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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Este artigo apresenta o centro histórico da Cidade de Goiás reconhecido como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO em 2001, compreendendo as particularidades de seu casario e confrontando-o em termos do conceito de paisagem cultural.

english
This article presents the historical center of the City of Goiás recognized as a World Cultural Heritage by UNESCO in 2001, understanding the particularities of its house and confronting it in terms of the concept of cultural landscape.

español
Este artículo presenta el centro histórico de la Ciudad de Goiás reconocido como Patrimonio Cultural de la Humanidad por la UNESCO en 2001, comprendiendo las particularidades de su caserío y confrontándolo en términos del concepto de paisaje cultural.


how to quote

SOUZA, Vinícius Antonelli de; OLIVEIRA, Adriana Mara Vaz de. Paisagem cultural e patrimônio. Reflexões sobre a casa vilaboense. Arquitextos, São Paulo, ano 20, n. 237.02, Vitruvius, fev. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/20.237/7641>.

Casario da Cidade de Goiás
Foto Vinícius Antonelli de Souza, 2018

A cidade de Goiás surgiu com as intensificações das expedições, dos bandeirantes paulistas pelo sertão goiano, em busca de minérios. Com a descoberta de ouro na região e a vinda de interessados por enriquecimento, sedimentou-se o Arraial de Sant’Ana, ainda no século 18. Tornou-se vila administrativa algum tempo depois, passando a chamar-se Vila Boa de Goyaz. Com a definição de Goiás como Capitania, por meio da Carta Régia de 1736, Vila Boa consolidou-se através da definição e regularização de seu tecido urbano, do surgimento de suas principais edificações religiosas, públicas e militares e do aumento de suas residências, respeitando as diretrizes de implantação provindas de Portugal.

As edificações tiveram seus processos construtivos adaptados às particularidades e circunstâncias existentes na região. O clima e topografia local, a dificuldade de importar materiais de outros lugares e a falta de preocupação estética por parte dos que vieram fizeram com que os conhecimentos técnicos trazidos pelos colonizadores sofressem algumas modificações, resultando na construção de uma arquitetura singular. Dessa forma, o conjunto arquitetônico vilaboense foi concebido modestamente, de caráter vernacular, em virtude do tímido desempenho econômico que pairava sobre a cidade e da sua distância dos centros mais consolidados. Naqueles primeiros tempos de ocupação, o único exemplar que seguiu um projeto pré-executado foi a Casa de Câmara e Cadeia.

Com o esgotamento do ouro, já no final do século 18, a vila entra em fase de declínio e abandono, que freou seu desenvolvimento e caminhou vagarosamente em direção ao seu reconhecimento como cidade, ocorrido em 1818. Goiás consolidou-se como centro político da Província e, posteriormente, como capital do Estado de Goiás, reconhecida assim até 1937, quando houve a transferência para a recém-fundada Goiânia. A mudança do foro fez com que a cidade se colocasse ainda mais paralisada.

A arquitetura residencial colonial existente manteve-se conservada, com adequações graduais e pontuais, sem agravar a originalidade interna, principalmente. Algumas casas tiveram suas fachadas remodeladas por seus proprietários, a partir do final do século 19, sob a influência de outras vertentes arquitetônicas europeias, que chegavam à cidade, por intermédio de jornais e viajantes.

Ao longo das décadas e aos poucos, a Cidade de Goiás, com o intuito de acompanhar a modernização que vinha ocorrendo em outras cidades brasileiras, viu-se envolta em transformações na sua paisagem arquitetônica. Ora com menor, ora com maior impacto, tanto em sua infraestrutura urbana quanto no seu uso, as modificações não agrediram em grandes proporções a paisagem urbana da cidade.

Tais particularidades, que se mantiveram presentes na antiga Vila Boa, fizeram com que ideias de afirmação da cidade como monumento histórico e artístico nacional começassem a surgir entre alguns discursos dos próprios vilaboenses (1). No ano em que houve a transferência da capital para Goiânia, surgia no Rio de Janeiro, até então capital do Brasil, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, dando início à institucionalização das políticas preservacionistas nacionais, que logo voltaria seus olhos para Goiás.

A Cidade de Goiás encontrou no processo de patrimonialização, iniciado na década de 1950, um meio viável de erguer-se como cidade histórica, trazendo em seu percurso quatro momentos da trajetória de seu patrimônio institucionalizado. Entre 1950 e 1951, o Sphan inscreveu nos seus livros do Tombo objetos isolados (igrejas, edificações públicas e militares e o largo do Chafariz) e, em 1978, solicitou o tombamento de parte do conjunto arquitetônico e urbanístico da cidade, caracterizado, particularmente, pela arquitetura vernacular produzida nos séculos 18 e 19. Em 2001, é reconhecido o perímetro tombado de 1978, com a inserção de novas quadras, como Patrimônio da Humanidade pela Unesco. Em 2004, se dá a rerratificação da área, com base em orientações apresentadas por técnicos da Unesco, em que constatavam características arquitetônicas e urbanísticas similares à área até então tombada.

Dentro desse percurso e do arcabouço que compõe o patrimônio, a casa é elemento preponderante desse acervo, ao lado de edifícios religiosos e institucionais. A sua relevância no contexto patrimonial coloca-a como parte crucial da história cultural da cidade. A escolha do casario da Cidade de Goiás como objeto empírico, tendo os exemplares localizados no perímetro tombado, justifica-se pela preocupação com o recorte deste artigo, para levantar questionamentos sobre o patrimônio da cidade. Acredita-se que a casa tem a capacidade de dispor de diferentes abordagens, tornando-se um campo pertinente de reflexão sobre as relações entre o homem e o espaço, por estar diretamente relacionada a diferentes temporalidades históricas.

A diversidade do casario da Cidade de Goiás abriga uma estreita ligação entre aspectos sociais, históricos e morfológicos, que a permeiam. Evidentemente, o processo de adaptação material diante do ambiente natural e da dinâmica capacidade de transformação física e social do casario da cidade torna-o em um bem rico de valores culturais.

Desse modo, a casa vilaboense aqui é tomada, como ponto de reflexão principal, para se discutir sua construção histórica em conformidade com os reflexos ocasionados pelo seu processo de reconhecimento como patrimônio. Ademais, sua avaliação possibilita levantar alguns diálogos no que tange a sua inserção ao conceito de paisagem cultural, que vem sendo articulado no Brasil, há alguns anos, por diversos profissionais. Para tanto, compreender as definições do conceito torna-se crucial para uma melhor reflexão sobre o objeto deste artigo.

Paisagem cultural: uma nova categoria do patrimônio nacional

O conceito de paisagem cultural foi criado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco em 1992 e está inserido no contexto do patrimônio cultural e vinculado diretamente as noções de excepcionalidade para o reconhecimento e proteção do bem. Composta por elementos materiais em sintonia com a natureza, a paisagem cultural define-se dentro de um recorte espacial, de modo a representar o processo de interação do homem com o meio natural. Assim, torna-se um bem vivo, mutável, em que as práticas culturais estão diretamente relacionadas com a materialidade construída e a dinâmica da natureza.

Desde a Convenção do Patrimônio Mundial da Unesco de 1972, que firmara a ampliação do patrimônio, a cultura associou-se ao patrimônio natural, mesmo que em lados opostos e bem-delimitados, com o intuito de inscrevê-los na Lista do Patrimônio Mundial, divulgando e despertando a conscientização da sociedade no que diz respeito à salvaguarda desses bens. Com a nova abordagem, a dualidade acomodar-se-ia de modo mais suave, ao relacionar ambas dentro de um mesmo quesito, que, segundo Leonardo Barci Castriota (2), contribui para um “desenvolvimento sustentável, pois envolve de maneira mais efetiva as comunidades”, tornando a cristalização do termo, hipoteticamente, complicada.

Os critérios da Unesco convergem no sentido de que a delimitação da paisagem cultural deva garantir com clareza a relação homem-natureza e ser ela passível de atribuição de valor, diferenciando-a de outras paisagens. Além disso, precisa assegurar uma boa funcionalidade e inteligibilidade, não sendo necessário incluir toda sua totalidade espacial, desde que ilustre e represente os valores culturais do bem reconhecido.

A participação das populações moradoras nas áreas que conformam a paisagem reconhecida é de crucial importância para garantir que os saberes locais sejam valorizados (3). O envolvimento da própria sociedade na atribuição de valores ao bem e em sua preservação pode trazer à luz ferramentas para garantir seu sentimento de pertencimento a determinada paisagem cultural. Com isso, a identificação da paisagem se dá dentro das suas qualidades físicas e sociais, além da sua assimilação como herança histórica.

No Brasil, a paisagem cultural, sob influência internacional, foi, em 2009, chancelada como categoria do patrimônio nacional perante os desígnios do Iphan, por meio da Portaria nº 127 (4). A Constituição de 1988 foi alicerce para a implantação da nova experiência de proteção, pois já havia categorizado juridicamente o patrimônio como bem cultural, levando em consideração atributos de caráter popular. A chancela incluiu uma nova abordagem na preservação do patrimônio cultural dentro das políticas preservacionistas federais, que até então se resumia no reconhecimento de bens materiais e imateriais, separadamente.

Segundo Simone Scifoni (5), algumas discussões anteriores à chancela no país, nos anos de 2007 e 2008, levantaram questões sobre o reconhecimento da Paisagem Cultural, como a Carta de Bagé ou Carta da Paisagem Cultural, de 2007, entre outros. Tais documentos foram produzidos por conta dos paradigmas enfrentados pelo Iphan, para o reconhecimento, em Santa Catarina, dos Roteiros Nacionais da Imigração como paisagem cultural anos antes. A autora relata que o tombamento da paisagem abrangeria uma proporção além das possibilidades administrativas do órgão federal, sendo necessária a criação de ferramentas para garantir o não esvaziamento dos grupos sociais, constituídos pelas famílias de origem italiana, alemã, polonesa e ucraniana. Sendo assim, a participação das prefeituras e governo estadual seria imprescindível para a estruturação econômica da região, assegurando a permanência e a proteção do patrimônio em questão.

O caso catarinense fez com que se percebesse que a paisagem cultural envolveria não apenas o bem tombado, mas todo um sistema compartilhado entre os agentes que administram e produzem determinado espaço (público, privado, moradores, movimentos sociais), além das manifestações culturais (educação, turismo, tradições, entre outro) ali praticadas. Logo, tendo este caso como exemplo e os documentos gerados desde então, a Portaria nº 127/2009 definiu que o recorte espacial da paisagem cultural brasileira deveria contemplar as relações entre os grupos sociais com a natureza, considerando, inclusive, a participação da comunidade.

A nova normativa dispõe de definições conceituais e de meios práticos para a sua aplicação dentro da realidade brasileira, afirmando-se como uma nova categoria que finda as divisões que permeiam os grupos do patrimônio. Desde a criação do Iphan, em 1937, os tombamentos compreendiam o reconhecimento dos valores histórico, artístico, arqueológico, paisagístico e anos depois os saberes e fazeres que incluíam a imaterialidade do patrimônio, cada um na sua posição.

Em alguns tombamentos, certas particularidades paisagísticas, principalmente os cinturões naturais que envolviam os conjuntos arquitetônicos e urbanísticos, poderiam ser considerados dentro do processo. Mas, conforme Scifoni (6), a inclusão dos elementos naturais nada diferenciava o tombamento de cunho paisagístico das edificações isoladas ou conjuntos inscritos, motivo pelo qual a nova categoria não deve ser confundida com essas outras. Se, de sua parte, o patrimônio paisagístico não conta com a participação da sociedade, sendo mais restrito no que concerne às transformações e intervenções, a paisagem cultural, por sua vez, tem a participação social e é mais maleável quanto a mudanças decorrentes da dinamicidade da cultura e da natureza em si.

Do mesmo modo que todo ambiente construído pelo homem possui uma relação direta com a realidade natural do local, a definição exata da paisagem que se enquadra dentro das conformidades do conceito necessita da contribuição dos saberes e fazeres de uma sociedade. Como categoria do patrimônio cultural, a paisagem cultural é fruto do acúmulo de tempos da história humana e natural, afiliados às transformações da paisagem morfológica por meio de ações sociais e trocas culturais. É nesta paisagem que se nota este elo, onde as ações culturais do homem e o ambiente concentram-se integrados em uma mesma estrutura.

A casa vilaboense

As primeiras casas construídas na Cidade de Goiás, no início do século 18, eram diferentes das produzidas nas cidades litorâneas. Precárias taperas, em sua maioria cobertas com palha, foram surgindo para atender, de modo prático e rápido, à necessidade dos bandeirantes paulistas e demais interessados nas riquezas auríferas encontradas na região. Mas, com a descoberta do ouro e o aumento de habitantes, a vila começa a expandir-se às margens do rio Vermelho e casas com melhor acabamento aparecem, cautelosamente, na paisagem do arraial.

Houve uma adaptação dos conhecimentos à realidade natural do local, criando uma arquitetura ímpar, mais simples, de influência popular e sem qualquer indício de erudição, mesmo tendo por base os programas dos projetos portugueses e paulistas executados Brasil afora. Tais ajustes tonificam a organicidade do núcleo, apresentando uma ligação harmônica com os elementos naturais que estão integrados ao espaço construído.

A arquitetura colonial vilaboense fora construída seguindo o padrão tradicional português, com o uso do método “parede-meia”, que se define pela colagem lateral de todas as edificações, auxiliando na definição do que seriam as vias. Desse modo, criou-se um ritmo de cheios e vazios em sequência, por conta das esquadrias, inseridas quase que com a mesma distância entre umas e outras e da homogeneidade de alturas das casas. Tal aspecto fora fortalecido pelo fato de que as construções, em sua maioria, são térreas (é irrisório o número de sobrados residenciais), demonstrando a simples realidade social da época, dada a falta de recursos investidos na elaboração dessas residências.

Tipologia edilícia encontrada na cidade de Goiás: porta e janela
Foto Vinícius Antonelli de Souza, 2018

Com lotes, em maior número, estreitos, as casas possuem de um a três lanços, internamente, sendo raros os casos com quatro. As de um lanço correspondem àquelas com todos os cômodos de um lado do corredor, obedecendo o padrão “porta e janela” e “meia morada”, as de dois com o corredor ao centro e, quanto mais complexa for a setorização, mais será o número de lanços, ambas seguindo a padronagem “morada inteiro” e “sobrado”.

Tipologia edilícia encontrada na cidade de Goiás: meia morada
Foto Vinícius Antonelli de Souza, 2018

Adobe, taipa-de-pilão, pau a pique ou taipa-de-mão, barro, madeira, cal conformam os materiais mais utilizados na construção da arquitetura colonial vilaboense. Enquanto em outras cidades auríferas a pedra fora empregada com mais zelo em variadas edificações, na Cidade de Goiás o material aparece como meio construtivo em poucas edificações, restringindo-se aos exemplares religiosos e aos lastros de suas fundações. Do mesmo modo, a técnica de taipa-de-pilão, muito usada pelos paulistas, também é encontrada, quase que restritamente, nas igrejas e construções militar e públicas, estando presente, apenas, nas paredes externas de poucas residências de famílias mais estruturadas economicamente na época, conferindo uma certa imponência diante das demais.

A grande parte da arquitetura residencial conforma-se dentro do uso das técnicas de adobe e de pau a pique para a construção das paredes ou vedações, sendo usadas, respectivamente, para externas (estruturais e muros) e internas (divisoras dos cômodos), revestidas com barro e cal, conformando um processo construtivo particular. A estrutura é de madeira lavrada, na sua maioria de aroeira e independente das vedações. Os esteios, os baldrames, os frechais e a cumeeira sustentam as demais peças da cobertura. Suas fundações definem-se entre três tipos: a corrida, que é contínua, geralmente feita de pedras; a em esteio, que são pilares de madeira colocados pontualmente; e o uso das duas técnicas combinadas em uma única unidade residencial. Tais características são encontradas em outros territórios nacionais, variando em função das características topográficas, o que torna cada conjunto único pela configuração orgânica que o terreno produz.

Tipologia edilícia encontrada na cidade de Goiás: morada inteira
Foto Vinícius Antonelli de Souza, 2018

Os telhados, apresentam, no geral, duas águas, uma convergindo para a via e a outra para os quintais. Sendo feitos em madeira, com o uso de telhas coloniais ou capa de bica, as cumeeiras, terças e frechais são apoiados nas paredes. Suaves curvaturas em seus beirais e cumeeiras, fruto da passagem do tempo, podem ser notadas, além dos mais variados detalhes em suas terminações: beira-sobeiras, guarda-pó, cachorros, cimalhas de madeira ou de tijolos.

As esquadrias feitas em madeira, geralmente em tons fortes, constrastam com o branco das paredes. Em verga reta, curva em canga de boi, arco plano ou abatido, folhas cegas e lisas ou apresentando detalhes almofadados e em calha, abrindo para fora ou para dentro, são as variações mantidas conservadas até hoje em combinação com as ferragens artesanais, venezianas e guilhotinas em caixilhos. Em certos casos há a presença de bandeiras em seu topo, abertas ou com lâminas de malacachetas para vedação, também utilizadas nas guilhotinas, por conta da dificuldade na obtenção do vidro, que passou a fazer parte das esquadrias apenas a partir do final do século 19.

Tipologia edilícia encontrada na cidade de Goiás: sobrado
Foto Vinícius Antonelli de Souza, 2018

Nas casas mais primitivas, os pisos encontravam-se em chão batido, mas, no decorrer do desenvolvimento da vila, o uso de tabuados, seixo rolado, tijoleiras e mezanelas tornam-se presentes. Nos sobrados, os pisos superiores, exclusivamente residenciais, são em madeira. Tais materiais demonstram, segundo Gustavo Neiva Coelho (7), “uma preocupação fundamental com a climatização da arquitetura”, por parte dos construtores, pois todos reagem em concordância com as técnicas construtivas vernaculares, o que garantia maior conforto térmico aos ambientes.

Do mesmo modo que os pisos foram modificados no decorrer do tempo, algumas casas passaram por reformas tardias, por conta da escassez e fim do ouro, que amortizou o processo de desenvolvimento da cidade. A partir do final do século 19, sob influência das vertentes arquitetônicas europeias que chegavam à colônia e mediante os interesses dos proprietários em ter suas casas destacadas na paisagem, as casas receberam alterações em suas fachadas, de intuito decorativo, sem substituir a organização espacial e os sistemas construtivos.

Tipologias arquitetônicas, cidade de Goiás
Foto Vinícius Antonelli de Souza, 2018

Primeiramente, surgem feições neoclássicas e ecléticas e, posteriormente, no início do século 20, algumas fachadas de referência art nouveau, art déco e neocolonial passam a compor a paisagem da cidade. Assim, ornamentações como cornijas, frisos, platibandas, balaústres, palmetas, estátuas, pedestais, acrotérios, pinhas e, entre outros detalhes, feitos com tijolos, argamassas à base de cal e/ou cimento (a partir do século 20), transformam o visual de algumas das casas. Quanto maior era o poder aquisitivo do proprietário, maior foi a transformação fachadista e, concomitantemente, maior o destoamento da unidade perante o conjunto.

Por mais que algumas casas apresentem fachadas totalmente modificadas, muitas residências, datadas do período colonial, receberam pequenas inserções decorativas, produzindo, assim, um “ecletismo não intencional”. As características arquitetônicas coloniais permanecem marcantes e preservadas, mas, encontram-se em sintonia com os sutis ornatos, pontuados aqui e ali. Nota-se o desejo de mudança, de “modernização”, de ser e fazer parte do que seria o tempo atual para a época no que diz respeito à arquitetura produzida, mesmo que de modo singelo e em conformidade com a realidade de cada morador.

Com a construção de Goiânia, na década de 1930, e o anseio de modernização que pairava sobre a cidade com a transferência da capital, além dessas pequenas adições decorativas, casas modernistas surgem no conjunto. Construídas, em suma, seguindo os cânones da vertente moderna, ao final da década de 1950, as novas residências fogem do padrão do entorno, com a presença de recuos frontais e laterais.

A nova técnica é propagada por todo o tecido urbano, nas edificações que surgiram e em algumas das reformas nas antigas casas, executadas a partir de então. Desse modo, esquadrias metálicas e alpendres conformaram certas casas e, internamente, as ambientações de algumas das preexistências foram sendo adaptadas às novas necessidades dos moradores. Houve a inserção de quartos, banheiros e áreas sociais, por meio do uso de alvenarias de tijolos e cimento, além da concepção de espaços que melhor se enquadrariam ao uso comercial que algumas das casas passaram a ter.

Da década de 1970 em diante, as alterações das casas, objetivando adequá-las ao tempo presente, desaceleram e estacionam. A guinada patrimonia da cidade é fortalecida.

Casas ecléticas “não intencionais”, cidade de Goiás
Foto Vinícius Antonelli de Souza, 2018

A paisagem patrimonial local

A trajetória conservacionista na Cidade de Goiás, como objeto patrimonial, inicia-se após a transferência da capital para Goiânia, em 1937. O reconhecimento da cidade como patrimônio seria um modo de enfrentar o esvaziamento material e simbólico por que a cidade passava. Nesse sentido, seu reconhecimento como monumento histórico e artístico pelo órgão garantiria a construção assertiva do sentimento de pertencimento, pelos moradores, à história, que representaria o berço da cultura goiana (8).

Os primeiros pedidos de tombamento da cidade como monumento histórico são do ano de 1942, sob a alegação de que a cidade se nutria de um histórico muito similar às cidades mineiras, que então já se encontravam reconhecidas como patrimônio histórico e artístico pelo Iphan. Após uma visita técnica à Cidade de Goiás, em 1948, de representantes do Iphan, e mediante as transformações que ocorreram nas edificações da área que compunha o sítio colonial, o reconhecimento da cidade como monumento nacional não foi deferido pelo órgão.

Em contrapartida, como a cidade dispunha de exemplares arquitetônicos coloniais, mesmo não sendo, suficientemente, excepcionais ou monumentais como os encontrados em Minas Gerais, alguns objetos isolados foram inseridos no Livro do Tombo das Belas Artes, anos depois. Foram tombados, em 1950, o Quartel do 20° Batalhão de Infantaria e as igrejas da Boa Morte, do Carmo, da Abadia, de São Francisco de Paula e de Santa Bárbara, além da imagem de Nossa Senhora do Rosário. Em 1951, tombou-se os conjuntos arquitetônicos e urbanísticos do Largo do Chafariz e da Rua João Pessoa (antiga rua da Fundição), o Palácio Conde dos Arcos e a antiga Casa de Câmara e Cadeia.

Os primeiros tombamentos foram tidos, por alguns vilaboenses, como um meio de atrasar o desenvolvimento da cidade, que desde a decadência aurífera havia se amortizado. Sendo assim, para os moradores da cidade, o “congelamento” provocado pelo tombamento faria com que ela parasse no tempo, ficando relacionada ao seu passado, e não mais ao presente, como era quando capital. Além do mais, o reconhecimento dos bens não movimentou a dinâmica da cidade no curto prazo, nem provocou obras de restauro dos exemplares e muito menos intensificou o turismo local (9).

As mudanças só foram surgir ao passar dos anos, gradativamente, com as tomadas de decisão dos próprios moradores, sobretudo com as ações produzidas pela Organização Vilaboense de Artes e Tradições, a Ovat, em parceria com o poder público. A organização, criada em 1965 e administrada por membros das famílias tradicionais locais, promove, desde então, atividades culturais que atraem turistas e movimentação para a cidade.

Após a primeira ação do Iphan, a Cidade de Goiás voltou a estar inserida em um novo processo de tombo no final da década de 1970, com o reconhecimento, em 1978, de parte de seu conjunto arquitetônico e urbanístico com características do século 18, sob o incentivo da própria Ovat. Inseriu-se no Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico e no Livro do Tombo Histórico, os conjuntos da Praça do Chafariz, da Rua da Fundição, até então inscritos no Livro das Belas Artes, somados a outros conjuntos que interligavam os monumentos isolados tombados da década de 1950. Definiu-se o que deveria ser o “centro histórico”, conformando a cidade como monumento nacional e precisando seu roteiro histórico. A partir de então, incluíram-se os elementos de morfologia da paisagem urbana, como vias, casario, igrejas, largos, entre outros, nos olhares do Iphan.

O aumento do perímetro tombado da Cidade de Goiás fez com que ela atingisse um posicionamento mais confortável para a implantação e/ou continuação das atividades culturais em seu centro histórico e da intensificação do turismo. Desse modo, a área tombada e todos seus elementos morfológicos e sociais são certificados como cenário das práticas culturais mais emblemáticas da cidade e sua conservação tornou-se responsabilidade de todos os proprietários do casario reconhecido, em parceria com os agentes institucionais.

Um ano após o tombamento do conjunto, o patrimônio brasileiro passou por uma reviravolta em seus conceitos, iniciando, assim, sua “fase moderna”. Influenciado pelas normativas da Convenção de 1972 da Unesco, desencadeou-se, no Brasil, um período em que a diversidade cultural popular se tornou parte das políticas públicas.

A nova realidade do patrimônio brasileiro sustentou mudanças, também, na Cidade de Goiás. Conforme Delgado (10), grandes projetos de restauração foram executados em diversos monumentos tombados. A cidade entrou em um processo de reestruturação, tanto física/estrutural quanto cultural, principalmente com a criação de uma unidade técnica do Iphan, em 1983, dentro do município, que auxilia no agenciamento das práticas até hoje. Mesmo com tensões entre moradores e administradores culturais, que se perpetua, a ex-capital tornou-se a “menina dos olhos” do território goiano, representante da cultura estadual, portanto patrimônio nacional e, em 2001, reconhecida com o título de “Patrimônio da Humanidade” pela Unesco.

A corrida pelo reconhecimento mundial das cidades patrimonializadas brasileiras teve início em 1980, com a titulação deferida a Ouro Preto. Na Cidade de Goiás, o desejo se deu no início dos anos 1990, com o incentivo da prefeitura municipal, em parceria com a unidade técnica do Iphan (assim nomeado desde 1994). Com o auxílio do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – Icomos, fora proposta a criação do Movimento Pró-Cidade de Goiás, com o intuito de construir o Dossiê de Goiás (11), para inscrever a cidade ao título.

O Movimento define-se por um grupo de pessoas que trabalharam ativamente no processo de reconhecimento da cidade ao título mundial. Com sua atividade e o auxílio do poder público, o Dossiê foi executado e entregue ao Icomos, em 1999, recebendo o parecer favorável à sua inscrição em 2000. Mas foi apenas em 2001, em 13 de dezembro, que a cidade recebeu o título de Patrimônio Mundial, pela Unesco.

Reconheceram-se o perímetro tombado em 1978, com a inserção de algumas quadras típicas do século 19, e a presença da arquitetura eclética e art nouveau, demonstrando a importância da variedade temporal presente no tecido urbano da cidade e os modos de inserção do homem no espaço. Para tanto, em 2004, houve a rerratificação do perímetro tombado, englobando as chácaras urbanas, suas áreas verdes e algumas quadras acima do Museu das Bandeiras (antiga Casa de Câmara e Cadeia).

Foram incorporados ao Dossiê diferentes categorias simbólicas do patrimônio, que muito se assemelham com a abordagem da Paisagem Cultural chancelada em 2009. Com o auxílio da comunidade local que reside na área tombada, o documento levanta patrimônio material em sintonia com a cultura representada dentro de parâmetros imateriais e naturais associados à identidade da Cidade de Goiás. Para tanto, um inventário com os bens de natureza imaterial catalogados, anteriormente, pelo Iphan, e a inclusão de áreas naturais que margeiam a cidade, encontram-se no documento, resultando em um patrimônio coletivo e cultural, sem distinção e/ou divisão.

A relação do vilaboense com o passado por intermédio do patrimônio é fortalecido, “silenciando” os enfrentamentos no percurso conservacionista local. O patrimônio imaterial e natural, representado pelas manifestações tradicionais e folclóricas e pelo cerrado que comporta a própria cidade como todo, respectivamente, até então fora dos discursos na Cidade de Goiás, tornou-se parte de sua paisagem patrimonial, assegurando uma relação sociocultural entre homem e meio ambiente. Isto é, reforçando-a como paisagem cultural.

O reconhecimento mundial angariou à cidade um valor cultural excepcional, associado às riquezas estéticas, históricas e naturais, e afirmou os apontamentos levantados pelo próprio Dossiê, certificando, assim, os lugares e práticas que retomam a memória, como demonstração da história. A trajetória da cidade, que transita por arraial, vila, capital e cidade patrimônio, respectivamente, em paralelo às práticas sociais, demonstra seu vínculo a sua paisagem cultural. A singularidade do conjunto arquitetônico e urbanístico, conformado de modo espraiado pelo vale, definiu-se como um icônico exemplar da urbanização do Brasil colônia.

As características físicas das casas, reconhecidas no tombo de 1978, afirmaram-se como objetos de valor na promoção cultural da cidade, pois transmitem as diferentes temporalidades históricas do conjunto. Emparelhadas a sua preservação, algumas das unidades tiveram seu uso adaptado à nova realidade local, que demanda estruturas outras para atender aos visitantes interessados pela cidade-patrimônio. Casas tornam-se estabelecimentos comerciais ou de prestação de serviço, outras são alugadas para turistas, assim como algumas fecharam suas portas devido à falta de recursos de seus proprietários em garantir a sua manutenção, diante das normativas que a patrimonialização impõe. Assim, a casa vilaboense como produto cultural, transforma-se no tempo, imprimindo alterações na paisagem do lugar, ainda pertencente ao trecho urbano patrimonializado.

Considerações finais

O conjunto arquitetônico e urbanístico tombado da Cidade de Goiás corresponde a uma paisagem com características culturais particulares. Agrega aspectos formais, produzidos pelo homem ao passar dos anos, em sintonia com o ambiente natural e social em que está inserido e com as mais diversas manifestações culturais que ali acontecem. A construção do casario tombado evidencia a relação histórico-social da apropriação do espaço pelos colonizadores e, por conseguinte, pelo próprio vilaboense, com as condições que estavam a seu alcance.

A mutabilidade e adaptabilidade histórica da casa vilaboense definem-na como um objeto em constante movimento, indo ao encontro do sentido que a Portaria nº 127/2009 estabelece sobre a Paisagem Cultural, mas também se confrontando com ela. Por um lado, veem-se as transformações em suas fachadas ocasionadas pelo desejo do morador em se enquadrar ao momento em que estava inserido e as adaptações de seus usos em virtude do processo de patrimonialização ocorrido na cidade de Goiás, demonstrando a dinâmica que a casa produz e é produto, simultaneamente. No entanto, por outro lado, nota-se que alguns exemplares do recorte da paisagem urbana local se encontram fechados e sem um uso propriamente dito. Diante disso cabe perguntar: esses exemplares exemplificam as relações conflituosas entre instituições do patrimônio e sociedade? Nesse sentido, ilustram, também, a interação entre homem e ambiente, tornando-se parte da paisagem cultural?

notas

NE – Artigo originalmente apresentado no evento 2º Seminário Nacional Pensando o Projeto, Pensando a Cidade, do Programa de Pós-Graduação Projeto e Cidade da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás em 03 de dezembro de 2018.

1
OLIVEIRA, Carolina Fidalgo de. A Cidade de Goiás como patrimônio cultural mundial: descompassos entre teorias, discursos e práticas de preservação. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2016.

2
CASTRIOTA, Leonardo Barci. Paisagem cultural e patrimônio: desafios e perspectivas. Anais do 1º Colóquio Ibero-Americano Paisagem Cultural, Patrimônio e Projeto. Brasília/Belo Horizonte, Iphan/IEDS, 2017, p. 18.

3
NASCIMENTO, Flávia B.; SCIFONI, Simone. A paisagem cultural como novo paradigma para a proteção do patrimônio cultural: a experiência do Vale do Ribeira, SP. Revista CPC, n. 10, São Paulo, mai./out. 2010, p. 29-48.

4
BRASIL. Portaria n° 127, de 30 de abril de 2009. Estabelece a Chancela da Paisagem Cultural. Diário Oficial [da] União, Seção 1, 5 mai. 2009.

5
SCIFONI, Simone. Paisagem cultural. In GRIECO, Bettina; TEIXEIRA, Luciano; THOMPSON, Analucia (Orgs.). Dicionário Iphan de Patrimônio Cultural. 2a edição revista e ampliada. Rio de Janeiro/Brasília, Iphan/DAF/Copedoc, 2016.

6
Idem, ibidem.

7
COELHO, Gustavo Neiva. Arquitetura da mineração em Goiás. Goiânia, Trilhas Urbanas, 2007, p. 57.

8
OLIVEIRA, Carolina Fidalgo de. Op. cit., p. 70.

9
DELGADO, Andréa Ferreira. Goiás: a invenção da cidade “patrimônio da humanidade”. Horizontes Antropológicos, n. 23, Porto Alegre, 2005, p. 113-143.

10
Idem, ibidem, p. 127.

11
DOSSIÊ: proposição de inscrição da Cidade de Goiás na lista do Patrimônio da Humanidade. 1 CD-ROM. Goiânia, Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional/Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira, 1999.

sobre os autores

Vinícius Antonelli de Souza é arquiteto e urbanista pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás, mestrando em Arquitetura e Urbanismo pelo Programa de Pós-Graduação Projeto e Cidade da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.

Adriana Mara Vaz de Oliveira é mestre em História das Sociedades Agrárias pela Universidade Federal de Goiás e doutora em História pela Universidade Federal de Campinas. Professora associada I da Universidade Federal de Goiás no curso de Arquitetura e Urbanismo, na Faculdade de Artes Visuais e no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – Mestrado Projeto e Cidade da mesma instituição.

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