura catalã, graças às aspirações do cliente, Gaudí pôde levar a bom termo uma obra de grande profundidade simbólica. Assim como Jacint Verdaguer se inspirava em antigas canções populares, cortesãs e eclesiásticas para encontrar uma nova poesia catalã, Gaudí buscava uma nova aproximação com o antigo artesanato e a fé católica mediterrânea – notadamente catalães – para encontrar uma forma de expressão arquitetônica genuinamente regional. Tal afirmação de catalanicidade parte de quatro pilares norteados pelo movimento da Renaixença català: figura a paisagem geográfica como elemento de possível apropriação cultural, a história catalã como elemento de afirmação de mediterraniedade; e, por fim, as associações cavalheirescas derivadas do Parsifal Wagneriano e a integração das artes.
A paisagem catalã
As propriedades de Can Muntaner de Dalt e de Can Coli i Pujol, compradas por Güell com o intuito de construir um loteamento de alto padrão, eram fazendas situadas no limite com o antigo município autônomo de Grácia, na Muntanya Pelada, parte da Serra da Colserola (23). Partindo de uma cota de 150 m acima do nível do mar até uma de 210 m a barreira era muito mais pronunciada que qualquer outra que rodeava a cidade. As parcelas correspondentes aos sessenta chalés da promoção imobiliária deveriam adaptar-se aos contornos do recinto e às mudanças de altitude, o que permitiu exploração simbólica dos caminhos. Os residentes teriam uma capela privada, um mercado, teatro e praça pública, e uma reserva de água potável. O acesso ao complexo seria exclusivo e controlado. O parque se debruça como a plateia de um anfiteatro grego – não por acaso, lembrando que Barcelona nasce como colônia grega e todas as associações que ela pode trazer como antiga cidade-capital da catalunha medieval.
Fez-se necessária uma grande movimentação de terra para criar os terraços adequados à construção de residências, com os subsequentes muros de arrimo necessários para tal operação de terraplanagem. De fato, esses muros de arrimo – e as passarelas associadas a eles – são elementos compositivos tratados com todo cuidado por Gaudí. São os únicos elementos arquitetônicos do parque cujo recobrimento remete exclusivamente a formas minerais naturais. Mitigar a sensação de intervenção ostensiva no terreno foi uma atitude de respeito à natureza da terra catalã. Ao contrário do que se pode apreender em uma primeira visada sobre o terreno, essas intervenções não foram poucas. Além de possibilitarem o parcelamento e o acesso a todos os lotes, essas movimentações de terra permitiram um melhor escoamento da água, necessário no parque para permitir o crescimento de vegetação no terreno originalmente bastante agreste.
Essas formas aparentemente naturais não são gratuitas, pois respondem a dois imperativos: o primeiro tectônico, uma vez que as formas das pilastras dos viadutos respondem rigorosamente a curvas de esforço estrutural; o segundo simbólico, uma vez que o recobrimento em pedra, que esconde a verdadeira estrutura, aqui cobra valor não apenas decorativo, senão que alegórico, representando a materialidade da terra catalã. A paisagem montanhosa do parque torna-se a reprodução de uma terra sagrada, da mesma forma que outros tipos de sacralidade associados à montanhas descritos por Mircea Eliade, em O Sagrado e o Profano.
O sentimento de respeito por essa terra se reflete no tratamento às feridas imprescindíveis provocadas pela construção dos viadutos de circulação. Segundo Lahuerta (24), onde se fez imprescindível remover a terra, o vazio deixado é ocupado por uma galeria. Assim Gaudí elimina os muros de contenção e os preenchimentos artificiais. Os próprios materiais usados na construção desses viadutos remetem à materialidade ontológica dessa terra-pátria. Graças a isso, eles assumem formas que, ainda que calculadas com precisão e rigor geométrico dignos das mais recentes conquistas da engenharia, fazem com que os espectadores/usuários dessa arquitetura a associem imediatamente a formações geológicas naturais.
Em junho de 1884, Güell e Jacint Verdaguer realizaram uma viagem à Suíça, atraídos pela organização política daquele país, com seus cantões autônomos, com línguas e legislações próprias (25). Eles estabeleceram uma correspondência entre a paisagem montanhosa da Suíça e a da Catalunha. Lahuerta lembra também que, nessa época, associações excursionistas, comuns na Suíça, ocorriam também na Catalunha, envolvendo as classes média e alta locais em jornadas a pé até Montserrat, onde se localiza um templo que abriga a Virgem de Montserrat, que durante o século 19 foi convertida em destino de peregrinação religiosa. Mais do que atividades esportivas ou oportunidades de contato com a natureza – muito próprias do romantismo da época –, essas excursões eram verdadeiras jornadas de redescobrimento da Catalunha, sua cultura e geografia (26).
Os caminhos que comunicam as áreas comuns e os lotes do parque foram explorados por Gaudí para serem associados aos caminhos de peregrinação da montanha de Montserrat. De fato, a montanha como elemento simbólico do nacionalismo catalão foi uma constante, com destaque para Montserrat, que, tendo em vista sua proximidade de Barcelona, foi rapidamente associada ao catalanismo. Gaudí trabalhou em uma das paradas do caminho processional e colaborou com a reforma da ermida que abriga a Virgem de Montserrat.
A paisagem e a história geológica são partes integrantes dos significados usados no parque para evidenciar a sacralidade da pátria catalã. A pendente montanhosa, as descobertas paleontológicas, o tratamento dado às estruturas dos viadutos no parque e a cisterna concebida como gruta evidenciam essa intenção. A romantização de elementos naturais – inclusive com a constante criação de simulacros – não foi incomum no paisagismo do século 19. O elemento peculiar do parque Güell é que esses elementos que remetem à natureza servem para, em última análise, remeter à pátria catalã via paisagem natural.
A mediterraniedade: Grécia, Roma e o Caminho dos Mártires
Para além da afirmação da catalanicidade através da paisagem e da história geológica, outra estratégia utilizada por Gaudí foi a de recorrer às identidades históricas do povo catalão representadas pela herança greco-romana da cidade e pela identidade católica, no parque evidenciadas pelo caminho dos mártires cristãos.
As descobertas arqueológicas permitiram aprofundar o conhecimento sobre a Barcelona grega e romana, pois praticamente inexistiam traços visíveis da presença de tais civilizações na cidade. A descoberta de ruínas romanas enterradas sob edifícios reacendeu a herança greco-romana no imaginário catalão.
O elemento de transição entre esses dois discursos – o da paisagem natural e o da herança mediterrânea – é a escadaria principal e seu jardim que remete a uma gruta. De fato, é esse jardim a saída de água da cisterna em forma de gruta que está logo abaixo do mercado coberto. Em meio a essa representação de uma topologia arquetípica, a colunata dórica estilizada do mercado, bem como a praça teatro que a cobre são o contraponto que simboliza a mediterraneidade de origem greco-romana na cultura catalã.
O fato histórico de que o caminho usado pelos mártires católicos que fugiam da perseguição religiosa na Barcelona romana do século 4 (Barcino) para a atual Sant Cougat Del Vallés (Castrum Octaviano), do outro lado da Serra da Colserola, passava pelo parque foi providencial para reforçar esse caráter original e simbólico da terra, conferindo um caráter de autenticidade à sua ancestralidade e um sentido de pátria sagrada. Como o caminho exato era e continua desconhecido, não havia como plasmá-lo no parque, mas, ainda assim, era constantemente aludido no discurso nacionalista.
Por fim, abaixo do teatro e da colunata-mercado existe uma grande cisterna, construída como gruta, que recebe água da chuva através do encanamento que passa pelo interior das colunas e a verte pela boca do dragão situado na escadaria de acesso. Para Lahuerta (27), a carga simbólica de verter essa água do interior da “Terra Catalã” não pode ser ignorada. É uma última declaração da representação simbólica da Pátria Catalã, realizada pelo Parque.
Parsifal
Um dos principais temas do debate arquitetônico do fin-de-siécle foi a crescente autonomização da arquitetura em relação às outras artes, particularmente a pintura, a esculturas e as chamadas artes menores e ao trabalho artesanal. Desde Ruskin que criticou o contínuo alijamento dos artesãos da construção do edifício, esse tema foi continuamente retomado pelos movimentos de cunho nacional e romântico em países ou regiões que retomavam símbolos de um passado mitológico nacional em sua arquitetura (28).
Os mitos representados nas óperas de Richard Wagner procuram recuperar a identidade germânica, por meio do mito e da sacralidade. Seu conceito de obra de arte total não tratava apenas de reunir gêneros artísticos – música, literatura, cenografia, etc., mas de atingir uma nova síntese, gerando o conceito de Obra de Arte Total (Gesamtkunstwerk). Wagner teve muitos admiradores entre a elite catalã, que estava familiarizada com suas obras. Pode-se afirmar que a tarefa de Gaudí e Güell estava associada ao ideal de Obra de Arte Total wagneriana.
A própria fronteira artística foi ampliada no momento em que festas e concertos de temática catalanista passaram a ter lugar no parque, visando promovê-lo como o locus das tradições catalãs e ao projeto político de Güell. É justamente o espaço de inspiração grega, o teatro a céu aberto, que se torna um centro imaginário do universo catalão que o parque procura representar. Esse espaço sediou esforços de reconstrução do teatro lírico catalão, que muito se inspirou no ideário de Wagner.
O libreto da ópera Parsifal localiza a ação da história nos montes do norte da Espanha, concretamente em uma montanha imaginária chamada Montsalvat, que foi rapidamente associada à montanha de Montserrat, a mesma montanha cujos caminhos de peregrinação haviam sido plasmados no parque, como foi visto anteriormente. O próprio Parque assume, assim, uma vez mais, o papel de metáfora para a terra catalã, dessa vez não com alusões às passagens geológicas, mas pela via da alusão feita às “montanhas góticas do norte da Espanha” da ópera Parsifal. Para Conrad Kent e Dennes Prindle (29), os caminhos que conduziam até o calvário, no topo do parque, tinham grande semelhança com a avenida de peregrinação principal do Santuário de Montserrat. Essas alusões ao castelo do Graal já estariam presentes no Palau Güell, construído nos anos 80 do século 19 (30).
Também o Leitmotif Wagneriano, o motivo musical que se repete para representar personagens, objetos e sentimentos ao longo de uma peça, está presente no Parque. O dragão, presente em outras obras de Gaudí para representar a catalanidade é um exemplo. Outros exemplos seriam os elementos sinuosos no coroamento do muro, ou o próprio banco cerâmico sinuoso, que igualmente remetem a um dragão – ou o escudo com a bandeira catalã que está ao redor da cabeça do lagarto, ou o roedor, que recebe aquele que subirá pela escadaria principal.
As alusões a Parsifal são, portanto, um caminho para aludir também a Montserrat – indiretamente à catalanicidade. Se o wagnerianismo estava presente na sociedade catalã é que ela possuía as chaves necessárias para decifrar esse fato. Esse wagnerianismo, que lança mão da obra de arte total – a que unifica todos os gêneros artísticos -, é trazido para a arquitetura do Parque. Se na ópera a unificação passa pelo cenário, música e drama, na arquitetura do Parque ela vem do espaço, da plástica e da teatralidade.
A integração das artes no Parque
O último ponto que merece ser destacado no parque é a integração com as artes ditas menores e como essa integração serviu às intenções de alusão catalanista – por parte de Güell – e de crítica ao quadro arquitetônico moderno – por parte de Gaudí. Os elementos de integração artística do parque têm como objetivo final a reintegração da arte com a realidade. Essa integração pode ser vista, no caso do Parque, nas cerâmicas partidas compostas como mosaicos, os trencadís, em colaboração com Jujol, e nos portões em ferro fundido.
O trencadí não deixa de ser uma forma ambígua de crítica a essa realidade industrial, que remete às ideias de Ruskin e do Arts and Crafts, ao elemento industrial pré-fabricado. Tratava-se de perverter a lógica da peça cerâmica industrializada padrão, que é partida de forma a poder ser recomposta como um mosaico, artesanalmente. Merece atenção a forma como os trencadís muitas vezes se organizam em placas, que logo são quebradas, evidenciando essa ambiguidade industrial x artesanal presente na obra de Gaudí. A forma como os trencadís são tratados no banco da praça-teatro, de maneira que as cores dos padrões industriais da cerâmica são recompostas para formar novos padrões, é outro exemplo dessa prática. Uma prática que se torna uma forma de harmonizar as críticas vivas ao processo de industrialização de Ruskin e Morris com uma realidade na indústria da construção, que já não encontra ponto de retorno. Foi uma forma de revalorizar o artesão frente à manufatura em série das peças cerâmicas.
Os medalhões de Jujol no teto do mercado coberto, localizados nos encontros das abóbadas que não estão suportados por colunas, são na verdade elementos que contribuem com a sacralidade do espaço, rompendo com a sua homogeneidade. Segundo Eliade, isso gera espaços diferenciados que dão hierarquia ao espaço.
Por fim, merece destaque o trabalho nos portões de acesso – em ferro forjado – também uma parte importante nesse processo de integração das artes maiores e menores no Parque. Na verdade esse cuidadoso trabalho com o ferro foi uma constante no trabalho de Gaudí, como mostram os portões do Palau Güell ou das Fincas Güell, obras do mesmo cliente, ou os balcões das casas Battlo e Milà. De fato, tomar partido do trabalho tradicional com o ferro forjado é também uma alusão às tradições catalãs pré-industriais e artesanais. A própria origem familiar de Gaudí remonta a uma família de ferreiros tradicionais de Reus, e a arte da ferreria foi bastante difundida na Catalunha pré-moderna.
O espaço do Parque Güell está cheio dos elementos apontados por Eliade (31) e Pedro Azara (32) como sendo os de um espaço sagrado. Os limites são definidos por um muro trabalhado com intenções artísticas e por dois acessos – uma cavalariça e uma portaria – que demarcam intencionalmente a fronteira entre o dentro e o fora, um elemento necessário para construção do sentido arquitetônico, como aponta Joseph Rykwert (33). Um centro, definido pela Sala Hipostila e sua praça-teatro, um local que é um catalisador de significados catalanistas que remetem a elementos que vão do domínio grego ao teatro popular. Os espaços processionais, os caminhos e viadutos, que tal qual os caminhos de peregrinação de Montserrat ou as trilhas do Cavaleiro Parsifal, fazem com que o deambulador reflita, medite sobre a experiência do sagrado. Sagrado aqui pouco tem a ver com um sagrado religioso, mas com a sacralidade atribuída pelo nacionalismo catalão à terra da pátria.
Mais do que um assentamento higienizado tipo cidade-jardim, o Parque Güell mostra uma vontade artístico-expressiva compatível com a vontade do “fundador”, descrita por Rykwert e Azara. Uma representação hermenêutica complexa que, ao mesmo tempo que recorre a signos estabelecidos do catalanismo, instaura novas significações. Os elementos monumentais e topológicos configuram um universo fechado, com centro, limites e eixos processionais, como os descritos por Eliade e Rykwert.
Os elementos simbólicos do parque possuem uma densidade e profundidade significativas que propiciam uma interpretação aberta, que se desenvolve em diferentes camadas e permite um rico deslizar de símbolos em relação aos seus significados. O parque dirige-se a um espectador, o catalão burguês do final do século 19, que está filiado a um nacionalismo conservador e ao wagnerianismo.
Há uma clara influência das artes ditas menores, como defendiam os teóricos da arquitetura Fin-de-Sieclè e Richard Wagner na Obra de Arte Total. Esses elementos Naïf – como o dragão, os caminhos dos mártires cristãos, o teatro greco-romano, a gruta, a montanha sagrada – são tomados de um imaginário mitológico romântico catalão, o que mostra a importância da sacralidade ancestral, preconizada por Eliade, e da reminiscência mitológica, apontada por Rykwert, bem como a retomada dos mitos de afirmação de um povo, defendida por Wagner. Esses elementos, por exemplo, o dragão presente na finca Güell, na casa Batlló ou no parque, que representa a catalanidade, é um exemplo da passagem do Leitmotif musical wagneriano a um produto plástico.
notas
1
ELIADE, Mircea [1957]. O Sagrado e o Profano: A Essência das Religiões. São Paulo, Martins Fontes, 2010.
2
COLQUHOUN, Alan. The concept of regionalism. In CANIZARO, Vincent. Architectural Regionalism: Collected Writings on Place, Identity and Tradition. New York, Princeton Architectural Press, 2008, p. 147-155.
3
PÉREZ-GOMÉZ, Alberto [1083]. Architecture and the Crisis of Moderns Science. Boston, MIT Press, 1996, p. 8-14.
4
DURAND, Gilbert. La Imaginación Simbólica. Buenos Aires, Amorrurtu, 2007, p. 28-29.
5
ORTEGA Y GASSET, José [1925]. La Deshumanización del Arte. Madrid, Castilla, 2009; HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich [1842]. A Arquitetura. São Paulo, EdUsp, 2008.
6
MORENO-NAVARRO, José Luis, BALAGUÉ, Albert. Gaudí y la razón construtiva: um legado inagotable. Madrid, Akal, 2002.
7
SOLÁ-MORALES, Ignasi. Eclecticismo y Vanguardia: El Caso de la Arquitectura Moderna en Catalunya. Barcelona, Gustavo Gili, 1980, p. 28.
8
MILÁ, Ernesto. El Misterio Gaudí. Barcelona, Martinez Roca, 1994, p. 39.
9
BENEVOLO, Leonardo. Historia de la Arquitectura Moderna. Madrid, Taurus, 1963.
10
PEVSNER, Nikolaus [1960]. Las Orígenes de la Arquitectura Moderna y del Diseño. Barcelona, Gustavo Gili, 1976.
11
JENCKS, Charles. The Language of Post Modern Architecture. New York, Rizzoli, 1977.
12
FRAMPTON. Kenneth. Modern Architecture: A Critical History. London, Thames & Hudson, 1980, p. 64-66; CURTIS, William. Modern Architecture since 1900. 3rd edition. London, Phaidon, 1996, p. 59-63.
13
MARTINELL, Cesar. Conversas com Gaudí. São Paulo, Perspectiva, 2007, p. 39
14
GAUDÍ, Antoni [1878]. Escritos y Documentos. Barcelona, El Acantilado, 2002, p. 43.
15
Idem, ibidem, p. 50.
16
Idem, ibidem, p. 43.
17
Idem, ibidem, p. 42.
18
GAUDÍ, Antoni. Apud GUERRERO, Angel Conde. Analisis de la Decoracion Ceramica del Parque Güell. Barcelona, Faculdad de Bellas Artes, 1986, p. 83.
19
Idem, ibidem, p. 54.
20
Idem, ibidem, p.148.
21
O próprio Eusebi Güell era membro de uma dessas famílias burguesas emergentes e se casou com a filha do marquês de Comillas. Graças aos seus favores à família real foi agraciado com o título de Conde.
22
LAHUERTA, José. Antoni Gaudí, 1852-1926: Architettura, Ideologia e Politica. Milano, Electa, 1992, p. 124.
23
LAHUERTA, José. Op. cit.; SOLÁ-MORALES, Ignasi. Op. cit.
24
LAHUERTA, José. Op. cit., p. 128.
25
LAHUERTA, José. Op. cit., p. 118-122.
26
LAHUERTA, José. Op. cit., p. 126.
27
LAHUERTA, José. Op. cit., p. 163.
28
CURTIS, William. Op. cit., p. 131-146.
29
KENT, Conrad; PRINDLE, Dennes. Hacia La Arquitectura de um Paraíso: Park Güell. Madrid, Hermann Blume, 1992, p. 105.
30
O Palau Güell, residência urbana tida como possível reprodução do castelo do Graal é a própria manifestação desses valores Wagnerianos, com seus vitrais com alusões literárias, sua sala de música central, e seus objetos decorativos alusivos à catalanicidade e à arte. De certa forma, os saraus celebrados nessa casa adiantam em escala o que serão as atividades artísticas levadas a cabo no Parque Güell nos anos de sua promoção.
31
ELIADE, Mircea. Op. cit.
32
AZARA, Pedro. Castillos en el Aire: Mito y Arquitectura en Occidente. Barcelona, Gustavo Gili, 2005.
33
RYKWERT, Joseph. A Casa de Adão no Paraíso. São Paulo, Perspectiva, 2006.
sobre os autores
Diogo Cardoso Barretto é arquiteto e urbanista (UFPE, 2009), doutor em Teoria e História da Arquitetura pela Etsab-UPC, 2017, mestre em Teoria e História da Arquitetura(ETSAB UPC, 2012) e mestre em Desenvolvimento Urbano (UFPE, 2012).
Fernando Diniz Moreira é arquiteto e urbanista, Phd em Arquitetura pela University of Pennsylvania, professor associado do Departamento de Arquitetura e do Programa de Pós-graduação em em Desenvolvimento Urbano da Universidade Federal de Pernambuco.