Nesse momento em que nos deparamos com graves questões ambientais, não se pode perder de vista um importante recurso, que é a ação local resultante da mudança de hábitos individuais e coletivos, tanto nos âmbitos pessoal e social quanto no profissional. O designer Victor Papanek, em 1995, provocou a reflexão e expansão da capacidade dos indivíduos de agirem ao propor: ”Temos de examinar qual o contributo que cada um de nós pode dar em função da sua atividade na sociedade. Temos de perguntar: […] Qual o impacto do meu trabalho sobre o meio ambiente?” (1). As questões ambientais são, sem dúvida, de ordem global, mas tal escala, por ser humanamente inalcançável, se constitui, em geral, paralisante. Individualmente, as pessoas tendem a se sentir impotentes diante da magnitude dos problemas do mundo natural. “A novidade exige pensar, agir e viver frente ao mundo” (2), diz Michel Serres.
Pequenas ações quantitativas resultam qualitativamente, e podem, em conjunto, atingir grandes proporções. Trata-se de uma questão de escala de alcance que reverberará a partir da atuação de cada indivíduo ou grupos de indivíduos. A escala local torna palpável e viável a atuação individual, encorajando a participação e o engajamento das pessoas nas mudanças de suas realidades rumo à diminuição do impacto global das atividades humanas. Nesse sentido, Thackara observa:
“Em um contexto de sistemas complexos e mudanças constantes, mesmo pequenas ações podem ter um poderoso e transformador efeito no cenário mais amplo. [...] Pensar local e pensar pequeno não é uma abordagem de horizontes estreitos e não é uma abdicação de responsabilidades em prol do cenário mais amplo. Pelo contrário, passaremos do presente ao futuro em uma série de passos pequenos, mas cuidadosamente considerados. A proximidade e a localidade são características naturais da economia (3).
Identificar limites constitui o processo de delineação de novos contornos para novas possibilidades e novas ideias. Diante dos limites do planeta, essa abordagem pode ser transposta ao tema da sustentabilidade no campo das construções arquitetônicas para curtas durações de uso. Para tanto, será aprofundado o conhecimento acerca do projeto e da realização do pavilhão Humanidade 2012, equipamento arquitetônico construído para funcionar num período de 10 dias, durante o funcionamento da Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Natural – CNUDN. Mais conhecida como Rio+20, a conferência global foi realizada na cidade do Rio de Janeiro em 2012. O Pavilhão Humanidade 2012 teve curadoria da diretora artística Bia Lessa e concepção arquitetônica da arquiteta Carla Juaçaba. À convite de Lessa, Juaçaba se imbuiu no desenvolvimento de um projeto arquitetônico que contivesse em si mesmo uma mensagem de sustentabilidade e não fosse somente um invólucro estético funcional para abrigo do tema (4). A intenção de Lessa se alinha com a afirmação de Juhani Pallasmaa: “a arquitetura dirige, proporciona e emoldura ações, percepções e pensamentos” (5).
No Pavilhão Humanidade 2012, observa-se a imbricação criativa e sustentável no desenvolvimento do projeto de arquitetura. Delineia-se, assim, que o objetivo deste artigo é relacionar a concepção criativa associada ao bem-estar e prazer estético com o potencial de redução do impacto ambiental inerente ao sistema construtivo adotado no projeto Humanidade 2012. Testemunhou-se nesse projeto a colocação em prática do que Ézio Manzini classifica de “protótipo de solução sustentável”, rumo ao que ele estabelece como “rompimentos sistêmicos fundamentais” e necessários nesse momento de transição de atitude da humanidade perante os materiais e a natureza.
Compreende-se que a construção a partir de peças modulares de andaimes se insere em um sistema maior que a própria construção e transcende a duração da ideia do projeto. Um sistema que já existia antes da sua realização e que continuará existindo após a sua desmontagem. Neste sentido, em uma realidade onde materiais duram mais do que ideias, o designer Rafael Cardoso propõe, no campo do design, o que é passível de aplicação na atividade criativa de concepção e realização de arquiteturas impermanentes:
“O princípio da reversibilidade tange igualmente soluções muito simples e tradicionais ao design, como o uso de módulos. Todo sistema modular prevê múltiplas possibilidades de uso e, portanto, gera um potencial para estender a sobrevida do artefato apenas pelo rearranjo de suas partes em novas combinações” (6).
Com o objetivo de levantar dados precisos acerca do Pavilhão Humanidade 2012, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com a arquiteta Carla Juaçaba, o arquiteto Pedro Varella, o cenógrafo Omar Muro e o engenheiro Osmar Dutra, que atuaram em diferentes áreas e etapas da realização do Pavilhão, desde a concepção do projeto arquitetônico até a desmontagem. Para ancorar as propostas aqui apresentadas, foi também realizado um amplo levantamento bibliográfico interdisciplinar abrangendo as áreas de design, arquitetura, artes visuais e filosofia. Os autores que forneceram a base teórica acerca da sustentabilidade no campo do design, foram: Ézio Manzini, John Thackara, Rafael Cardoso, William McDonough e Michael Braungart. O arquiteto Juhani Pallasmaa acrescentou a percepção da arquitetura significativa. No campo da filosofia, o artigo contou com a abordagem ecológica de Félix Guattari, conceitos de Heidegger e o profícuo debate contemporâneo acerca da relação ser humano-natureza proposto por Michel Serres. Como complementação da pesquisa, foram consultados artigos, matérias e vídeos-entrevistas com Bia Lessa, publicados à época da construção do Pavilhão Humanidade 2012, a respeito dos processos de concepção e construção deste equipamento arquitetônico.
Do impermanente ao efêmero
Identifica-se na especificação de construções de espaços destinados a curtos períodos de duração e fruição do público a indeterminação do entendimento e do uso da linguagem apropriada. Uma vez que tal tipo de construção constitui o foco deste artigo, identifica-se a necessidade do esclarecimento prévio acerca da ênfase em classificar o Pavilhão Humanidade 2012 como uma arquitetura efêmera, e não como uma arquitetura impermanente. Nesse sentido, será proposto o aprofundamento da pesquisa acerca da palavra efêmero através do levantamento da sua origem etimológica, a descrição adotada em dicionários atuais e a análise do significado e interpretação conceitual na nossa contemporaneidade. Heidegger ressalta: “É salutar o cuidado com o dizer. Mas esse cuidado é em vão se a linguagem continuar apenas a nos servir como um meio de expressão” (7).
Aponta-se como plausível a classificação do Pavilhão Humanidade 2012 como uma arquitetura impermanente, mas tal qualificação é superficial, uma vez que a especifica somente quanto a sua duração de uso e ao fato de não deixar marcas no local da construção. O que ocorre é que comumente esse tipo de classificação ignora que, após o uso, as estruturas utilizadas são destruídas e permanecem ainda por muito tempo como dejeto, acarretando extensas durações consequentes.
A adoção de um sistema construtivo preexistente de módulos de andaimes, que pertencem a um sistema muito mais abrangente que o próprio pavilhão, ressignifica a arquitetura do Pavilhão Humanidade 2012 para além da duração de uso, ao acrescentar a praticamente inexistente duração consequente das estruturas modulares de andaimes após seu uso na composição da estrutura. Observa-se, portanto, a potência apresentada pelo projeto arquitetônico como um importante protótipo de solução que estabelece um rompimento sistêmico rumo à diminuição do impacto ambiental na concepção e construção de arquiteturas destinadas a curtos períodos de duração.
Ao analisar profundamente a palavra efêmero, torna-se possível expor o raciocínio que conduz a sua ressignificação, evidenciando o eufemismo presente em sua utilização na atualidade. Segundo o dicionário Houaiss: “1) que dura um dia […] 3) que desabrocha e fenece no período de um dia” (8). Sobre a origem etimológica da palavra efêmero, no grego:
“Provém de uma escrita chamada Linear B, a forma mais antiga de grego (e-pe-me-ri seria a sua forma hipotética nesse idioma). Daí viria o adjetivo ἐφήμερος, que seria a qualidade daquilo que tem vida breve, que morre e renasce no dia seguinte. Um exemplo seria a imagem da luz do sol. Alguns cognatos seriam ἐφημερίς (efemerís), que significa diário (suporte no qual anotamos as coisas do dia a dia). A palavra efêmero possui dentro dela a palavra dia (ἡμέρα, ou heméra) o que reforça ainda mais esse caráter periódico e regular; cíclico” (9).
Esta análise conduz ao entendimento de um caráter paradoxal inerente à própria palavra efêmero, aquilo que nasce e morre no período de um dia, diariamente. Por extensão, na arquitetura contemporânea admite-se que a curta duração daquilo que se considera efêmero extrapole a duração de um único dia. Fica claro, portanto, que a condição de efêmero não se trata daquilo que dura pouco e é destruído após o uso, mas sim daquilo que tem sua curta duração associada a uma capacidade intrínseca de fenecer e continuamente ressurgir.
Identifica-se que é justamente isso o que ocorre com a arquitetura do Pavilhão Humanidade 2012. Uma arquitetura de curta duração, que não deixa rastros, portanto impermanente, mas que, ao ser inserida em um sistema pré e pós existente à sua duração, assume o caráter sustentável de ressurgimento sem geração de resíduos para além da sua curta existência, o que a classifica, portanto, como uma arquitetura efêmera.
A materialização
O conceito
Vinte anos depois da realização da Rio 92, no ano de 2012 a cidade do Rio de janeiro voltou a ser palco de mais um encontro global, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Natural – CNUDN, popularmente conhecida como Rio+20. O evento contou com o Riocentro para sediar os principais encontros dos líderes de 193 países. Simultaneamente, ocorreram diversos eventos pela cidade, entre eles o Pavilhão Humanidade 2012.
Para a direção artística do projeto previsto no Forte de Copacabana, que deveria mesclar tecnologia, educação e cultura com os temas abordados na Rio+20, foi convidada uma personalidade carioca extraordinária que se dedica em profundidade na realização de projetos culturais extremamente significativos, a profissional multidisciplinar Bia Lessa. Durante a etapa final de montagem do pavilhão, a respeito da sua curadoria, ela declarou em uma vídeo-entrevista:
“O Humanidade 2012 nasceu completamente da ideia de sustentabilidade, quer dizer, da gente tentar aproveitar esse lugar do Forte, esse espaço, o que ele tem de melhor. Ele tem essa vista maravilhosa. Ele tem esse vento, que é um vento muito poderoso, então a gente achou que não valia à pena falar de sustentabilidade com uma tenda que, de alguma forma, nega o próprio terreno, então a ideia é usar essa estrutura toda para liberar o terreno embaixo, criar esse jardim, que quando a gente chegasse, a gente pudesse avistar o mar, para que a gente pudesse ter essa questão das forças da natureza nos auxiliando, e não a gente brigando com elas” (10).
Ao se deparar com o desafio da concepção de um espaço para abrigar um evento voltado para a sustentabilidade, inserido na conferência global promovida pela ONU na cidade do Rio de janeiro, a diretora artística Bia Lessa teve a certeza desde o início de que a própria estrutura do pavilhão deveria comunicar o conceito de sustentabilidade, e não somente se constituir como um invólucro para os assuntos que ali seriam tratados. A própria arquitetura deveria ser um acontecimento sustentável. Ensaiando os primeiros passos rumo a uma construção de caráter sustentável, a primeira atitude de Lessa foi a de rejeitar o modelo construtivo básico a partir de tendas brancas climatizadas de grandes dimensões, tradicionalmente utilizado no Forte de Copacabana para grandes eventos. O segundo passo foi procurar a arquiteta Carla Juaçaba (11). Roberto Segre descreveu a atuação da arquiteta diante do desafio apresentado:
“Não deixa de surpreender a genialidade de Carla Juaçaba, que soube transformar a sua experiência na escala residencial – os projetos de casas minimalistas, realizadas com materiais leves e industrializados – nesta complexa estrutura de andaimes de 500 toneladas totalmente desmontável, que compõe um edifício virtual” (12).
Já na primeira visita técnica, a arquiteta observou as estruturas de andaimes que eram utilizadas para estruturar o nivelamento do piso na área destinada aos eventos sobre o terreno em declive acentuado do Campo de Marte, como a área é chamada. Foi dessa primeira percepção que surgiu a ideia da extrapolação do uso do andaime como elemento estrutural coadjuvante, para seu uso como elemento construtivo e estético principal. Surgia aí a ideia da utilização de um sistema muito familiar à área do pavilhão, não se tratando somente do Forte, mas de toda a praia de Copacabana, que recebe frequentemente tais estruturas para montagens de eventos esportivos, shows nacionais e internacionais, e em datas comemorativas (13).
Como ponto de partida, Lessa propôs à Juaçaba a problematização do ato de construir a arquitetura com valores que favorecessem a sustentabilidade, assim como problematizou a construção da informação: o conhecimento deveria ser informado através da habitação do espaço (14). Era preciso “in-formar” o prédio para “in-formar” o público. Era necessário provocar através da habitação do espaço a ser construído a vital aproximação das pessoas com a natureza. Essa relação atenta com a natureza deveria, porém, extrapolar a experiência somente do público no espaço construído, mas afetar também a própria experiência de construção do espaço.
Juaçaba propôs a inserção da arquitetura para um curto período de duração em um sistema modular, sem definição previa, preexistente e pós existente ao próprio pavilhão. A impermanência se traduziu em matéria sem geração de rastros físicos de sua existência. Dessas premissas de habitação, surge a arquitetura do Pavilhão Humanidade 2012, que carrega importantes rompimentos de paradigmas e a ressignificação do construir efêmero em seu DNA. Essencialmente, uma arquitetura construída a partir da expressão da sua própria subjetividade para exercer o papel de uma ponte entre o passado e o futuro, em respeito e atenção à sua impermanência no presente.
O projeto de arquitetura
Diante do desafio proposto por Bia Lessa para sair do senso comum em relação à solução de espaço do pavilhão e da percepção do potencial estrutural e estético da malha metálica, Juaçaba buscou como referência inicial para a concepção de seu projeto, o projeto Fun Palace, de um dos mais visionários arquitetos da segunda metade do século 20, Cedric Price (15). O arquiteto inglês não construiu muito, mas suas investigações arquitetônicas e urbanísticas expressas em seus desenhos, propostas e projetos perduram influenciando arquitetos e artistas, como o grupo Archigram, Renzo Piano, Rem Koolhas e Rachel Whitteread, entre outros. O Centro Georges Pompidou, dos arquitetos Renzo Piano e Richard Rogers, em Paris, é um exemplo de projeto extremamente influenciado pelo Fun Palace de Price. Desenvolvido entre 1959 e 1961 para a diretora de teatro Joan Littlewood em Londres, o Fun Palace inicialmente foi concebido como um Laboratory of fun (Laboratório da diversão). O propósito era integrar um programa multidisciplinar acessível e adaptável para abrigar o funcionamento de atividades artísticas diversas incluindo teatros, cinemas, workshops de dança, música, teatro, além de bares e restaurantes (16).
A arquiteta propôs uma releitura dos conceitos de liberdade e flexibilidade de Price e os expandiu, associando-os não a milagres tecnológicos, mas às possibilidades construtivas menos agressivas ao planeta (17). Esses padrões escolhidos para o projeto do Pavilhão Humanidade 2012 não se limitam somente às questões materiais ou ambientais, mas afetam a própria fruição e habitação do espaço pelos visitantes.
Do papel ao terreno
O convite para a atuação da arquiteta Carla Juaçaba na concepção do projeto foi feito em novembro de 2011. A partir daí, a aprovação inicial da proposta ocorreu no prazo de um mês (18). Neste momento foram lançadas as bases fundamentais do projeto, que se desenvolveram a partir da definição da estrutura principal em andaimes, que formatavam cinco paredes paralelas e autoportantes. Cada parede tinha 170 m de extensão e 20 m de altura, e as paredes eram intertravadas por treliças metálicas. As cinco paredes principais sustentaram todo o circuito expositivo, composto por uma circulação principal em grandes rampas que interligavam o circuito expositivo, composto por dez salas suspensas pelas treliças metálicas entre as paredes estruturais. Além das salas de exposição, haviam ainda o auditório, o café cultural, a capela e um grande terraço. O sistema construtivo foi elaborado a partir de subtrações nas paredes estruturais para encaixes modulares dos espaços (19).
Em janeiro de 2012, iniciaram-se as necessárias reuniões técnicas entre as equipes de arquitetura, cenografia, engenharia e produção. A partir dessas reuniões, foi dada a largada para as atividades de adaptação dos desenhos técnicos e de desenvolvimento de protótipos (20). Os desenhos técnicos iniciais de arquitetura tiveram que ser adequados aos materiais disponíveis no mercado, uma vez que as estruturas de andaimes apresentavam modularidades variadas, por serem provenientes de diferentes fornecedores, devido à grande quantidade exigida pelas dimensões do projeto. Também se fez necessária a adaptação da estrutura principal para a utilização das vigas de travamento e sustentação de grandes vãos, que demandaram a utilização de vigas M-150 com 2,20m de altura, comumente utilizadas para a construção de pontes (21).
O Pavilhão Humanidade 2012 apresentou as seguintes dimensões totais: 170 m de comprimento x 34 m de largura x 20 m de altura, totalizando 5.780m² de área implantada e 115.600m³ de volume construído por cerca de 1.100 toneladas de estruturas metálicas modulares (22).
A montagem no Forte se desenvolveu em um ritmo acelerado durante três meses e envolveu cerca de duzentas pessoas, entre as equipes de arquitetura, engenharia, cenografia e produção (23). Na realidade da área de eventos, é inconcebível a possibilidade de haver atraso de resultados, sobretudo em um evento global como a Rio+20. Mesmo diante do curto período de tempo disponível, a articulação de milhares de equipes nacionais e internacionais envolvidas na conferência e o comprometimento das agendas de importantes chefes de Estado tiravam de questão a possibilidade de existir qualquer atraso que implicasse em um adiamento. Então, dia 12 de junho o Pavilhão Humanidade 2012 estava pronto e abriu suas portas para o público.
A arquiteta frisou a explicação fornecida pelo engenheiro Osmar Dutra de que toda a estrutura era extremamente estável, uma vez que se apoiava em 7.000 pontos sobre a rocha, sem que fosse necessário nenhum tipo de atirantamento ou de fixação. Juaçaba afirma que “apesar do grande porte apresentado, foi a solução menos agressiva que pode existir, uma vez que, ao ser retirada, a estrutura deixou o solo intacto” (24).
As dimensões de sustentabilidade
São altos os custos para a implantação de novos parâmetros de trabalho, uma vez que existe grande resistência da mão de obra disponível, uníssona à resistência do próprio cliente investidor. Tal resistência é ocasionada e agravada pela generalizada falta de informação e orientação a respeito de formas menos agressivas de materializar ideias nessa área. Félix Guattari destaca a importância de que a necessária mudança rumo a uma agência menos agressiva do ser humano com o planeta se dê partir do próprio corpo:
“Não haverá verdadeira resposta à crise ecológica a não ser em escala planetária e com a condição de que se opere uma autêntica revolução política, social e cultural reorientando os objetivos da produção de bens materiais e imateriais. Essa revolução deverá concernir, portanto, não só às relações de forças visíveis em grande escala, mas também aos domínios moleculares de sensibilidade, de inteligência e de desejo” (25).
Quando se menciona o estabelecimento de novos parâmetros sustentáveis de trabalho na materialização de uma arquitetura impermanente, como o Pavilhão Humanidade 2012, a lista é extensa e abrange parâmetros de pelo menos três dimensões de sustentabilidade, a ambiental, a cultural e a social.
Na dimensão ambiental, pode-se dizer que foi empregada uma eficiente otimização, mas, é importante esclarecer que otimizar ainda é uma abordagem inicial na busca de soluções sustentáveis rumo à real necessidade de tolerância zero em relação aos parâmetros estabelecidos anteriormente.
Na dimensão cultural, o projeto se destaca como eficiente instrumento de transmissão de informação através dos mais variados recursos, desde a informação direta até a informação simbólica conceitual através de uma arquitetura extremamente significativa, percebida e vivenciada pelo público com seus próprios corpos.
Na dimensão social, a prioridade se manteve em oferecer ao público uma habitação do espaço significativa e experimental de aproximação da natureza, além de condições de bem-estar durante a visitação. Porém, vale apontar que esta dimensão não foi incorporada durante o trabalho de detalhamento técnico, construção e montagem, devido ao reduzido período de tempo para a realização do projeto, o que é uma prática bastante comum na realização de arquiteturas impermanentes nas diversas áreas voltadas para eventos.
A dimensão retórica da sustentabilidade – a cenografia
Para analisar os resultados alcançados de otimização de geração de resíduos materiais na dimensão da sustentabilidade ambiental, é fundamental que a arquitetura do pavilhão seja separada da cenografia das salas expositivas. A escolha de boa parte do material utilizado na cenografia teve como foco placas de OSB, MDF e Tetrapac. De certa forma, criou-se, assim, um ponto de familiaridade importante para tornar mais palatável a absorção do significado daquele lugar e das ideias de sustentabilidade transmitidas, uma vez que esses materiais são as opções mais populares e disponíveis para a composição de um discurso retórico visual. Valeu-se de uma estética de sustentabilidade.
A desmaterialização
As etapas do processo completo de concepção e realização de uma arquitetura impermanente podem ser expostas de acordo com a cadeia produtiva tradicional e mais comumente praticada na atualidade:
Neste modelo, nota-se a prioridade absoluta da etapa de uso do espaço. Todas as etapas, desde a concepção até a montagem, visam, em geral, somente o momento do uso e desconsidera as duas últimas etapas relativas à desmontagem e descarte dos materiais. O sucesso da realização de uma arquitetura impermanente é restrito à eficiência do seu funcionamento, ao resultado de sua construção, ao acabamento dos detalhes e à concepção estética que apresenta. Isso leva a uma profunda subutilização dos materiais, uma vez que são utilizados, beneficiados e misturados materiais extremamente duráveis na composição das construções de curta duração.
Em contrapartida à concepção da cenografia, a concepção arquitetônica não se restringiu a um discurso retórico a respeito da sustentabilidade. A concepção arquitetônica experimentada na concepção do pavilhão não somente forneceu expressiva visibilidade ao debate acerca de construções sustentáveis de curta duração, como propôs eficientemente a articulação de quatro aspectos projetuais rumo à redução do impacto ambiental e à provocação de mudanças na percepção de bem-estar: o conceito arquitetônico, a localidade dos recursos, a experiência estética e o sistema construtivo modular.
No processo de realização, a partir da escolha de um sistema construtivo modular de andaimes metálicos para a construção do pavilhão, se destaca uma sensível alteração na cadeia produtiva do Pavilhão Humanidade 2012.
Na cadeia produtiva apresentada acima, todas as atividades previstas já consideram o descarte como etapa norteadora das demais etapas. Nota-se que o tipo de descarte previsto desde a etapa da concepção tem a capacidade de influenciar e interferir em todas as outras etapas subsequentes. Para que uma realização se torne efetivamente sustentável, não basta somente restringir esse conceito ao sistema construtivo e à escolha dos materiais. Metas de redução do impacto ambiental precisam começar a constituir todas as etapas do processo, principalmente as etapas de idealização, concepção e planejamento. Na construção da arquitetura do Pavilhão Humanidade 2012, o resultado é impactante: foram 115.600 m³ construídos em sistemas modulares de andaimes, e de sua desmontagem resultaram 115.600 m³ de estruturas modulares de andaimes plenamente aptos ao reuso em novas construções efêmeras.
“O importante é o movimento dos materiais, e não materiais que sejam jogados fora […]. A única forma que tem é transformar [...] então esse prédio é todo transformado. Quer dizer, ele já veio de algo que já existia e será futuramente outra coisa, como eu que hoje sou Bia Lessa, amanhã vou ser poeira” (26).
Considerações finais
Neste momento de transição, em que é fundamental o estreitamento da relação ser-humano-natureza rumo à diminuição do impacto ambiental, evidencia-se que a maior preocupação da humanidade não deve ser com aquilo que efetivamente dura pouco, mas sim com aquilo que dura muito.
Destaca-se no Pavilhão Humanidade 2012 a concepção do espaço como potente articulador da percepção da condição humana e o contraste e harmonia com a natureza, resultando na transmissão direta de uma mensagem de sustentabilidade capaz de ser uma importante e urgente fagulha transformadora rumo a um direcionamento individual e global, com o objetivo de reduzir o impacto ambiental desse segmento de atividade no planeta. Serres afirma: “...começamos a depender daquelas coisas que, outrora, não dependiam de nós e que, desde há alguns anos, dependem” (27).
Pode-se observar que Pavilhão Humanidade 2012 não foi um projeto que assumiu um compromisso de tolerância zero com o impacto ambiental em sua realização. Todas as decisões de projeto e de realização tiveram dois objetivos norteadores: pôr em prática de fato, apesar de todas as condições desfavoráveis, uma construção com algum valor real de sustentabilidade, e constituir um potente grito de alerta. Por condições desfavoráveis, entende-se a falta de referências prévias e, portanto, a falta de parâmetros nessa área, assim como a falta de conhecimento disponível e o recorrente subdimensionamento do tempo. Tempo é um recurso do qual não dispomos em abundância visto o limite em que se encontra o planeta, mas seu dimensionamento correto na materialização de ideias é um aliado fundamental rumo à diminuição do impacto ambiental.
A partir da análise do Pavilhão Humanidade 2012 como um “protótipo de solução” rumo a um “rompimento sistêmico” na realização de arquiteturas de curta duração, surgiu, inclusive, a oportunidade de aprofundar o conhecimento a respeito da palavra efêmero e, assim, ressignificar sua aplicação na qualificação de tais construções, assumindo seu caráter favorável à sustentabilidade. Para Ézio Manzini, um “protótipo de solução” significa que “uma ideia de serviço é viável e que alguém em algum lugar, foi capaz de colocá-la em prática” (28). Neste sentido, a escolha da construção do pavilhão em sistema de andaimes foi extremamente assertiva e positiva rumo à diminuição do impacto ambiental. Foi um importante primeiro passo de grande dimensão nesse momento de transição em que é necessário experimentar novas maneiras de lidar com os materiais, com o consumo de energia e emissão de gases poluentes.
Investigar e divulgar a experimentação realizada no Pavilhão Humanidade 2012 se afirma como mais um importante meio para que tal iniciativa inspire cada vez mais possibilidades práticas de realização de espaços em contextos diversos. As inovações e mudanças rumo à diminuição do impacto ambiental na construção de espaços para curta duração de fruição do público virão do conhecimento, da compreensão das experimentações já realizadas para a necessária inspiração para realizações futuras, as quais, por sua vez, apresentam potência de acarretar a importante mudança na percepção de bem-estar.
notas
1
PAPANEK, Victor. Arquitectura e Design. Ecologia e Ética. Lisboa, Edições 70, 2014.
2
SERRES, Michel. Tempo de Crise. O que a Crise Financeira Trouxe à Tona e Como Reinventar Nossa Vida e o Futuro. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, 2017, p. 54.
3
THACKARA, John. Plano B: O Design e as Alternativas Viáveis em um Mundo Complexo. São Paulo, Saraiva, p. 126.
4
JUAÇABA, Carla. Depoimento a Suzane de Queiroz Ribeiro e Alfredo Jefferson de Oliveira, 18 jul. 2017.
5
PALLASMAA, Juhani. Habitar. São Paulo, Gustavo Gili, 2017, p. 96.
6
CARDOSO, Rafael. Design Para um Mundo Complexo. São Paulo, Ubu, 2016, p. 164.
7
HEIDDEGER, Martin. Construir, habitar, pensar. In HEIDDEGER, Martin. Ensaios e Conferências. 8a edição. Petrópolis, Vozes, 2018, p. 126.
8
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2009, p. 723.
9
LIDDELL, Henry George; SCOTT, Robert (Org.). Intermediate Greek-English Lexicon. Oxford, Oxford University Press, 1883.
10
LESSA, Bia. Entrevista concedida para vídeo making off da empresa P&G, 2012.
11
JUAÇABA, Carla. Op. cit.
12
SEGRE, Roberto. Pavilhão Humanidade 2012. Uma arquitetura frágil e sustentável no evento Rio+20. Projetos, São Paulo, ano 12, n. 138-139.02, Vitruvius, jun. 2012 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/12.138-139/4403>.
13
JUAÇABA, Carla. Op. cit.
14
Idem, ibidem.
15
Idem, ibidem.
16
MATHEWS, Stanley. The Fun Palace: Cedric Price’s experiment in architecture and technology. Technoetic Arts: A Journal of Speculative Research, vol. 3, n. 2, 2005, p. 73–91.
17
JUAÇABA, Carla. Op. cit.
18
MURO, Omar. Depoimento a Suzane de Queiroz Ribeiro, 29 mai. 2018.
19
JUAÇABA, Carla. Op. cit.
20
MURO, Omar. Op. cit.
21
DUTRA, Osmar. Depoimento a Suzane de Queiroz Ribeiro, 4 jun. 2018.
22
Idem, ibidem.
23
MURO, Omar. Op. cit.
24
JUAÇABA, Carla. Op. cit.
25
GUATTARI, Félix. As Três Ecologias. 21ª edição. Campinas, Papirus, 2012, p. 9.
26
Bia Lessa fala sobre o Humanidade 2012. YouTube, San Bruno, 14 jun. 2012 <https://www.youtube.com/watch?v=Azndo2_wVjg>
27
SERRES, Michel. O Incandescente. Lisboa, Instituto Piaget, 2005, p. 222.
28
MANZINI, Ezio. Design para Inovação Social e Sustentabilidade: comunidades criativas, organizações colaborativas e novas redes projetuais. Rio de Janeiro, E-papers, 2008, p. 79.
sobre os autores
Suzane Queiroz é mestre em Design pela PUC Rio (2019), bacharel em Arquitetura pela UFRJ (1996) e possui 23 anos de experiência em cenografia multidisciplinar. Coordena o curso máster profissional Design do Entretenimento no IED Rio e também é coordenadora e professora no programa de cursos de extensão em Arquitetura na CCE PUC Rio.
Alfredo Jefferson de Oliveira possui graduação em Desenho Industrial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1983), especialização em Design pelo Istituto Europeo di Design (1989), mestrado (1987) e doutorado (2000) em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. É professor adjunto na PUC Rio.