Constatamos desde as últimas décadas do século 20, a consolidação de uma nova concepção de cidade e de planejamento urbano que se impõe em vários lugares do mundo. As operações contemporâneas de produção dos espaços públicos, em especial, parecem seguir um processo de estandardização que, muitas vezes, dificulta diferenciarmos um novo espaço público de outro. Tem-se a impressão de estar diante das mesmas soluções projetuais: reconversão de vazios industriais em espaços culturais, transformações das margens de antigos portos em lugares conviviais, revalorização de antigos centros e a utilização de soluções arquitetônicas e tecnológicas semelhantes, são alguns dos “cenários impostos” de reestruturação urbana.
No Brasil dos anos 1990, os avanços no sentido de uma reforma urbana empreendidos por vários setores da sociedade, apresentavam grandes descontinuidades. A não aplicação do Estatuto da Cidade e dos instrumentos dos planos diretores, muitas vezes alterados ao sabor dos interesses de grupos políticos e privados locais, acentuaram as dificuldades no debate e atuação política rumo à novas formas de governabilidade que restituam a função social da cidade e ampliem o direito à cidade (1).
Nesse sentido, evidencia-se um processo denominado de “urbanizalização” (2), que se estende aos processos de produção inscritos no contexto já amplamente documentado do neoliberalismo das políticas urbanas. Estas formas de estandardização dos espaços e dos processos de produção urbana se acompanham de novas categorias urbanísticas a exemplo de “cidades inteligentes”, “cidades sustentáveis”, “cidades criativas” conforme destaca a revista Les Annales de la recherche urbaine n. 113 de 2017 quando lança uma chamada de artigos para uma edição especial, La ville standardisée, e convida profissionais e acadêmicos à reflexão sobre estes processos de fabricação das cidades contemporâneas.
Evidencia-se, neste sentido, a busca pela inserção das cidades brasileiras no que se convencionou chamar de mercantilização dos espaços urbanos ou mercado mundial de cidades. O fundamento desta lógica de produção dos espaços é o investimento em atividades ligadas ao terciário avançado, a financeirização dos processos e produtos vinculados aos espaços urbanos, assim como o reforço de elementos que ativem em cada cidade sua vocação, uma marca (branding), um diferencial em reação às demais cidades, para que possa ser usado como um elemento de marketing e competividade. A cidade é, assim, qualificada como mercadoria a partir dos insumos que detém e que são valorizados pelo capital internacional.
Dentro desse processo, gestores e empreendedores, enquanto agentes produtores dos espaços urbanos têm construído e difundido tais brandings em torno das cidades, remetendo às suas belezas, à cultura, ao lazer, aos esportes, aos grandes eventos internacionais esportivos, culturais e ecológicos. Assim também são promovidas determinadas áreas/bairros/trechos urbanos das cidades por estes mesmos potenciais, atratores de investimentos e de moradores e usuários específicos.
Urge, assim, discutir com pesquisadores do Brasil e de outros países, as características centrais desse processo de produção mercantil das cidades, antes que a maré de uma naturalização implacável impeça ou nuble a compreensão dos processos em curso. Convém analisar a diversidade de aspectos e questões que permitem entrever linhas de tensão, forças, contradições que configurem uma totalidade de conflitos e indiquem a cidade como solo das desigualdades, lugar da vida cotidiana, palco de intervenções urbanas e de operações que aproximam e fundem a materialidade urbana com as artimanhas do capital financeiro e sua hegemonia, algumas vezes encobertas pelo véu das virtudes do embelezamento urbano e até mesmo de uma suposta democratização de seus usos e espaços.
Constatamos ainda que as iniciativas de renovação urbana contemporâneas constroem um discurso de “resgate da história”, de uma “memória da cidade”, de um patrimônio supostamente consensual a todos os cidadãos, pautando-se assim por elementos de ordem simbólica e não apenas material. Induz-se a um movimento de negócios apoiados em um discurso de que vamos cuidar do meio ambiente, dos transportes, da questão social [...], porém os resultados estão evidentes em nossas cidades: a socialização dos custos e a privatização dos benefícios gerando cidades ainda mais desiguais e injustas (3). Igualmente, a legitimidade das propostas e planos urbanísticos se sustenta por meio do saber técnico produzido por especialistas, vinculados às mais diferentes áreas do conhecimento, cuja missão é dar forma mercadológica aos projetos políticos das coalizões com interesses localizados (4).
Neste artigo procuramos sintetizar parte de nossas reflexões sobre o caso no Bairro do Recife e, em especial, do Projeto Porto Novo Recife, procurando por meio deste debater que sociedade urbana estaríamos construindo para o futuro? A análise deste projeto e do processo de sua implantação coloca em pauta os impasses e significados da diversidade de inserções na área central das cidades brasileiras e suas especificidades nas dimensões locais e mundializadas.
Presenciamos no contexto brasileiro, além disto, a constituição de período paradoxal em relação à política urbana no Brasil, regida por dois instrumentos de planejamento urbano distinto: o Plano Diretor e o Plano Estratégico. O primeiro constituído em suas bases durante o período de (re)democratização do Brasil, com possibilidades de implantação de uma agenda reformista e democrática que culminou na aprovação da Constituição Federal de 1988. O Plano Diretor foi alçado como instrumento principal da política de desenvolvimento e expansão urbana dos municípios enquanto o Plano Estratégico (5) surgiu no mesmo período, mas seguindo tendências mundiais quanto ao modo de gerir as cidades.
O peso desse Planejamento Estratégico orientou a busca por determinadas soluções para os problemas urbanos atuais, priorizando, a parceria público/privada e a utilização do marketing urbano. O combate à visibilidade da pobreza e o controle da violência urbana por meio da construção de muros e barreiras foram outros elementos essenciais. Nessa conjuntura houve uma preparação da cidade para o mercado e para favorecimento dos lucros dos grandes empresários.
É neste contexto que nossas reflexões se inserem, como parte dos resultados de pesquisa para elaboração de uma dissertação de mestrado que analisa as transformações nos modos de produção da cidade do Recife-PE – uma metrópole do Nordeste do Brasil. Trata-se do Projeto Porto Novo Recife-PE, situado no waterfront da ilha do Bairro do Recife.
A nossa abordagem está centrada em um referencial teórico-metodológico que encara a cidade, simultaneamente, como produto e condicionante da sociedade (6). Inicialmente abordaremos a condição não apenas do Recife enquanto cidade mercadoria, mas de outras cidades do mundo inseridas numa lógica homogeneizante que conduz a discussão sobre um modelo de intervenção urbana discutindo as estratégias de planejamento que dão suporte e justificam esta forma de produção do espaço.
A cidade contemporânea, planejamento estratégico, produção do espaço e gestão público-privada
A necessidade por uma postura mais descentralizada da atuação estatal frente à gestão das cidades deve-se, em grande parte, à recessão econômica vivida pelos países centrais, como Inglaterra e Estados Unidos, durante a década de 1970 e 1980. O que posteriormente, no caso brasileiro (7), viria a influenciar a implementação das primeiras reformas gerenciais, como por exemplo, através da elaboração dos Planos Diretores a partir de 1995.
Neste caminho surgem as experiências dos programas de “renovação urbana’’, empreendidos no final do século 20 e influenciados, principalmente, pela crise do financiamento público, que posteriormente resultou na estreita vinculação junto a iniciativa privada. A partir do governo de Margaret Thatcher, no final dos anos 70, e com a experiência das Docklands na revitalização do centro de Londres, se estrutura o caso mais representativo de um “modelo de urbanismo neoliberal’’, sem intervencionismo estatal, que delegava o próprio capital para gestão de espaços e de políticas públicas.
A experiência nas Docklands de Londres mostrou que o planejamento conduzido pelo mercado pode ser ao mesmo tempo um sucesso comercial e um fracasso social e urbanístico (8). Fundada na estratégia de atrair investimentos privados com base em operações imobiliárias altamente rentáveis, acabaram por gerar uma valorização excessiva que culminou na criação de verdadeiros enclaves territoriais para ricos, sobretudo nos luxuosos bairros residenciais as margens do rio Tâmisa e na extensão do domínio dos banqueiros no centro financeiro de Londres.
A partir desse novo modo de produção, que progressivamente especializa e prioriza usos ligados aos serviços avançados e, sobretudo, às atividades turísticas e de entretenimento, identificamos essa lógica de urbanização em certos territórios da cidade que acaba desconsiderando aspectos que distinguem cada lugar. Nesse sentido, mais do que pensar em um modelo de urbanização, percebemos um ‘’nivelamento das diferenças’’ (9) econômicas, sociais e culturais pela promoção de uma imagem de cidade que se banaliza através do consumo, uma urbanalização. Seriam modos de pensar, planejar e habitar a cidade que, por meio da incorporação de alguns requisitos, acabam simplificando o ambiente construído e estrategicamente distinguindo esses espaços e lhes conferindo nova centralidade. Destacam-se certos aspectos recorrentes que identificamos no caso do Projeto de Porto Novo Recife, como por exemplo: a imagem tratada como o primeiro fator de produção da cidade; a necessidade de garantir condições suficientes de segurança e vigilância urbana; a utilização de alguns elementos morfológicos da cidade como espaços públicos em termos de praça de ócio e o consumo do espaço urbano realizado a um tempo parcial, ou seja, priorizando o comportamento dos visitantes em relação aos dos que cotidianamente habitam o lugar.
Espetáculo, competitividade e branding urbano
Dentro da lógica de promoção desta ‘’cidade mercadoria’’, atrair o capital privado e novos financiamentos, implica desencadear uma competitividade entre as administrações públicas que passaram a reinventar a imagem das cidades como símbolos de consumo e de desenvolvimento e inovação tecnológica e comunicacional. De um modo geral, as administrações utilizam programas de reconversão urbana apoiados em festividades e grandes eventos criando verdadeiros espaços temáticos e usos especializados.
Essa mobilização para o espetáculo (10) é um dos traços mais marcantes do urbanismo contemporâneo. Nesse sentido, a competitividade aparece como resultado de uma concepção de espaço urbano como mercadoria, assim essa cidade passa a envolver estratégias especiais de promoção, sendo produzidas representações que obedecem a uma determinada visão de mundo, com o intuito de estabelecer uma “imagem-síntese’’ da cidade (11).
Esse processo vem se desenvolvendo e sendo promovido em diversas cidades. A cidade de Barcelona seria o modelo ideal, uma top model que se ‘’maquia’’ e se produz para desfilar nas passarelas mundiais, encobrindo sob seu véu as mazelas e contradições que permanecem e por vezes se ampliam no cotidiano da população e da vida urbana, sobretudo nas áreas requalificadas para o lazer e turismo (12).
De fato, a capital catalã é referenciada como o modelo representativo de planejamento estratégico para promoção da imagem de uma cidade atrativa, em uma perspectiva exitosa acerca da sua revitalização. Entretanto, questiona-se este êxito ao revelar uma outra percepção da cidade, da “fraude e miséria do modelo Barcelona” (13), a partir da construção de uma sofisticada propaganda publicitária que encobre os conflitos e as contradições referentes a existência de uma suposta identidade comum que teria recriado a imagem da cidade. Escamoteiam-se os conflitos locais que ressurgem aqui e acolá a partir das resistências e pressões dos moradores expulsos ou incomodados com a valorização excessiva do preço do solo nos bairros mais centrais como Ciutat Vella e Raval e com os incômodos provenientes do fluxo intenso de turistas.
No contexto brasileiro, destacamos o recente caso do Projeto Porto Maravilha, na cidade do Rio de Janeiro, idealizado seguindo os padrões de intervenções urbanísticas realizadas previamente no caso de Barcelona e também inspirado na experiência de Puerto Madero (Buenos Aires). Estas intervenções se alinham aos processos de intervenção do Rio de Janeiro por seguirem algumas estratégias comuns: 1) requalificação dos espaços públicos (no sentido de ‘’reinventar’’ a imagem da cidade); 2) ‘’valorização das tradições locais’’ (14) e cultura popular (patrimônio imaterial); 3) instalação de equipamentos culturais e de entretenimento: museus, aquários, centros culturais; 4) e a promoção de grandes eventos como impulsionadores do projeto (conferências, festivais, mostras culturais e grandes eventos esportivos).
O Bairro do Recife e a nova configuração territorial
A área que hoje corresponde a ilha do Bairro do Recife possui cerca de 100 hectares de extensão, delimitada pelo oceano atlântico a oeste e pelo encontro dos rios Beberibe e Capibaribe a leste. A ilha que inicialmente servia de porto e de ligação com a primeira capital do estado, Olinda, mantém o contato físico ao norte por meio de um istmo, na parte conhecida como Praia Del Chifre. O Bairro do Recife remonta à 1537, reconfigurado e revalorizado após a invasão holandesa durante o século 17, e que após sucessivos aterramentos, assumiu a conformação atual. Possui atualmente densidade demográfica de aproximadamente 2,3 hab./km², com predominância de população pobre residindo em ZEIS (Zona especial de interesse social) e outras áreas, a exemplo da Comunidade do Pilar (15).
Na segunda metade do século 20, o Bairro do Recife perdeu atratividade e entrou numa profunda degradação urbana. “Criou-se um paradoxo, já que, o bairro por volta da década de 1980, tornava-se uma ‘‘periferia na centralidade” (16). Neste momento percebeu-se que “a perda do seu valor cultural fora acompanhada da perda do valor social” (17).
“Nesse período o ambiente construído encontrava-se à mercê do mercado imobiliário”, preservava-se apenas a visibilidade dos monumentos excepcionais e, no máximo, limitavam-se os gabaritos para que os antigos imóveis não fossem “encobertos e humilhados” (18). A partir de 1985, na gestão municipal de Jarbas Vasconcellos (1985-1988), teve início um processo de planejamento para a área tendo como estratégia dois eixos principais: a reabilitação do Bairro do Recife e as medidas paliativas para o centro ligadas a conter os camelôs e ordenar os fluxos (19).
É nesse momento que surge o Plano de Revitalização do Bairro do Recife, que tinha como objetivos centrais: transformar a área em um centro de serviços modernos, conservar o patrimônio, tornar o bairro um espaço de diversão e lazer e promover a atração turística nacional e internacional (20). Entre 1993 e 1998 os investimentos estiveram direcionados para a Rua do Bom Jesus, com o Centro de animação cultural, lazer e comércio do Polo Bom Jesus (21). Foram feitas intervenções infraestruturais, como melhoria de calçadas, drenagem, iluminação, abertura e recuperação de vias. Em seguida, vieram as parcerias público-privadas para a adoção de praças que as recuperassem e as mantivessem, pactuaram a proposta da Fundação Roberto Marinho para realização do Projeto Cores da Cidade quando foram recuperadas as fachadas da Rua Bom Jesus numa parceria desta Fundação com as tintas Ypiranga, inseriram ainda a dinamização de outras áreas no entorno como a Rua do Apolo.
A partir dos anos 2000, percebe-se que a revalorização do Bairro do Recife e a retomada da relação entre a cidade e as áreas de waterfront, sobretudo após a requalificação dos galpões inseridos no Projeto Porto Novo Recife, despertaram o interesse da iniciativa privada em explorar o potencial desses territórios. Surgiram também outras propostas de intervenção em waterfront, em territórios tangentes ao Bairro do Recife, como por exemplo, o ‘’Novo Recife’’ situado no Cais José Estelita e mais recentemente no terreno da Marinha a proposta para revitalização da Vila Naval (Bairro de Santo Amaro).
No caso do Porto do Recife, diante da quantidade de terrenos vazios ou ociosos, e por também estar inserido numa área de abrangência do ‘’Projeto Recife-Olinda’’ (22), foi elaborado em 2007 pela empresa Porto do Recife S/A um estudo para diagnosticar em seus terrenos quais seriam as áreas operacionais e não operacionais. A definição das áreas não operacionais permitiu indicar os espaços passíveis de receber novos usos por meio de arrendamentos à iniciativa privada. As áreas não operacionais do Porto do Recife, liberadas para “reciclagem’’, representam uma porção significativa do waterfront dos Bairros de São José e do Recife, incluindo os armazéns e espaços adjacentes (23)”.
No Bairro do Recife (ver figura 1 e quadro 1) situam-se os armazéns 10 e 11 ao norte do Marco Zero e os armazéns 12, 13 e 14 estão posicionados ao sul. Na área do Bairro de São José, junto ao terminal de ônibus do Cais de Santa Rita, está os armazéns 15, 16, 17 e 18, além do antigo edifício do Pescado Silveira situados nas margens da Avenida Sul. Antes da proposta de revitalização, todos os equipamentos encontravam-se sem utilização, com exceção do armazém 14 (que funcionava como palco para eventos musicais e artísticos, o chamado teatro armazém). Merece destaque o prédio do antigo Pescado Silveira que abrigava 54 famílias de sem-teto, que foram removidas do local para demolição do imóvel e início do projeto de revitalização (24).
Destoando da proposta inicial, que previa o financiamento das obras inseridas no PAC da Copa do Mundo de 2014, apenas o terminal marítimo (que ocupa os antigos armazéns 7 e 8) foi construído sob essa modalidade. Para os demais empreendimentos, o governo estadual acabou optando pela realização de uma concessão administrativa (PPP – parceria público-privada), a partir da qual o setor privado ampliaria sua participação, arcando com a reforma de quatro armazéns no Bairro do Recife e a construção de um hotel 3 estrelas, um centro de convenções e de uma marina.
A proposta desenvolvida entre os anos de (2007-2010), em função de demandas turísticas, principalmente pensando na Copa do Mundo 2014, acabou não sendo executada em sua totalidade. O terminal marítimo localizado atualmente nos armazéns 8 e 7 (ver figura 2) foi entregue após a data estimada, o Museu Cais do Sertão Luís Gonzaga, situado no local do antigo armazém 10, (projeto de autoria do renomado escritório “Brasil Arquitetura”) teve sua construção dividida em duas partes: os módulos 1 e 2. Atualmente só o módulo 1 encontra-se em funcionamento e a segunda parte está em fase de conclusão. No local do armazém 11, temos o Centro de Artesanato de Pernambuco (ver figura 3) que possui um restaurante e uma loja com exposição de produtos artesanais locais. É importante ressaltar que todos esses edifícios inaugurados na primeira etapa do projeto foram revitalizados como investimentos públicos.
No trecho ao sul da área do Projeto Porto Novo, junto à Praça do Marco Zero, está situado o Complexo Gastronômico denominado de “Armazéns do Porto’’ (ver figura 4) que abriga bares, restaurantes, lanchonetes e cafeterias, distribuídos entre os armazéns 12 e 13”. No primeiro piso desses armazéns funcionam escritórios, contudo seu funcionamento não proporciona permeabilidade com o trecho público, ou seja, não promove a interação na dinâmica urbana. O armazém 14, que anteriormente funcionava como espaço para shows e apresentações culturais, hoje possui uso semelhante, porém foi rebatizado de “Itaipava catorze’’ e passou a receber grandes shows, destinados a um público consumidor de camadas da elite local”.
A proposta inicial, desenvolvida pelo corpo técnico do NTOU (24), não foi executada integralmente. Apesar de apresentar um diagnóstico bem estruturado, funcionou apenas como norteadora para a empresa arrendatária responsável pela execução das obras. De acordo com o Termo de Referência – TR para contratação da execução da proposta, o complexo integrado comercial, hoteleiro, de convenções e exposições Porto do Recife deverá ser construído, implantado, explorado, operado, conservado e melhorado exclusivamente pela arrendatária intitulada: ‘’Porto Novo Recife’’. Do mesmo modo, os usos que foram implantados, ficariam sob a responsabilidade do contratante, de acordo com o plano de negócios, compreendendo os procedimentos de ação comercial previstos para dar suporte aos clientes.
Durante o processo licitatório, ficou prevista uma readequação do Projeto de Revitalização do Porto do Recife, considerando um prazo de 25 anos, podendo ser prorrogado por mais 25 anos. Desse modo, a empresa vencedora da licitação deveria constituir uma sociedade de propósito específico(25), mas como nenhuma das empresas responsáveis era do ramo da construção civil, o Consórcio Porto Novo Recife, responsável pela área dos “armazéns do Porto’’, contratou o escritório pernambucano JCL Arquitetos para elaboração da proposta dos armazéns 12, 13 e 14. No setor da área portuária, de responsabilidade do Estado de Pernambuco foram executados o Terminal Marítimo pelo (escritório Andrade e Raposo) e o Centro de Artesanato por (Carlos Augusto Lira).
Durante a fase de concepção do Projeto Porto Nova Recife, a participação do NTOU, enquanto órgão estatal, adota inicialmente, um posicionamento de liderança do Estado nos processos decisórios e de implementação da proposta, além de inaugurar um modelo de articulação do governo junto a Universidade Federal de Pernambuco, considerando a participação de profissionais e estudantes de arquitetura junto a equipe responsável pelo projeto, um cenário que mais tarde viria a garantir outras parcerias entre poder público e o setor acadêmico.
Entretanto, a contribuição do NTOU revelou-se posteriormente limitada, sem uma articulação contínua junto ao setor privado e sem autonomia nas decisões durante a fase executiva do projeto. Isto resultou em alterações consideráveis na proposta inicial desenvolvida pelo próprio órgão. O desarranjo entre a proposta inicial (elaborada e aprovada) e o resultado final executado pelas empresas vencedoras, acabou sendo prejudicial para a proposta de revitalização, sabido que normalmente as soluções projetuais adotadas costumam privilegiar o lucro do mercado privado.
Considerações finais
A partir destas breves considerações sobre a experiência do Projeto Porto Novo Recife, percebe-se como a articulação entre os agentes públicos e privados na tentativa de reordenar territorialmente espaços privilegiados da cidade, mudaram as estratégias inicialmente programadas, ao deslocarem o estado como agente de destaque para proposição das diretrizes projetuais de intervenção urbana. Ao longo do processo de aprovação e de implantação do projeto, o poder público se mostrou omisso, permitindo ao mercado imobiliário e aos agentes financeiros do território se sobreporem e determinarem as condições de execução e gestão do trecho revitalizado. Apesar dos instrumentos legais disponíveis no Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores, das possibilidades de realização de ações consorciadas e PPPs, dentre outros, o poder público submete os interesses públicos ao capital privado, atrelando à produção do espaço a lógica mercantil, ao valor de troca, ao lucro, em detrimento da qualidade socioambiental e urbanística e diríamos até mesmo do direito à cidade e ao caráter de público e de patrimônio nacional e até mundial que estas áreas possuem e representam.
Consideramos, assim, que a experiência recente de intervenção no Centro da cidade do Recife se encontra conectado ao processo mundialmente abrangente de revalorização mercadológica de parcelas específicas da cidade, em concordância com uma lógica de produção da imagem urbana estandardizada, aplicando soluções e valorizando atributos urbanos e socioespaciais que se conectam claramente ao processo denominado de urbanalização.
Neste sentido, no Recife, a especialização de usos, comércio e serviços, implementada pelas políticas públicas recentes aqui esboçadas em suas linhas mais gerais, consolidaram o Bairro do Recife como um território direcionado a públicos e usos específicos sejam por meio do Porto Digital, que concentra atividades e profissionais altamente capacitados, seja por meio do turismo e do entretenimento, explorando potencialidades naturais do waterfront e da tradição cultural local (através do patrimônio físico e cultural).
As paisagens urbanas concebidas segundo essa lógica mercantilizada têm resultado em espaços tematizados e de pouca complexidade, embora, certas vezes, apresentem alguns desvios, e por meio de apropriações inesperadas, acabam revelando contradições e conferindo singularidades. Sob essa perspectiva, consideramos os riscos do processo de urbanalização em cidades brasileiras não como uma extinção dos aspectos que distinguem cada cidade, mas sim a partir da redução da sua complexidade da vida e da forma urbana pela replicação de paisagens comuns.
notas
NE – Este artigo parte dos resultados de pesquisa para elaboração de uma dissertação de mestrado e foi originalmente apresentado no V Enamparq: arquitetura e urbanismo no Brasil atual: crises, impasses e desafios. Ver: CUNHA; Moisés Ferreira. Intervenções urbanas em waterfronts, produção e apropriação do espaço público contemporâneo: o caso do Projeto Porto Novo Recife. Dissertação de mestrado. João Pessoa, PPGAU UFPB, 2018 e SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhy; CUNHA; Moisés Ferreira. A produção mercantil da cidade contemporânea. O porto Novo Recife PE e as estratégias de requalificação de áreas centrais e waterfronts. Anais do V Enamparq: arquitetura e urbanismo no Brasil atual: crises, impasses e desafios. Salvador, Anparq/ FAU UFBA, 13-19 out. 2018 <https://docs.wixstatic.com/ugd/48a788_9665b4a097884577b120d6ebbaab3c90.pdf>;
1
O ‘’direito a cidade’’ adotado aqui está pautado na obra de Henri Lefebvre, concebido a priori, como direito a vida urbana nas relações sociais de produção do espaço. LEFEBVRE, Henry (1968). O Direito à cidade. 5ª edição. São Paulo, Centauro, 2009
2
MUÑOZ, Francesc. Urbanalización. Paisajes comunes, lugares globales. Barcelona, Gustavo Gili, 2008.
3
VAINER, Carlos; OLIVEIRA, Fabricio Leal de; LIMA JUNIOR, Pedro de Novais. Notas metodológicas sobre a análise de grandes projetos urbanos. Grandes Projetos metropolitanos: Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Rio de Janeiro, Letra Capital, 2012, p. 14.
4
SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades na virada do século: agentes, estratégias e escalas de ação política. Revista de Sociologia e Política, n. 16, Curitiba, jun. 2001, p. 40 <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-44782001000100004&lng=pt&tlng=pt#nt01>.
5
VAINER, Carlos; OLIVEIRA, Fabricio Leal de; LIMA JUNIOR, Pedro de Novais. Op. cit., p. 13.
6
LEFEBVRE, Henri; LOREA, Ion Martínez. La producción del espacio. Madrid, Capitán Swing, 2013.
7
Essa reforma gerencial no Brasil, iniciada em 1995, defendia a necessidade da redefinição do papel do estado, passando de executor para coordenador das ações públicas.
8
COMPANS, Rose et al. Intervenções de recuperação de zonas urbanas centrais: experiências nacionais e internacionais. In Emurb (Org.) Caminhos para o centro: estratégias para desenvolvimento da região central da São Paulo. São Paulo, PMSP/Cebrap/CEM, 2004, p. 42.
9
Muñoz identifica uma dinâmica na ordem visual de várias cidades que parte da gestão das diferenças (características particulares) para obter como resultado uma paisagem comum.
10
HARVEY, David. Do gerenciamento ao empresariamento: a transformação da administração urbana no capitalismo tardio. Espaço & Debates, v. 16, n. 39, São Paulo, PPGAU FAU USP, 1996, p. 48-64.
11
SÁNCHEZ, Fernanda. Op. cit., p. 33.
12
DELGADO, Manuel. La ciudad mentirosa: Fraude y miseria del modelo Barcelona. Madrid, Los libros de La Catarata, 2007.
13
Idem, ibidem.
14
ARANTES, Otília. Urbanismo em fim de linha. São Paulo, Edusp, 1998, p. 159-166.
15
A comunidade do Pilar é resquício da primeira ocupação informal em área de patrimônio histórico do Recife, do início do século 20. Atualmente possui um dos piores Índices de Desenvolvimento Humano – IDH da cidade, abrigando aproximadamente mil moradores em péssimas condições de moradia.
16
ZANCHETI, Sílvio Mendes; MARINHO, Geraldo; LACERDA, Norma. Revitalização do Bairro do Recife: plano, regulação e avaliação. Recife: Editora Universitária UFPE, 1998.
17
Idem, ibidem.
18
VIEIRA, Natália Miranda. Gestão de sítios históricos: a transformação dos valores culturais e econômicos em programas de revitalização em áreas históricas. Recife, Editora UFPE, 2007, p. 119.
19
SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhy Cavalcanti. Cidades, intervenções e práticas urbanas: usos do espaço público e qualidade sociourbanística nos centros de João Pessoa e Recife. In SILVA, Geovany Jessé Alexandre da; SILVA, Milena Dutra da; SILVEIRA, José Augusto Ribeiro da. Espaços livres públicos: lugares e suas interfaces intraurbanas. João Pessoa, AB Editora, 2016, p 186-228.
20
VIEIRA, Natália Miranda. Op. cit.
21
SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhy Cavalcanti. Cidades, intervenções e práticas urbanas: usos do espaço público e qualidade sociourbanística nos centros de João Pessoa e Recife (op. cit.), p 186-229.
22
Esse projeto pensava a cidade em escala metropolitana, a partir de intervenções na faixa costeira das duas cidades, utilizando esses trechos como ponto estratégico para fortalecimento cultural, turístico na região, além de contemplar a requalificação de assentamentos informais na área.
23
BRANDÃO, Zeca. Núcleo técnico de operações urbanas: estudos 2007-2010. Recife, CEPE, 2012, p.111 <https://issuu.com/julienineichen/docs/livro_ntou>.
24
Idem, ibidem, p. 113.
25
O Núcleo Técnico de Operações Urbanas – NTOU, foi um órgão que esteve vinculado à secretaria de planejamento do Recife durante os anos de 2007-2010, desenvolvendo estudos de desenvolvimento urbano para região metropolitana do Recife.
26
MENDONÇA, Adriana Santos. Grandes projetos urbanos e gestão pública: a renovação da área portuária do Recife. Dissertação de mestrado. Recife, MDU UFPE, 2014, p.150.
sobre os autores
Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia é doutora em Sociologia (UFPE) e pós-doutora em Sociologia Urbana pela Université Lumière Lyon 2. Possui publicações em revistas nacionais especializadas, pesquisas e livros na área de Arquitetura e Urbanismo, Sociologia Urbana e Patrimônio Cultural e é docente e pesquisadora (PPGAU UFPB). Coordena o Laboratório de Estudos sobre Cidades, Culturas Contemporâneas e Urbanidades, membro do Programa de Requalificação Urbana, Patrimonial e Ambiental do Porto do Capim – Proext em João Pessoa PB 2015-2016. Pesquisadora do INCT – As metrópoles e o direito à cidade: conhecimento, inovação e ação para o desenvolvimento urbano? Programa de pesquisa da Rede Observatório das Metrópoles 2015-2020 (Núcleo Paraíba). Publicou Cidade, cultura, urbanidade (UFPB, 2012).
Moisés Ferreira da Cunha Júnior é arquiteto e urbanista graduado pela Universidade Federal de Pernambuco em 2014. Atualmente é mestrando no programa de pós-graduação em Arquitetura da Universidade Federal da Paraíba e membro do Laboratório de Estudos sobre Cidades, Culturas Contemporâneas e Urbanidades – Leccur.